quinta-feira, 16 de maio de 2024

Bonner na condição de sexagenário


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A edição do Jornal Nacional de 13 de maio de 2024 foi mais uma das ultimamente apresentadas por William Bonner direto do Rio Grande do Sul, devido às tragédias provocadas pelas fortes chuvas e consequentes inundações em todo o estado desde o início de maio. Pode parecer inumano trazer um meme a partir de cenário tão desolador, mas ficou muito engraçado quando ele pronunciou a seguinte frase na abertura da edição, a partir de Porto Alegre, comentando a mudança de roupa repentina desde a escalada da abertura do jornal:

“E antes que você estranhe a diferença de vestimenta entre a abertura do Jornal Nacional e este momento, eu tenho que dizer que a temperatura caiu muito nos minutos que separaram um momento do outro. Eu estou respeitando o frio e a minha condição de sexagenário.

Como Bonner sempre teve uma compostura bem rígida e cuidou muito da linguagem, esse erudito “sexagenário” também lhe pareceu bem característico, embora dissonante do fundo com prédios em ruínas, rs. Claro que como “meme” falado por uma personalidade famosa, ainda mais com fama de galã no passado, o “minha condição de sexagenário” pode ter usos variados. Aproveite a versão integral do trecho e a última frase publicada à parte:





terça-feira, 14 de maio de 2024

Raízes do lema Mulher, Vida, Liberdade


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Há alguns dias, achei por acaso esta resenha escrita em 2023 pelo italiano Gianni Sartori ao livro de uma acadêmica irano-francesa sobre a revolta das mulheres curdas contra a opressão étnica dos Estados nacionais, especialmente Turquia, Síria e Irã. Quando da publicação do texto, o movimento iraniano de revolta eclodido logo após a morte da jovem curda Jîna Emînî (em persa, Mahsā Amini), que tinha vindo do interior a Teerã, onde foi presa e acossada pela chamada “polícia dos costumes”, completava seis meses e parecia refluir.

Nesse contexto, os dois autores relembram que o lema que rodou o mundo como símbolo dos protestos, “Zan, Zendegi, Āzādi” (em persa, “Mulher, Vida, Liberdade”), na verdade se originou muitas décadas antes, no Curdistão e na língua local: “Jin, Jiyan, Azadî” (o jota se pronuncia como em português). Há dialetos do curdo que usam o alfabeto latino, e outros que usam uma adaptação da escrita árabe; a diferença do i sem circunflexo é que ele é mais curto e fechado do que o i com circunflexo. As formas jiyan e jîyan (com circunflexo) são igualmente corretas.

Eu mesmo traduzi o texto do italiano, mas há também outros artigos em inglês escritos após a morte de Emînî/Amini que traçam a “genealogia” curda, feminista e de esquerda do lema “Mulher, Vida, Liberdade” (o jin curdo é um parente distante do elemento “gin-” de origem grega, que aparece, por exemplo, em “ginecologia” e “misoginia”!). Por exemplo, o de Meghan Bodette (aqui na tradução em português), o de Somayeh Rostampour, a própria autora do livro resenhado (traduzido do persa), e curiosamente a professora Florencia Guarche, já em 2015, tinha defendido um TCC na Unipampa sobre o “Jin, Jiyan, Azadî” e depois fez o mestrado e continua seu doutorado sobre as revolucionárias curdas. Boa leitura!



Algumas considerações sobre a genealogia de “Mulher, Vida, Liberdade”. Uma “fórmula mágica” já empregada por Abdullah Öcalan (fundador do PKK em 1978) ainda em 2006. O lema “Jin, Jiyan, Azadî” não é um artigo de burguês radical-chic: é uma mensagem revolucionária bradada pelas combatentes curdas e escrita sobre as paredes das prisões.

Pretender, com as modestas forças à disposição e a falta de títulos acadêmicos adequados, resenhar, comentar, divulgar (e fatalmente reassumir) o que podemos definir como uma “investigação”, feita pela militante curda Somayeh Rostampour [Jin, Jiyan, Azadi (Woman, Life, Freedom): The Genealogy of a Slogan], sobre as origens e o significado do lema “Jin, Jiyan, Azadî” (“Mulher, Vida, Liberdade”) não pode ser, ao menos de minha parte, senão um exagero.

Por outro lado, os “especialistas de plantão” parecem no mais das vezes concentrados ou em instrumentalizá-lo ou, talvez pior, em utilizá-lo sem critério ou conhecimento adequado. Veja o caso de certa parlamentar europeia italiana ou de corporações paraestatais em todo caso respeitáveis, mas que dificilmente podem ser identificadas com os decênios de luta pela libertação do povo curdo.

É quase uma falta de respeito pelas que o idealizaram, representaram e, diria, quase encarnaram: as mulheres curdas que combatem a opressão patriarcal, estatal e capitalista em todas as suas incontáveis formas.

Vou, portanto, demonstrar aqui.

O movimento de revolta feminista (não parece exagero defini-lo como pré-insurrecional) que, por mais de seis meses, tem incendiado o Rojhilat e o Irã inteiro (e que no momento parece ter entrado numa fase de refluxo) tem uma data exata de início: 16 de setembro de 2022. Naquela data foi assassinada pela polícia moral da República Islâmica Jîna (registrada como Mahsā, porque o nome curdo tinha sido proibido) Amini.

Uma rebelião não somente contra o uso obrigatório do hijab, mas também contra o que Somayeh Rostampour qualifica como “44 anos de apartheid sexual, patriarcado, ditatura militar, neoliberalismo, nacionalismo e teocracia islamista”. E me desculpem se isso é pouco.

Um movimento preparatório para a queda do regime e uma mudança radical das relações sociais.

Apesar de tudo, como é o caso de todo movimento revolucionário, não faltam riscos concretos de instrumentalização (seja da parte de Estados como Israel e os EUA, seja da parte, por exemplo, dos monarquistas nostálgicos).

Atendo-se aos dados das ONGs, nos três primeiros meses do movimento, teriam sido presos mais de 18 mil manifestantes, milhares teriam sido feridos e cerca de 500 assassinados nos confrontos ou sob tortura (entre os quais cerca de 70 menores). Depois das condenações à morte já executadas, teme-se por outras já declaradas ou previstas (cerca de 100). Geralmente sem provas substanciais, com confissões extorquidas por meio de tortura. Pra não falarmos das condições desumanas na prisão e dos maus tratos sofridos pelas pessoas presas, em particular pelas mulheres.

Quando se grita, como destaca Somayeh Rostampour, que essa é “uma revolução das mulheres, pare de chamá-la de manifestação”, significa que desta vez (em relação aos movimentos de protesto do passado) as coisas são diferentes.

Quanto ao lema adotado, “Jin, Jiyan, Azadî”, passou a ser bradado por milhares de moradores de Saqqez (Rojhilat, Curdistão sob ocupação iraniana) durante o enterro de Jîna, o qual as autoridades tinham desejado que ocorresse em segredo.

Depois, passou a ser utilizado em outra cidade curda, Sanadaj, e em seguida pelos estudantes de Teerã. A partir de então, é ouvido claramente em todas as cidades e vilas do país inteiro.

Mas a estudiosa e militante curda se pergunta: “como esse lema chegou até Saqqez?”, e também: “qual é seu significado político e social, sua genealogia?”.

Jin, Jiyan, Azadî” não se tornou “a palavra de ordem da insurreição no Irã por acaso, ‘não caiu do céu’. Origina-se de uma longa história de lutas sociais. Representa a herança do movimento das mulheres curdas naquela parte do Curdistão localizada dentro das fronteiras da Turquia, o Bakur”.

Relembra, então, o que tinha escrito em setembro passado Atefeh Nabavii, companheira de cela de Shirin Alamholi, expoente do PJAK justiçada aos 28 anos em 2009 e cujo corpo jamais foi restituído à família:

“Soube pela primeira vez do lema Jin, Jiyan, Azadî por meio de Shirin Alamholi na prisão de Evin; estava escrito na parede da cela, ao lado de sua cama”.

