Há alguns dias, por meio de um documentário sobre a interferência de Moscou nas eleições parlamentares, conheci o canal moldovo Málenkaia straná (Pequeno país), criado por Dmitri Gorkaliuk, apoiador aberto da presidente Maia Sandu e falado em russo. “Aqui, descobrimos como funciona a vida na Moldova e o que, em última análise, queremos. O pequeno país tem grandes planos e já desempenha um papel importante no mundo moderno.” Seu vídeo mais recente disseca genialmente como Vladimir Putin, embora se diga um lutador contra o fascismo ao redor do mundo, construiu um regime muito próximo do fascismo histórico e é ele mesmo admirador de um intelectual russo que elogiava Hitler e Mussolini.
Achei urgente a imediata tradução do vídeo pro português, não só pra contribuir no combate à desinformação que o Kremlin ainda dissemina no Brasil, sobretudo entre os fãs de Lula e as esquerdas em geral, mas também pra alertar sobre a gradual aparição do referido filósofo, Ivan Ilin (1883-1954), nas redes sociais brasileiras. As menções são invariavelmente positivas (porque comunistas são burros demais pra conhecer o que não se refira diretamente ao partido bolchevique) e provêm de jovens estudiosos ou simpatizantes da história e literatura russas. Assim, o perigo da legitimação da invasão da Ucrânia na opinião pública é dobrado por uma certa “esquerda” pra quem, inexplicavelmente, a EU e a OTAN são os males maiores (justificando os crimes do outro lado) e por fascistas enrustidos que passam incólumes a olhos não estudados.
Vamos ser sinceros: Putin não liga pra ideologia e se vale de quaisquer extremistas pra difundir sua propaganda no exterior, e na Rússia têm sido empregados de forma extraoficial cada vez mais grupos de extrema-direita e até abertamente nazistas pra perseguir imigrantes da Ásia Central. Nesta pequena contribuição que fiz pra desmentir as manipulações tanto comunistas (há exceções, mas exíguas) quanto fascistas, adicionei notas entre colchetes quando necessário e links pra materiais que esclarecessem os referidos conceitos. Minha escolha vocabular foi clara: Moldova, moldovo, moldova, e não a forma russificada Moldávia, moldávio, moldávia (moldavo, moldava). Há várias referências à conjuntura do país que estou cada vez mais acompanhando, mas que infelizmente não vou poder explicar uma por uma.
Breve correção: Alguns dias depois, me dei conta de que o autor que vi sendo citado por alguns “russistas” bananeiros não era Ilin, mas Eduard Limonov (1943-2020), como se fosse um popstar esquecido. Não consta que ele tivesse influência das obras de Ilin, mas minha indignação não muda em nada, pois pra ser direto: ele fundou junto com Aleksandr Dugin o lixo chamado “Partido Nacional-Bolchevista”, que alguns idiotas aqui adotaram com o nome “nazbol”. Já escrevi algumas vezes o que penso dos “nazbols”, mas o essencial é que Limonov apoiou todo tipo de agressão contra a Ucrânia: “independência” do Donbás, roubo da Crimeia, investidas contra o exército ucraniano... Seus sucessores, inclusive, militam pela libertação do terrorista internacional Igor Girkin (Strelkov). O fato de ter sido preso durante os anos 2000, quando Putin ainda “não era” abertamente fascista, não muda em nada seu caráter fecal.
Você provavelmente já notou que Putin fala regularmente sobre a inadmissibilidade do fascismo e considera a luta contra ele um dos principais feitos históricos da União Soviética, e agora da Rússia moderna:
“Não podemos permitir que a ideologia do fascismo, do nazismo e do militarismo levante novamente a cabeça.”“Mas a vitória sobre o fascismo e a retribuição contra os nazistas por todas as suas atrocidades ocupam um lugar especial.”
“Então, eles derrubam o fundador da Ucrânia, Lênin, o derrubam dos pedestais. Tudo bem, isso é problema deles. Mas eles colocam Bandera em seu lugar. E ele é um fascista.”
“Eles atacam indiscriminadamente, por saturação, com o fanatismo e amargura dos condenados. Assim como os fascistas, que nos últimos dias do Terceiro Reich tentaram arrastar consigo o maior número possível de vítimas inocentes para a sepultura.”
