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domingo, 7 de setembro de 2025

O mito da economia planejada


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A ilustração talvez não condiga muito com o conteúdo do texto, mas nesta conjuntura em que os fãs de Vladolf Putler querem ver em sua expansão imperial uma espécie de “URSS 2.0”, enquanto culpam o capetalizmu e o Ossidentx Mauvadaum pelo colapso da “união de povos nada livres”, é sempre bom recordar o nível de coitadismo e autopiedade contido tanto em certos discursos pró-Rússia quanto na mitologia bolchevista ainda ruminada por seitas acadêmicas mundo afora. E nada melhor do que o conteúdo produzido pela própria comunidade democrática no exílio, informado pela vivência na própria pele e pelos estudos mais avançados feitos in loco, pra refrescar nossa mente contra o discurso de “guerra fria”, seja de matiz ultraconservador ou antiliberal.

Na condição cultural em que ainda vive nosso esplêndido gigante Fazendil, traduzir essa nova produção e a divulgar ao máximo de pessoas possível é uma tarefa urgente, ainda que primária perto do nível em que a desinformação do Kremlin se infiltrou entre alguns grupos intelectuais e midiáticos. E a Novaya Gazeta Evropa, com seu genial editor-chefe Kirill Martynov e da qual já publiquei partes de análises históricas aqui, conta também com o economista Denis Morokhin, que apesar de sua semelhança com o “casseta” Marcelo Madureira, traz os problemas econômicos passados e presentes da Rússia com rara leveza didática. Foi o caso da série “Rossíiskoi ekonómike ostálos”, que apareceu em quatro partes e cujo título pode ser traduzido como “Ainda resta à economia russa...”, no sentido do tempo que ainda pode demorar pra um real colapso com o desvario causado pela invasão da Ucrânia.

A tese básica de Morokhin é a de que jamais foram feitas as reformas necessárias pra que a Rússia se tornasse uma verdadeira economia capitalista de mercado, saudável e pujante. Os problemas deixados pelo terraplanismo que foi a total estatização da economia (mal administrada, ainda por cima) no período soviético, além de terem sido enormes, não receberam as soluções devidas da parte dos reformadores sob Ieltsin. Abriu-se caminho, então, à simples espoliação das empresas públicas pelos antigos administradores burocratas (tornados “oligarcas”) e à excessiva intervenção estatal sob Putin.

O boom econômico provocado na década de 2000 pelo aumento no preço das commodities (fenômeno, aliás, também observado no Brasil nos primeiros governos de Lula) não foi revertido em industrialização e criação de reservas de emergência, enquanto permitiu a aquiescência geral diante do autoritarismo. Embora não claramente visível, o declínio se tornaria inevitável a partir da anexação da Crimeia (2014) e dos gastos militares desenfreados, culminando na invasão em larga escala da Ucrânia (2022) e na recessão que estaria agora ameaçando uma economia quase toda reenquadrada pela militarização da sociedade.

Este é o primeiro episódio, cujo mérito reside exatamente na desmistificação da economia planejada, que alguns idiotas de internet ainda querem romantizar aqui, e por isso não vou traduzir os três seguintes. Você vai ver que a culpa não é (só) de Gorbachov, da globalização, do Til Çan ou do ET Bilu, e que aquele bigodudo georgiano idolatrado por revolucionários de sofá fez muito pra quase destruir o país. Fiz uma transcrição em russo baseada na correção da legenda baixada, a partir da comparação com a fala de Morokhin, mas não vou a publicar, como fiz com o vídeo sobre Ivan Ilin, e posso enviar num arquivo à parte a quem me pedir. O Google Tradutor deu o texto-base em português, mas a parte mais árdua é justamente a da correção manual, nem sempre fácil por causa da necessária pesquisa de termos específicos. Notas minhas estão entre colchetes.


Este é o Univermag de Moscou em 1991. Prateleiras vazias. Nelas, uma carne assustadora e intragável. Cliente de olhares perdidos. Na cesta, uma seleção escassa: macarrão, leite. E este é um supermercado em Moscou em 2025. Meio quilômetro de produtos, uma enorme seleção, uma abundância completa de produtos.

Enquanto isso, já faz quatro anos que a Rússia trava uma guerra na Ucrânia e está sob as maiores sanções da história. A Rússia está praticamente isolada da economia global aberta. Como a economia planificada e distributiva da URSS conseguiu sobreviver a uma série de abalos? Como construíram em seu lugar uma economia de mercado e por que agora a guerra não a destruiu, apesar das inúmeras previsões de seu colapso iminente?

Vamos trilhar esse caminho juntos em nosso projeto “Ainda resta à economia russa...”. Serão quatro episódios. Meu nome é Denis Morokhin. Sou observador econômico da Novaya Gazeta Evropa. Se inscreva em nosso canal do YouTube pra não perder os próximos episódios.

Introdução – Você sabe o que um soviético podia comprar numa loja? Você tem ideia geral de como eram essas lojas? Talvez você tenha respondido sim ou não, mas na Rússia já cresceram duas gerações de pessoas acostumadas à abundância de produtos. É difícil acreditar agora que as lojas possam estar vazias, mas era exatamente assim que eram. A Rússia esteve à beira da fome na década de 1980, depois passou pelos prósperos anos 2000 e terminou na atual economia de guerra, quando trilhões de rublos são desperdiçados em tanques e assassinatos. Como foi isso?

Murmansk, anos 80 – Me deixem contar algumas histórias sobre mim. Esta é Murmansk, a maior cidade do mundo no Ártico, em meados da década de 1980. Me lembro bem de como as prateleiras das lojas eram repletas de potes de seiva de bétula. Também se vendia o queijo processado “Druzhba”, e o queijo de verdade só estava disponível pela manhã e esgotava rapidamente. Os laticínios incluíam leite e kefir em garrafas de vidro, mas a smetana era extremamente rara. Ainda em Murmansk, não havia ovos e eles deviam ser trazidos de Leningrado, de trem.

Além disso, a cesta básica de um soviético incluía um macarrão gordo, grosseiro e pálido, ervilhas malpassadas, cevada perolada e painço. Também se vendiam enlatados: carne cozida barata, carne ou peixe em conserva (závtrak turísta) e algas Laminaria. Também pó de sopas em saquinhos. Mas não havia trigo sarraceno, o favorito de todos. Só estava disponível pra diabéticos, em seções especiais. E pra o comprar, era preciso apresentar um atestado médico. No hortifrúti havia repolho, cenoura e pepino. Mas batatas, no início da década de 1980, só eram trazidas ocasionalmente. E comprá-las exigia ficar na fila a noite toda. Uma lembrança de infância: pra se aquecerem numa cidade do norte, as pessoas em fila acendiam fogueiras no pátio do hortifrúti.

Aliás, por que exatamente com as batatas havia tantos problemas? Ocorre que até 40% dos legumes e verduras simplesmente não chegavam às prateleiras. Eram armazenados e transportados indevidamente, apodrecendo ao longo do caminho. O maior mal da agricultura no final da URSS era a mecanização quase ausente: tudo devia ser feito à mão. Mas havia as famosas viagens pra colher batatas. Todos os anos, centenas de milhares de estudantes, engenheiros, professores e cientistas eram afastados do trabalho e levados aos campos pra colheita moribunda. Mas isso não fazia muito sentido: cada vez menos legumes e verduras chegavam às lojas, mas a TV soviética chamava esse esforço insensato de “batalha pela colheita”.

Mas minha Murmansk ainda era bem mais sortuda que outras cidades. Murmansk é um porto importante. Portanto, via de regra era peixe que se vendia. Mesmo que fosse o mais simples. É claro que aqui não estamos falando de iguarias. Por exemplo, o salmão só podia ser comprado, como se dizia na URSS, “por baixo do balcão” ou “pela porta dos fundos” [de forma ilegal, usando contatos e conhecidos]. Bem, por exemplo, capelim, arinca (eglefim) e bacalhau, havia alguns nas lojas. Halibute e perca defumados eram muito caros. E muito poucos tinham condições de os comprar.

Murmansk também tinha a sorte de ter por perto as bases da Frota do Norte e da aviação militar, e os dirigentes soviéticos se importavam com os militares, deixando de lado o resto do povo. Por isso, nas lojas das cidades militares fechadas quase sempre havia comida. E se você tivesse um passe, tudo era simples. Depois do trabalho, você pegava um ônibus, viajava cerca de uma hora e meia até a base militar e voltava pra casa à noite com sacolas pesadas. Aliás, por que só à noite? Sim, porque mesmo numa cidade fechada você ficava algumas horas em filas e, ao mesmo tempo, recebia xingamentos dos moradores locais, como “Aí estão eles de novo comprando todas as nossas salsichas”.

Me lembro de uma segunda história. Fomos visitar São Petersburgo. Nossos amigos moravam na periferia da cidade, onde as lojas eram totalmente vazias. E à noite, depois do trabalho, iam ao centro levando a filha pequena pra comprar salsichas no mercado da avenida Nevski. Você perguntaria: “Por que devia ir ao centro com uma criança?” É simples: eles davam meio quilo de salsicha por pessoa, e a criança garantia meio quilo a mais de comida. Também me lembro bem dos cupons de alimentação. “Que papel é esse que você sempre esconde num lugar seguro?”, perguntei uma vez a minha avó. “É carne e manteiga”, ela respondeu. A manteiga era na verdade uma margarina muito ruim.

Podemos listar infinitamente os produtos que agora são vendidos em qualquer loja, mas que os soviéticos nunca experimentaram. Isso inclui iogurte, nozes, abacate, chá verde e até chocolate de verdade feito de grãos de cacau, porque em vez disso vendiam uma barra doce que nem tinha gosto de chocolate. Quero lembrar à parte uma iguaria inédita: bananas. Essas frutas eram trazidas a Murmansk uma vez por ano e verdes. Você tinha que ficar na fila o dia todo. Escreviam na palma de sua mão o número de seu lugar na fila, e se saísse, não lhe permitiam voltar. Cada pessoa recebia 1 kg de bananas e, em casa, as frutas verdes eram postas junto à janela. Você tinha que esperar até ficarem maduras.

Por que na URSS as prateleiras eram vazias? – Nunca houve abundância de produtos na URSS. A carência de produtos essenciais começou muito antes da década de 1980. Nas décadas de 1920 e 1930, o governo soviético saqueou os camponeses durante a coletivização stalinista. Stalin precisava da destruição completa da propriedade privada no campo. E o ditador soviético também acreditava que milhões de pequenas propriedades camponesas não podiam alimentar o país e que, portanto, suas terras e gado deviam ser confiscados e transferidos todos pro colcoz. Alegava-se que só uma propriedade comunista comum podia alimentar o país, e quem se opusesse a ela devia ser morto ou exilado pra Sibéria.

A experiência fracassou completamente. O golpe sobre o campo foi tão fatal que, após a coletivização, o país não conseguia mais alimentar a si mesmo. Na década de 1960, o colapso da economia e uma verdadeira fome eram iminentes. Como não havia o que comer, a população começou a se rebelar e, para a reprimir, as autoridades enviaram tropas a Novocherkassk. Os moradores saíram para protestar, indignados porque a comida tinha sumido das lojas, mas os preços continuavam subindo. Os militares começaram a atirar. Cerca de 100 pessoas foram mortas ou feridas.

