segunda-feira, 25 de julho de 2022

Velha rixa entre Bielorrússia e Belarus


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Eu estava pra publicar este texto dentro de alguns dias, mas como neste domingo, 24/7/2022, o Fantástico da Rede Globo transmitiu uma reportagem sobre os refugiados da guerra na Ucrânia alocados no país que ele chama de “Moldávia”, resolvi editar e lançar nesta segunda-feira seguinte, pra ver se o povo conseguia fazer alguma relação. Com efeito, a exibição da entrevista completa do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky à Globo no mesmo programa também parece ter feito aumentar a procura por material sobre a Ucrânia em minha página, de ontem pra hoje. E aleluia, parece que finalmente a “Crarrembú” parou de pronunciar “Volodomír”: teria sido por efeito do meu meme? Hahaha.

Há uma ou duas semanas, conheci por acaso um canal de história no YouTube que achei tão fraco e cheio de imprecisões (nos vídeos que acompanhei sobre os temas que domino, obviamente não posso julgar todo o material) que nem acho digno de citar aqui. Só posso dizer que os donos não são formados na área (o apresentador principal, pelo menos, vem de outro curso de humanas), e isso se revela na sofrível leitura de nomes estrangeiros, mesmo razoavelmente fáceis, e no pobre material que citam nas descrições, que vai da Enciclopédia Britannica até a revista Aventuras na História, passando por reportagens insossas da mídia liberaloide cheirosa. Nas descrições que cheguei a ler, pelo menos, não vi citado um livro sequer, e no caso de um evento específico, citaram um livro velhíssimo, ignorando toda uma bibliografia séria e consolidada feita sobre o assunto! Dica: este evento entrou na minha dissertação e também vai entrar na minha tese, o que me dá bastante autoridade pra criticar.

Ao assunto em específico, um dos vídeos, que devia ser de agosto ou setembro de 2020 (elaborando os rascunhos, não me dei ao trabalho de voltar ao canal pra retificar dados), falava especificamente da história de Belarus, ou melhor, do país que eles chamavam de “Bielorrússia”. Reconheço que o argumento foi muito bem feito, não há erros ou imprecisões graves e nosso amigo, embora em vários vídeos me pareça ceder ingenuamente aos consensos ocidentais, deu os nomes corretos aos bois: “Lukatchenko” (ai!) é um ditador, Putin também e o primeiro não passa de um vassalo do segundo.

Se pro Alvaro Borba, do canal Meteoro, o gênero mais em voga no Brasil de hoje é a nota de repúdio, penso que há outro, mais antigo e universal, que amo ler de paixão quando tenho tempo, em vídeos de qualquer país cuja língua eu entenda, e às vezes vale mais do que o próprio vídeo: os comentários de YouTube. O vulgo consegue ser mais astuto que muitos jornalistas, e mais engraçado que nossos decadentes “humoristas”, muitas vezes revelando bem mais sobre um canal e seu público do que o próprio conteúdo a que se reage. No caso do vídeo sobre a “Bielorrússia”, obviamente teria aqueles moleques incel que se instruem pelo Instagram, se acham revolucionários de sofá e sequer escrevem português direito, defendendo as ditaduras russa e (aí sim!) belarussa e aceitando o cenário idílico que os próprios regimes pintam. O vídeo era “de moda” (ou “de onda”, se preferir), pois foi feito na esteira dos maiores protestos que Belarus já tinha conhecido contra Aleksandr Lukashenko e até aventava uma iminente deposição sua, o que não aconteceu, como sabemos.

Nem reajo mais a esses minions nem me impressiono com o teor das besteiras, até me divirto com a falta de utilidade que as escolas e universidades têm demonstrado no Brasil. Estou sofrendo, porém, de um grande problema ultimamente: minha veia de linguista amador tem aflorado muito mais do que minha formação de historiador. Dessa forma, nem me espantei com o uso difundido de “Bielorrússia” no vídeo: foi apenas desinformação ou, talvez, falta de pesquisa mais acurada. Mas uma afirmação em certos comentários, que já vi também em outras mídias, dizia que “Belarus” seria a versão do nome apenas em inglês, enquanto “Bielorrússia” (que os sites de língua portuguesa dizem ser mais correto ao invés de “Bielo-Rússia”) seria a tradução em português.

A afirmação era feita em comentários isolados, ou mesmo em resposta a outros que advertiam o autor quanto à correção de “Belarus”. Contudo, um totalmente desinformado, feito por alguém que vou identificar como RBC, felicitou o youtuber por não ter “cedido ao modismo” de usar o que ele considerava nome em inglês, isto é, “Belarus”. Não sou de criar tretas, mas dessa vez meu sangue subiu e comentei algo do tipo (não copiei o texto): “Tu bebeu? Não é só inglês, mas o correto! Cê é louco...”. O que se segue é uma edição mínima do diálogo, que revela, na verdade, a arrogância e o desconhecimento do interlocutor (que não são exatamente uma resposta à minha invectiva que nem tão ofensiva foi), e que acabou me levando a fazer pequenas pesquisas que, por sua vez, levaram à redação de um verdadeiro “tratado”, como disse o moço.



