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A literatura russa é fruto de um longo processo de unificação da língua e do Estado em torno de Moscou como capital política. Inicialmente de caráter religioso-eclesiástico, ela foi incorporando elementos populares e ocidentais que confluíram no período áureo vivido durante o século 19. No século 20, as limitações do “realismo socialista” imposto pelo poder soviético incentivaram um período de experimentação.
A história da literatura russa costuma ser dividida em dois grandes períodos: 1) a era pré-revolucionária, antes de 1917, que se subdivide a) do século 11, quando os eslavos orientais reuniam-se em torno da chamada Rus kievita, até o final do século 17, quando se iniciou o reinado de Pedro, o Grande, e b) do final do século 17, quando o idioma russo começava a ser padronizado, até 1917, quando os bolcheviques tomaram o poder; 2) a era pós-revolucionária, iniciada em 1917 e marcada pela Revolução Russa, pela ideologia comunista e pela universalização do ensino e de um dialeto nacional padronizado.
No início, a literatura no mundo eslavo oriental (grosso modo, atuais Rússia, Ucrânia e Belarus) compunha-se essencialmente de crônicas escritas em eslavo eclesiástico, língua codificada pelos santos Cirilo e Metódio e muito influenciada pelo grego de Bizâncio (atual Istambul). Era também desta língua e desta região que se traduzia no mundo eslavo grande parte da literatura religiosa. Outros escritos consistiam também de peças folclóricas, ditos, canções épicas e poesia religiosa, e a inclusão política dentro da Rus kievita persistiu até o século 13.
Já a partir de meados do século 12, Kyiv começou a declinar como centro político, até as invasões mongóis destruírem de vez a frágil federação de principados no século seguinte. A partir daí, o foco de difusão literária deslocou-se para o nordeste da Rússia e o principado da Galícia-Volínia, mas poucas obras do século 14 sobreviveram ao tempo, diante do jugo estrangeiro.
No século 15, teve início o que se pode chamar de produção literária em Moscou, na sequência da unificação nacional em torno dessa cidade. Destacam-se narrativas históricas e de batalhas militares, além da igual importância da cidade de Novgorod como exemplo de difusora literária. No século seguinte, sob o reino de Ivan 4.º, o Terrível, os mongóis foram enfim derrotados e a Rússia foi unificada em torno de uma autocracia. Apareceram textos de exaltação ao país e narrações das disputas do monarca com os boiardos (nobres).
No final do século 16 e no começo do 17, dominaram as narrativas de brigas internas e invasões externas, e em meados do século 17, os temas profanos ascenderam. Com Pedro, o Grande, e suas iniciativas de ocidentalização e modernização, trocou-se aos poucos a literatura religiosa pela secular, e então começaram a suceder-se as diversas correntes descritas a seguir.
Classicismo: ênfase na tradição popular e na vida cotidiana, com moldes inspirados nos clássicos e no neoclassicismo francês; Mikhail Vassilievich Lomonossov, conhecido polímata russo (uma espécie de Da Vinci), compôs muitos poemas e, em 1757, escreveu a primeira gramática da língua russa; sob o reinado de Catarina, a Grande (1762-1796), tiveram ênfase os temas da liberdade e dos direitos humanos.
Romantismo: predominante no século 19, quando se deu grande desenvolvimento literário geral e, sob a influência dos românticos ingleses e alemães (que também foram aí então muito difundidos), emergiram, entre outros, Pushkin (considerado o maior escritor russo), Lermontov e Nekrasov.
Realismo: momento da grande era da ficção, suplantou o romantismo, que fracassou em fixar-se, e adquiriu realmente maior enraizamento nacional; Gogol foi seu principal expoente, mas também brilharam Turgenev (apologia da democracia social), Dostoievski (crítica das ideias e instituições da época), Tolstoi (mais afastado da vida literária central, mas autor de quadros da sociedade russa e de crenças cristãs pessoais), Goncharov, Saltykov-Schedrin (com A família Golovliov, de 1876, do qual um dos personagens, Iudushka (Judas) Golovliov, deu o epíteto a uma crítica que Lenin ainda lançava contra Trotsky em 1911), Chekhov (mestre do conto e do drama) e outros.
Ainda no início do século 20, dentro do quadro realista, floresceram Gorki, com suas convicções revolucionárias, Vladimir Korolenko e Ivan Bunin, adeptos do realismo crítico.
Simbolismo e acmeísmo: concepções diversas entre si, marcaram o reflorescer da poesia com Soloviov, Balmont (conheça um poema seu musicado) e Anna Akhmatova (perseguida pelo regime de Stalin).
Vanguarda: abarcou várias correntes e autores, dentre os quais os autoproclamados “cubo-futuristas” (cujo manifesto representativo, Uma bofetada no gosto público, de Khlebnikov, ganhou em 2017 uma nova tradução de Erick Fishuk na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, org. Daniel Aarão Reis, ed. Penguin/Companhia das Letras), Maiakovski (adepto do bolchevismo, mas logo desencantado com o burocratismo triunfante) e Kruchonykh.
Também de Erick Fishuk, existe uma reflexão online sobre um famoso poema de Khlebnikov (“Encantação pelo riso”), cuja tradução ele não ousou empreender, mas para a qual ofereceu instigantes reflexões.
Realismo socialista: corrente soviética predominante nos anos 1930, baseia-se nos pensamentos do burocrata Andrei Zhdanov (por isso também conhecida por “zhdanovismo”) e tornou-se doutrina oficial de Estado sobre as artes em geral; conhecem-se Nikolai Ostrovski (cujo arquétipo do estilo, Assim foi temperado o aço, teve tradução brasileira lançada pelo PCB), Isaac Babel, Mikhail Sholokhov (O tranquilo rio Don) e Ilia Ehrenburg (busca por tirar a literatura da estagnação após a 2.ª Guerra Mundial).
Tikhi Don (O tranquilo rio Don), romance escrito por Sholokhov em quatro volumes de 1925 a 1932 e em 1940, trata de uma família de cossacos do Don, os Melekhov, que vive uma trágica história amorosa nos anos da Primeira Guerra, da Revolução Russa e da Guerra Civil. Retratando o declínio e desmonte, pelos bolcheviques, da instituição dos cossacos como guerreiros livres, inspirou com várias mudanças o filme homônimo dirigido por Sergei Gerasimov em 1957-58, traduzido em inglês como And Quiet Flows the Don. Nesse filme, os russos ouviram o hino nacional do período tsarista pela primeira vez desde a queda da monarquia, em 1917. A ópera Terras virgens desbravadas, composta e estreada pelo músico Ivan Dzerzhinski em 1937, também foi inspirada no romance de Sholokhov, e comporta a música Canção do cossaco, com letra de Aleksandr Churkin. Neste vídeo, há uma montagem com cenas do referido filme e a canção de Churkin, com legendas em português.
Reação ao controle estatal: nesse movimento, destacam-se Boris Pasternak (com seu Doutor Zhivago, usualmente grafado “Jivago”), o poeta Ievgeni Ievtushenko (que morreu em 1.º de abril de 2017) e o polêmico Aleksandr Solzhenitsyn (monarquista, expulso da URSS em 1974, quando publicou Arquipélago Gulag, célebre descrição dos campos de trabalho forçado para prisioneiros políticos e comuns).