Tanto o PJAK (Partido por uma Vida Livre no Curdistão) no Rojhilat quanto o movimento das mulheres em Bakur extraem sua visão de mundo do pensamento de Öcalan. Inicialmente (1978), o partido se valia de meios pacíficos, mas após o golpe de Estado de 1980 recorreu à luta armada. Também é notável que, desde 1999, aquele que podemos chamar de “Mandela curdo”, após um sequestro ilegal no Quênia, está detido na prisão de Imrali.

Inicialmente, naquela que podemos chamar de “fase marxista-nacionalista”, Öcalan também tinha sido influenciado pelo maoismo, bem como pelo pensamento de Frantz Fanon (Os condenados da terra) e de Che Guevara. Mas desde o início tinha fortemente encorajado o protagonismo das mulheres na luta de libertação, porquanto “a libertação do Curdistão não será possível sem a libertação das mulheres”.

Nisso ele se distingue da maior parte das organizações da esquerda revolucionária, não somente das organizações do Oriente Médio.

Ou seja, “o PKK jogava luz sobre a questão feminina tendo por pano de fundo o nacionalismo curdo moderno, que se baseava principalmente na defesa da pátria curda, do próprio território, da cultura e da língua curda”.

Na sequência, sobretudo a partir de 1995, ocorre no PKK o que Somayeh Rostampour considera uma “revolução cultural”, distanciando-se tanto da ortodoxia marxista mais rígida quanto da reivindicação de uma pátria independente (o “Grande Curdistão”) e evoluindo rumo a uma visão política centrada no conceito de “democracia” (em parte, em detrimento do conceito de “classe”). Em sua elaboração, Öcalan passa a individuar os sujeitos do processo revolucionário não somente nos trabalhadores, mas também, sobretudo, nas mulheres e nas práticas ecologistas.

Elabora uma síntese de comunalismo e autonomia social denominada “confederalismo democrático”, fundado em três pilares: as comunas, as mulheres e a ecologia.

A questão das mulheres se torna ainda mais central e a componente feminista do PKK adquire cada vez mais importância, tanto na elaboração política quanto na prática social. Bem como na Resistência, obviamente.

Contudo, já anteriormente, Öcalan tinha analisado e recuperado as antigas traduções matriarcais (matrilineares) mesopotâmicas (ver o antagonismo entre o deus masculino Enkidu e a deusa guerreira Ishtar) em contraponto tanto ao patriarcado quanto ao imperialismo e ao colonialismo.

Sua convicção era de que as mulheres, primeiras a criarem a vida e a cultivar os conhecimentos indispensáveis a ela, tinham sido expropriadas desses conhecimentos pelos homens.

Como Öcalan mesmo declarou, seu objetivo político era o de “restituir às mulheres a confiança em si mesmas, que elas tinham perdido demonstrando que o patriarcado não era um princípio eterno e natural da história, mas antes o resultado de práticas históricas”. Conclui, assim, que “o patriarcado podia ser superado”.

Pelo menos desde 1990, Öcalan tinha utilizado juntos, em diversas ocasiões, os conceitos de “Mulher” e de “Vida”.

Também porque a raiz das palavras mulher (Jin) e vida (Jiyan) na língua curda é a mesma.

Não por acaso, em 1999 o PKK publicava um documento intitulado “Jin, Jiyan” e, a partir de 2000, o lema “Jin, Jiyan” foi ampla e sistematicamente utilizado pelas mulheres curdas em Bakur (o Curdistão sob ocupação turca).

Desse ponto de vista, a expressão “Jin, Jiyan” é muito anterior à atual “Jin, Jiyan, Azadî”.

E também a palavra “Azadî” (Liberdade) se juntava aos conceitos basilares do PKK. Liberdade com relação às relações sociais de domínio e de poder, tanto do capitalismo quanto do Estado e do patriarcado.

Com base nos testemunhos recolhidos, em 2002, durante a cerimônia fúnebre organizada pelos militantes do PKK pra uma mulher vítima de feminicídio, as mulheres presentes tinham bradado o lema “Jin, Jiyan, Azadî” em sua inteireza. Desde então, continuou sendo difundido, se tornando quase uma tradição, sobretudo, pelas mulheres assassinadas.

Öcalan, de novo ele, tinha utilizado as três palavras juntas – talvez pela primeira vez – no quarto de seus livros escritos na prisão, A crise da civilização no Oriente Médio e a solução da civilização democrática, em 2006.

Não usado particularmente até 2008, explodiu, literalmente, em Rojava e Bakur, sobretudo a partir de 2013.

Numa carta escrita em 2013 (nos lembra Somayeh Rostampour), Öcalan evidenciava a potência inteiramente política do lema “Jin, Jyian, Azadî” na busca de uma “vida digna”, chegando a chamá-lo de “fórmula mágica” apta a fornecer um modelo pras mulheres de todo o Oriente Médio.

Naturalmente, “nem a história do PKK, nem a das mulheres no movimento, podem ser reduzidas àquela de seu dirigente”.

O PKK é “um movimento social e político que se desenvolveu não somente no âmbito político, mas também na vida cotidiana de milhões de pessoas já por várias gerações”.

E foram as mulheres do PKK, tanto as combatentes quanto as que atuam na sociedade civil, que transformaram o “Jin, Jiyan, Azadî” na ideia central do movimento. “Feminizaram” a política no Curdistão e também condicionaram a da Turquia, indo de casa em casa, falando com mulheres de todas as condições sociais e transformando a questão de gênero de uma exigência das elites num problema que concerne a todos os oprimidos.

Pra concluir com Somayeh Rostampour, “tudo o que ocorreu em 17 de setembro em Saqqez durante o funeral de Jîna Amînî não era um acontecimento sem precedentes”, mas antes “a continuação de uma tradição política revolucionária de longa data, gerada originalmente pelo PKK”. Tradição na qual têm tido um papel preponderante também as “mães pela justiça”, aquelas que perderam seus filhos na luta pela libertação no Bakur e no Rojhilat (cf. as “Mães do sábado” e o Dadkhaah).



domingo, 12 de maio de 2024

Sexo russo-ucraniano, ônibus no rio...


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Chegamos à décima edição do “mix de política”, geralmente com humor e muita crítica! Na verdade, abri mais este item como pretexto pra publicar alguns memes e piadas, além de um fato bizarro, mas de fato eles estão mais ou menos relacionados. Então vamos começar!

Há alguns dias, caí num grupo do Telegrão chamado “República da Gagaúzia”, que publica e se comunica em russo. Há algumas semanas me interessei por essa região autônoma da Moldova (antiga Moldávia soviética), onde vive um povo de língua túrquica, mas de religião ortodoxa, talvez um caso único, mas que fala cada vez mais russo ou romeno em detrimento do gagaúzo, que pertence ao mesmo grupo “oghuz” do turco moderno e, portanto, se parece muito com ele. Devido à ortodoxia religiosa e à conservação da língua russa, de fato ainda falada por grande parte da população moldova, a Gagaúzia mantém laços estreitos com a Rússia, e a presidente nacional pró-Europa, Maia Sandu, teme que cresça aí um foco de subversão a partir do Kremlin. De fato, em julho de 2023, foi eleita como presidente (bashkan) da região Ievgénia Gutsúl, burocrata de passado obscuro e antiga filiada do Partido Shor, pertencente ao oligarca pró-Rússia Ilan... Shor. Gutsul se apresenta como independente desde a interdição da legenda, mas até hoje não foi reconhecida por Sandu.