Na retórica oficial do Kremlin, fascistas e nazistas são cada vez mais usados pra descrever aqueles que simplesmente discordam da linha do partido, sejam ucranianos, políticos da oposição ou líderes de outros países. E não importa que as opiniões dessas pessoas não tenham nada a ver com a ideologia de extrema-direita. Mas se você tentar descobrir o que é realmente o fascismo, isso se torna óbvio. O verdadeiro fascismo hoje é a Rússia de Putin.
O fascismo é um fenômeno que, por um lado, tem sido bem estudado, mas, por outro, não possui uma definição universal clara, razão pela qual é frequentemente interpretado de maneiras diferentes. Via de regra, os pesquisadores recorrem ao ensaio do filósofo italiano Umberto Eco, O fascismo eterno. Nele, ele identificou 14 sinais pelos quais se pode reconhecer o pensamento fascista e um sistema fascista. Eco enfatizou que não é necessário que todos os 14 critérios estejam simultaneamente presentes. Basta um deles pro fascismo começar a se formar em torno dele. Se começarmos a analisar o regime de Putin por esses critérios, verificamos que ele corresponde em maior ou menor grau a praticamente todos os 14.
Aversão à divergência de pensamento, culto à tradição, xenofobia, nacionalismo. Podemos marcar quase todos os pontos. Sim, até mesmo a Novilíngua, que Eco coloca por último em sua lista:
“Tomei a decisão de conduzir uma operação militar especial. E para isso, lutaremos pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.”
Pesquisadores contemporâneos também afirmam que o regime de Putin corresponde cada vez mais aos sinais de um regime fascista. Após o início da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, o historiador e professor da Universidade de Yale, Timothy Snyder, publicou um artigo intitulado “Devemos dizer: a Rússia é um Estado fascista” [leia aqui]. Assim ele descreve a essência do fascismo de Putin:
“Fascistas chamando outras pessoas de fascistas é o fascismo levado a seu extremo ilógico, transformado em culto ao irracional. É o estágio final em que o discurso de ódio inverte a realidade e a propaganda se torna pura insistência. É o apogeu da vontade sobre o pensamento. Acusar os outros de fascismo sendo um fascista é a essência da prática de Putin”.
De fato, em momentos diferentes, o Kremlin transformou habilmente a União Europeia, Joe Biden, a emigração russa e, claro, as autoridades ucranianas em fascistas, nazistas e apoiadores destes. Na Rússia, existe até um artigo criminal sobre a reabilitação do nazismo. Preciso dizer que não são os nazistas que estão sendo julgados por isso? Nem Maia Sandu escapou dos ataques. No entanto, não foram as autoridades russas que mais obtiveram sucesso nisso, mas seus mais devotados fãs moldovos, incluindo Ilan Șor:
“Hoje, o governo central, a fascista Maia Sandu e todo o seu aparato se uniram contra nossa vitória nas eleições da Gagaúzia.”
E Igor Dodon:
“Todo Führer começou violando a Constituição, minando as normas legais e usurpando o poder. O que está acontecendo na Moldova agora é exatamente o mesmo que a história do século passado”.
Em geral, as autoridades moldovas regularmente se tornam alvo da propaganda do Kremlin. Ora são chamadas de fascistas inacabados, ora são acusadas de publicar um manual de história justificando os nazistas, os sentimentos de Hitler e os fascistas romenos.
A propósito, sobre homenagear fascistas. Havia no Império Russo um filósofo chamado Ivan Ilin. Em 1922, ele deixou a Rússia Soviética no “navio dos filósofos”. Partiu pra Alemanha. Em 1933 saudou a chegada de Adolf Hitler ao poder. Trabalhou como professor no Instituto Científico Russo em Berlim, financiado pelo Ministério da Educação Pública e Propaganda sob a direção de Goebbels.
Em 1933, escreveu um artigo intitulado “Nacional-Socialismo, o Novo Espírito”. Aqui estão algumas citações:
“O que Hitler fez? Ele interrompeu o processo de bolchevização na Alemanha e, assim, prestou um enorme serviço a toda a Europa. Enquanto Mussolini liderar a Itália e Hitler liderar a Alemanha, a cultura europeia terá um alívio.”
Resumindo, Ivan Ilin simpatizava com os fascistas.
