domingo, 7 de setembro de 2025

O mito da economia planejada


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A ilustração talvez não condiga muito com o conteúdo do texto, mas nesta conjuntura em que os fãs de Vladolf Putler querem ver em sua expansão imperial uma espécie de “URSS 2.0”, enquanto culpam o capetalizmu e o Ossidentx Mauvadaum pelo colapso da “união de povos nada livres”, é sempre bom recordar o nível de coitadismo e autopiedade contido tanto em certos discursos pró-Rússia quanto na mitologia bolchevista ainda ruminada por seitas acadêmicas mundo afora. E nada melhor do que o conteúdo produzido pela própria comunidade democrática no exílio, informado pela vivência na própria pele e pelos estudos mais avançados feitos in loco, pra refrescar nossa mente contra o discurso de “guerra fria”, seja de matiz ultraconservador ou antiliberal.

Na condição cultural em que ainda vive nosso esplêndido gigante Fazendil, traduzir essa nova produção e a divulgar ao máximo de pessoas possível é uma tarefa urgente, ainda que primária perto do nível em que a desinformação do Kremlin se infiltrou entre alguns grupos intelectuais e midiáticos. E a Novaya Gazeta Evropa, com seu genial editor-chefe Kirill Martynov e da qual já publiquei partes de análises históricas aqui, conta também com o economista Denis Morokhin, que apesar de sua semelhança com o “casseta” Marcelo Madureira, traz os problemas econômicos passados e presentes da Rússia com rara leveza didática. Foi o caso da série “Rossíiskoi ekonómike ostálos”, que apareceu em quatro partes e cujo título pode ser traduzido como “Ainda resta à economia russa...”, no sentido do tempo que ainda pode demorar pra um real colapso com o desvario causado pela invasão da Ucrânia.

A tese básica de Morokhin é a de que jamais foram feitas as reformas necessárias pra que a Rússia se tornasse uma verdadeira economia capitalista de mercado, saudável e pujante. Os problemas deixados pelo terraplanismo que foi a total estatização da economia (mal administrada, ainda por cima) no período soviético, além de terem sido enormes, não receberam as soluções devidas da parte dos reformadores sob Ieltsin. Abriu-se caminho, então, à simples espoliação das empresas públicas pelos antigos administradores burocratas (tornados “oligarcas”) e à excessiva intervenção estatal sob Putin.

O boom econômico provocado na década de 2000 pelo aumento no preço das commodities (fenômeno, aliás, também observado no Brasil nos primeiros governos de Lula) não foi revertido em industrialização e criação de reservas de emergência, enquanto permitiu a aquiescência geral diante do autoritarismo. Embora não claramente visível, o declínio se tornaria inevitável a partir da anexação da Crimeia (2014) e dos gastos militares desenfreados, culminando na invasão em larga escala da Ucrânia (2022) e na recessão que estaria agora ameaçando uma economia quase toda reenquadrada pela militarização da sociedade.

Este é o primeiro episódio, cujo mérito reside exatamente na desmistificação da economia planejada, que alguns idiotas de internet ainda querem romantizar aqui, e por isso não vou traduzir os três seguintes. Você vai ver que a culpa não é (só) de Gorbachov, da globalização, do Til Çan ou do ET Bilu, e que aquele bigodudo georgiano idolatrado por revolucionários de sofá fez muito pra quase destruir o país. Fiz uma transcrição em russo baseada na correção da legenda baixada, a partir da comparação com a fala de Morokhin, mas não vou a publicar, como fiz com o vídeo sobre Ivan Ilin, e posso enviar num arquivo à parte a quem me pedir. O Google Tradutor deu o texto-base em português, mas a parte mais árdua é justamente a da correção manual, nem sempre fácil por causa da necessária pesquisa de termos específicos. Notas minhas estão entre colchetes.


Este é o Univermag de Moscou em 1991. Prateleiras vazias. Nelas, uma carne assustadora e intragável. Cliente de olhares perdidos. Na cesta, uma seleção escassa: macarrão, leite. E este é um supermercado em Moscou em 2025. Meio quilômetro de produtos, uma enorme seleção, uma abundância completa de produtos.

Enquanto isso, já faz quatro anos que a Rússia trava uma guerra na Ucrânia e está sob as maiores sanções da história. A Rússia está praticamente isolada da economia global aberta. Como a economia planificada e distributiva da URSS conseguiu sobreviver a uma série de abalos? Como construíram em seu lugar uma economia de mercado e por que agora a guerra não a destruiu, apesar das inúmeras previsões de seu colapso iminente?

Vamos trilhar esse caminho juntos em nosso projeto “Ainda resta à economia russa...”. Serão quatro episódios. Meu nome é Denis Morokhin. Sou observador econômico da Novaya Gazeta Evropa. Se inscreva em nosso canal do YouTube pra não perder os próximos episódios.