Achei que havia materiais e discussões sobre a cultura e o cotidiano da Gagaúzia no referido grupo, mas acabei descobrindo que se tratava de um covil de putinistas, que mal falavam da própria terra natal e provavelmente pertenciam à diáspora que vive em Moscou. O que mais se fazia era defender a invasão da Ucrânia e falar mal dos ucranianos: o ambiente era tão tóxico que, quando comecei a me apresentar, perceberam que eu tinha sobrenome ucraniano, viram que minha cara não era de brasileiro (apesar de meu telefone) e começaram a me questionar, embora eu não fosse lá pra atacar Putin ou defender Zelensky. De fato, eles mesmos falaram que era um grupo “de política”, e não de cultura, e dado que fui provocado, acabei expressando algumas opiniões sobre o conflito que obviamente os deixaram emputecidos. Não fui combativo, procurava o tempo todo fugir de briga, mas tive que sair, já que as mensagens não paravam devido à alta atividade (e ficava difícil de acompanhar o que era resposta pra mim) e a mentalidade xenofóbica era intragável. Se você sabe russo e quer estudar como funciona a cabeça de um “vátnik”, sendo ele sincero ou não, eis seu lugar: recomendo altas doses prévias de Engov e Dramin!

A coisa era tão feia que os viciados em rede social dispunham até mesmo de uma reação a mensagens em que se podia ler “Соси, хохол” (Sosí, khokhól), que se pode grosseiramente traduzir como “Chupa, ucraino!”, já que a palavra khokhól designa pejorativamente um ucraniano, na linguagem coloquial russa ou anti-Ucrânia. Seu sentido original é aquele tufo ou topete de cabelo que os cossacos (uma instituição originalmente ucraniana) costumavam usar no meio da cabeça, geralmente descendo pra testa, chamado oselédets em ucraniano, e de fato significa literalmente, sobretudo no proto-eslavo, “tufo” ou “topete”. É a frase que você pode ler na primeira imagem, junto à mensagem de uma mulher que também estava ofendendo outros: não conheço a fundo a tecnologia, mas minha questão é se tais reações podem ser baixadas em pacotes ou individualmente, e quem estaria por trás de sua confecção. Bem nojento, enfim...


Não publiquei essa montagem no referido grupo, mas poderia ser uma desforra: em seu programa semanal de geopolítica na TV Rain, Ekaterina Kotrikadze comentava o novo mandato que Putin arrancara esta semana, junto a um especialista que falava de Nova York. A frase que estava na tarja era “Putin entrou num quinto mandato”, mas pensei em outra coisa e até printei também outras partes pra obter as letras certas! Quem sabe russo já entendeu que minha nova frase significa “Putin foi se f...” ou “Putin foi pro car...”, mas se você conhece os memes brasileiros mais famosos, vai entender a referência do novo “plano de fundo”, com a bandeja do “suco de laranja” bebido por certo “pai de família”. Ainda não pescou? Você que vá pesquisar agora!

Comentário MUITO DO ALEATÓRIO numa matéria do G1 que falava sobre a dificuldade de muitas mulheres explorarem seu próprio prazer e como elas pouco conheciam sobre orgasmo, mesmo não sendo necessariamente virgens, mas às vezes até casadas por anos. Podia pôr num quadro pra assustar os jovens puritanos “liberais” de plantão, rs.


No último dia 10 de maio, um ônibus de transporte coletivo (que já parecia estar em alta velocidade) colidiu com um carro de passeio em São Petersburgo, o motorista perdeu o controle e o veículo caiu de uma ponte direto nas águas do rio Moika. Dos 20 passageiros a bordo, três morreram e vários ficaram feridos. Só repassei aqui as imagens das câmeras externas publicadas pela agência RIA Novosti porque são impressionantes.

Aproveito pra resgatar um vídeo que pus em meu antigo YouTube, com cenas de uma reportagem de 14 de janeiro de 2021 exibida na filial chechena da TV de notícias do governo. As notícias eram anunciadas e exibidas majoritariamente em russo, mas quando os entrevistados falavam em checheno, não havia dublagem nem legendas. Nestas imagens, são exibidos alguns acidentes urbanos e rodoviários na República da Chechênia ao longo de 2020, devidos a motoristas que não obedeciam às regras, e como (ver ao final) os pedestres também não se sentiam bem com as condições de tráfego.

As repetições que eu gostava de pôr na época são um tanto irritantes, mas ainda assim acho o material interessante: no início, o âncora saúda o público dizendo “Ассалам алейкум! Маршалла ду шуьга!” (Assalam aleikum! Marshalla du shüga!), sendo apenas a segunda parte checheno autêntico, significando “Saúdo-os!”, e a primeira você entende bem. Apenas depois ele diz “Здравствуйте!” (Zdrávstvuite!), “Olá” em russo:


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Cantemos ao pai amigo Kim Jong-un


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“A festa é sua, a festa é nossa, é de KIM quiser, KIM vier...”, kkkkk!


Raramente publico aqui, assim como publicava em meu antigo YouTube, traduções da língua coreana ou material sobre a Coreia do Norte e o dono do país, Kim Jong-un, porque não conheço quase nada do idioma, sendo insuficientes mesmo as traduções indiretas, e porque nunca foi meu tema de estudo. Óbvio que como interessado em geopolítica, direitos humanos e, sobretudo, história do comunismo, não sou totalmente ignorante quanto ao assunto, mas seleciono bem o que ocasionalmente consumo e não posso expressar o que penso a respeito como uma “verdade irrefutável” ou mesmo uma opinião profissional. O que não me interessa é justamente a puxação de saco nojenta de alguns moleques ou velhos caducos que criam “grupos de estudo” ou “centros políticos” sobre o que a ditadura chama de “ideia juche”, nem a cantilena moralista dos que pensam que os EUA e a Europa têm regimes perfeitos e com exclusivo mérito pra exportação e implantação acríticas.

Mesmo assim, a propaganda do regime, sobretudo a partir do terceiro membro da família que ocupa a liderança, Kim Jong-un (neto do “fundador” fantoche da URSS, Kim Il-sung, e filho do sucessor deste, Kim Jong-il), começou a tomar ares cômicos beirando o cringe, desde que a internet entrou como meio de exportação midiática. Com as redes sociais, as fanbases, mesmo de teor meramente humorístico, se multiplicaram, e com o TikTok e seus vídeos curtos de algoritmo poderoso, a juventude tem tomado contato com uma espécie de versão repaginada da arte da “guerra fria”. O medo de alguns analistas é justamente que as melodias pegajosas, a encenação milimetrada, a sonoplastia moderna e a descontração exibida por Kim Jong-un, muito maior do que a de seu retraído pai, levem os menos preparados a normalizarem a ditadura, confundirem os memes com a realidade e se fecharem aos estudos e relatórios profissionalmente acumulados por pesquisadores e entidades de defesa dos direitos humanos.

É o caso exatamente da mais recente canção e clipe de propaganda, “친근한 어버이” (Chingeunhan Eobeoi), que traduzi de modo simplificado como Pai amigo, mas que também pode ser traduzida “(Um) Pai amigável”, com letra de Ahn Bun-hee e melodia de Jeong Chun-il. Na verdade, segundo o Wiktionary, “어버이” (Eobeoi), que se pronuncia mais ou menos “âbâi”, é uma forma hoje reservada ao registro literário de “genitor(a)” ou “genitores(as)” (a palavra em inglês é parent), ou mesmo os “pais” tomados em conjunto, sendo que em coreano não há a categoria de gênero e nem sempre o plural é marcado. Porém, na Coreia do Norte, se tornou um dos títulos atribuídos ao “líder supremo”, isto é, os três membros sucessivos da família Kim citados acima. O que fiz aqui foi jogar no Google Tradutor a letra em coreano que achei num site e comparar com uma das muitas traduções pro inglês disponíveis por aí. A letra serve, portanto, apenas como orientação geral pra quem deseja estudar a propaganda ou a própria canção de maneira mais profunda.

