domingo, 11 de maio de 2025

V. Kará-Murzá em francês (14/4/2025)


Endereço curto : fishuk.cc/karamurza-fr


Na manhã de 14 de abril de 2025, o político e historiador russo Vladímir Kará-Murzá concedeu uma entrevista em francês à Rádio França Internacional (RFI) pra falar de sua oposição à ditadura de Vladimir Putin, sua prisão na Rússia e sua vida no exílio. Abaixo você pode assistir à íntegra de sua conversa com o jornalista Arnaud Pontus no canal oficial, e achei o conteúdo tão importante que decidi, mesmo sem autorização, traduzir pro português e colocar aqui. No portal da RFI em português também há uma versão reduzida do programa, mas não a usei pra fins de comparação

Usei o programa Microsoft Clipchamp do Windows 11 pra tirar do vídeo uma primeira versão da transcrição usando a tecnologia IA, depois comparei o resultado com o áudio e finalmente traduzi com o Google a versão corrigida, tendo revisado manualmente o resultado. Sendo um grande intelectual, Kará-Murzá é fluente em francês, mas tive que tirar alguns cacoetes orais mais repetitivos e corrigir a gramática. Não sendo o francês minha língua materna, meu trabalho pode não estar perfeito, mas espero que possa ter contribuído a quem se interessa pelo assunto:


Olá, Vladimir Kará-Murzá!

Olá, muito obrigado pelo convite.

Obrigado por estar na RFI hoje. Três anos atrás, em abril de 2022, você foi preso e condenado a 25 anos de prisão por alta traição. A Justiça russa o acusava de criticar a invasão da Ucrânia. Você foi libertado em agosto passado na maior troca de prisioneiros com o Ocidente desde o fim da guerra fria. Como você está hoje, oito meses após sua libertação?

Às vezes ainda parece que estou assistindo a um filme, porque, para dizer a verdade, eu tinha certeza absoluta de que morreria naquela prisão na Sibéria. Essa troca em agosto passado foi um milagre e, de fato, foi a primeira troca desde 1986, que libertou não apenas os reféns, os cidadãos ocidentais que estavam nas prisões russas, mas também os prisioneiros políticos russos. E isso, para mim, foi uma mensagem muito importante, muito clara e muito forte dos países ocidentais, especialmente dos EUA e da Alemanha. E o sinal foi que eles entendem muito bem que os verdadeiros criminosos estão no Kremlin. São as pessoas que começaram a guerra na Ucrânia. Não éramos nós, que estávamos presos porque nos manifestamos contra essa guerra. E também foi uma mensagem muito forte de solidariedade dos países ocidentais com todas essas pessoas na Rússia. Há milhões de pessoas na Rússia hoje que são contra esta guerra, que são contra o regime autoritário de Vladimir Putin, e é muito importante que o mundo livre tenha se expressado assim.

Hoje, Vladimir Kará-Murzá, a guerra continua na Ucrânia. As negociações de cessar-fogo ainda não foram bem-sucedidas. Você deseja esse cessar-fogo?

Quero que essa guerra termine o mais rápido possível, porque centenas de milhares de vidas humanas já foram perdidas por causa dessa agressão, por causa dessa guerra criminosa travada pelo regime autoritário de Vladimir Putin.

Mas para que a guerra termine, Putin deve querer que ela termine. Vladimir Putin quer paz?

Não, claro que ele não quer paz. E é preciso dizer que você usou a expressão “cessar-fogo”, que está absolutamente correta. Não podemos dizer “paz”, porque não haverá paz enquanto Vladimir Putin permanecer no poder.

Ou seja, não pode haver paz total e verdadeira enquanto Vladimir Putin estiver no poder?

No longo prazo, a única maneira de garantir paz, estabilidade e segurança no continente europeu é ter uma Rússia democrática, uma Rússia que respeite as leis, os direitos e as liberdades de nossos próprios cidadãos e que também respeite as fronteiras de seus vizinhos e as normas de comportamento civilizado do mundo. Porque na Rússia, a repressão interna e a agressão externa sempre andam de mãos dadas, portanto, não haverá paz enquanto Putin permanecer no poder. Mas um cessar-fogo é possível.