Mas então o povo soviético foi salvo da fome pelo milagre da descoberta de petróleo na Sibéria. A URSS começou a vendê-lo por dólares, que eram usados pra comprar grãos e outros produtos no exterior. De 1970 a 1980, a URSS aumentou em 15 vezes sua receita com exportação de petróleo aos países ocidentais, chegando a 15 bilhões de dólares por ano. Graças a isso, nos mesmos 10 anos o país aumentou suas compras de grãos no exterior em 12 vezes. Em 1980, importou 30 milhões [de dólares].

Assim, por pouco a fome total foi evitada, mas não por muito tempo. 13 de setembro de 1985 foi o dia sombrio do colapso da economia soviética e, no geral, um dos pontos de virada da história contemporânea. O então ministro do Petróleo da Arábia Saudita, Ahmad Yamānī, fez um anúncio histórico: “O país não vai mais limitar sua produção de petróleo”. Na sequência, a produção saudita aumentou 3,2 vezes e os preços do petróleo despencaram seis vezes. Foi uma sentença de morte pra URSS. Ela não podia vender nada no mercado mundial a não ser petróleo e gás. A tragédia foi agravada pelo fato de 1985 ter sido o pior ano pra agricultura e um recorde na importação de grãos. Então, a URSS comprou 45 milhões de toneladas do produto no exterior. Isso representa cerca de um quarto da necessidade de grãos. Em poucos anos, a URSS ficou sem dinheiro e não tinha mais como comprar alimentos no exterior pra se alimentar.

Tanques em vez de comida – Os líderes soviéticos mantiveram seus cidadãos literalmente à beira da fome, enquanto jogavam dinheiro fora. Por exemplo, a URSS fornecia petróleo e gás aos países socialistas da Europa Oriental praticamente de graça. Era assim que Moscou comprava a lealdade. O segundo projeto caro que a URSS não queria abandonar foi a produção de enormes volumes de armas. O Kremlin sequer levantou a questão da redução dos gastos militares até 1988, quando se tornou óbvio que não havia mais dinheiro. Submarinos nucleares, voos espaciais, participação em guerras no mundo todo. Todo o dinheiro foi parar nisso. O erário foi esgotado por uma série de projetos insensatos, como desviar rios do norte ao sul ou drenar turfeiras nos arredores de Moscou, as quais, aliás, queimaram terrivelmente em 2010 e cobriram a capital com fumaça cáustica.

Como resultado, no final da década de 1980, a URSS não tinha nem reservas de ouro suficientes pra comprar alimentos. E assim, os bancos do mundo recusaram empréstimos à URSS, pois os credores viam que ela não tinha com que pagá-los. Já nos anos de altos preços do petróleo, ela era considerada uma mutuária confiável. Em 1990 e 1991, os dirigentes soviéticos e, depois, russos admitiram: “A fome e os motins da fome são uma questão de meses”. Ao mesmo tempo, talões de racionamento e cartões de fidelidade foram amplamente introduzidos pra que pessoas de regiões vizinhas não viessem a Moscou comprar salsicha.

Multidões afluíam de Vladimir, Tula, Riazan, Iaroslavl e outras cidades à capital. E os trens em que chegavam eram chamados de trens da salsicha. Finalmente, a noção de ajuda humanitária se consolidou no uso comum. Suprimentos alimentares do exterior fixados na memória do povo com o apelido pernas de Bush: coxas de frango congeladas, mingau instantâneo, caixas de leite em pó e papinha de bebê trazidos de avião. E tudo isso se tornou a prova de que a economia planejada soviética não funcionava.

O fracasso da economia planificada – Por que a economia planificada soviética fracassou? Numa economia de mercado, à qual nos acostumamos todos ao longo das décadas, funcionam centenas de milhares e até milhões de empresas privadas. Elas fabricam e vendem o que os clientes desejam. Por exemplo, vejamos os brinquedos infantis. As crianças geralmente pedem que lhes comprem heróis de desenhos, pôneis coloridos, Pikachus. E você pode encontrar isso em qualquer loja.

Mas na URSS não era assim. Numa loja infantil soviética, se vendia apenas o que o ministério responsável pelas lojas infantis escolhia. As autoridades não se importavam, por exemplo, com a Cheburashka, que as crianças realmente queriam. Além disso, negócios privados sempre correm riscos: algo pode ser fabricado, mas não ser comprado, e a empresa vai à falência. Nos habituamos tanto a isso que nem conseguimos imaginar como poderia ser de outra forma. Mas na URSS tudo isso era completamente diferente.

Da década de 1920 até 1991, havia apenas um ator no mercado: o Estado. O comércio, tanto interno quanto externo, era estritamente monopolizado e as autoridades decidiam tudo. As autoridades fixavam o preço das mercadorias, as quais, segundo se dizia, eram “vendidas ao preço estatal”. Aliás, essa expressão tinha outro significado. Se estava ao preço estatal, na verdade não estava à venda. Ou seja, o povo soviético vivia numa economia de escassez, com as mercadorias disponíveis a um círculo restrito de pessoas que controlavam a distribuição. Havia coisas que podiam ser compradas em algumas lojas com vitrines em Moscou e Leningrado, como o GUM ou o Gostiny Dvor. Esse modelo centralizado não resistia à concorrência com o mercado e, como resultado, o funcionamento de toda a economia não conseguia cobrir uma grande parte das despesas do país, pois em 1993-1994 o déficit orçamentário da Rússia ultrapassava 10% do PIB. Isso é cerca de seis vezes mais do que agora.

O buraco foi remendado pela simples impressão de dinheiro. A isso chamaram empréstimos do Banco Central ao governo. O resultado foi que o dinheiro se desvalorizou e o erário secou. Andrei Nechaiev, Ministro da Economia do primeiro governo Ieltsin, lembrou que no início das reformas, as reservas cambiais russas somavam apenas 26 milhões de dólares, e agora são 690 bilhões de dólares. É verdade que quase metade desse dinheiro está retido desde a invasão da Ucrânia, mas ainda assim é impossível comparar esses valores. Além disso, até o final da década de 1980, a URSS emprestou muito dinheiro pra se alimentar. E segundo várias estimativas, o país tinha acumulado, no final de sua existência, cerca de 100 bilhões de dólares em dívida externa, mas não tinha dinheiro pra pagá-la.

Terapia de choque – Em 1991, a União Soviética se dissolveu. O governo russo conseguiu implementar as reformas conhecidas como terapia de choque. O choque consistia na liberação dos preços. Depois que todas as empresas foram autorizadas a definir seus próprios preços, eles dispararam. E não foram apenas as lojas russas. As empresas foram autorizadas a comprar produtos importados por conta própria. E afinal, semana após semana as lojas gradualmente começaram a encher.

Ao mesmo tempo, começou a privatização em pequena escala. Embora ainda não afetasse fábricas ou empresas grandes, as lojas, cabeleireiros, organizações de serviços e similares começaram a passar pra mãos privadas. E nos primeiros dois anos da privatização em pequena escala, em 1992 e 1993, foram privatizadas mais de 85 mil das mais de 100 mil pequenas empresas em todo o país. As pequenas empresas deixaram de ser estatais e passaram a ser privadas. Além disso, os cidadãos puderam comprar e vender dólares livremente e manter moeda estrangeira em contas bancárias. Lembremos que na URSS, isso podia levar as pessoas a serem longamente presas no GULAG ou até fuziladas.

As autoridades pararam de imprimir dinheiro e de investir enormes somas em projetos insensatos, como a rodovia transpolar ao longo do oceano Ártico através do permafrost ou o túnel até a ilha Sacalina. Cortaram-se os gastos estatais. E o principal, começou-se a gastar muito menos em tanques, mísseis e rifles e retiraram-se as enormes tropas dos países da Europa Oriental que se tornaram livres. E o plano em que se baseava toda a economia soviética se transformou em licitações (contratos) públicas. Finalmente, foi então que as autoridades implantaram um sistema de impostos pra empresas na economia de mercado. Em particular, surgiu o IVA, que se tornou uma fonte nova e muito grande de restauração do erário. E foram elaborados novos impostos pras empresas petrolíferas, porque era necessário restaurar o erário, antes reabastecido pela impressão de dinheiro.

As desvantagens das reformas – Bem, é claro que a crise da economia soviética era tão profunda que cada conquista das reformas teve um efeito negativo. Embora a liberação dos preços tenha enchido as lojas, levou à hiperinflação. Agora reclamamos de uma inflação altíssima girando em torno de 10% ao ano: verdade que é muito pra economia. Mas no fim de 1992, os preços tinham aumentado em média mais de 25 vezes: significa que a inflação foi de 2 500% em um ano. Você podia ir à loja e ver a manteiga custando 100 rublos num dia e 150 rublos no dia seguinte.

Praticamente todos os russos viram suas rendas caírem drasticamente na década de 1990. Os primeiros anos das reformas foram muito dolorosos para a esmagadora maioria das famílias. Frequentemente a privatização se resumia à tomada do controle pelos diretores, não tendo os trabalhadores comuns as mesmas oportunidades. E quando começou a privatização por vouchers, os funcionários inferiores simplesmente vendiam seus cheques, porque precisavam de algo pra viver hoje, mas não havia dinheiro suficiente, e alguns trocavam o voucher por uma garrafa de vodca.

Eis, por exemplo, a famosa história de como o oligarca Aleksei Mordashov se tornou proprietário da Severstal, uma das maiores produtoras de metal laminado. O esquema, chamado de vendas controladas, foi descrito em detalhes pela revista Forbes. Em meados da década de 1990, Mordashov criou a empresa Severstal Invest, da qual ele detinha 76%. A Severstal vendia metal a essa empresa a um preço baixo, e a Severstal Invest o revendia a um preço muito mais alto. Tendo acumulado capital, esta primeiro comprou ações da Severstal num leilão e, em seguida, comprou ações de trabalhadores que corriam pra vender suas ações por ser impossível viver com seus salários, em todo caso, há muito tempo atrasados.

A reforma tributária também teve um efeito negativo, já que pouquíssimas pessoas pagavam impostos. Em 1994, o orçamento não recebeu um décimo do que deveria. Em meados da década de 1990, esse número tinha crescido cerca de uma vez e meia, atingindo a enorme dívida tributária de 25 bilhões de dólares das empresas com o orçamento. Um dos motivos foram as alíquotas excessivamente altas: 32% de imposto de renda corporativo e 28% de IVA. Tudo isso ajudava a preencher o orçamento, mas não eram os pagamentos de impostos que cresciam como uma bola de neve. O orçamento continuou sofrendo de falta de dinheiro, os preços subiam e não havia como pagar benefícios e pensões, e muito menos aumentar o apoio social.

Podia ter sido feito melhor? – Economistas que estudaram as reformas de Ieltsin criticam com razão os reformistas e, sobretudo, sua lentidão e indecisão. Tudo devia ter sido feito mais rápido, e não por etapas, como o governo russo fez no início da década de 1990. E muitas reformas também foram iniciadas, mas não concluídas. A indecisão, por exemplo, residia em não ousarem privatizar a terra, o que teria ajudado, mais rapidamente, a lançar um novo agronegócio e a resolver o problema da escassez de alimentos. Mas os comunistas e uma parte significativa dos eleitores se opuseram veementemente.