Pai amigo (também título de uma das canções de Elias Muniz, um de meus cantores e compositores populares brasileiros preferidos, rs) é executada pela Banda Moranbong, um dos conjuntos que, assim como o lendário Conjunto Eletrônico Pochonbo e sua famosa gravação de Dançando lambada, é administrada pelo Estado norte-coreano. Composta apenas de vocalistas e instrumentistas mulheres, foi criada em 2012 e tem aparecido menos desde 2016, embora se apresente em grandes datas e ocasiões especiais, como provavelmente foi o caso desse lindo clipe. Ironicamente, é muito comum que elas também executem canções do pop ocidental e de filmes e animações do cinema americano, em vídeos facilmente encontráveis no YouTube! Você tem quatro versões à disposição: a tradução em inglês de um canal de canções legendadas, uma versão pra karaokê apenas com o áudio (mas também letra), o clipe oficial com legendas em coreano (que incorporei do Drive por ter mais valor) e uma legendagem em português, que achei por acaso num canal perdido e com a qual comparei a “minha” própria.

Perceba que tanto na versão escrita quanto nas legendas norte-coreanas, o nome de “Kim Jong-un” (transliteração mais comum de 김정은) aparece destacado de alguma forma: seja em negrito, seja na cor vermelha (de sangue dos mortos políticos? rs). Se você sabe ou conhece bem coreano e se interessa minimamente pelo tema, seu retorno com sugestões e/ou correções seria muito bem-vindo:








1. 어머니 그 품처럼 따사로워라
아버지 그 품처럼 자애로워라
슬하의 천만자식 한품에 안고
정을 다해 보살피시네

후렴:
노래하자 김정은 위대하신 령도자
자랑하자 김정은 친근한 어버이
인민은 한마음 믿고 따르네
친근한 어버이

2. 베푸신 그 은정은 바다같아라
주시는 그 믿음은 하늘같아라
언제나 우리곁에 함께 계시며
모든 소원 꽃펴주시네

(후렴)

3. 창창한 우리 앞날 열어주시네
더 좋은 우리 행복 안아오시네
한없이 은혜로운 그 손길 잡고
더 밝은 미래로 가네

(후렴 x2)

노래하자 자랑하자 친근한 어버이

____________________


1. Caloroso como os braços de sua mãe
Misericordioso como os braços de seu pai
Ele segura os 10 milhões de filhos nos braços
E cuida de nós de todo coração.

Refrão:
Vamos cantar sobre Kim Jong-un
O grande líder
Vamos nos vangloriar de ter Kim Jong-un
O pai amigo
Todos o seguem e confiam de todo coração
O pai amigo

2. O amor que você dá é como o mar
A confiança que você dá é como o céu
Você está sempre do nosso lado
E realiza todos os nossos desejos

(Refrão)

3. Você nos abre um futuro brilhante
Você nos traz mais felicidade
Você nos dá sua mão infinitamente graciosa
E nos conduz rumo a um futuro melhor

(Refrão 2x)

Vamos cantar e nos vangloriar do pai amigo



quarta-feira, 8 de maio de 2024

O putinço se volta contra o putinceiro


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Agradeço a meu amigo Claudio Cavalcante Junior, paranaense do Rio de Janeiro (rs), professor, mestre em Antropologia, doutorando em Sociologia e Antropologia e defensor das causas ucranianas, por ter me apresentado ao mais novo meme da “guerrosfera”, desta vez relacionado aos fascistas ocidentais que na verdade querem a vitória de Putin. Marjorie Taylor Greene, deputada federal do Partido Republicano pelo estado da Geórgia, nos EUA, é conhecida até mesmo pela Wikipédia como “teórica da conspiração”, pois como representante da ala “MAGA” (isto é, trumpista de choque) de sua legenda, defende com unhas e dentes todo tipo de afirmação maluca emitida pelo ex-presidente. Ela é considerada por alguns analistas como “mais trumpista que o próprio Trump”, e por seu exagero nesse sentido, eu a compararia com Carla Zambelli, que chegou ao extremo de ajudar na derrota de Bolsonaro perseguindo um negro no meio da capital paulista com uma arma na mão e ajudada por assessores. (Tudo bem que ele estava provocando, dizendo “Aqui é Lula, papai!”, mas isso nem de longe justifica.)

Há alguns dias, Taylor Greene ameaçou entrar com um pedido de cassação do deputado Mike Johnson, presidente da Câmara dos Representantes e também republicano, por ter ajudado a finalmente aprovar o pacote de centenas de bilhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia, a Israel e a Taiwan. O bloqueio de meses só foi resolvido com o “fatiamento” da ajuda e a aprovação separada das partes, o que não impediu a deputada extremista de chamar o acordo bipartidário de “caminho a um partido único” (que ela chamou de “Uniparty”). Neste trecho de uma entrevista coletiva que ela publicou no próprio Équis, Taylor Greene denunciou o financiamento de mais uma “guerra interminável no exterior” em detrimento dos “interesses nacionais” (basicamente, terminar o muro na fronteira com o México e expulsar imigrantes latino-americanos). Num gesto esquisito, ela tirou um boné (feito por quem, e onde?) com as cores da bandeira ucraniana, contendo as iniciais “MUGA”, e o posicionou sobre um retrato com os líderes dos dois blocos, porque em suas palavras, o Uniparty tinha como política “Making Ukraine Great Again” (tornar a Ucrânia grande novamente):



Definitivamente, não só a trumpada infame não colou, como também o “MUGA”, sua peculiar e inesperada inovação, acabou tendo o efeito reverso de ser usado como símbolo de apoio à resistência ucraniana contra a invasão moscovita. Como disse um jornal dos EUA, a Zambelli ianque agora poderia dar um novo sentido ao MAGA: “Making Another Gaffe Again” (fazendo outra gafe novamente), rs. Segue abaixo uma pequena adaptação peculiar minha ao vídeo, e os memes e montagens que Claudio me mandou e outros que achei no Google Imagens, alguns deles explicados ou traduzidos:










“Todos esses rublos [pagos aos trumpistas] e é com isso que ela me aparece!”






O Raul Gazolla da quinta idade, ou Pedro Paulo Petr Pavel, presidente da Chéquia, ex-comandante da OTAN e o mais consequente suporte ocidental à Ucrânia, mesmo no antigo bloco soviético.


Os amigos da Ucrânia, agora “MUGAs” (rs), bebendo as lágrimas das putinetes defensoras de genocídio!











“Viver na Rússia” e “Elogiar a Rússia do conforto de um país ocidental” (lembrando que desde 2022 os ucranianos só usam “rússia” e “putin” com inicial minúscula). O termo pejorativo vatnik foi criado a partir de um meme em 2011, mas se popularizou na internet a partir de 2014 (invasão russa da Crimeia e começo da intervenção no Donbás) pra designar um ultranacionalista que acredita piamente na propaganda de Putin. É muito recorrente nas redes sociais da NAFO-OFAN citada acima, uma comunidade humorística criada em 2022 pra combater a desinformação do Kremlin e que até já se reuniu pessoalmente pela primeira vez em maio de 2023.

Claudio me mandou também este mapa, mas achei um pouco exagerado. É uma resposta à reivindicação de Putin sobre “terras historicamente russas”, mostrando como várias regiões hoje da Rússia também foram habitadas, até o século 18, por cossacos ucranianos depois assimilados à cultura russa ou forçados a deixar sua língua e cultura, sobretudo por Catarina 2.ª, que de Grande só tinha a pança... Depois da entrevista do ditador a um tuiteiro chamado Tucker Carlson, quando ele repetiu as mesmas mentiras históricas, um ex-presidente da Mongólia zoou postando um mapa com a Rússia e toda a Ásia Central pintadas de vermelho e designadas como o Império Mongol na Idade Média (e a “Rússia”, um pequeno círculo branco em torno de Moscou...). Deve ter sido a inspiração dos ucranianos, que também indicam os “russos” com o termo pejorativo “moskalí”.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Queriam que redes fossem atóxicas?


