terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Jarbas Medeiros, “Sociedade drogada”


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Outro dia, remexendo em meus papéis “de refugo”, encontrei um texto chamado “Sociedade drogada”, de autoria do cientista político Jarbas Medeiros, publicado na revista Caros Amigos e que, pelo conteúdo, parecia ser do início dos anos 2000. Não havia outras informações: o estilo, inclusive, era muito parecido com aquela época, e com coisas que nos dava pra ler na escola minha querida professora de História de esquerda, Flávia Otatti Valle. Achei que teria de digitar todo o artigo, mas por sorte, após pesquisar no Google, achei uma única cópia em formato DOC no site do Liceu Albert Sabin, indicada como “sugestão de leitura” de um prof. Marcelo Góes. Melhor ainda, nosso amigo indicou ter sido publicado em agosto de 2003 (acertei!), no número 77, página 26. Relendo o texto interessante, quase caí de costas quando vi praticamente uma previsão distópica do caos que vivemos hoje; embora ele descrevesse a própria época, não deixa de assombrar como tudo piorou ao invés de melhorar. Talvez os pontos mais chocantes sejam o triunfo do ultraliberalismo, a campanha contra o sexo e a burrice causada pela internet. Enfim, só leiam e repassem!


Civilização drogada, sociedade enferma, doentia, neurótica, psicótica, autodestrutiva. Talvez, quem sabe, a caminho da implosão. É onde vivemos.

Não é de hoje que desconfio – e parece (ou estou certo) que muitos outros também – de que esse problema das drogas nas sociedades modernas está sendo muito mal entendido e tratado. Todas essas campanhas contra a droga e seus usuários, com suas ramificações tentaculares pelo rendoso mercado desse produto – a droga – estão, acredito eu, resultando inúteis, ou quase. Para cada drogado “curado” (?), certamente estão surgindo muitos milhares ou mesmo milhões de novos usuários que entram e aderem à ciranda das drogas. Palmadas, palmatórias, reprimendas, ficar ajoelhado sobre o milho no canto da sala de aula, papos compreensivos ou amigáveis, prisão domiciliar ou não, sermão moral e religião, psicologia e divã psicanalítico de nada adiantam, nessa altura dos acontecimentos históricos nacionais e internacionais, penso eu. A própria campanha contra o fumo (e a próxima, ao que parece, sobre o álcool e quem sabe, em futuro próximo, contra o beijo e o sexo) são, em essência, duvidosas na sua histeria maluca obsessiva – esta última, sim, a “histeria de massa, de Estado e de empresa” –, uma droga muito perigosa e ainda não reconhecida de todo.

E não confio muito nas estatísticas e nos diagnósticos da medicina, tão voláteis e incertos, que ora sustentam uma coisa, ora outra. O que fazia mal ontem já não faz tanto assim e o que faz bem hoje é veneno. Cautela com estatísticas e diagnósticos. E o pior de tudo é que vivemos todos hoje sob o império da medicalização e da medição estatística, do nascimento à velhice e à morte.

Bem, é sabido que o homem (ou a “raça humana”, se preferem) desde sempre fumou, se drogou, se embriagou, sempre foi supersticioso, místico, exagerado, violento, brutal, letal, cientista, poeta, artista e sonhador – e tudo ao mesmo tempo. Tenho, por exemplo, dúvidas se o pai da ciência política foi mesmo Maquiavel, com O Príncipe, ou Macbeth, do mestre Shakespeare, consultando as feiticeiras para saber de seu destino como rei. Aliás, o próprio Maquiavel dizia que os homens são mais fiéis aos seus preconceitos do que aos seus princípios... A mente racional não tem esse poder todo que se imagina.

O fenômeno das drogas como peste ou pandemia é coisa relativamente recente, fenômeno típico da moderna sociedade capitalista de massas. A droga hoje, como disse, é uma mercadoria, produto mercadológico – e o mercado, quanto mais livre e desimpedido for, mais sagrado e fundamental ele é na economia moderna. Produz tudo para todos os gostos e necessidades, reais ou inventadas. Na sociedade consumista, quem não consome não existe. As pessoas hoje se identificam e avaliam pelo que consomem. E a cada dia novos produtos são lançados e divulgados com tal furor por mais sofisticadas tecnologias de comunicação, que se torna praticamente impossível viver sem eles. Eles nos são impostos pela propaganda massiva, invasiva e agressiva ou pela sedução. Quem não entra no jogo torna-se logo um ser descartável, desprezível, solitário – um extravagante a quem não se deve dar ouvidos.

As drogas, ao mesmo tempo em que são combatidas – chamam-se elas crack, maconha, cocaína, morfina, heroína, ópio, ecstasy, cigarro e agora a obesidade (que já está sendo considerada uma droga, com suas anorexias e bulimias) –, são estimuladas, por outros meios e métodos, por seu mercado produtor. Combate-se e estimula-se, em uma sociedade que perdeu o sentido e o horizonte da vida.

Vejam-se, por exemplo, o automóvel e a motocicleta, hoje verdadeiros ícones e vícios de massa, inteiramente fetichizados. O mesmo com as top-models, parâmetros mercadológicos do vestir, do desfilar (leia-se, do caminhar) e da postura corpórea. Elas dizem: é assim que se veste, é assim que se anda. A internet é outra droga potencial ou já efetiva, apesar de seus supostos benefícios. Netviciados ou internautas enlouquecidos ou idiotizados proliferam. Todos esses, automóveis, motocicletas, internets, top-models, escritórios modernos, televisões, a Coca-Cola, a Pepsi e o McDonald’s, tudo isso provoca alucinações, manias e obsessões tão perigosas e alienantes como o crack, a cocaína e a heroína. Tudo isso alucina.

A minha conclusão é que a “doença das drogas” é uma doença de toda a nossa sociedade, somos todos drogados, de alguma forma. Tudo é droga ou pode se transformar em droga amanhã, se o mercado antever aí possibilidades de bons investimentos e lucros. É sabido que o narcotráfico constitui um dos negócios mais rendosos do mundo. A própria moeda é uma droga muito perigosa, cuidado! E o futebol é mania a ser evitada a todo custo. A religião, se bebida em excesso, pode levar a rumos desconhecidos e perigosos de mau delírio. E a política é droga falsificada! Ópio do povo, como dizia Marx.

Não sou contra o combate às drogas, em geral. Só gostaria que percebessem que o seu uso massificado, imoderado, alucinado, alienante, obsessivo, mercadológico e ideológico tem raízes mais profundas e mais complexas do que se costuma pensar e dizer. E isso não se refere às drogas, como tais, mas também às drogas “travestidas” de sociabilidade de mercado.

Antigamente, muito antigamente, havia medida, oportunidade, método e sentido criativo e transcendente no uso das drogas e então elas eram um fator de coesão e identidade social, de sonho e libertação. Como dizia Aldous Huxley, elas eram as “portas da percepção” para um outro mundo, tão belo e maravilhoso como este que vemos e ao qual assistimos, mas que está escondido dentro de nós, como uma rara pedra preciosa.

Somos muito mais do que apenas parecemos ser. É lamentável que tudo esteja sendo transformado em peste.