Então você também diz que qualquer acordo de cessar-fogo deve incluir a libertação de todos os prisioneiros de guerra.

Absolutamente. Para mim, isso é o mais importante, porque no momento estamos vendo essas negociações entre representantes do governo Trump nos EUA e o regime de Putin na Rússia. E eles falam sobre minerais, sobre o retorno de empresas americanas para a Rússia, sobre os ativos congelados, não sei o quê, falam sobre dinheiro o tempo todo. E, de fato, os dois enviados, o sr. Witkoff do lado americano e o sr. Dmitriev do lado russo, são pessoas que dedicaram suas vidas ao dinheiro e não têm nenhuma relação com a diplomacia. E por isso, é ainda mais importante que a Europa, a União Europeia avancem essa questão, como você disse, da libertação de todos os reféns, de todos os prisioneiros dessa guerra. Porque há centenas de milhares de vidas humanas que já foram perdidas e não podemos recuperá-las. Mas ainda é possível salvar dezenas de milhares de vidas humanas, pessoas que são reféns e prisioneiras desta guerra. Estou falando, é claro, dos prisioneiros de guerra de ambos os lados, mas isso é coberto pela 3.ª Convenção de Genebra, portanto, está fora de debate. Falo também dos milhares de reféns civis ucranianos que foram deportados à força para a Rússia.

Principalmente crianças.

Falo também dos milhares de crianças ucranianas que foram sequestradas. De fato, se dissermos a verdade na Rússia ou nos territórios ocupados pela Rússia, e isso é muito importante, também estou falando dos presos políticos russos, os cidadãos russos, meus concidadãos que hoje estão presos porque se manifestaram contra essa guerra de agressão, que foi o que aconteceu comigo. Mas agora, enquanto estou falando com você, há, segundo as organizações de defesa dos direitos humanos, mais de 1 500 presos políticos na Rússia. O maior grupo entre eles são os russos que se manifestaram contra essa guerra criminosa. E para muitos deles, como por exemplo Aleksei Gorinov ou Maria Ponomarenko e muitos outros, não é apenas uma questão de cativeiro, não é apenas uma questão de prisão ilegal, mas também uma questão de vida ou morte, e essas pessoas devem ser salvas.

Vladimir Kará-Murzá, você nos diz que os enviados russos e americanos só falam de dinheiro. Você acha que a abordagem do presidente Trump é a correta? Você entende essa lógica?

Acredito que a política do atual governo dos EUA é vergonhosa, é completamente contraproducente, porque de fato é uma política de reaproximação, de normalização das relações com Vladimir Putin. E eu gostaria de lembrar a todos que Vladimir Putin, antes de tudo, não é um presidente legítimo. Ele está no poder há 25 anos, embora haja um limite constitucional de dois mandatos na Rússia, e ele encontrou truques pseudolegais para contornar esse limite constitucional. E devemos lembrar também que no ano passado, em 2024, o Parlamento Europeu e a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovaram resoluções reconhecendo Vladimir Putin pelo que ele é: um usurpador ilegítimo. Mas ele é mais do que isso. É também um assassino. É um homicida. Porque foi sob seu comando que os dois principais líderes da oposição democrática russa, Boris Nemtsov e Aleksei Navalny, foram assassinados. É sob seu comando que pessoas morrem todos os dias na Ucrânia, incluindo crianças recentemente na cidade de Krivoi Rog [ucr. Kryvy Rih]. Em todos esses 25 anos em que Vladimir Putin permanece no poder, ele mata, mata, mata, mata, ele mata dentro da Rússia, ele mata fora da Rússia. E é importante lembrar a todos os dirigentes ocidentais, especialmente aos americanos, que querem normalizar as relações com Vladimir Putin, devolver a Vladimir Putin essa legitimidade que ele não merece e apertar a mão de Vladimir Putin mais uma vez, é importante lembrá-los de que é uma mão coberta de sangue.