O desamparo das autoridades também se refletiu no fato de grandes empresas acumularem dívidas fiscais por meses e anos a fio, empresas do porte, por exemplo, da Gazprom ou da Norilsk Nickel [Nornickel desde 2016]. Pra obrigá-las a cumprir suas obrigações fiscais, foi preciso convocar reuniões extraordinárias do governo, pôr as empresas sob pressão e reiterar as exigências. Os bens e contas bancárias da Gazprom foram confiscados. Em muitos aspectos, a lentidão das reformas foi motivada pelo confronto político entre o presidente e os parlamentares russos, o qual levou em 1993 a uma crise política generalizada e a tiroteios nas ruas de Moscou.

E os reformadores não explicaram aos russos os objetivos e o sentido das reformas, quando era necessária uma campanha educacional completa. [Como escreveu Pedro Doria, parte do sucesso do Plano Real se deveu justamente à receptividade de uma população previamente informada, o que hoje podia não dar totalmente certo, tamanho o poder da desinformação veiculada pela internet.] Além disso, o sistema de previdência social era extremamente precário e muitas pessoas se sentiam abandonadas e roubadas. Isso drasticamente privou de apoio o governo Ieltsin. Todos esses problemas não foram resolvidos e se acumularam por meses e anos, até a segunda metade da década de 1990. E eles começaram então a prenunciar outra crise econômica generalizada.

Conclusão – O que aconteceu depois? Centenas de fábricas fecharam, resultando em mais de 10 milhões de desempregados. Havia produtos em abundância nas prateleiras das lojas, mas poucos tinham condições de os comprar. IUKOS, Nornickel, Sibneft: os principais recursos naturais e as maiores empresas do país passaram às mãos de oligarcas ligados ao poder. Tudo isso na próxima parte de nossa série.



sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Ivan Ilin, fascista favorito de Putin


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Não, não é Lenin...


Há alguns dias, por meio de um documentário sobre a interferência de Moscou nas eleições parlamentares, conheci o canal moldovo Málenkaia straná (Pequeno país), criado por Dmitri Gorkaliuk, apoiador aberto da presidente Maia Sandu e falado em russo. “Aqui, descobrimos como funciona a vida na Moldova e o que, em última análise, queremos. O pequeno país tem grandes planos e já desempenha um papel importante no mundo moderno.” Seu vídeo mais recente disseca genialmente como Vladimir Putin, embora se diga um lutador contra o fascismo ao redor do mundo, construiu um regime muito próximo do fascismo histórico e é ele mesmo admirador de um intelectual russo que elogiava Hitler e Mussolini.

Achei urgente a imediata tradução do vídeo pro português, não só pra contribuir no combate à desinformação que o Kremlin ainda dissemina no Brasil, sobretudo entre os fãs de Lula e as esquerdas em geral, mas também pra alertar sobre a gradual aparição do referido filósofo, Ivan Ilin (1883-1954), nas redes sociais brasileiras. As menções são invariavelmente positivas (porque comunistas são burros demais pra conhecer o que não se refira diretamente ao partido bolchevique) e provêm de jovens estudiosos ou simpatizantes da história e literatura russas. Assim, o perigo da legitimação da invasão da Ucrânia na opinião pública é dobrado por uma certa “esquerda” pra quem, inexplicavelmente, a EU e a OTAN são os males maiores (justificando os crimes do outro lado) e por fascistas enrustidos que passam incólumes a olhos não estudados.

Vamos ser sinceros: Putin não liga pra ideologia e se vale de quaisquer extremistas pra difundir sua propaganda no exterior, e na Rússia têm sido empregados de forma extraoficial cada vez mais grupos de extrema-direita e até abertamente nazistas pra perseguir imigrantes da Ásia Central. Nesta pequena contribuição que fiz pra desmentir as manipulações tanto comunistas (há exceções, mas exíguas) quanto fascistas, adicionei notas entre colchetes quando necessário e links pra materiais que esclarecessem os referidos conceitos. Minha escolha vocabular foi clara: Moldova, moldovo, moldova, e não a forma russificada Moldávia, moldávio, moldávia (moldavo, moldava). Há várias referências à conjuntura do país que estou cada vez mais acompanhando, mas que infelizmente não vou poder explicar uma por uma.

Breve correção: Alguns dias depois, me dei conta de que o autor que vi sendo citado por alguns “russistas” bananeiros não era Ilin, mas Eduard Limonov (1943-2020), como se fosse um popstar esquecido. Não consta que ele tivesse influência das obras de Ilin, mas minha indignação não muda em nada, pois pra ser direto: ele fundou junto com Aleksandr Dugin o lixo chamado “Partido Nacional-Bolchevista”, que alguns idiotas aqui adotaram com o nome “nazbol”. Já escrevi algumas vezes o que penso dos “nazbols”, mas o essencial é que Limonov apoiou todo tipo de agressão contra a Ucrânia: “independência” do Donbás, roubo da Crimeia, investidas contra o exército ucraniano... Seus sucessores, inclusive, militam pela libertação do terrorista internacional Igor Girkin (Strelkov). O fato de ter sido preso durante os anos 2000, quando Putin ainda “não era” abertamente fascista, não muda em nada seu caráter fecal.


Você provavelmente já notou que Putin fala regularmente sobre a inadmissibilidade do fascismo e considera a luta contra ele um dos principais feitos históricos da União Soviética, e agora da Rússia moderna:

“Não podemos permitir que a ideologia do fascismo, do nazismo e do militarismo levante novamente a cabeça.”

“Mas a vitória sobre o fascismo e a retribuição contra os nazistas por todas as suas atrocidades ocupam um lugar especial.”

“Então, eles derrubam o fundador da Ucrânia, Lênin, o derrubam dos pedestais. Tudo bem, isso é problema deles. Mas eles colocam Bandera em seu lugar. E ele é um fascista.”

“Eles atacam indiscriminadamente, por saturação, com o fanatismo e amargura dos condenados. Assim como os fascistas, que nos últimos dias do Terceiro Reich tentaram arrastar consigo o maior número possível de vítimas inocentes para a sepultura.”

Na retórica oficial do Kremlin, fascistas e nazistas são cada vez mais usados pra descrever aqueles que simplesmente discordam da linha do partido, sejam ucranianos, políticos da oposição ou líderes de outros países. E não importa que as opiniões dessas pessoas não tenham nada a ver com a ideologia de extrema-direita. Mas se você tentar descobrir o que é realmente o fascismo, isso se torna óbvio. O verdadeiro fascismo hoje é a Rússia de Putin.

O fascismo é um fenômeno que, por um lado, tem sido bem estudado, mas, por outro, não possui uma definição universal clara, razão pela qual é frequentemente interpretado de maneiras diferentes. Via de regra, os pesquisadores recorrem ao ensaio do filósofo italiano Umberto Eco, O fascismo eterno. Nele, ele identificou 14 sinais pelos quais se pode reconhecer o pensamento fascista e um sistema fascista. Eco enfatizou que não é necessário que todos os 14 critérios estejam simultaneamente presentes. Basta um deles pro fascismo começar a se formar em torno dele. Se começarmos a analisar o regime de Putin por esses critérios, verificamos que ele corresponde em maior ou menor grau a praticamente todos os 14.

Aversão à divergência de pensamento, culto à tradição, xenofobia, nacionalismo. Podemos marcar quase todos os pontos. Sim, até mesmo a Novilíngua, que Eco coloca por último em sua lista:

“Tomei a decisão de conduzir uma operação militar especial. E para isso, lutaremos pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.”

Pesquisadores contemporâneos também afirmam que o regime de Putin corresponde cada vez mais aos sinais de um regime fascista. Após o início da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, o historiador e professor da Universidade de Yale, Timothy Snyder, publicou um artigo intitulado “Devemos dizer: a Rússia é um Estado fascista” [leia aqui]. Assim ele descreve a essência do fascismo de Putin:

“Fascistas chamando outras pessoas de fascistas é o fascismo levado a seu extremo ilógico, transformado em culto ao irracional. É o estágio final em que o discurso de ódio inverte a realidade e a propaganda se torna pura insistência. É o apogeu da vontade sobre o pensamento. Acusar os outros de fascismo sendo um fascista é a essência da prática de Putin”.

De fato, em momentos diferentes, o Kremlin transformou habilmente a União Europeia, Joe Biden, a emigração russa e, claro, as autoridades ucranianas em fascistas, nazistas e apoiadores destes. Na Rússia, existe até um artigo criminal sobre a reabilitação do nazismo. Preciso dizer que não são os nazistas que estão sendo julgados por isso? Nem Maia Sandu escapou dos ataques. No entanto, não foram as autoridades russas que mais obtiveram sucesso nisso, mas seus mais devotados fãs moldovos, incluindo Ilan Șor:

“Hoje, o governo central, a fascista Maia Sandu e todo o seu aparato se uniram contra nossa vitória nas eleições da Gagaúzia.”

E Igor Dodon:

“Todo Führer começou violando a Constituição, minando as normas legais e usurpando o poder. O que está acontecendo na Moldova agora é exatamente o mesmo que a história do século passado”.

Em geral, as autoridades moldovas regularmente se tornam alvo da propaganda do Kremlin. Ora são chamadas de fascistas inacabados, ora são acusadas de publicar um manual de história justificando os nazistas, os sentimentos de Hitler e os fascistas romenos.

A propósito, sobre homenagear fascistas. Havia no Império Russo um filósofo chamado Ivan Ilin. Em 1922, ele deixou a Rússia Soviética no “navio dos filósofos”. Partiu pra Alemanha. Em 1933 saudou a chegada de Adolf Hitler ao poder. Trabalhou como professor no Instituto Científico Russo em Berlim, financiado pelo Ministério da Educação Pública e Propaganda sob a direção de Goebbels.

Em 1933, escreveu um artigo intitulado “Nacional-Socialismo, o Novo Espírito”. Aqui estão algumas citações:

“O que Hitler fez? Ele interrompeu o processo de bolchevização na Alemanha e, assim, prestou um enorme serviço a toda a Europa. Enquanto Mussolini liderar a Itália e Hitler liderar a Alemanha, a cultura europeia terá um alívio.”

Resumindo, Ivan Ilin simpatizava com os fascistas.

Além disso, Ivan Ilin é o filósofo favorito de Vladimir Putin. Assim ele respondeu a uma pergunta sobre o pensador russo mais próximo dele:

“Sabe, eu não gostaria de dizer que é apenas Ivan Ilin, mas eu leio Ilin, sim, leio até agora. Tenho um livro na estante e, de vez em quando, o pego e leio.”

E aqui Putin conclui a chamada cerimônia de assinatura dos tratados de anexação das regiões ucranianas de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhia à Rússia com as palavras de Ilin:

“Se considero a Rússia minha pátria, significa que amo em russo.”

Neste verão, uma exposição sobre pensadores russos foi inaugurada na rua Arbat, em Moscou, onde um estande inteiro foi dedicado a Ilin. Um escândalo estourou na internet, mas o Kremlin não quis interferir na discussão. Por isso, as fotografias e citações do admirador de Hitler e Mussolini continuaram tranquilamente penduradas no centro da cidade.

Voltemos à Moldova e à definição de fascismo. O sétimo sinal de um regime fascista na lista de Umberto Eco é cultivar uma mentalidade de cerco. É quando as autoridades insistem que os inimigos estão por toda parte e que você só pode confiar em si mesmo. Na Rússia, a rede de disseminação da paranoia funciona como um relógio. Mas, como sabemos, os interesses de Putin nunca se limitam à Rússia. O Kremlin promove a mesma retórica fora do país, com particular ativismo nos Estados vizinhos, onde ainda conta com apoiadores.