Introdução – Você sabe o que um soviético podia comprar numa loja? Você tem ideia geral de como eram essas lojas? Talvez você tenha respondido sim ou não, mas na Rússia já cresceram duas gerações de pessoas acostumadas à abundância de produtos. É difícil acreditar agora que as lojas possam estar vazias, mas era exatamente assim que eram. A Rússia esteve à beira da fome na década de 1980, depois passou pelos prósperos anos 2000 e terminou na atual economia de guerra, quando trilhões de rublos são desperdiçados em tanques e assassinatos. Como foi isso?

Murmansk, anos 80 – Me deixem contar algumas histórias sobre mim. Esta é Murmansk, a maior cidade do mundo no Ártico, em meados da década de 1980. Me lembro bem de como as prateleiras das lojas eram repletas de potes de seiva de bétula. Também se vendia o queijo processado “Druzhba”, e o queijo de verdade só estava disponível pela manhã e esgotava rapidamente. Os laticínios incluíam leite e kefir em garrafas de vidro, mas a smetana era extremamente rara. Ainda em Murmansk, não havia ovos e eles deviam ser trazidos de Leningrado, de trem.

Além disso, a cesta básica de um soviético incluía um macarrão gordo, grosseiro e pálido, ervilhas malpassadas, cevada perolada e painço. Também se vendiam enlatados: carne cozida barata, carne ou peixe em conserva (závtrak turísta) e algas Laminaria. Também pó de sopas em saquinhos. Mas não havia trigo sarraceno, o favorito de todos. Só estava disponível pra diabéticos, em seções especiais. E pra o comprar, era preciso apresentar um atestado médico. No hortifrúti havia repolho, cenoura e pepino. Mas batatas, no início da década de 1980, só eram trazidas ocasionalmente. E comprá-las exigia ficar na fila a noite toda. Uma lembrança de infância: pra se aquecerem numa cidade do norte, as pessoas em fila acendiam fogueiras no pátio do hortifrúti.

Aliás, por que exatamente com as batatas havia tantos problemas? Ocorre que até 40% dos legumes e verduras simplesmente não chegavam às prateleiras. Eram armazenados e transportados indevidamente, apodrecendo ao longo do caminho. O maior mal da agricultura no final da URSS era a mecanização quase ausente: tudo devia ser feito à mão. Mas havia as famosas viagens pra colher batatas. Todos os anos, centenas de milhares de estudantes, engenheiros, professores e cientistas eram afastados do trabalho e levados aos campos pra colheita moribunda. Mas isso não fazia muito sentido: cada vez menos legumes e verduras chegavam às lojas, mas a TV soviética chamava esse esforço insensato de “batalha pela colheita”.

Mas minha Murmansk ainda era bem mais sortuda que outras cidades. Murmansk é um porto importante. Portanto, via de regra era peixe que se vendia. Mesmo que fosse o mais simples. É claro que aqui não estamos falando de iguarias. Por exemplo, o salmão só podia ser comprado, como se dizia na URSS, “por baixo do balcão” ou “pela porta dos fundos” [de forma ilegal, usando contatos e conhecidos]. Bem, por exemplo, capelim, arinca (eglefim) e bacalhau, havia alguns nas lojas. Halibute e perca defumados eram muito caros. E muito poucos tinham condições de os comprar.

Murmansk também tinha a sorte de ter por perto as bases da Frota do Norte e da aviação militar, e os dirigentes soviéticos se importavam com os militares, deixando de lado o resto do povo. Por isso, nas lojas das cidades militares fechadas quase sempre havia comida. E se você tivesse um passe, tudo era simples. Depois do trabalho, você pegava um ônibus, viajava cerca de uma hora e meia até a base militar e voltava pra casa à noite com sacolas pesadas. Aliás, por que só à noite? Sim, porque mesmo numa cidade fechada você ficava algumas horas em filas e, ao mesmo tempo, recebia xingamentos dos moradores locais, como “Aí estão eles de novo comprando todas as nossas salsichas”.

Me lembro de uma segunda história. Fomos visitar São Petersburgo. Nossos amigos moravam na periferia da cidade, onde as lojas eram totalmente vazias. E à noite, depois do trabalho, iam ao centro levando a filha pequena pra comprar salsichas no mercado da avenida Nevski. Você perguntaria: “Por que devia ir ao centro com uma criança?” É simples: eles davam meio quilo de salsicha por pessoa, e a criança garantia meio quilo a mais de comida. Também me lembro bem dos cupons de alimentação. “Que papel é esse que você sempre esconde num lugar seguro?”, perguntei uma vez a minha avó. “É carne e manteiga”, ela respondeu. A manteiga era na verdade uma margarina muito ruim.