Você tem medo de que, seguindo os passos de Donald Trump, alguns considerem que Vladimir Putin tenha novamente se tornado frequentável?

Mas estamos vendo isso. Se observarmos o que o sr. Trump fez nos últimos dois meses desde que retornou à Casa Branca. Ele convidou Vladimir Putin para se juntar novamente ao G8. Os EUA votaram na ONU contra a Ucrânia e junto com a Rússia, Belarus e Coreia do Norte. Como lembramos, os Estados Unidos suspenderam a ajuda e a assistência militar à Ucrânia, o que causou centenas de mortes no país. E então vemos também, se falamos de ações práticas, que o governo Trump destruiu completamente a infraestrutura internacional de assistência à democracia e aos direitos humanos. E agora o governo Trump está destruindo o sistema de mídias americanas que disseminavam informações objetivas não apenas para os russos, mas também para os cubanos, os iranianos, os chineses, para milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo que atualmente vivem sob regimes autoritários.

Você dizia agora mesmo que seu objetivo é alcançar uma Rússia democrática. Em uma sociedade tão isolada como a russa de hoje, com propaganda onipresente, como a oposição pode difundir sua mensagem?

Na verdade, para mim, uma das principais razões para a queda do regime comunista foi o fato de que esse regime, no início da década de 1990, já havia sido deslegitimado aos olhos de grande parte da população graças aos programas de rádio que eram transmitidos pelos países ocidentais e eram ouvidos por milhões e milhões de pessoas na União Soviética e em outros países comunistas. E, de fato, foram as mesmas pessoas que ouviam, digamos, a Rádio Liberdade na década de 1970 que saíram às barricadas em agosto de 1991, durante nossa revolução democrática na Rússia. Se era possível fazer isso com a tecnologia da década de 1970, certamente é possível agora. Agora existe a internet. Sim, há muita censura online sob o regime de Putin, mas existem VPNs e outras maneiras de driblar essa censura. O problema é que muitas vezes vemos que o Ocidente, as empresas e governos ocidentais, em vez de ajudar os cidadãos russos a terem essa verdade, essa informação objetiva, os vemos ajudando o regime de Putin a censurar essa informação, por exemplo...

São cúmplices, de fato.

Com certeza são cúmplices. Nestes últimos meses, por exemplo, a tão conhecida empresa americana Apple removeu mais de 50 sistemas VPN, o sistema que ajuda as pessoas a driblarem a censura, a pedido do regime de Putin. Não foi o regime de Putin que fez isso, foi a Apple. E como acabei de lhe dizer, agora o governo Trump está destruindo o sistema de mídias internacionais. E há alguns dias, a chefe do principal canal de propaganda da Rússia, Russia Today, Margarita Simonian, estava na TV, muito feliz com as ações do governo americano. Ela disse que, infelizmente, nunca conseguimos acabar com essas mídias. Mas agora são os próprios Estados Unidos da América que estão o fazendo.

Estão o fazendo. Onde está a alternativa democrática na Rússia, Vladimir Kará-Murzá?

Há milhões e milhões de pessoas na Rússia que são contra essa guerra, que são contra esse regime, que querem que a Rússia seja um país normal, civilizado, europeu, democrático. Vimos, por exemplo, no ano passado, durante o teatro que foram nossas “eleições presidenciais” entre aspas. Quando foi...

Uma farsa, você quer dizer, era uma encenação?

Bem, eram apenas Putin e alguns palhaços que ele havia selecionado. Mas, ao mesmo tempo, havia um candidato, um advogado, ex-deputado do Parlamento russo, chamado Boris Nadezhdin, que anunciou sua candidatura à presidência russa como um candidato antiguerra. Ele disse que era contra a guerra na Ucrânia. E a reação do público foi completamente incrível. De repente, vimos filas por toda a Rússia, enormes filas de pessoas querendo assinar as petições para registrar esse candidato. Na época, eu estava na prisão e recebia muitas cartas de toda a Rússia, e quase todas eram sobre essas filas enormes, pessoas votando com os pés, por assim dizer, no candidato antiguerra. Porque a propaganda putinista quer que todos acreditem que todos os russos apoiam a guerra e todos os russos apoiam o regime. Mas você sabe que eles podem fraudar eleições, o que eles fazem, eles podem fraudar pesquisas, o que eles fazem. Mas não há nada que eles possam fazer com as imagens das milhares e milhares de pessoas em toda a Rússia que acreditam em um futuro democrático e pacífico.