Na Moldova, Putin está implementando essa tática na Transnístria e na Gagaúzia e, há muitos anos, vem moldando consistentemente a necessária visão de mundo entre a população local: o Ocidente é um inimigo, Chișinău é um traidor e Moscou é o único protetor e fonte da verdade. Via de regra, a propaganda é feita usando intermediários, por exemplo, a başkan [governadora] da Gagaúzia, Evghenia Guțul, uma grande fã de Putin. No ano passado [2024], ela finalmente se encontrou com seu ídolo em Sochi, tirou uma foto conjunta pra lembrança e reclamou com ele sobre as ações ilegais das autoridades moldovas, que estão se vingando de nós por nossa posição cívica e lealdade aos interesses nacionais.

Aliás, tais uniões se encaixam perfeitamente na lógica pela qual o fascismo surge. Eis como isso acontece, segundo a versão do sociólogo russo Grigori Iudin: “Devemos lembrar que o fascismo sempre começa com um pequeno grupo que toma o Estado e começa a promover um movimento poderoso por meio dele.”

No entanto, já está claro que Guțul não vai ter muito sucesso. Em 5 de agosto, ela foi condenada a sete anos de prisão por financiar ilegalmente o Partido Șor e falsificar documentos. Ela esperava a ajuda de Putin, mas o Kremlin se limitou então a chamar a sentença de “politicamente motivada”. Como se aquele encontro em Sochi e a foto conjunta nunca tivessem acontecido.

Podemos ainda longamente procurar sinais de fascismo no regime de Putin, mas é importante não esquecer o principal. No passado, nenhum desses regimes sobreviveu, porque é impossível governar eternamente as pessoas por meio do medo, da violência e da mentira. A história provou isso várias vezes. Hitler tomou o poder na Alemanha numa onda de nacionalismo, revanchismo e culto à força, mas cometeu suicídio num bunker, perdendo a guerra que ele próprio desencadeou. Mussolini ostentava o título de “duce”, que significa líder. Ele prometeu limpar a Itália dos comunistas e liderou a “marcha sobre Roma”. Mas, no final, seus compatriotas o penduraram de cabeça pra baixo numa praça em Milão.

O ditador romeno Nicolae Ceaușescu também parecia indestrutível até levar o povo ao limite. Eles escolheram a resistência e não mudaram de rumo, mesmo quando Ceaușescu ordenou que atirassem sobre eles. E todos sabemos bem como tudo terminou. Dez dias de revolução, um tribunal militar convocado às pressas e uma execução na parede de um banheiro de quartel.

O fascismo de Putin tem a mesma natureza: medo, propaganda e agressão. E seu destino será o mesmo. Num mundo onde o fascismo é bem reconhecível e ninguém teme o chamar pelo nome, ele não vai poder resistir por muito tempo. Porém, é importante lembrar que o fascismo não desaparece sozinho e que qualquer um pode contribuir pra sua destruição. Isso é do nosso interesse e do seu.



domingo, 10 de agosto de 2025

História da canção do “Trololó”


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Este texto publicado na imprensa russa online em 12 de janeiro de 2021 se chama em português “A história da canção Estou muito feliz, pois finalmente estou voltando pra casa (Vokalíz)”, faixa que ficou conhecida no Ocidente pelo meme apresentando o cantor soviético-russo Eduard Anatolievich Khil (1934-2012) num clipe cantarolado sem letras. Infelizmente, este artigo guardado em meus backups não tinha indicação de autoria nem o endereço original. Porém, consegui achar usando o Yandex (mas não o Google) uma cópia, ainda sem assinatura, nesta publicação aberta da rede social VK.

Os fanáticos pela cultura russa e pela história soviética devem estar cheios de ouvir falar do grande barítono que terminou seus dias (satisfeito, ao que parece!) conhecido como “Trololó” mundo afora. Mas o texto que acabo de traduzir traz alguns detalhes engraçados e comoventes, como a briga entre o autor da melodia e o ex-futuro letrista e a brincadeira que Khil fazia com a canção em shows no exterior, dizendo que ia cantar na língua local, rs. Além disso, ao longo dos anos já publiquei vários materiais relacionados a Khil e a produções derivadas do Vokaliz, mas nenhuma história completa, ao contrário do que fiz, por exemplo, com o “Dmitri descobre” e o “9999 Gold”. Divirta-se!



Eduard Khil cantou essa vocalização (vokalíz) pela primeira vez ainda em 1965 e então passou frequentemente a inclui-la nos repertórios dos shows que fazia na URSS e no exterior. O público sempre a recebia calorosamente, mas a composição só “estourou” de verdade em 2009, quando um vídeo musical com a faixa caiu no gosto dos internautas.

O interessante é que a thumb vocal do célebre cantor soviético e russo foi tornada um meme superpopular pela audiência anglófona que apelidou Khil de “Mr. Trololo”.

A história do Vokaliz de Eduard Khil – A melodia da obra foi composta por Arkadi Ostrovski. Pressupunha-se que seria uma canção com letra de Vadim Semernin, mas depois o compositor decidiu se virar sem o texto.

Eduard Khil compartilhou recordações sobre a história da composição da canção Estou muito feliz, pois finalmente estou voltando pra casa (Rossiiskaia gazeta, 2010):

A canção era bastante fácil de cantar. Ainda mais que não tinha letra... Embora de início uma letra tivesse sido planejada. Depois que Arkadi Ostrovski compôs a melodia dessa canção, por um longo tempo não conseguimos escolher os versos adequados. Alguns poetas tentaram escrever uma letra, mas todas as variantes propostas foram rejeitadas. A que mais nos agradou foi uma letra cômica sobre um caubói:

“John em seu alazão [mustang], pelas vastidões da pradaria, corre para ver sua amada Mary, que vive no estado do Kentucky e está o esperando, tricotando meias de lã para ele...”

Mas na época soviética, não me permitiram cantar uma música com uma letra assim. No final, Ostrovski disse: “Nesse caso, que seja então uma vocalização!” E, de fato, foi o que fizemos. A única coisa que restou do texto inicial da canção foi o título Estou muito feliz, pois finalmente estou voltando pra casa.

Segue abaixo um vídeo da canção num velho registro de show.



Mikhail, filho do compositor Arkadi Ostrovski, afirmou que a censura não proibiu a letra da canção (Rossiiskaia gazeta, 2010):

Só que a história com o Vokaliz contada pelo Ed Khil não é toda verdade: ninguém proibiu a letra, meu pai simplesmente compôs a melodia num tempo em que estava brigado com o poeta Lev Oshanin. Este lhe disse que o principal numa canção era a letra e que sem o poeta, o compositor não era nada. E então meu pai lhe disse no calor da briga: “Então não preciso da tua letra pra nada, eu me viro”. Não sei pra quê Khil contou de outro jeito. Ou sua memória o traiu, ou a lenda assim o exige”.

Mais um trecho da entrevista de Mikhail Ostrovski:

O Vokaliz foi composto durante uma discussão com Lev Oshanin. Trabalhando, eles frequentemente brigavam, faziam as pazes e brigavam de novo. E eis que um belo dia, do fundo do peito, meu pai berrou: “E eu não preciso da tua letra pra canção, vou compor uma canção sem letra”. E assim nasceu o Vokaliz.

Decida você mesmo qual das duas versões da história da composição parece ser a mais verossímil.

A gravação e o lançamento do Vokaliz O compositor não pensou muito até escolher um intérprete. Conta Mikhail Ostrovski (Rossiiskaia gazeta):

Mais do que tudo, a melodia animada combinava com Eduard Khil. Então ele a entregou a Khil. Inspirados, eles a ensaiaram longamente em casa. E quando foram gravar a canção com arranjos, nosso notabilíssimo maestro Iuri Silantiev, como contou o próprio Khil, se indignou: “Como que isso não tem letra???” Chamaram o poeta V. Semernin, com quem meu pai antes disso tinha composto Aist (A cegonha).

Eduard Khil frequentemente interpretava o Vokaliz em shows e não raro o cantava em turnês internacionais. Vamos ler as recordações do artista (Rossiiskaia gazeta, 2010):

Todas as canções de Ostrovski resultavam alegres… O Vokaliz contém em si o mesmo humor. Depois que o interpretei pela primeira vez na década de 1960, ele começou a se popularizar com bastante rapidez. Mesmo 40 anos atrás, invariavelmente o público reagia bem a essa canção na Rússia, na Suécia, na Alemanha... Por exemplo, me lembro que quando chegamos pra uma turnê na Holanda, eu entrei no palco e brinquei, falando à plateia: “Agora vou cantar pra vocês esta canção em holandês sem sotaque”, e comecei: “Lá, lá, lá...”.

Eduard Khil contou sobre o Vokaliz em apresentações no exterior (Life.ru):

Graças à ausência de letra na canção, podia interpretá-la em todas as línguas. Chegando à Alemanha, disse ao público que cantaria uma canção em alemão. As pessoas pensavam que seria realmente isso. Esperavam a hora de terminar esses inacabáveis “lá, lá, lá” na primeira estrofe, depois na segunda, e na terceira estrofe começavam a rir. Na Holanda eu dizia que ia cantar uma canção em holandês e assim por diante. E por coincidência, esse mesmo clipe que caiu na internet foi filmado na Suécia. E esse mesmo terno com o qual interpreto o hit eu comprei na Suécia.


O clipe Estou muito feliz, pois finalmente estou voltando pra casa Fãs reuniram num único vídeo musical as famosas gravações do Vokaliz a partir de diversos shows de Eduard Khil. Assista ao clipe:


A história do “Trololó” – Por volta do fim de 2009, um clipe com o Vokaliz foi publicado na internet. Em literalmente poucos meses, o vídeo filmado pro especial de TV Canções de Arkadi Ostrovski. Canta Eduard Khil (1976) alcançou alguns milhões de visualizações.

Os internautas estrangeiros se apaixonaram pelo artista russo, que foi apelidado no Ocidente desenvolvido de “Mr. Trololo”. Eduard Khil ficou sabendo da popularidade inesperada graças ao neto:

Ele se aproximou da escola de começou a cantarolar: “Lalá, lalá, lalá! Urra-rá-rá”. Me lembro que então ainda estava espantado sobre por que foi que de repente ele se lembrou dessa canção. E ele correu até mim e disse: “Vovô, sua música se tornou um hit de novo! Eu vi na internet”. Disse que estavam até vendendo online camisetas e bótons com meus retratos.

Reconheço que no começo fiquei confuso, mas depois liguei o computador e vi que era realmente isso. Por toda parte, vídeos feitos com essa canção: estudantes, donas de casa e empregados de escritório me imitavam e lançavam os vídeos na rede mundial.

Khil afirma que as paródias filmadas pelos fãs não o ofendem nem um pouquinho. Ele também contou de qual clipe mais gostou (Rossiiskaia gazeta, 2010):

É claro que foi do vídeo do ator Christoph Waltz! Não é todo dia que você vê um ganhador do Oscar te imitando. Ele encarnou bem o papel: parodiou não somente meu jeito de interpretar a canção, mas também tentou recriar a decoração do clipe.

