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Civilização drogada, sociedade enferma, doentia, neurótica, psicótica, autodestrutiva. Talvez, quem sabe, a caminho da implosão. É onde vivemos.
Não é de hoje que desconfio – e parece (ou estou certo) que muitos outros também – de que esse problema das drogas nas sociedades modernas está sendo muito mal entendido e tratado. Todas essas campanhas contra a droga e seus usuários, com suas ramificações tentaculares pelo rendoso mercado desse produto – a droga – estão, acredito eu, resultando inúteis, ou quase. Para cada drogado “curado” (?), certamente estão surgindo muitos milhares ou mesmo milhões de novos usuários que entram e aderem à ciranda das drogas. Palmadas, palmatórias, reprimendas, ficar ajoelhado sobre o milho no canto da sala de aula, papos compreensivos ou amigáveis, prisão domiciliar ou não, sermão moral e religião, psicologia e divã psicanalítico de nada adiantam, nessa altura dos acontecimentos históricos nacionais e internacionais, penso eu. A própria campanha contra o fumo (e a próxima, ao que parece, sobre o álcool e quem sabe, em futuro próximo, contra o beijo e o sexo) são, em essência, duvidosas na sua histeria maluca obsessiva – esta última, sim, a “histeria de massa, de Estado e de empresa” –, uma droga muito perigosa e ainda não reconhecida de todo.
E não confio muito nas estatísticas e nos diagnósticos da medicina, tão voláteis e incertos, que ora sustentam uma coisa, ora outra. O que fazia mal ontem já não faz tanto assim e o que faz bem hoje é veneno. Cautela com estatísticas e diagnósticos. E o pior de tudo é que vivemos todos hoje sob o império da medicalização e da medição estatística, do nascimento à velhice e à morte.
Bem, é sabido que o homem (ou a “raça humana”, se preferem) desde sempre fumou, se drogou, se embriagou, sempre foi supersticioso, místico, exagerado, violento, brutal, letal, cientista, poeta, artista e sonhador – e tudo ao mesmo tempo. Tenho, por exemplo, dúvidas se o pai da ciência política foi mesmo Maquiavel, com O Príncipe, ou Macbeth, do mestre Shakespeare, consultando as feiticeiras para saber de seu destino como rei. Aliás, o próprio Maquiavel dizia que os homens são mais fiéis aos seus preconceitos do que aos seus princípios... A mente racional não tem esse poder todo que se imagina.
O fenômeno das drogas como peste ou pandemia é coisa relativamente recente, fenômeno típico da moderna sociedade capitalista de massas. A droga hoje, como disse, é uma mercadoria, produto mercadológico – e o mercado, quanto mais livre e desimpedido for, mais sagrado e fundamental ele é na economia moderna. Produz tudo para todos os gostos e necessidades, reais ou inventadas. Na sociedade consumista, quem não consome não existe. As pessoas hoje se identificam e avaliam pelo que consomem. E a cada dia novos produtos são lançados e divulgados com tal furor por mais sofisticadas tecnologias de comunicação, que se torna praticamente impossível viver sem eles. Eles nos são impostos pela propaganda massiva, invasiva e agressiva ou pela sedução. Quem não entra no jogo torna-se logo um ser descartável, desprezível, solitário – um extravagante a quem não se deve dar ouvidos.
As drogas, ao mesmo tempo em que são combatidas – chamam-se elas crack, maconha, cocaína, morfina, heroína, ópio, ecstasy, cigarro e agora a obesidade (que já está sendo considerada uma droga, com suas anorexias e bulimias) –, são estimuladas, por outros meios e métodos, por seu mercado produtor. Combate-se e estimula-se, em uma sociedade que perdeu o sentido e o horizonte da vida.
Vejam-se, por exemplo, o automóvel e a motocicleta, hoje verdadeiros ícones e vícios de massa, inteiramente fetichizados. O mesmo com as top-models, parâmetros mercadológicos do vestir, do desfilar (leia-se, do caminhar) e da postura corpórea. Elas dizem: é assim que se veste, é assim que se anda. A internet é outra droga potencial ou já efetiva, apesar de seus supostos benefícios. Netviciados ou internautas enlouquecidos ou idiotizados proliferam. Todos esses, automóveis, motocicletas, internets, top-models, escritórios modernos, televisões, a Coca-Cola, a Pepsi e o McDonald’s, tudo isso provoca alucinações, manias e obsessões tão perigosas e alienantes como o crack, a cocaína e a heroína. Tudo isso alucina.
A minha conclusão é que a “doença das drogas” é uma doença de toda a nossa sociedade, somos todos drogados, de alguma forma. Tudo é droga ou pode se transformar em droga amanhã, se o mercado antever aí possibilidades de bons investimentos e lucros. É sabido que o narcotráfico constitui um dos negócios mais rendosos do mundo. A própria moeda é uma droga muito perigosa, cuidado! E o futebol é mania a ser evitada a todo custo. A religião, se bebida em excesso, pode levar a rumos desconhecidos e perigosos de mau delírio. E a política é droga falsificada! Ópio do povo, como dizia Marx.
Não sou contra o combate às drogas, em geral. Só gostaria que percebessem que o seu uso massificado, imoderado, alucinado, alienante, obsessivo, mercadológico e ideológico tem raízes mais profundas e mais complexas do que se costuma pensar e dizer. E isso não se refere às drogas, como tais, mas também às drogas “travestidas” de sociabilidade de mercado.
Antigamente, muito antigamente, havia medida, oportunidade, método e sentido criativo e transcendente no uso das drogas e então elas eram um fator de coesão e identidade social, de sonho e libertação. Como dizia Aldous Huxley, elas eram as “portas da percepção” para um outro mundo, tão belo e maravilhoso como este que vemos e ao qual assistimos, mas que está escondido dentro de nós, como uma rara pedra preciosa.
Somos muito mais do que apenas parecemos ser. É lamentável que tudo esteja sendo transformado em peste.