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Nova crônica de Ronaldo Lemos publicada na Folha de S. Paulo do último domingo, 5 de maio, e cujo conteúdo fiz questão de piratear, se chama “O aplicativo que incendiou as universidades nos EUA”. Ele afirma que o utilitário SideChat, uma espécie de Équis disponível apenas pra quem tem um endereço de e-mail universitário e cujos usuários permanecem anônimos, tem sido um espaço de crescente cultivo dos ódios e preconceitos que levaram à radicalização da Revolução da Melancia dos protestos pró-Palestina nas universidades americanas, especialmente a de Columbia. Lemos não esclarece se o app, lançado em fevereiro de 2022, também está disponível fora dos EUA, e eu acrescento que ele é a continuação de um certo Yik Yak (o nome soa familiar...), lançado ainda em 2013 e que faliu justamente por acusações de não prevenir discursos de ódio.

Felizmente, os brasileiros não tiveram tempo de engolir essa modinha, e realmente quase ninguém aqui (inclusive eu) os conhecia; e espero que ninguém resolva fazer a experiência! Deixo que você leia o resto no texto, mas já me pergunto: como os inventores do aplicativo não se deram conta de que um recurso com anonimato garantido ia se transformar de um espaço de desabafo numa rinha de galo? Não atinaram a que na mão de maluco, toda invenção prática pode virar arma? Ou Santos Dumont criou o 14-bis pra ficar se atirando em arranha-céus? Mas trágico é ver como a geração do finzinho dos 90, começo dos 2000, cresceu achando que no Google Store sempre ia ter um app disponível pra resolver qualquer problema da vida, fosse prático ou humano. Queriam curar a solidão e o deslocamento sem bater de frente com a sociedade e repensar seu próprio jeito de agir!

Pra além da falsa inocência, cabe notar que você precisa ter um correio institucional, ou seja, fornecido a estudantes, professores e funcionários por uma universidade, espaço que o próprio Trump detratou como “a nata da nata” da sociedade ianque. E se “a nata da nata” da sociedade se comporta do jeito como vimos na TV e tem difundido ideias como as que já se espalham pela Banânia há uns anos: 1) o que será então do resto da sociedade, que ainda pensa que na USP os alunos andam pelados e participam drogados de orgias? 2) como essas elites podem servir de modelo pra sociedade ao se portarem assim? É pra fazer Vilfredo Pareto se revirar na tumba!



O Yik Yak era coisa de corno, e o SideChat... é de chorar mesmo!


A culpa dos protestos que estão ocorrendo nas universidades dos EUA obviamente não é do aplicativo SideChat. No entanto, ele tem tido um papel na radicalização dos embates. Para quem nunca ouviu falar, o SideChat é um aplicativo para postagens anônimas. Uma espécie de Twitter, que fala de acontecimentos em tempo real por meio de mensagens curtas, vídeos e fotos.

Só que tudo é anônimo. A única informação é a universidade onde o conteúdo foi postado, mas não quem postou. Para se inscrever no SideChat é preciso ter uma conta de e-mail de uma universidade. Com isso o app esperava assegurar que as conversas acontecessem só entre estudantes e, por isso, fossem cordiais.

Não foi o que aconteceu. Relatos em toda a parte mostram que o SideChat se tornou uma espécie de porta do inferno. Em depoimento para a revista Wired, um estudante chamou o aplicativo de “esgoto”. A razão é a quantidade de conteúdo problemático postado, incluindo ataques racistas, incitação à violência, e conteúdo degradante, direcionado a israelenses e palestinos.

O resultado é visível em praticamente todas as universidades dos EUA, da costa leste à costa oeste. Este colunista foi professor da universidade de Columbia, epicentro dos protestos e tem acompanhado com preocupação a situação. Várias universidades cogitaram bloquear o aplicativo. No entanto, a ideia teve pernas curtas. Tanto por conta das proteções constitucionais à liberdade de expressão nos EUA, quanto por causa da impossibilidade técnica do bloqueio.

A solução foi então convocar reuniões com os representantes da empresa. A demanda em comum é o aumento na moderação do conteúdo do aplicativo. Pelo menos para reduzir o conteúdo claramente ilegal (racismo, incitação à violência etc.). A empresa afirma já fazer isso, e alega ter um time de “30 funcionários”, além de usar ferramentas de inteligência artificial. No entanto, os relatos apontam para um ambiente que na prática se torna cada vez mais tóxico.

O SideChat pode ser visto como o símbolo mais recente da crise profunda que tomou conta das universidades dos EUA. Originalmente instituídas como um farol da liberdade acadêmica, nos últimos anos foram se tornando incapazes de lidar com temas controversos. Ao se tornarem território de “guerras culturais”, a universidade foi se transformando em um campo minado, onde vários temas foram sendo suprimidos.

O SideChat se aproveitou disso. Como não era mais possível falar em voz alta sobre vários temas difíceis, o aplicativo criou um espaço virtual onde tudo poderia ser dito. Capitalizou a frustração de quem se sentia silenciado. Só que apostou no anonimato, caminho fácil e perigoso, que destrói os laços comunitários em vez de reconstruí-los. Com isso, abdicou do esforço de reconstruir um espaço baseado no respeito mútuo, para se tornar parte do problema.

Dá para aprender muitas lições com esse caso. A primeira é que discursos que são suprimidos não desaparecem. Ao contrário, eles se radicalizam ainda mais e vão migrando para canais mais opacos. Seja o SideChat, o Discord, o WhatsApp, o Telegram e outros. A tarefa que temos como sociedade é reconstruir espaços para lidar com temas difíceis. E não suprimi-los, ou tocar fogo neles.



sábado, 4 de maio de 2024

Um é russo, o outro é russo estreito


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Quem acompanha o cotidiano e a cultura da Rússia, mesmo que não saiba o idioma, já deve ter se deparado com a canção Iá rússki (Eu sou russo), composta e gravada pelo cantor e músico russo Shaman, nome artístico usado desde 2020 por Iarosláv Iúrievich Drónov (n. 1991). Até 2022, ele não era muito conhecido pelo grande público, a não ser por duas participações em programas de talentos, em 2013 e 2014, que ele não conseguiu vencer. Um dia antes de se iniciar a invasão à Ucrânia, ele lançou Vstánem (Levantemo-nos), um single composto ainda em janeiro em homenagem aos combatentes da 2.ª Guerra Mundial. Essas foram suas duas canções de teor patriótico que o tornaram em 2023 o artista mais popular da Rússia, enquanto passou a se apresentar em shows oficiais da ditadura putinista, sendo considerado pela oposição, portanto, “a voz da guerra”, a qual Shaman/Dronov, por razões evidentes, jamais ousou criticar.

Com uma educação colegial e superior (além de um TCC, segundo alguns, com plágios da Wikipédia) voltada à música e ao canto, o que desde os tempos da URSS é muito comum entre os artistas que fazem sucesso nos palcos, Dronov se dedica à voz desde os quatro anos. No concurso em que participou em 2013, chegou a ser amplamente elogiado por Álla Pugachóva, a diva da canção russa desde a era soviética, e de 2014 a 2017 foi solista do grupo Chas Pik, até iniciar carreira solo. Desde então, além do pseudônimo “Shaman” (alvo de críticas dos puristas, por sempre aparecer em alfabeto latino, e não cirílico), adotou o conhecido visual com dreads e ganhou notoriedade nas redes sociais. Mesmo assim, passou relativamente despercebido até o lançamento de seus muitos singles e um único álbum a partir de 2022, geralmente associados à exaltação nacionalista russa e, indiretamente, à guerra contra Kyiv, o que o fez aparecer nos concertos promovidos pelo Kremlin, cantar nas regiões ucranianas ocupadas e apoiar Putin publicamente na reeleição armada em 2024.