RBC – Como é cômico ver abestalhado querendo dar uma de esperto... Para começo de conversa de tudo, o idioma nativo de lá usa o alfabeto cirílico, e assim sendo nem pronúncia e muito menos a escrita não tem nada a ver nada a ver com a palavra Belarus... E mesmo que fosse mesmo esse o caso de o nome nativo de lá ser mesmo esse [“fosse”? Mas é de fato, caralhas!], quando nos referimos por exemplo à Alemanha, usamos o termo “Deutschland”. Passou uma vergonha desnecessária, hein, amigo. [Só se for vergonha alheia...]

E sim, Belarus para sua informação é sim a forma em inglês de se referir a esse país (que diga-se, de passagem, é um país lascado da miséria, medíocre tal qual a grande maioria dos da América Latina, entre outros). [O que isso tem a ver? Na verdade, o nível de vida lá é até bem alto, e a população é muito instruída. “Medíocre”? Haja desinformação e xenofobia...]

Erick – Já vi que você não entende os argumentos dos belarussos, misturou alhos com bugalhos e conhece pouco ou nada de linguística. Por isso, vou detalhar educadamente:

1) Sou fluente em russo e conheço as bases da escrita e pronúncia belarussas. Mas esse não é argumento de autoridade, porque russos e belarussos sempre me falam as mesmas coisas.

2) Belarus (Беларусь) e belaruski (беларускі) são país e adjetivo em belarusso, Belorussia (Белоруссия) e belorusski (белорусский) são idem em russo. Belarusso e russo são idiomas diferentes, embora irmãos, e em Belarus o russo se impôs, sobretudo, por dominação cultural, política e econômica.

3) Isso que você disse não tem nada a ver com “alfabeto diferente”, e sim com transliteração: “Belarus” é a transliteração do belarusso, e “Belorussia” é a transliteração do russo.

4) Não, “Bielorrússia” e “bielorrusso” (grafias mais corretas) são a adaptação da versão russa, e não uma “versão em português”. Na verdade, a comparação mais justa é com você chamar a Ucrânia de Malorossia ou “Pequena Rússia”, como no século 19.

5) Com as independências face à URSS/Rússia, há um movimento pra que internacionalmente se usem transliterações ou adaptações dos nomes nativos, e não de suas versões russas. Ou seja, Kyiv ao invés de Kiev, Chornobyl ao invés de Chernobyl, Kharkiv ao invés de Kharkov, Luhansk ao invés de Lugansk... Por isso o certo também seria escrever “Sviatlana Tsikhanouskaya”, e não “Svetlana Tikhanovskaya”.

6) Os movimentos que lutam contra esse ditador e contra o esmagamento da língua belarussa pela russa também sempre alertam sobre o máximo uso possível de nomes nativos. Ou seja, é questão de costume e conscientização nos adaptarmos a “Belarus” vindo de “Беларусь”, “belarusso” vindo de “беларускі” etc.

7) Não se devem confundir esses casos com formas nativas que foram sendo forjadas em séculos de contato, como Moscou, São Petersburgo, Londres, Tóquio, Pequim... Pra você ter noção, nem se usavam esses nomes “ucraniano” e “bielorrusso” no português até o século 20. Se “bielorrusso” foi uma criação que, na verdade, se deve à língua do dominador, tá na hora de corrigir uma injustiça histórica e alavancar o uso de “belarusso” a partir de “беларус” (substantivo de pessoa) e “беларускі” (adjetivo). Sem essa balela, provavelmente pró-Rússia, de que são formas baseadas no inglês, esta língua sim, em todo caso, mais fiel à verdade histórica...

Só pra complementar, eu sou historiador do período comunista, e como apaixonado por idiomas, também sempre me deparei com essa questão de nomes e transliteração. Pessoalmente reservo as formas “Bielorrússia” e “bielorrusso” pra república da era soviética, e “Belarus” e “belarusso” pro país atual ou pro idioma em geral. Da mesma forma, uso “Moldávia” (do russo “Молдавия”) e “moldavo/a” pra era soviética, e “Moldova” e “moldovo/a” pro país atual, estas segundas baseadas no romeno. Além disso, sempre procuro transliterar os nomes de cidades ucranianas pelo nome em ucraniano, e não em russo. Pra uma argumentação melhor sobre “Belarus” e “belarusso”, procure as mídias das embaixadas populares de Belarus pelo mundo [nota: o perfil da embaixada popular no Brasil comentou a respeito no vídeo, mas foi rebatido por um tudólogo, ou melhor, nadólogo], porque a ditadura cruenta de Lukashenko não representa ninguém senão seu próprio estômago e o de seu ventríloquo Putin. Recomendo ainda os vídeos e textos da tradutora exilada Volha Franco, que também trabalha pro movimento de resistência.