Podemos listar infinitamente os produtos que agora são vendidos em qualquer loja, mas que os soviéticos nunca experimentaram. Isso inclui iogurte, nozes, abacate, chá verde e até chocolate de verdade feito de grãos de cacau, porque em vez disso vendiam uma barra doce que nem tinha gosto de chocolate. Quero lembrar à parte uma iguaria inédita: bananas. Essas frutas eram trazidas a Murmansk uma vez por ano e verdes. Você tinha que ficar na fila o dia todo. Escreviam na palma de sua mão o número de seu lugar na fila, e se saísse, não lhe permitiam voltar. Cada pessoa recebia 1 kg de bananas e, em casa, as frutas verdes eram postas junto à janela. Você tinha que esperar até ficarem maduras.

Por que na URSS as prateleiras eram vazias? – Nunca houve abundância de produtos na URSS. A carência de produtos essenciais começou muito antes da década de 1980. Nas décadas de 1920 e 1930, o governo soviético saqueou os camponeses durante a coletivização stalinista. Stalin precisava da destruição completa da propriedade privada no campo. E o ditador soviético também acreditava que milhões de pequenas propriedades camponesas não podiam alimentar o país e que, portanto, suas terras e gado deviam ser confiscados e transferidos todos pro colcoz. Alegava-se que só uma propriedade comunista comum podia alimentar o país, e quem se opusesse a ela devia ser morto ou exilado pra Sibéria.

A experiência fracassou completamente. O golpe sobre o campo foi tão fatal que, após a coletivização, o país não conseguia mais alimentar a si mesmo. Na década de 1960, o colapso da economia e uma verdadeira fome eram iminentes. Como não havia o que comer, a população começou a se rebelar e, para a reprimir, as autoridades enviaram tropas a Novocherkassk. Os moradores saíram para protestar, indignados porque a comida tinha sumido das lojas, mas os preços continuavam subindo. Os militares começaram a atirar. Cerca de 100 pessoas foram mortas ou feridas.

Mas então o povo soviético foi salvo da fome pelo milagre da descoberta de petróleo na Sibéria. A URSS começou a vendê-lo por dólares, que eram usados pra comprar grãos e outros produtos no exterior. De 1970 a 1980, a URSS aumentou em 15 vezes sua receita com exportação de petróleo aos países ocidentais, chegando a 15 bilhões de dólares por ano. Graças a isso, nos mesmos 10 anos o país aumentou suas compras de grãos no exterior em 12 vezes. Em 1980, importou 30 milhões [de dólares].

Assim, por pouco a fome total foi evitada, mas não por muito tempo. 13 de setembro de 1985 foi o dia sombrio do colapso da economia soviética e, no geral, um dos pontos de virada da história contemporânea. O então ministro do Petróleo da Arábia Saudita, Ahmad Yamānī, fez um anúncio histórico: “O país não vai mais limitar sua produção de petróleo”. Na sequência, a produção saudita aumentou 3,2 vezes e os preços do petróleo despencaram seis vezes. Foi uma sentença de morte pra URSS. Ela não podia vender nada no mercado mundial a não ser petróleo e gás. A tragédia foi agravada pelo fato de 1985 ter sido o pior ano pra agricultura e um recorde na importação de grãos. Então, a URSS comprou 45 milhões de toneladas do produto no exterior. Isso representa cerca de um quarto da necessidade de grãos. Em poucos anos, a URSS ficou sem dinheiro e não tinha mais como comprar alimentos no exterior pra se alimentar.

Tanques em vez de comida – Os líderes soviéticos mantiveram seus cidadãos literalmente à beira da fome, enquanto jogavam dinheiro fora. Por exemplo, a URSS fornecia petróleo e gás aos países socialistas da Europa Oriental praticamente de graça. Era assim que Moscou comprava a lealdade. O segundo projeto caro que a URSS não queria abandonar foi a produção de enormes volumes de armas. O Kremlin sequer levantou a questão da redução dos gastos militares até 1988, quando se tornou óbvio que não havia mais dinheiro. Submarinos nucleares, voos espaciais, participação em guerras no mundo todo. Todo o dinheiro foi parar nisso. O erário foi esgotado por uma série de projetos insensatos, como desviar rios do norte ao sul ou drenar turfeiras nos arredores de Moscou, as quais, aliás, queimaram terrivelmente em 2010 e cobriram a capital com fumaça cáustica.

Como resultado, no final da década de 1980, a URSS não tinha nem reservas de ouro suficientes pra comprar alimentos. E assim, os bancos do mundo recusaram empréstimos à URSS, pois os credores viam que ela não tinha com que pagá-los. Já nos anos de altos preços do petróleo, ela era considerada uma mutuária confiável. Em 1990 e 1991, os dirigentes soviéticos e, depois, russos admitiram: “A fome e os motins da fome são uma questão de meses”. Ao mesmo tempo, talões de racionamento e cartões de fidelidade foram amplamente introduzidos pra que pessoas de regiões vizinhas não viessem a Moscou comprar salsicha.