Vamos assistir à paródia musical de Vokaliz, nomeada Der Humpink e gravada por Christoph Waltz:



Covers de Estou muito feliz... A obra também foi interpretada por outros artistas. Eis Muslim Magomaiev cantando o Vokaliz:


O Vokaliz na versão de Valeri Obodzinski:


E agora o Vokaliz de János Koós, que cantou com uma letra em húngaro [veja minha tradução em português]:


Curiosidades:

  • Iegor Letov utilizou o Vokaliz na faixa Liotchik Li (O piloto Li) do álbum Rodina slyshit (A pátria escuta) da banda Kommunizm.
  • O Vokaliz na versão de Obodzinski é tocado na animação Ia vstretil vas (Encontrei vocês) e no longa-metragem Dom (A casa).
  • O Vokaliz de Khil foi tocado em muitos programas populares da TV americana, na série 12 Monkeys, no filme Pacific Rim: Uprising e na dublagem russa do filme Cell.

Citações sobre a canção:

Já faz uns 40 anos que tenho amizade com o Ed. Meu pai o estimava muito. E se ele ainda estivesse vivo, teria ficado doido de felicidade com o sucesso mundial do Vokaliz. Pra ele, o principal prêmio sempre era não o dinheiro, mas a popularidade de suas canções. Vocês precisavam ver o que se passava com ele quando encontrava na rua um grupo de amigos entoando alto um hit seu. (Mikhail Ostrovski, Rossiiskaia gazeta, 2010)
Fico feliz que o humor contido no Vokaliz não se apagou, mas vive até hoje. (Eduard Khil, Rossiiskaia gazeta, 2010)
Tudo isso é muito bom. Agora posso me apresentar usando não o nome Eduard Khil, mas o pseudônimo “Trololoman”. Pelo menos, estou considerando essa hipótese. (Eduard Khil, RIA Novosti)


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Trotsky – Aos trabalhadores da URSS


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Este é um dos últimos textos de Leyba Bronshteyn (Leon Trotsky) que estava guardado em meus backups aguardando tradução. Como disse antes, muita coisa desse período, vinda das mais variadas personalidades, não achei digna de traduzir e apenas transferi os originais pra minha biblioteca pública. Porém, um texto do dissidente ucraniano me chamou a atenção e decidi trazer uma versão em português: trata-se da “Carta aos trabalhadores da URSS” (Письмо рабочим СССР), escrita em março de 1929 e publicada em Paris, em julho seguinte, na primeira edição (n. 1-2) do Boletim da Oposição (bolcheviques leninistas).

É preciso rolar um pouco pra baixo a referida página até acharmos a carta em questão. Porém, o site como um todo é um grande portal de referência sobre a obra e a militância de Trotsky, e se você sabe russo, pode se deliciar com os originais disponíveis! O estudo do Boletim da Oposição diretamente do original seria uma atividade tão saudável quanto a exploração de suas Obras completas, caídas em domínio público e também digitalizadas há poucos anos. Não sou um fã de Trotsky nem do regime soviético como um todo, mas a leitura de seus escritos é tão mais saudável quanto seus atuais “detratores”, em geral stalinistas sem erudição, se valem de um mero copia-e-cola da propaganda da década de 1930 e a usam como “material primário confiável”.

O boletim dos exilados foi publicado em russo até o n. 87 de agosto de 1941, sucessivamente em Paris, Berlim, Paris de novo (nazismo obrigando) e enfim Nova York (após invasão alemã da França). Entre outras figuras, nele também contribuiu Christian Rakovski, soviético de etnia búlgara também imolado por Stalin, biografado genialmente por Pierre Broué e que me foi apresentado pelo prof. Alvaro Bianchi. Mantive um estilo mais formal do português e adicionei explicações entre colchetes, abrindo uma única nota de rodapé excepcional.

Ainda sobre a tradução, a palavra russa “rabóchi” pode ser traduzida mais estritamente como “operário”, mas no texto inteiro, inclusive no título, acabou ficando “trabalhador” mesmo. Trotsky assina de “Constantinopla”, que não hesitei em atualizar como Istambul, onde ele viveu parte de seu exílio iniciado em 1929. Por fim, onde se encontrar “PC da URSS”, é minha tradução, e igualmente a mais consagrada, de “VKP”, significando “KP” Partido Comunista e “V” vsesoiúznaia, ou seja, “de toda a União” (ou apenas “soviético”, se quiser). “PCUS”, tradução literal da sigla “KPSS”, refere-se apenas ao partido a partir de fins de 1952.



Caros camaradas!

Escrevo-lhes para lhes dizer mais uma vez que os Stalin, os Iaroslavski & Cia. estão os enganando. Estão lhes dizendo que recorri à imprensa burguesa para travar uma luta contra a República Soviética, em cuja formação e defesa trabalhei de mãos dadas com Lenin. Estão os enganando. Eu recorri à imprensa burguesa a fim de defender os interesses da República Soviética contra a mentira, o engano e a traição de Stalin et caterva.

Estão os mandando condenar meus artigos. Acaso vocês os leram? Não, vocês não os leram. Estão lhes dando uma tradução mentirosa, forjada de pequenos trechos isolados. Meus artigos foram publicados em russo numa brochura individual do jeito exato em que eu os escrevi. Exijam que Stalin os reimprima sem abreviações nem falseamentos! Ele não terá coragem. É mais provável que ele tema a verdade. Quero expor aqui o conteúdo básico de meus artigos.

1. Na resolução da GPU sobre meu exílio, afirma-se que lidero a “preparação de uma luta armada contra a República Soviética”. No Pravda, as palavras sobre uma luta armada foram omitidas. Por quê? Porque no Pravda (n. 41, 19 de fevereiro de 1929) Stalin não ousou repetir o que foi afirmado na resolução do GPU. Porque ele sabia que ninguém acreditaria nele. Após a história com o oficial de Wrangel, após ter sido desmascarado o agente provocador enviado secretamente por Stalin para propor aos oposicionistas uma conspiração armada, depois de tudo isso ninguém acreditará que os bolcheviques leninistas que desejam convencer o partido da justeza de suas visões estejam preparando uma luta armada. Foi por isso que Stalin não teve a coragem de mandar publicar no Pravda o que foi afirmado na resolução da GPU de 18 de janeiro. Mas afinal, em tal caso, de que serviria inserir essa óbvia mentira na resolução da GPU? Não para a URSS, mas para a Europa, e para o mundo inteiro. Por meio da agência TASS, Stalin cotidianamente colabora sistematicamente com a imprensa burguesa do mundo inteiro, difundido sua calúnia contra os bolcheviques leninistas. De outra forma, Stalin não podia explicar o exílio e as incontáveis prisões como prova da preparação de uma luta armada pela oposição. Com essa monstruosa mentira, ele causou um enorme dano à República Soviética. Toda a imprensa burguesa falou sobre como Trotsky, Rakovski, Smilga, Radek, I. N. Smirnov, Beloborodov, Muralov, Mrachkovski e muitos outros que construíram e defenderam a República estão agora preparando uma luta armada contra o Poder Soviético. Está claro até que grau tal pensamento deve enfraquecer o Poder Soviético aos olhos do mundo inteiro! Para justificar as repressões, Stalin é obrigado a criar narrativas monstruosas que estão causando um dano incalculável ao Poder Soviético. Foi por isso que considerei indispensável falar à imprensa burguesa e dizer ao mundo inteiro: não é verdade que a oposição esteja se preparando para conduzir uma luta armada contra o Poder Soviético. A oposição conduzir e conduzirá uma luta implacável pelo Poder Soviético contra todos os seus inimigos. Essa minha declaração foi reproduzida em dezenas de milhões de exemplares em línguas do mundo inteiro. Ela serve para consolidar a República Soviética. Stalin quer reforçar sua própria situação, enfraquecendo a República Soviética. Eu quero reforçar a República Soviética, desmascarando as mentiras dos stalinistas.

2. Há muito tempo já, Stalin e sua imprensa difundem no mundo inteiro a informação de que eu supostamente teria declarado que a República Soviética se tornou um Estado burguês, que o poder proletário morreu e coisas assim. Na Rússia, muitos trabalhadores sabem que essa é uma calúnia maliciosa, baseada em citações falseadas. Desmascarei essa falsidade dezenas de vezes em cartas que transmiti de mão em mão. Mas a imprensa burguesa mundial acredita nisso ou finge que acredita. Todas as citações falseadas por Stalin passeiam pelas colunas dos jornais do mundo inteiro, demonstrando como se Trotsky admitisse a inevitabilidade da morte do Poder Soviético. Graças ao enorme interesse da opinião pública mundial, sobretudo das amplas massas populares, pelo que está se passando na República Soviética, os jornais burgueses, impelidos por seus interesses mercadológicos, por sua ânsia em circular e pela pressão dos leitores, estão se vendo obrigados a publicar meus artigos. Nesses artigos, afirmei ao mundo inteiro que o Poder Soviético, apesar da política errônea da direção de Stalin, está profundamente enraizado nas massas, é muito forte e sobreviverá a seus inimigos.

Não se deve esquecer que a esmagadora maioria dos trabalhadores na Europa, em especial nos EUA, continuam se informando pela imprensa burguesa. Impus como condição que meus artigos fossem publicados sem quaisquer alterações que fossem. É verdade que determinados jornais em alguns países desobedeceram a essa condição, mas a maioria a obedeceu. Em todo caso, todos os jornais viram-se obrigados a publicar que, apesar das mentiras e calúnias dos stalinistas, Trotsky está convencido da profunda força interior do regime soviético e acredita firmemente que os trabalhadores, por meios pacíficos, conseguirão mudar a atual política mentirosa do Comitê Central.

Na primavera de 1917, Lenin, confinado em seu isolamento suíço, valeu-se do trem “blindado” dos Hohenzollern para lançar-se junto aos trabalhadores russos. A imprensa chauvinista investiu contra Lenin, chamando-o nada menos do que mercenário alemão e “Herr Lenin” [“senhor” em alemão]. Confinado pelos termidorianos no isolamento em Istambul, vali-me do trem blindado da imprensa burguesa para dizer a verdade ao mundo inteiro. Tola em sua devassidão, a investida dos stalinistas contra “Mister Trotsky” constitui uma mera repetição da investida burguesa e socialista revolucionária [ligada aos “SR”] contra “Herr Lenin”. Eu, assim como Ilich e com um tranquilo desdém, encararei a opinião pública dos filisteus e burocratas cuja alma se encarna em Stalin.

3. Em meus artigos distorcidos e falsificados por Iaroslavski, contei como, por que e sob que condições fui expulso da URSS. Os stalinistas estão espalhando na imprensa europeia o boato de que eu teria sido mandado ao exterior por solicitação própria. Também desmascarei essa mentira. Contei que fui expulso para o exterior à força, por meio de um acordo prévio entre Stalin e a polícia turca. E aqui atuei não somente nos interesses de minha proteção pessoal contra calúnias, mas também e antes de tudo nos interesses da República Soviética. Se os oposicionistas visassem deixar as fronteiras da União Soviética, ficaria claro para o mundo inteiro que supostamente teríamos considerado irremediável a situação do governo soviético. Entretanto, não há sequer resquícios disso. A política de Stalin desferiu terríveis golpes não somente na revolução chinesa, no movimento operário inglês e em toda a Comintern, mas também na estabilidade interna do regime soviético. Isso é indiscutível. Porém, a causa não foi abalada de forma alguma. Em nenhuma hipótese a oposição está se preparando para fugir da República Soviética. Recusei-me categoricamente a deixar o país, sugerindo que me trancassem na cadeia. Os stalinistas não ousaram recorrer a esse método, pois temiam que os trabalhadores se obstinassem em obter minha soltura. Preferiram chegar a um acordo com a polícia turca e forçaram minha deportação para Istambul. Expus isso para o mundo inteiro. Cada trabalhador bem-pensante dirá que se Stalin, por meio da TASS, alimenta diariamente a imprensa burguesa com calúnias contra a oposição, então eu era obrigado a agir para desmentir essas calúnias.