[Mas como tentar instruir um brasileiro de smartphone é pior do que jogar pérolas aos porcos, e como dizia “o Olavo”, mais vale vencer um debate do que ter razão...]

RBC – Ô louco... o cara escreveu um tratado para me refutar, hahahahaha... Porém, nada do que você disse tira a minha razão sobre o que eu tinha colocado a princípio sobre Belarus ser o nome desse país na língua inglesa [meio óbvio, né?], e não fazer sentido nenhum falantes de português usarem o termo usado pelos nativos de um determinado país para se referir a este, ao invés de usarem a palavra que já existe no seu próprio idioma para se referir a este país. [Ele pensou no exemplo de “Deutschland”, que vocês vão me ver rejeitando abaixo.]

De qualquer forma, outra hora lerei com mais atenção tudo o que você escreveu nessas mensagens extremamente embasadas, pois não há dúvida que você possui muita propriedade quanto às questões que envolvam a Rússia e os países da antiga União Soviética. E desculpe por eu acabar não tendo a devida maneira na forma de me expressar. [Vamos fazer justiça a nosso amigo, mas já era, hehehe.]

Erick – Imagine, às vezes também acho que exagero um pouco, sobretudo porque escrevo demais. Eu não gosto de “refutar” as pessoas em “debates”, gosto de ensinar e informar sempre que possível.

Mas insisto novamente que você não entendeu meu ponto, porque “Bielorrússia”, repito, não é um aportuguesamento do nome nativo, e sim do nome do país em russo. Por isso deve ser evitado. E achei sua posição menos aceitável do que a do youtuber, porque este pelo menos talvez não soubesse da disputa de nomes, agora você jogou pra geral que usar Belarus é “modismo de falar em inglês”.

Vou parecer chato, mas queria focar neste ponto: você disse que “não devemos usar termos nativos, e sim os que já existem em nosso idioma”. Usou o exemplo de “Deutschland”, que é totalmente descabido, porque “Deutschland” e “Alemanha” têm apenas origens linguísticas diferentes. Dois casos que talvez fossem mais próximos do de Belarus são os de Suazilândia/Essuatíni e Birmânia/Mianmar. Quatro termos que existem perfeitamente em português, mas se referindo a visões políticas e culturais diferentes. A diplomacia oficial usa as segundas opções. É a mesma coisa que querer chamar o Uruguai de Cisplatina ou a Etiópia de Abissínia.

Já falei e vou repetir: existem dois nomes do país em questão, que são “Belorussia” em russo e “Belarus” em belarusso (mas ambos em cirílico, claro). Ao contrário do que pensam os Camõezinhos de araque, existe sim a forma Byelorussian em inglês, que hoje é considerada “alternativa” (seja lá o que o Wiktionary queira dizer com isso) a Belarusian. E também em português, “Belorussia” deu em “Bielo-Rússia” (que, pelo Acordo de 1990, deve ser escrita “Bielorrússia”), e “Belarus” deu nisso mesmo, em que obviamente transliteramos, mas podemos pronunciar à brasileira (porque não exigeuma mudança pra adequar à fonética brasileira, como Slovensko que é “Eslováquia”, e Abkhazia que é “Abecásia”, ambos com E). Ou seja, ambas as formas existem plenamente em português, e não “uma só”.

Qual delas usar? Claro que às vezes depende do ponto de vista político. Eu acho que a russificação da região foi forçada, e devemos preferir as formas nativas. Na TV estatal russa, ainda se usam “Belorussia” e “Moldavia”, mas mesmo em Belarus, até nos documentos em russo, o nome oficial passou a ser “Belarus” (Беларусь). Portanto, “belarusso” também é a derivação lógica de “belaruski”, porque tanto o nome da Rússia (“Rossiya”) quanto o da antiga confederação eslava oriental (a Rus que realmente entra no nome de Belarus) vieram da mesma palavra “Rus”, que só têm o gentílico “russo” em português. Pro “russo” como cidadão da Federação Russa, que é “rossianin” (россиянин), e nem sempre o “russki” (русский) étnico, houve um “russiano” que com o tempo não conseguiu colar.



Depois desta última mensagem, RBC não me respondeu mais, obviamente porque ele já ia “debruçar-se” sobre as respostas anteriores, que em sua estranha percepção literária se assemelhavam a “tratados”. Também não fiz questão de esperar possíveis novas aparições suas, então apaguei meus comentários ao vídeo e apenas copiei a conversa pra esta página.

Pra encerrar, preciso apenas fazer um disclaimer: se você frequenta minha página há muito tempo ou tem lido várias postagens, deve ter percebido que vários textos ainda têm a forma “bielo-russo” (grafia “errônea” de “bielorrusso”), mesmo se referindo à Belarus pós-soviética. Algumas postagens em que precisei corrigir outros aspectos também já receberam a forma “belarusso”, mas como a página está passando por uma reforma geral que não tem previsão de término, essa injustiça vai continuar visível por algum tempo, mesmo que a princípio eu não mais concorde com ela.


terça-feira, 19 de julho de 2022

Crarrembú e o “Volodomír”


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