De fato, as letras insossas e sem lirismo, a voz indistinguível e a interpretação berrada o fazem ser muito mais próximo de uma Simone Mendes, Maiara & Maraisa ou Naiara Azevedo da vida do que de qualquer outra coisa estudada. Na verdade, Shaman chegou a ser alvo de duras críticas (não da ditadura, claro) por algumas atuações suas se aproximarem da própria estética nazista. No clipe da canção My (Nós), lançada em 12 de abril de 2023, ele veste um sobretudo preto e uma braçadeira com a bandeira da Rússia, e a canção Moi boi (Meu combate), do 20 de julho seguinte, pode ser traduzida em alemão como Mein Kampf, livro em que Hitler expôs toda sua doutrina. De 2012 a 2016, Dronov foi casado com a professora de canto María Roschúpkina, com quem teve a filha Varvára em 2014, e em 2017 se casou com a gerente de marketing Ieléna Martýnova, 14 anos mais velha que ele e, segundo relatos, principal responsável por retrabalhar sua imagem visando ao sucesso nacional.

Em 30 de agosto de 2022, o ator, vlogueiro e humorista Aleksándr Vladímirovich Gudkóv (n. 1983), crítico da invasão à Ucrânia, lançou em seu canal no YouTube o clipe Iá úzki (Eu sou estreito), uma paródia da canção Iá rússki de Shaman (ele brinca com os sons reais das palavras pra além da ortografia: “rúski” e “úski”). A falta de nexo da letra e a animação cômica do vídeo me fazem lembrar mais do humor meio nonsense do Casseta & Planeta Urgente, que às vezes nem crítica queria fazer, mas apenas uma zoeira inocente. Eu também associo o “estreito” à estreiteza mental do patriotismo belicista, lembrando que rússki é especificamente o russo étnico (mesmo fora da Rússia), enquanto rossíiski é o nacional da Federação Russa (Rossíiskaia), mesmo sendo tártaro, checheno, inguche, tuvano etc. Buscando por memes, até achei um trocadilho do título Iá rússki com o gentílico iakútski, relativo à região da Iacútia.

Porém, analistas mais “profundos” chegaram a resgatar alusões aos significados positivo de “largo” e de “estreito” na literatura russa. Em todo caso, Gudkov foi atacado pelas putinetes mais alopradas e quase foi alvo de processo por “difamação”, embora não se referisse pessoalmente a Shaman (nem mesmo diretamente à própria canção), o qual, afinal, tratou o acontecido com indiferença. Aqui na página você pode ler os originais e as traduções das letras de Iá rússki e de Iá úzki, esta última também contando com um áudio separado, publicado pela Radio Svoboda. Fiz backups pra qualquer eventualidade, mas aí estão os vídeos em seus canais:


Я русский!

1. Я вдыхаю этот воздух,
Солнце в небе смотрит на меня.
Надо мной летает вольный ветер,
Он такой же, как и я.

И хочется просто любить и дышать,
И мне другого не нужно.
Такой, какой есть, и меня не сломать,
И всё, потому что

Припев:
Я русский,
Я иду до конца.
Я русский,
Моя кровь от Отца.

Я русский,
И мне повезло.
Я русский,
Всему миру назло.

Я русский!

2. В небо улетает эта песня,
И зовёт меня с собой.
А во мне пылает моё сердце,
Освещая путь домой.

Где хочется просто любить и дышать,
И мне другого не нужно.
Такой уж я есть, и меня не сломать,
И всё, потому что

(Припев)

Я русский!

(Припев)

Я русский!

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Eu sou russo!

1. Eu inspiro esse ar,
O Sol no céu olha pra mim.
Um vento livre voa sobre mim,
Ele é livre como eu.

Queria simplesmente amar e respirar,
E não preciso de outra coisa.
É assim que sou, não posso ser destruído,
E tudo porque

Refrão:
Eu sou russo,
Eu vou até o fim.
Eu sou russo,
Meu sangue vem do Pai.

Eu sou russo,
E eu tive sorte.
Eu sou russo,
A despeito do mundo todo.

Eu sou russo!

2. Essa canção sai voando pro céu,
Me chamando pra se juntar a ela.
E meu coração arde dentro de mim,
Iluminando o caminho pra casa.

Onde queria simplesmente amar e respirar,
E não preciso de outra coisa.
Pois sou assim e não posso ser destruído,
E tudo porque

(Refrão)

Eu sou russo!

(Refrão)

Eu sou russo!


Я вдыхаю этот воздух,
Солнце в небе смотрит на меня.
Надо мной картона лист летает –
Он такой же, как и я.

Со мною удобно на стуле сидеть,
Мне много пространства не нужно.
Такой, какой есть, и меня не задеть,
И всё, потому что

Я узкий,
Я не в форме яйца!
Я узкий,
Плечи уже лица.

Я узкий! (Он узкий.)
И мне повезло.
Я узкий (Он узкий),
Всем широким назло!

Узкая грудная клетка
И рука, как узкий ремешок.
И по жизни взгляды мои узкие,
Но и мне так хорошо.

Спасибо деду за узкий мой таз,
Мне большего таза не нужно.
Такой, какой есть,
Меня просто сломать,
И всё, потому что

Я узкий
Вместо нити зубной.
Я узкий,
В рот залезу я твой!
Я узкий!
И мне повезло.
Я узкий (Он узкий)
Всем широким назло…
Я узкий!
Я узкий!

Можем сейчас
Мы всех узких собрать
И спрятать
За кустик! (x5)

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Eu inspiro esse ar,
O Sol no céu olha pra mim.
Uma folha de papelão voa sobre mim:
Ela é estreita como eu.

É cômodo sentar comigo na cadeira,
Não preciso de muito espaço.
É assim que sou, não posso ser atingido,
E tudo porque

Eu sou estreito,
Não tenho forma de ovo!
Eu sou estreito,
Os ombros já são rostos.

Eu sou estreito! (Ele é estreito.)
E eu tive sorte.
Eu sou estreito (Ele é estreito),
A despeito de todos os largos!

Minha caixa torácica é estreita,
As mãos, como uma pulseira estreita.
E na vida meus olhares são estreitos,
Mas pra mim é tão bom.

Obrigado, vovô, por minha pélvis estreita,
Não preciso de uma pélvis grande.
É assim que sou,
Sou fácil de destruir,
E tudo porque

Eu sou estreito
No lugar de um fio dental.
Eu sou estreito,
Vou entrar por sua boca!
Eu sou estreito!
E eu tive sorte.
Eu sou estreito (Ele é estreito)
A despeito de todos os largos...
Eu sou estreito!
Eu sou estreito!

Agora nós podemos
Reunir todos os estreitos
E escondê-los
Atrás de um arbustinho! (x5)



“Não preciso de uma pélvis grande”, kkkkk!

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Cleptofascismo, o regime de Putin?


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Kirill Rogov, diretor do site Re: Russia, uma plataforma de oposição cujos textos podem ser lidos em inglês, publicou em 18 de março de 2024, na seção “Analytics” (Análise), o artigo “87% de ditadura: constitucionalidade fictícia, cleptofascismo e filas de protesto”, disponível em russo e em inglês, língua da qual, porém, resolvi traduzir. Demorei muito pra ter tempo de publicar, e depois passei no Google Tradutor, tendo cotejado apenas com o “original” em inglês (o qual também acredito ser fiável). Mas o mais importante é trazer ao público que lê português – devo estar sendo o primeiro a fazer isso – o conceito de cleptofascismo, como Rogov chama a ideologia, a seu ver ad hoc (isto é, pra atender a uma exigência pontual), na base da ditadura de Vladimir Putin.

A seu ver, o Kremlin mistura hoje a exaltação patriótica e belicosa com um ódio irracional ao “Ocidente Coletivo” e um sistema todo baseado em corrupção generalizada, compadrio econômico-empresarial e fraude eleitoral. Rogov se detém na questão da “fraude eleitoral”, pois ele afirma que serve como legitimação aparente do regime, demonstrando por vias formais um apoio popular que na verdade não existe. É interessante que o Turcomenistão, antiga república soviética e uma das ditaduras familiares mais fechadas do mundo, aparece como exemplo de país em que resultados próximos de 100% são forjados pra passar a imagem de (quase) unanimidade, igual o Partido Ba’ath na Síria e no Iraque. No Brasil, temos vários exemplos a nos espelhar na própria América Latina, como Venezuela e Nicarágua (com El Salvador se encaminhando) – já que em Cuba o presidente é eleito indiretamente. Mas há vários playgrounds de ditador que ainda não sofreram golpe de Estado na África, como os Camarões de Paul Biya, a Ruanda de Paul Kagame, a Eritreia de Isaias Afwerki e a Guiné Equatorial de Teodoro Obiang.