Então há uma sede por democracia na Rússia e além?

Há muitas pessoas que querem mudanças. Há muitas pessoas que querem que este regime finalmente perca o poder. E não tenho dúvidas, não apenas como político, mas também, sobretudo, como historiador, de que chegará o dia em que a Rússia será um país normal, civilizado e democrático, e nesse dia, finalmente poderemos ter uma Europa livre, integral e em paz.

Vladimir Kará-Murzá, como eu disse no início da conversa, você foi libertado em agosto passado, depois de passar dois anos e três meses na prisão. Como você conseguiu aguentar todo esse tempo, incluindo 11 meses na solitária?

Absolutamente. De fato, segundo o direito internacional, mais de 15 dias de solitária são oficialmente considerados uma forma de tortura. E nunca entendi o porquê, mas agora entendo muito bem, porque quando você fica o tempo todo nessa pequena cela, quatro paredes, uma janelinha com grades de metal, você está sozinho o tempo todo. Você não pode falar com ninguém, você não fala em lugar nenhum. Você não pode fazer nada, porque, por exemplo, até para escrever, eles te dão papel e caneta apenas por uma hora e meia por dia, e depois eles te tomam. E também eu era proibido de ligar para minha esposa e meus filhos, eu não podia contatá-los por telefone. Essa é uma velha prática soviética, quando o regime quer punir não apenas os opositores políticos, mas também suas famílias. E é... vou ser honesto com você, é muito difícil, em circunstâncias como essa, manter a cabeça fria. É muito importante ocupar a mente com algo importante, preencher o cérebro, se preferir, preencher o tempo também. E então, fiquei estudando espanhol, eu tinha um livro que eu lia o tempo todo, da manhã até a noite, eu estava estudando espanhol. E obviamente nunca pensei que iria usá-lo, porque, como eu já disse, não achava que seria libertado. Mas depois do milagre dessa troca, no ano passado, algumas semanas atrás, eu estava em Madri para encontros e reuniões com deputados espanhóis. Consegui praticar e aparentemente agora consigo falar espanhol.

Então, falar também espanhol?

Sim, até mesmo o tempo na prisão pode ser empregado em algo prático.

Com o que se parece sua vida hoje? Com a de um exilado? Você se sente livre?

Eu me sentia livre mesmo na prisão, porque nunca fui privado de minhas convicções, de meus princípios. Eles podem te aprisionar fisicamente, mas não podem parar seu espírito. E agora é um pouco louco, porque o problema é que eu não tive realmente uma transição entre o isolamento em uma prisão siberiana e a vida atual, quando estou, não sei, em quatro ou cinco países diferentes a cada semana, é um pouco louco, para ser sincero. Mas há tantas coisas para fazer, há tantos problemas para discutir, porque, como eu já disse, há mais de 1 500 presos políticos na Rússia e, para muitos deles, é literalmente uma questão de sobrevivência. E devemos fazer tudo o que pudermos para libertar essas pessoas cujo único “crime” entre aspas é o fato de não terem se calado diante das atrocidades cometidas pelo regime de Vladimir Putin.

E você se sente ameaçado, observado, mesmo estando fora da Rússia?

Não penso nisso, porque é um caminho para a paranoia, e não é o caminho que quero seguir. Eu sei que estou certo, sei que o que estou fazendo é correto e sei que estou do lado certo da história. Também sei que o que nossos colegas da oposição democrática russa estão fazendo é importante, e vou continuar o fazendo apesar de tudo.

Muito obrigado, Vladimir Kará-Murzá, por ter vindo à RFI.

Obrigado, é um prazer.

E tenha um bom dia.



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