4. Em dezenas de milhões de exemplares, contei ao mundo inteiro que fui exilado não pelos trabalhadores russos, não pelos camponeses russos, não pelo Exército Vermelho soviético, não por aqueles com quem conquistamos o poder e combatemos ombro a ombro em todas as linhas de frente da guerra civil; fui exilado pelos apparatchiks que tomaram o poder em suas mãos, se transformaram numa casta burocrática que está ligada pelo encobrimento mútuo. Para defender a Revolução de Outubro, a República Soviética e o nome revolucionário dos bolcheviques leninistas, eu disse para o mundo inteiro a verdade sobre Stalin e os stalinistas. Lembrei mais uma vez que Lenin, em seu “Testamento” cuidadosamente elaborado, chamou Stalin de desleal. Essa palavra é compreensível em todas as línguas do mundo. Ela designa um indivíduo inescrupuloso ou desonesto que é dirigido por impulsos vis em suas ações, um indivíduo no qual não se deve confiar. Foi assim que Lenin caracterizou Stalin, e estamos vendo novamente quão correta estava sua advertência. Para um revolucionário, não há crime maior do que enganar seu próprio partido e envenenar a consciência da classe operária com mentiras. Todavia, nisso consiste a principal ocupação de Stalin. Ele está enganando a Comintern e a classe operária mundial, imputando à oposição ações e intenções contrarrevolucionárias para com o Poder Soviético. Foi exatamente por essa inclinação interna a tal modo de agir que Lenin chamou Stalin de desleal, foi exatamente por isso que ele propôs ao partido remover Stalin de seu posto. Depois de tudo o que aconteceu, é tão mais necessário agora esclarecer perante o mundo inteiro como se expressava a deslealdade, isto é, a falta de escrúpulos e a desonestidade de Stalin para com a oposição.

5. Os caluniadores (Iaroslavski e outros agentes de Stalin) fazem barulho a respeito dos dólares americanos. Em outras condições, é pouco provável que valesse a pena reclinar-se até esse lixo. Mas a imprensa burguesa mais malévola se deleita em revirar a sujeira de Iaroslavski. Para não deixar nada sem esclarecer, também falarei, por essa razão, sobre os dólares.

Transmiti meus artigos à agência americana de imprensa em Paris. Dezenas de vezes, tanto Lenin quanto eu demos a esse tipo de agências entrevistas e declarações escritas com nossas visões sobre essas e outras questões. Graças a meu exílio e a suas circunstâncias secretas, o interesse por esse caso foi colossal no mundo inteiro. A agência esperava ter bons lucros e me propôs metade do ganho. Eu lhe respondi que não pegaria nenhum tostão para mim, mas que a agência deveria, seguindo minha indicação, transmitir metade de seu ganho com meus artigos, e que com esse dinheiro eu editaria em russo e em línguas estrangeiras toda uma série de obras de Lenin (seus discursos, artigos cartas) qte tinham sido proibidas da República Soviética pela censura de Stalin. De forma equivalente, com esse dinheiro publicarei toda uma série de documentos partidários principais (atas de conferências e congressos, cartas, artigos etc.) que são escondidos do partido somente porque escancaram o quão infundado é Stalin em teoria e política. É essa a literatura “contrarrevolucionária” (nas palavras de Stalin e Iaroslavski) que estou preparando para publicação. No tempo devido, será publicado um relatório preciso sobre os valores para isso despendidos. Cada trabalhador dirá que é imensuravelmente melhor usar o dinheiro recebido, na forma de tributo casual, da burguesia para publicar as obras de Lenin do que usar o dinheiro tirado dos trabalhadores e camponeses russos para difundir calúnias sobre os bolcheviques leninistas. Não se esqueçam, camaradas: o “Testamento” de Lenin ainda é considerado na URSS um documento contrarrevolucionário por cuja difusão prendem e exilam. Não é por acaso: Stalin está travando uma luta em escala internacional contra o leninismo. Não sobrou quase nenhum país no mundo onde permanecessem hoje à frente de um partido comunista os revolucionários que lideraram esses partidos no tempo de Lenin. Quase todos eles foram expulsos da Internacional Comunista. Lenin dirigiu os quatro primeiros congressos da Comintern. Elaborei junto com Lenin todos os documentos básicos da Comintern. No 4.º Congresso (1922), Lenin bipartiu comigo o informe básico sobre a Nova Política Econômica [a famosa NEP] e as perspectivas da revolução internacional. Após a morte de Lenin, quase todos os participantes, em todo caso, sem exceção, todos os participantes influentes dos quatro primeiros congressos, foram expulsos da Comintern. Por toda à parte, à frente dos partidos comunistas, encontram-se pessoas novas, aleatórias, que ainda ontem estavam no campo dos adversários e inimigos. Para conduzir uma política antileninista, a primeira coisa necessária era derrubar a direção leninista. Stalin fez isso, apoiando-se na burocracia, nos novos círculos pequeno-burgueses, no aparelho de Estado, na GPU [antecessora do NKVD e, mais tarde, do KGB], nos meios materiais do Estado. Isso se produz não somente na URSS, mas também na Alemanha, na França, na Itália, na Bélgica, nos Estados Unidos, na Escandinávia, resumidamente, em quase todos os países, sem exceção. Somente um cego pode não entender o sentido do fato de os colaboradores e companheiros de luta mais próximos de Lenin no PC da URSS e em toda a Comintern, todos os participantes e dirigentes dos partidos comunistas nos difíceis primeiros anos, todos os participantes e dirigentes dos quatro primeiros congressos terem sido, quase sem exceção, removidos dos postos, difamados e expulsos. Essa luta selvagem contra a direção leninista é necessária aos stalinistas para conduzirem uma política antileninista.

Enquanto os bolcheviques leninistas eram fulminados, o partido era tranquilizado pelo fato de que a partir de então ele seria monolítico. Vocês sabem que o partido está agora mais dividido do que nunca. E isso ainda não é o fim. No caminho stalinista não há salvação. Só é possível conduzir uma política à la Ustrialov [ustriálovskaia] (1), ou seja, consequentemente termidoriana, ou uma política leninista. A posição centrista de Stalin está inevitavelmente conduzindo à acumulação de enormes dificuldades econômicas e políticas e à destruição e esfacelamento definitivos do partido.

Ainda não é tarde para mudar de rumo. É preciso mudar abruptamente e política e o regime partidário no espírito da plataforma da oposição. É preciso cessar a vergonhosa perseguição aos melhores leninistas revolucionários no PC da URSS e em todo o mundo. É preciso restaurar a direção leninista. É preciso condenar e erradicar os métodos desleais, isto é, inescrupulosos e desonestos do aparelho stalinista. A oposição está pronta para ajudar com todas as forças o núcleo proletário do partido a realizar essa tarefa vital. A caçada selvagem, as calúnias nefastas e as repressões estatais não podem obscurecer nossa relação com a Revolução de Outubro ou com o partido internacional de Lenin. Permanecemos ambos [o PC da URSS e a Comintern] fiéis até o fim – nas prisões stalinistas, no desterro ou no exílio.

Saudações bolcheviques

L. Trotsky.
Istambul, 29 de março de 1929.


(1) Referência a Nikolái Vasílievich Ustriálov (1890-1937), jurista, filósofo e político russo, precursor do “nacional-bolchevismo” e fuzilado junto a vários seguidores durante os “grandes expurgos”. Inicialmente um constitucional democrata (“cadete”), entrou para o lado dos “brancos” na guerra civil e por volta de 1921, em Praga, desenvolveu ideias encorajando a imigração a retornar à URSS e aceitar os bolcheviques. Como o novo regime, a seu ver, evoluiria para uma espécie de nacionalismo burguês, preferiu não aderir ao comunismo e se denominou “nacional-bolchevique”, refletindo sua eslavofilia de origem. As ideias de Ustrialov, atacadas por Lenin e Trotsky, ganharam aceitação limitada na URSS nas décadas de 1920 e 1930, e ele mesmo passou anos exilado na Manchúria. Voltou em 1935, tendo depois dificuldades para refazer sua vida (passado “branco” em seu rastro), até finalmente ser mandado para o GULAG.



domingo, 20 de julho de 2025

Carta de Brandão a Dimitrov (1942)


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Direto dos arquivos de meu backup, hoje temos uma carta do comunista brasileiro Octavio Brandão escrita em russo pro búlgaro Georgi Dimitrov, secretário-geral da Comintern (um cargo basicamente simbólico àquela altura), em 1942. Agradeço à equipe do Arquivo Egdard Leuenroth da Unicamp, que me permitiu reproduzir e publicar o texto. A história do alagoano Brandão, a quem já aludi várias vezes nesta página, é uma epopeia à parte que ainda está esperando por seu biógrafo, mas, na sequência da recente “vibe” de ter voltado a meu tema de pesquisa do doutorado, cabe distingui-lo claramente da figura de Luiz Carlos Prestes. Desta vez, remeto diretamente a minha tese de doutorado, na qual tentei confrontar as experiências de várias figuras do PCB, com posições, “conversões” e origens de classe diferentes, mostrando que a figura do “comunista típico” não deve ser tomada de forma homogênea e genérica.

Ao contrário de Prestes, que se tornou capitão do Exército, aderiu ao comunismo em 1930 e entrou no partido “de paraquedas” imposto pela Comintern, Brandão foi anarquista, entrou no PCB antes do fim de 1922, fez parte da formulação da linha política, participou dos contatos internacionais e foi expulso da cúpula na onda de “stalinização” em 1929-30. Contudo, com o golpe de Estado passado à história como “Revolução de 30”, ambos foram viver com suas famílias na URSS em 1931, e enquanto o gaúcho voltou clandestino em 1935 só pra ficar preso até 1945, o alagoano ficou até 1946, esperando que a poeira política baixasse no Brasil. Apesar dos contatos mútuos, a diferença de posição era clara: Prestes aproveitou sua formação de engenheiro pra ajudar na “construção do socialismo” (literal e metafórica), e Brandão, farmacêutico de profissão, foi relegado a posições burocráticas menores no aparelho da Comintern, sem qualquer influência na linha política, cuidando da difusão de informações ao exterior.

Libertado, Prestes foi eleito senador e obteve a secretaria-geral do PCB, enquanto Brandão, com seus bicos de jornalista e escritor, nunca mais voltou a cargos na direção interna, foi ignorado enquanto teórico e militante e sofreu necessidades financeiras. Dimitrov, que alcançou celebridade mundial ao se livrar da condenação pelos nazistas no fim de 1933, lutou por uma orientação claramente antifascista, mas não foi totalmente ouvido por um Stalin ocupado com sua razão de Estado. A partir dos grandes expurgos de 1936-38, a Comintern foi desmantelada e só servia como símbolo, enquanto Dimitrov, salvo do redemoinho, manteve seu posto decorativo, além do controle sobre os quadros restantes, entre os quais Brandão, que lhe dedicava grande respeito e lhe pediu licença pra retornar à pátria – aparentemente, não tendo sido atendido.

Eu já tinha feito a tradução do russo há um tempo, mas ao publicar, coloquei umas poucas notas explicativas entre colchetes. Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.



Moscou, 6 de setembro de 1942

Caro camarada Dimitrov!