Isso não está no texto, mas os analistas liberais exilados da Rússia dizem que Ramzan Kadyrov estaria fatalmente doente, mas que não interessaria a Putin criar na Chechênia uma sucessão familiar. Segundo eles, com base no terror aberto, Don-Don já teria cuidado de submeter completamente a antiga república separatista, mas agora todo o país estaria na mesma situação, com o clima de guerra, resultando na “kadyrovização” nacional e, por isso, tornando inútil um excêntrico excepcional em Grozny e bastando outro boneco mais alinhado ao putinismo puro. E foi justamente nas regiões mais atrasadas e autoritárias que Putin sempre obteve os maiores resultados, inclusive na Chechênia, inclusive em 2024.

De resto, não incorporei os mesmos gráficos que aparecem no site original e retirei algumas referências a outros artigos que apareciam no meio do texto, sem por isso causar qualquer dano ao conteúdo.

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O resultado eleitoral “estilo turcomeno” nas “eleições presidenciais” da Rússia visa consolidar a transição do regime de Putin a uma ditadura sob condições de “constitucionalidade fictícia” decorrentes das mudanças inconstitucionais à Constituição realizadas em 2020. A guerra contra a Ucrânia tornou-se uma ferramenta crucial, permitindo ao regime atingir o nível de repressão necessário para suprimir a resistência da oposição, garantir este resultado e formular um novo quadro ideológico ad hoc para o regime, que pode ser definido como “cleptofascismo”: uma mistura de motivações corruptas e militarismo antiocidental agressivo. Como resultado, a operação iniciada em 2020 para prolongar a presidência de Putin levou a uma transformação profunda do próprio regime, que em sua forma atual desviou-se muito das expectativas e percepções do homem comum russo, especialmente da geração de russos entre os 20 e 40 anos de idade. Guerra, repressão e fraude permitiram ao regime alcançar um resultado “turcomeno” nas eleições presidenciais, mas ainda não transformou a Rússia em um Turcomenistão, como evidenciam as filas de protesto durante a campanha. A estrutura social da sociedade russa, formada durante as décadas anteriores, nada tem a ver com a que sustenta autocracias estáveis. E este fato põe em causa o êxito da transformação sociopolítica executada por Vladimir Putin na Rússia.

As eleições cujo resultado proclamado foi de 87% dos votos supostamente dados a Vladimir Putin foram as primeiras ao “estilo turcomeno” abrangendo toda a Rússia. Tal resultado é uma indicação confiável de que o país é uma ditadura.

Como já se escreveu muitas vezes, há dois tipos principais de regimes autoritários. O primeiro apoia-se substancialmente em eleitores transformados em “supermaioria” por meio da manipulação administrativa, captura das mídias, restrição da concorrência e fraudes circunscritas. Nesses regimes, o candidato no poder geralmente recebe 60-70% dos votos. Ao mesmo tempo, a oposição existe parcialmente durante as eleições e, pelo menos, é legal; o regime não recorre à repressão sistemática, à censura total ou a campanhas ideológicas massivas.

Um indicador do segundo tipo de autocracias é quando o candidato do governo nas eleições ganha entre 80% e 99%, revelando que o regime não sente apoio suficiente “de baixo” para suas políticas e, portanto, deve recorrer a formas duras de pressão: repressão sistemática, interdição da oposição, campanhas de doutrinação ideológica dos cidadãos e controle ideológico da esfera pública, bem como a remoção de instrumentos de fiscalização pública das eleições. Enquanto o primeiro tipo de eleições visa exagerar o apoio real da população ao regime, as eleições “estilo turcomeno”, em vez disso, demonstram a falta de oportunidades para a oposição e a sociedade oferecerem qualquer resistência ao regime. É um equilíbrio de poder completamente diferente, ao qual se enquadra perfeitamente a definição de “ditadura”.

Três fatores garantiram o resultado “turcomeno” de Putin em 2024: a destruição da capacidade organizativa da oposição por meio da repressão sistemática e bastante dura, da falta de controle sobre a apuração dos votos e da votação forçada organizada por meio da pressão sobre os eleitores em seu local de trabalho.

“Constitucionalidade fictícia” – No entanto, uma compreensão do significado das primeiras eleições “estilo turcomeno” de Putin ficaria incompleta sem considerar o fato de que essas também foram suas primeiras eleições sob condições de “constitucionalidade fictícia”. Nesse sentido, marcam o ápice do período de transição: a transição do regime russo do autoritarismo relativamente leve do final da década de 2000 e da primeira metade da década de 2010 para uma ditadura consolidada, tentando compensar sua deficiência constitucional com um resultado numérico.

Tendo sido eleito para seu último mandato constitucional em 2018 com um resultado intermediário de 77%, Vladimir Putin começou quase imediatamente a preparar-se para uma operação de extensão de seus poderes presidenciais. Na ciência política, tal operação é geralmente chamada de “continuismo” (em espanhol, “extensão” ou “continuidade”: a prática de ampliar os poderes constitucionais ganhou difusão originalmente na América Latina). De 1990 a 2019, houve no mundo todo 66 tentativas de burlar restrições constitucionais aos mandatos presidenciais, sendo 20 na antiga URSS, 34 em países africanos e 12 na América Latina. Contudo, apenas 39 de todas as tentativas foram bem-sucedidas. A capacidade de um autocrata emendar a constituição “para si mesmo” é um indicador importante do nível de controle alcançado pelo regime sobre o campo político e o processo eleitoral.

Em 2020, Vladimir Putin passou apenas parcialmente nesse teste. A fim de aprovar a alteração para ampliar seus poderes, ele teve de violar o procedimento exigido para mudar a Constituição. A principal emenda que zerava os mandatos de Putin foi afogada em um mar de cerca de 200 alterações que foram, todavia, aprovadas por uma única lei. Para dar maior legitimidade a esse procedimento inconstitucional, também foi necessário conceber uma forma de “voto popular”, que não existia na legislação. Diferente de um referendo sobre uma nova constituição, que ser aprovado por pelo menos 50% de todos os eleitores, esse “voto popular” não implicou nenhuma restrição. Ou seja, o procedimento de adoção das emendas parecia-se em parte com o procedimento de adoção de uma só emenda, em parte com o procedimento de adoção de uma nova constituição, mas não se igualava totalmente com nenhum dos dois.

A violação das exigências constitucionais indicava certa falta de confiança do regime em suas capacidades. Além disso, a votação foi realizada no meio de uma pandemia, a qual serviu de pretexto para as autoridades violarem muitas regras eleitorais, como foi o caso do agendamento de vários dias para as votações. Como resultado, a análise dos resultados oficiais do “voto popular” de 2020 mostrou uma mudança radical nas práticas eleitorais. Enquanto nos 12 anos anteriores a porção de votos anômalos (fraude) identificados por métodos estatísticos oscilou entre 14% e 23% dos votos totais, em 2020 esse número disparou para 37%. Significa que provavelmente a votação de 2020 não contou com os 74,2 milhões de eleitores anunciados, mas com cerca de 53 milhões (menos de 50% de todo o eleitorado) e não mais de 36,5 milhões (33% de todo o eleitorado) votaram a favor das emendas.