Além disso, Ivan Ilin é o filósofo favorito de Vladimir Putin. Assim ele respondeu a uma pergunta sobre o pensador russo mais próximo dele:
“Sabe, eu não gostaria de dizer que é apenas Ivan Ilin, mas eu leio Ilin, sim, leio até agora. Tenho um livro na estante e, de vez em quando, o pego e leio.”
E aqui Putin conclui a chamada cerimônia de assinatura dos tratados de anexação das regiões ucranianas de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhia à Rússia com as palavras de Ilin:
“Se considero a Rússia minha pátria, significa que amo em russo.”
Neste verão, uma exposição sobre pensadores russos foi inaugurada na rua Arbat, em Moscou, onde um estande inteiro foi dedicado a Ilin. Um escândalo estourou na internet, mas o Kremlin não quis interferir na discussão. Por isso, as fotografias e citações do admirador de Hitler e Mussolini continuaram tranquilamente penduradas no centro da cidade.
Voltemos à Moldova e à definição de fascismo. O sétimo sinal de um regime fascista na lista de Umberto Eco é cultivar uma mentalidade de cerco. É quando as autoridades insistem que os inimigos estão por toda parte e que você só pode confiar em si mesmo. Na Rússia, a rede de disseminação da paranoia funciona como um relógio. Mas, como sabemos, os interesses de Putin nunca se limitam à Rússia. O Kremlin promove a mesma retórica fora do país, com particular ativismo nos Estados vizinhos, onde ainda conta com apoiadores.
Na Moldova, Putin está implementando essa tática na Transnístria e na Gagaúzia e, há muitos anos, vem moldando consistentemente a necessária visão de mundo entre a população local: o Ocidente é um inimigo, Chișinău é um traidor e Moscou é o único protetor e fonte da verdade. Via de regra, a propaganda é feita usando intermediários, por exemplo, a başkan [governadora] da Gagaúzia, Evghenia Guțul, uma grande fã de Putin. No ano passado [2024], ela finalmente se encontrou com seu ídolo em Sochi, tirou uma foto conjunta pra lembrança e reclamou com ele sobre as ações ilegais das autoridades moldovas, que estão se vingando de nós por nossa posição cívica e lealdade aos interesses nacionais.
Aliás, tais uniões se encaixam perfeitamente na lógica pela qual o fascismo surge. Eis como isso acontece, segundo a versão do sociólogo russo Grigori Iudin: “Devemos lembrar que o fascismo sempre começa com um pequeno grupo que toma o Estado e começa a promover um movimento poderoso por meio dele.”
No entanto, já está claro que Guțul não vai ter muito sucesso. Em 5 de agosto, ela foi condenada a sete anos de prisão por financiar ilegalmente o Partido Șor e falsificar documentos. Ela esperava a ajuda de Putin, mas o Kremlin se limitou então a chamar a sentença de “politicamente motivada”. Como se aquele encontro em Sochi e a foto conjunta nunca tivessem acontecido.
Podemos ainda longamente procurar sinais de fascismo no regime de Putin, mas é importante não esquecer o principal. No passado, nenhum desses regimes sobreviveu, porque é impossível governar eternamente as pessoas por meio do medo, da violência e da mentira. A história provou isso várias vezes. Hitler tomou o poder na Alemanha numa onda de nacionalismo, revanchismo e culto à força, mas cometeu suicídio num bunker, perdendo a guerra que ele próprio desencadeou. Mussolini ostentava o título de “duce”, que significa líder. Ele prometeu limpar a Itália dos comunistas e liderou a “marcha sobre Roma”. Mas, no final, seus compatriotas o penduraram de cabeça pra baixo numa praça em Milão.
O ditador romeno Nicolae Ceaușescu também parecia indestrutível até levar o povo ao limite. Eles escolheram a resistência e não mudaram de rumo, mesmo quando Ceaușescu ordenou que atirassem sobre eles. E todos sabemos bem como tudo terminou. Dez dias de revolução, um tribunal militar convocado às pressas e uma execução na parede de um banheiro de quartel.
O fascismo de Putin tem a mesma natureza: medo, propaganda e agressão. E seu destino será o mesmo. Num mundo onde o fascismo é bem reconhecível e ninguém teme o chamar pelo nome, ele não vai poder resistir por muito tempo. Porém, é importante lembrar que o fascismo não desaparece sozinho e que qualquer um pode contribuir pra sua destruição. Isso é do nosso interesse e do seu.