Gostaria de pedir que me recebesse para discutirmos algumas questões políticas estreitamente ligadas aos presentes acontecimentos no Brasil.

Estou na expectativa de falar hoje sobre essas mesmas questões com a cam. Dolores [Ibárruri, dirigente espanhola].

Passaram-se mais de onze anos desde que o governo Vargas me expulsou de minha pátria; mas conforme o telegrama que recebi hoje, o governo já anunciou a anistia aos exilados políticos expulsos do país.

Nessas condições, caro camarada Dimitrov, minha função está na minha pátria, para lutar junto com meu povo!

Para mim é impossível – política e moralmente – permanecer longe do Brasil, assistindo de fora aos presentes acontecimentos lá desenrolados.

Por isso peço-lhe fortemente que me autorize a partir imediatamente, com minha filha Sattva, para o Brasil – passando por Nova York, Londres ou por qualquer outro percurso.

Penso que para a Comintern e o Governo Soviético não será difícil obter duas passagens – para mim e para Sattva – para um avião que faça o trajeto entre Moscou, Londres e Nova York.

Se for impossível conseguir as passagens de avião, peço que enviem a mim e minha filha por qualquer outro meio de transporte que seja.

Sattva já possui alguma base política e cultural, ela é uma ativa militante e será muito útil para o Partido Comunista e para meu trabalho político e literário.

Peço-lhe também que permita às três irmãs do camarada Prestes (Heloísa, Lúcia e Clotilde) e à minha filha Vólia partirem imediatamente de Ufá para Moscou.

Vólia poderia permanecer em Moscou, realizar um trabalho útil para o Brasil na InoRadio [destinada ao exterior] ou na Comintern e ao mesmo tempo continuar seus estudos universitários.

Finalmente, gostaria de pedir-lhe fortemente que autorize as três irmãs do camarada Prestes a partirem para o Brasil.


Caro camarada Dimitrov!


Já faz mais de onze anos que dia após dia espero ardentemente pela hora de voltar à minha pátria. Essa hora chegou!

Como camarada e líder, entenderá os pensamentos e sentimentos que estão agora me inquietando e me obrigaram a escrever-lhe.

Ciente de seu habitual cuidado com as pessoas, fico no aguardo de sua decisão.

Saudações comunistas,

OCTAVIO BRANDÃO


     – Comintern
Novoie zdanie, sala 60
tel. 30.



sexta-feira, 18 de julho de 2025

Prestes e o negro brasileiro (1934)


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Direto dos arquivos de meu backup, hoje temos a seleção de algumas falas de Luiz Carlos Prestes, líder revolucionário e longevo secretário do Partido Comunista do Brasil (PCB, “Brasileiro” a partir de 1961), na chamada 3.ª Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e Central, reunida em Moscou em outubro de 1934. O evento permaneceu obscuro por muitas décadas, porque mesmo seus participantes jamais deram mais detalhes posteriormente, mas isso porque foi meio improvisado, aproveitando que as delegações já estavam lá mesmo após o 7.º Congresso da Comintern ter sido adiado pra meados de 1935. Contudo, as atas de suas reuniões foram mantidas nos arquivos soviéticos e há alguns anos têm sido consultadas por historiadores, inclusive de forma online. Em minhas teses de doutorado e mestrado, que podem ser consultadas aqui, abordei a influência dessas reuniões na atuação posterior do PCB e concluí que seu papel na eclosão das insurreições militares de novembro de 1935 foi muito superestimado.

Por terem sido retranscritas e traduzidas, as atas podem não representar fielmente o que Prestes disse verbalmente nas reuniões, mas vou tomar o conteúdo como alinhado aos pensamentos e práticas da época. No início de 2021, a pedido de um pesquisador baiano que estudava o tratamento da então chamada “questão negra” pelo PCB no período da Comintern, traduzi alguns documentos ou trechos de atas de reuniões sobre o assunto, até porque também a onipresença da língua russa dificulta a navegação no próprio portal dos arquivos. Acabei fazendo apenas parte do que poderia e perdi o contato com o historiador, mas gostei de ter encontrado estes trechos, pois revelam um fato muito especial: embora Prestes estivesse fora do Brasil há anos, tendo perdido contato, portanto, com nossa realidade, ele diverge da direção partidária ao não ver a necessidade de engajar negros e indígenas numa luta “nacional” ou “separatista”, como ocorria em outros países.

Por volta de 1934, a Comintern já tinha feito uma “limpa” na maioria das direções partidárias, que tinham se tornado completamente “stalinizadas” e, por isso, apenas reproduziam diretivas “de cima” e não sabiam como as aplicar em realidades totalmente distintas. Antônio Maciel Bonfim, o “Miranda”, por exemplo, era secretário-geral do PCB desde julho e foi acusado de inventar completamente que havia uma “situação revolucionária” no Brasil ao falar na 3.ª Conferência, gerando indignação mesmo entre os colegas delegados. Prestes, que carregava o prestígio popular da “Coluna Invicta” de 1924-27, estava na URSS desde 1931 trabalhando como engenheiro, mas sendo “lapidado” como uma nova liderança e ainda fora do PCB, tendo “Miranda” resistido ao máximo a sua entrada, finalmente efetuada por ordem de Moscou. “Miranda” deixaria o PCB em fins daquela década, enquanto o Estado Novo desmantelava o partido, e Prestes, preso em 1936, só chegaria à liderança em 1943.

É curioso como Prestes, ao contrário inclusive de outras correntes progressistas no Brasil, não só tenta trazer os negros pra frente de luta, como também ressalta o caráter racial de suas exigências, pois do ponto de vista “nacional” eles já teriam sido “desmantelados” durante a deportação da África e, depois, enquanto escravos e misturados entre origens diversas. Eu coloquei as notas entre colchetes como explicações, correções ou observações, assim como as três notas de rodapé, nada disso tendo sido alterado. Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.



Trecho isolado de informe (fundo 495, dossiê 79, pasta 213, folha 225), codinome Fernandes

Até agora nossa luta tem se voltado principalmente para a formação [ideológica], para a tarefa de separarmos o proletariado da burguesia, mas hoje, quando, com mais força em alguns países e mais fracamente em outros, existe um Partido Comunista, existe um proletariado com ideologia própria, que está realmente apto a defender seus interesses – agora é indispensável saber manobrar, saber atrair para si também as vastas massas da pequena burguesia da cidade e do campo. Esse é o único meio de atraí-las à luta, o único meio aqui é desmascarar na luta a devoção desses elementos ao imperialismo, desmascarar os elementos reacionários da burguesia e sua [da pequena burguesia] estreita ligação com a burguesia. É um ponto importante analisarmos a questão do caráter da revolução em nossos países.

Não considero ser indispensável insistir que é totalmente compreensível que o campesinato é um aliado nosso, mas nessa questão não deve haver quaisquer limitações. Devemos ter aqui clareza absoluta. Não sabemos o que é um kulak, o que é um camponês rico. É verdade que o camponês rico será amanhã contra a revolução, mas se ele estiver apto a seguir do nosso lado, mesmo que por um dia ou uma hora, devemos nos valer dele.

Por outro lado, há a questão das nacionalidades oprimidas, da gente de cor, dos negros. Eles constituem uma camada bastante ampla da população. Os contornos do movimento são muito mais vastos do que frequentemente supomos, mas levamos em pouca consideração as diferenças de classe entre os caciques [pontos indicando um termo a completar]. As massas indígenas estão fundidas com os caciques. É necessário ter uma noção totalmente clara da profunda diferenciação aí. Devemos buscar aí o fundamento das classes dentro da tribo para mobilizarmos essas camadas contra o imperialismo.


Informe completo de Fernandes (codinome), fundo 495, dossiê 79, pasta 214, folhas 55-63

Camaradas, a delegação brasileira me incumbiu basicamente de colocar a questão do problema negro. Também quero aqui na conferência mostrar como entendemos no Brasil a questão do separatismo, que tem para nós um grande significado. Antes de passar à questão negra, não posso deixar de dizer algumas palavras a respeito do informe de ontem de Montero, (1) sobretudo com relação ao que disse sobre a tribo. Penso que nós no Brasil estamos totalmente de acordo com a linha revolucionária que o camarada Montero defendeu na questão nacional no Peru com relação aos índios. Não há dúvida de que no Peru temos a questão indígena como central e decisiva para elucidar quem é revolucionário e quem não é revolucionário. A questão dos indígenas no Peru está repartida entre, de um lado, quem luta pela libertação dos índios e, de outro, quem é contra a libertação dos índios, ajuda o imperialismo e ajuda na opressão nacional dos índios. A questão indígena no Peru é tão importante para o Partido, tão importante para o movimento revolucionário quanto a questão dos cangaceiros no Brasil. Esta é uma das questões decisivas, como disse o camarada Montero. Qual partido no Brasil está apto a defender os cangaceiros? Somente o Partido Comunista. A colocação aberta da questão da libertação nacional dos índios no Peru tem um significado decisivo. Devemos nos lembrar fortemente que o desenvolvimento econômico das massas indígenas no Peru ainda é muito insignificante, que dentro da tribo a diferenciação ainda não é significativa, que nós, se quisermos realmente lutar junto com as massas indígenas, devemos lutar junto com todos os índios, com toda a tribo. Nós não fechamos uma união revolucionária somente com o campesinato pobre, não faremos a revolução sem atrair conosco toda a tribo. Essa é uma posição absolutamente correta do camarada Montero nessa questão, o qual demonstrou sua linha revolucionária. Com todas as forças ele destacou a questão da luta junto a toda a tribo. Não há por que temer que a tribo venha até nós como organização colaboradora. O que é essencial aqui? É essencial que nós, lutando pela tribo, dirijamos a luta das tribos pela libertação nacional. Essa é uma enorme vantagem. Devemos atrair também a eles, impelir os camponeses pobres, médios e ricos à revolução. E não há por que alimentarmos ilusões quanto a isso. Devemos ter um partido pronto para unir blocos para a luta pela revolução, junto com as tribos, com [ilegível]. Para isso é necessário que haja um Partido Comunista, que haja um partido da classe operária. E quanto a isso quero dizer aqui algumas palavras contra o informe do camarada Montero.

O camarada Guralski, (2) com toda a acuidade e com toda sua vontade revolucionária, colocou e defendeu aqui a linha que estou defendendo agora. Não falarei aqui sobre formulações. Sem dúvida, a revolução é a revolução. E veremos a ação dos revolucionários na própria revolução. Mas ainda não passamos à ação. Infelizmente, ainda nos encontramos no período das formulações. E o que é que vemos no informe do camarada Montero? Por que a maioria dos camaradas reagiu assim à maioria das perguntas? Porque no informe do camarada Montero, apesar de seu caráter revolucionário, algumas coisas atravessam uma linha vermelha, ou melhor, não uma linha vermelha, mas um fio preto. Em que consiste essa linha preta de seu informe? Consiste em que o camarada Montero, ao examinar o Partido Comunista do Peru, alimenta enormes ilusões, grandes ilusões no tocante aos índios. Montero disse aqui que não há ilusões. Mas lá o tempo todo, no informe inteiro, era visível que essas ilusões existem. O camarada Guralski disse que essas ilusões existem porque não há índios no governo peruano. É justamente porque não há índios que há ilusões. Os índios das tribos não têm ilusões quanto às tribos. Penso que isso não é argumento, penso que existem ilusões. Quero trazer dois fatos. O camarada Chato da Colômbia discursou aqui e disse que a reação, que a mais rude exploração feudal atrapalha o desenvolvimento da tribo. O camarada Montero diz algo totalmente contrário. Que a reação, o feudalismo etc. tentam liquidar a tribo.