Porém, alterar a constituição foi apenas a primeira fase da operação de continuismo. A segunda exigia obter um resultado convincente em eleições com falhas constitucionais. Pesquisas sociológicas na época das emendas constitucionais em 2020 mostraram que as parcelas dos que apoiavam e não apoiavam a ampliação do número de mandatos eram aproximadamente iguais. Igualmente, o percentual dos que gostariam ou não de ver Putin como presidente novamente em 2024 foi aproximadamente igual, conforme as pesquisas. Além disso, entre as camadas mais jovens (18-39 anos), a porção dos que não queriam ver Putin novamente como presidente era superior a 50%, enquanto a dos que queriam era inferior a 40%. Naquela altura, as projeções para as eleições de 2024 pareciam muito incertas.

Vale notar que as primeiras tentativas de matar Alexei Navalny ocorreram quase imediatamente após a aprovação das “emendas”: primeiro, em inícios de julho de 2020, e depois, em fins de agosto. Porém, Navalny não só sobreviveu e investigou seu próprio assassinato, mas também lançou um filme investigativo sobre o palácio de Putin, que foi visto mais de 100 milhões de vezes na primeira semana. A aprovação de Putin alcançou então mínimos históricos, e 20% dos entrevistados afirmaram apoiar Navalny.

Essas circunstâncias e a crise eleitoral repentina em Belarus indicavam que o nível de repressão do regime era totalmente insuficiente para garantir um resultado convincente sob condições de constitucionalidade fictícia. Após a prisão de Navalny em janeiro de 2021, começou uma campanha de perseguição contra as estruturas sistêmicas da oposição e da sociedade civil: a Fundação Anticorrupção foi declarada organização extremista e seus coordenadores regionais foram presos, enquanto pessoas e organizações foram declaradas em massa como agentes estrangeiros e a Organização Memorial foi forçada a fechar. Mas só quando a guerra começou Putin pôde finalmente implementar um vasto leque de medidas de repressão e censura visando avançar para os padrões do “estilo turcomeno”. Os resultados das pesquisas refletem claramente as mudanças na atmosfera pública (quaisquer que fossem os mecanismos que as assegurassem).

A morte de Alexei Navalny na prisão, exatamente um mês antes das eleições presidenciais, fecha simbolicamente esse período de transição. No fundo, foi mais uma demonstração das capacidades do regime, que não temeu dar esse passo às vésperas do pleito. Ao mesmo tempo, como que traçou uma linha entre o período de combate à oposição de Navalny e o estabelecimento da ditadura, que se estendeu de 2018 a 2024 por todo o período de transição de Putin. O assassinato de Prigozhin mostrou que a morte de um “inimigo de o regime”, envolta em alguma incerteza, tem um efeito mais paralisante do que mobilizador sobre seus apoiadores. Estão prontos para o luto, mas não para o protesto e a condenação inequívoca de Putin por sua morte.

O “cleptofascismo” como novo quadro para o regime – Aparentemente, o cenário inicial para as eleições de 2024 baseou-se no êxito imediato da campanha militar na Ucrânia, repetindo as conquistas de 2014. Dentro desse cenário, até 2024, esperava-se que os efeitos da invasão e da nova ocupação já tivessem sido amplamente normalizados e suavizados. Porém, as derrotas na campanha militar e a resistência conjunta da Ucrânia e do Ocidente mudaram a trajetória do novo mandato.

Isso exigiu a mobilização da sociedade e das elites em posições de uma doutrina ideológica que justificasse a guerra, doutrina que emergiu de forma geral no final do segundo ano da guerra e pode ser definida como “cleptofascismo”. Essa doutrina combina ferramentas tradicionais para consolidar a elite por meio de uma plataforma de mercantilismo cleptocrático e a exigência de lealdade compulsória a uma ideologia militarista-nacionalista e antiocidental, declarada como a estrutura de valores do Estado-nação ou civilização-Estado russo.

Em seu discurso pré-eleitoral à Assembleia Federal, Putin descreveu bem claramente o juramento de lealdade à guerra em curso na Ucrânia e à ideologia do “cleptofascismo”, obrigatório para quem quisesse ocupar ou manter posições relevantes no novo regime. A corrente redistribuição de propriedade na Rússia visa reformatar a elite russa, que nas últimas décadas manteve uma identidade dual (um pé na Rússia, o outro no Ocidente). O núcleo dessa elite deve ser consolidado por sua cumplicidade (mesmo que apenas simbólica) em crimes de guerra, e os bens obtidos em decorrência dessa cumplicidade podem ser retirados de proprietários não leais o bastante ao “cleptofascismo”. Tais bases para a consolidação da elite, conforme o plano de seu arquiteto, deveriam preservar o rumo antiocidental do país durante décadas e permitir-lhe sobreviver ao próprio Putin.

Até agora, esse plano parece bastante convincente, mas exigirá esforços consideráveis, provavelmente provocando conflitos internos. Uma das raízes de tais conflitos será a contradição entre a vasta cooptação de novos proprietários pela elite e o sistema estabelecido de monopólios familiares [chaebols, palavra coreana usada por Rogov] no círculo íntimo de Putin, onde estão concentrados os principais ativos de renda. Contudo, fatores sociais sistêmicos parecem ser muito mais importantes. Apesar de todos os seus problemas, do ponto de vista social, a Rússia não é de forma alguma o Turcomenistão: o nível de capital social e humano, a cultura cívica e a estrutura social das metrópoles, o grau de infiltração da influência europeia e ocidental, tudo isso se choca com a ideologia da ditadura de Putin, que está se formando ad hoc e parece arcaica e exótica mesmo tendo como pano de fundo o nacionalismo pragmático dos maiores Estados do chamado Sul Global.

Autocracias fechadas e estáveis como a turcomena apoiam-se ou em uma estrutura social clânico-paternalista, ou em uma profunda religiosidade islâmica ou em ambos os fatores juntos. Sem tal fundamento, a ditadura putinista é obrigada a recorrer à coerção, à exaltação, à guerra e a uma ideologia ad hoc enraizada apenas em uma determinada parte da sociedade, provocando conflito social permanente.

Filas de protesto – Essas contradições se manifestarão de uma forma ou de outra no médio prazo. Não é tanto uma questão do conflito do regime com a oposição liberal quanto de seu conflito com o desejo das pessoas comuns pela normalidade burguesa. Porém, a escala temporal específica desse conflito dependerá amplamente da rapidez com que o novo regime revelar sua insolvência econômica.

A geração hoje com idade entre 20 e 40 anos será a principal fonte de resistência à transformação do regime no espírito do “cleptofascismo” de Putin. Com atitudes de vida moldadas pelos anos prósperos e com algum “protesto” da década de 2010, nas condições do novo regime encontra-se parcialmente privada de futuro, cujas expectativas formaram essas atitudes. Mesmo tendo como pano de fundo a crescente repressão do regime na década de 2010, ela se habituou a um nível muito mais elevado de tolerância ideológica e liberdade social. Junto dos velhos negócios russos com sua identidade dual, ela constitui outro vasto grupo de cidadãos que o “cleptofascismo” enxerga como hostil.

Isso determina, em particular, a rejeição à guerra generalizada entre essa geração, que serve como principal instrumento para perturbar as expectativas. Foi esse grupo que constituiu a maior parte dos contingentes das filas de protesto que acabaram se tornando uma parte significativa da “campanha presidencial” de 2024. As filas pela indicação de Nadezhdin foram substituídas pelas filas para o túmulo de Navalny. Esta última, depois, foi substituída pelas filas do “meio-dia contra Putin”.

A antropóloga social Alexandra Arkhipova tem toda a razão quando define esse protesto como uma “arma dos fracos”. Todavia, a resiliência que ele demonstra indica o potencial para uma verdadeira polarização social, e que a “geração Navalny” continuará sendo um fator social importante, moldando o ambiente dos que esperam pela hora da vingança política. Simbolicamente, as filas de protesto indicaram bem claramente que embora tenham ocorrido na Rússia as primeiras eleições “estilo turcomeno”, a guerra e as eleições ainda não transformaram o país em um Turcomenistão.