Essa é a deficiência da democracia. A opressão das forças internas nas tribos é que exatamente encontramos. As forças internas nas tribos visam ao desenvolvimento econômico. Aumentam as contradições? Por que não aumentam? É exatamente graças a essa opressão feudal.

Como a tribo resiste? A tribo é um foco de luta contra a opressão. É exatamente assim com a nacionalidade negra que luta contra a opressão. Mas a opressão existe. O que teremos no período da revolução? Defenderemos toda a legislação tribal? Isso seria uma utopia, uma utopia reacionária pequeno-burguesa. Esse é um erro muito grosseiro e um enorme perigo para o Partido peruano. O Partido peruano deve realizar uma virada em toda a sua linha revolucionária, deve conduzir uma luta contra toda ilusão pequeno-burguesa. É um erro enorme, porque o Partido peruano se encontra diante de fortíssimos combates revolucionários. Se nosso Partido peruano, sendo o partido da classe operária, não colocar a questão da revolução indígena como um partido do proletariado com uma linha marxista-leninista, ele entregará a revolução nas mãos da reação. Penso que com isso podemos concluir a questão e passar para a próxima.

Camaradas, passo agora à questão negra no Brasil. Infelizmente, como já mostrou o camarada Silva, (3) nós não podemos dar nada de prático com relação à colocação da questão negra no Brasil. Somente na última conferência no mês de julho nosso Partido adotou uma posição decisiva quanto à colocação da questão nacional, somente então ele entendeu o problema nacional. Até então, oscilávamos entre extremos, antes declarávamos que não havia nenhuma questão nacional no Brasil. Que não havia negros no Brasil, todos eram iguais. Por isso caímos no outro extremo, vendo em cada negro um problema nacional. Colocamos a questão da autodeterminação etc. para cada negro. O que o camarada Montero disse sobre Cuba, em minha opinião, relaciona-se exatamente com o Brasil. Avançamos a palavra de ordem da autodeterminação como uma palavra de ordem de ação direta. Colocar a palavra de ordem da autodeterminação como uma exigência parcial, exigir a independência como uma exigência parcial significa isolar os negros.

Como o Partido brasileiro coloca a questão no presente? A conferência partidária nacional discutiu essa questão e eu quero aqui esclarecer as posições do Partido. O significado da questão negra no Brasil é incomumente grande. Negá-la seria errôneo. Podemos dizer que uma porcentagem muito grande, não dando números precisos, em nosso país é de negros. No estado da Bahia, nos arredores da capital, há um território em que 60% da população são negros. A questão negra não é uma questão nacional somente do Brasil. O camarada Montero mostrou a diferença entre questão nacional e opressão racial. Eu concordo que existe realmente opressão racial. As massas negras sentem o que é a opressão racial, porque elas sabem que alguém negro é obrigado a fazer os piores trabalhos. Em uma palavra, todas as desigualdades para os negros são uma afronta para os negros. De onde saiu isso? De onde veio essa opressão racial? Sobre os negros pesam três séculos de escravidão. Antes eles eram trazidos da África ao Brasil. Ao chegarem no país, eram divididos, separados dos filhos, mandados uns ao Rio de Janeiro, outros à Bahia, e se transformavam em escravos. Esses grupos nacionais eram divididos. E os senhores feudais [sic] repartiam os negros desta forma: os negros do [Congo?] para tal trabalho, os negros de outro país para outro trabalho. Ocorria o deslocamento dos negros de diversas nacionalidades, de diferentes crenças religiosas. O objetivo era indispor um negro contra o outro. Com isso, todavia, as rebeliões não foram evitadas. Temos rebeliões no período da luta pela independência. Uma enorme rebelião negra, liderada por negros. Tivemos toda uma série de rebeliões. Deve-se dizer que os senhores de escravos tiveram muito sucesso. Eles dividiram as nacionalidades, separaram os negros. Se chegarmos agora ao estado da Bahia, onde se encontra uma maioria de negros, o que veremos? Podemos dizer que são negros do [Congo?] ou de outro país? Não. Eles dizem que são [ilegível]. Se colocarmos a questão da autodeterminação culminando na separação, eles [sem conexão lógica aparente] a questão negra no Brasil tal como a colocamos. Falamos que os negros no Brasil são oprimidos, são considerados a raça mais inferior. As nacionalidades estão divididas, destruídas, quebradas em pedaços. Somente a luta revolucionária contra o imperialismo, contra o feudalismo permitirá que essas nacionalidades evoluam. Elas só evoluirão no processo de luta contra o feudalismo, o imperialismo, no processo da revolução democrático-burguesa. Nesse processo surgirão enormes nacionalidades, sobre as quais sequer sabemos agora. O exemplo da URSS para nós é muito nítido. Dessa forma, nossa palavra de ordem programática deve ser: nós comunistas, como os maiores e mais fortes democratas do mundo, somos contra todo tipo de opressão, contra a opressão racial, contra a opressão nacional. Somos pela autodeterminação de todas as nacionalidades oprimidas culminando na separação. Mas essa é uma palavra de ordem programática, é nosso programa, é nosso princípio. Há uma enorme diferença entre nossas palavras de ordem programáticas e o modo como nos comunicamos com as massas.

E como é que nos comunicamos com as massas oprimidas? Colocando em cada manifesto, em cada panfleto a questão da autodeterminação dos negros de forma abstrata, não obteremos nada. Precisamos colocar diante dos negros, basicamente, a questão da igualdade de direitos. Nós, comunistas, somos contra toda e qualquer forma de opressão racial das massas. As massas nos entenderão melhor se lhes declararmos que somos contra o jugo racial do que se falarmos apenas de jugo nacional. Isso é que devemos falar às massas, e então as massas nos entenderão. Devemos começar pelas menores exigências econômicas contra toda opressão feudal. Desta forma realmente mobilizaremos as massas.

Quero aqui tocar na palavra de ordem que o Partido brasileiro ainda não colocou. Precisamos colocar esta palavra de ordem. Depois que o camarada Bueno trouxe a rica experiência do trabalho das massas negras no Brasil, precisamos enfatizar particularmente esta palavra de ordem. Um dos traços nacionais mais característicos das massas negras no Brasil consiste na religião e suas festas populares. O fetichismo religioso se funde com a medicina popular, com a bruxaria das festas religiosas. Não devemos apoiar as ilusões religiosas nas massas. Devemos lutar pela elevação do nível cultural das massas negras. Mas devemos começar a elevar o nível cultural antes da revolução. Começando a luta com as ilusões, não devemos esquecer que agora precisamos levar à luta as vastas massas com todas essas ilusões que existem nelas. A imprensa burguesa em [ilegível] anuncia que os índios se insurgem quando seus pajés são capturados. Os jornalistas burgueses se insurgem contra o fato de que na própria capital do Brasil encontramos pajés. Camaradas, estamos conquistando as massas negras que vivem nos confins miseráveis do Rio de Janeiro, defendendo seus direitos contra todo jugo. Em 1897 o camarada Lenin disse: “Somos contra toda opressão, contra a opressão religiosa, contra a opressão sectária. Somos os maiores democratas. Não podemos admitir essa opressão.” Através dessa luta, através dessa corajosa luta cotidiana pelos direitos dos negros, contra toda discriminação devemos dar a entender às massas o que significa a autodeterminação.

Nós temos agora no Brasil determinados bolsões onde existem grandes massas camponesas. Concretamente para cada localidade, para cada liga, para cada zona, devemos colocar a palavra de ordem da autodeterminação culminando na separação, por exemplo, o Recôncavo Baiano.

Entre os estados onde se concentra a população negra temos o estado de Minas Gerais. É um estado de concentração da população negra. Penso que se colocarmos a questão dessa forma, nos ligaremos com as massas negras, com as amplas massas dos negros na revolução contra o imperialismo, contra o capitalismo.

Nessa questão existem problemas muito importantes. Os negros no Brasil, sobretudo nos últimos anos, têm organizações políticas. A frente negra em São Paulo agora se encontra em processo de decomposição, mas ainda é muito forte. Temos organizações negras sob diferentes denominações. Temos em São Paulo uma organização de pessoas de cor negra, de negros.

Qual deve ser nossa tática com relação a essas organizações? Nessas organizações existem elementos corruptos, vendidos, elementos do imperialismo que tentam desviar as massas de seu caminho de luta.

Vamos nos relacionar de forma sectária com a frente negra? Somente na luta pelas reivindicações dos índios, por suas reivindicações específicas, poderemos desmascarar os líderes da frente negra. Somente chamando para a frente única, somente tendo formado a frente única com essas organizações saberemos desmascarar seus líderes. Isso tem a ver com todas as organizações negras, subentende-se, considerando todas as condições, particularidades de cada momento dado, de cada localidade etc. Mais adiante devemos ter clareza quanto à necessidade de atrair as amplas massas negras à revolução. Sem isso não poderemos lutar pela revolução.

Algumas palavras sobre o separatismo. É uma questão muito importante para o Brasil. Os camaradas brasileiros pedem que a conferência, no decorrer da discussão, examine essa questão. O Brasil é um país mais ligado ao mundo exterior do que com suas diversas partes, internamente. A ausência de vias de ligação, a exploração econômica que busca construir a monocultura também em outros países que estão absolutamente isolados desse país: esse é o movimento separatista. Aqui os imperialistas empregam a luta de São Paulo em 1932 contra Vargas. O imperialismo inglês emprega-a sob a bandeira da luta pelo separatismo.

Podemos dizer que aqui não há nenhum traço nacional característico? O sentimento de separatismo existe e é empregado em outros lugares. Isso tem distinções. Além das distinções econômicas, lá existem alguns traços nacionais, em particular no Nordeste. Lá existem nacionalidades oprimidas. Lá existe uma tendência mais séria ao separatismo, mas lá a questão se põe de modo totalmente diferente. Deve-se ter absoluta clareza nessa questão, coisa que não temos.

O separatismo não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Pensamos que em outros países da América do Sul e do Caribe existem os mesmos problemas. Eu não estava aqui quando o camarada mexicano discursou. Penso que lá o separatismo tem um fundamento nacional. Lá existem nacionalidades oprimidas, na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela existe a província de Zulia, onde se aspira à formação de uma república separada. Isso constitui um fenômeno claramente separatista? Não. Lá existem traços nacionais empregados pelos imperialistas.

Estou colocando essa questão. Tudo leva a crer que em seu discurso de encerramento, Montero tratará disso.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Eudocio Ravines, comunista peruano. Autor de La gran estafa (trad. inglesa The Yenan Way), por muito tempo uma das únicas fontes memorialísticas sobre a 3.ª Conferência. Segundo a historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos e Olga Benario, o livro é malicioso e está “eivado de mentiras”.

(2) August Guralski, nascido Abram Kheifets (ou Jeifets), de família judaica da Letônia, participou em missões na América do Sul, trabalhou no Secretariado Sul-Americano (Buenos Aires), no Secretariado Latino-Americano da Comintern (Moscou) e, auxiliando em assuntos latino-americanos, no Comitê Executivo da Comintern.

(3) Provavelmente Lauro Reginaldo da Rocha, o “Bangu”, secretário-geral do PCB nos períodos anterior e posterior a “Miranda”.