Multidões afluíam de Vladimir, Tula, Riazan, Iaroslavl e outras cidades à capital. E os trens em que chegavam eram chamados de trens da salsicha. Finalmente, a noção de ajuda humanitária se consolidou no uso comum. Suprimentos alimentares do exterior fixados na memória do povo com o apelido pernas de Bush: coxas de frango congeladas, mingau instantâneo, caixas de leite em pó e papinha de bebê trazidos de avião. E tudo isso se tornou a prova de que a economia planejada soviética não funcionava.

O fracasso da economia planificada – Por que a economia planificada soviética fracassou? Numa economia de mercado, à qual nos acostumamos todos ao longo das décadas, funcionam centenas de milhares e até milhões de empresas privadas. Elas fabricam e vendem o que os clientes desejam. Por exemplo, vejamos os brinquedos infantis. As crianças geralmente pedem que lhes comprem heróis de desenhos, pôneis coloridos, Pikachus. E você pode encontrar isso em qualquer loja.

Mas na URSS não era assim. Numa loja infantil soviética, se vendia apenas o que o ministério responsável pelas lojas infantis escolhia. As autoridades não se importavam, por exemplo, com a Cheburashka, que as crianças realmente queriam. Além disso, negócios privados sempre correm riscos: algo pode ser fabricado, mas não ser comprado, e a empresa vai à falência. Nos habituamos tanto a isso que nem conseguimos imaginar como poderia ser de outra forma. Mas na URSS tudo isso era completamente diferente.

Da década de 1920 até 1991, havia apenas um ator no mercado: o Estado. O comércio, tanto interno quanto externo, era estritamente monopolizado e as autoridades decidiam tudo. As autoridades fixavam o preço das mercadorias, as quais, segundo se dizia, eram “vendidas ao preço estatal”. Aliás, essa expressão tinha outro significado. Se estava ao preço estatal, na verdade não estava à venda. Ou seja, o povo soviético vivia numa economia de escassez, com as mercadorias disponíveis a um círculo restrito de pessoas que controlavam a distribuição. Havia coisas que podiam ser compradas em algumas lojas com vitrines em Moscou e Leningrado, como o GUM ou o Gostiny Dvor. Esse modelo centralizado não resistia à concorrência com o mercado e, como resultado, o funcionamento de toda a economia não conseguia cobrir uma grande parte das despesas do país, pois em 1993-1994 o déficit orçamentário da Rússia ultrapassava 10% do PIB. Isso é cerca de seis vezes mais do que agora.

O buraco foi remendado pela simples impressão de dinheiro. A isso chamaram empréstimos do Banco Central ao governo. O resultado foi que o dinheiro se desvalorizou e o erário secou. Andrei Nechaiev, Ministro da Economia do primeiro governo Ieltsin, lembrou que no início das reformas, as reservas cambiais russas somavam apenas 26 milhões de dólares, e agora são 690 bilhões de dólares. É verdade que quase metade desse dinheiro está retido desde a invasão da Ucrânia, mas ainda assim é impossível comparar esses valores. Além disso, até o final da década de 1980, a URSS emprestou muito dinheiro pra se alimentar. E segundo várias estimativas, o país tinha acumulado, no final de sua existência, cerca de 100 bilhões de dólares em dívida externa, mas não tinha dinheiro pra pagá-la.

Terapia de choque – Em 1991, a União Soviética se dissolveu. O governo russo conseguiu implementar as reformas conhecidas como terapia de choque. O choque consistia na liberação dos preços. Depois que todas as empresas foram autorizadas a definir seus próprios preços, eles dispararam. E não foram apenas as lojas russas. As empresas foram autorizadas a comprar produtos importados por conta própria. E afinal, semana após semana as lojas gradualmente começaram a encher.

Ao mesmo tempo, começou a privatização em pequena escala. Embora ainda não afetasse fábricas ou empresas grandes, as lojas, cabeleireiros, organizações de serviços e similares começaram a passar pra mãos privadas. E nos primeiros dois anos da privatização em pequena escala, em 1992 e 1993, foram privatizadas mais de 85 mil das mais de 100 mil pequenas empresas em todo o país. As pequenas empresas deixaram de ser estatais e passaram a ser privadas. Além disso, os cidadãos puderam comprar e vender dólares livremente e manter moeda estrangeira em contas bancárias. Lembremos que na URSS, isso podia levar as pessoas a serem longamente presas no GULAG ou até fuziladas.

As autoridades pararam de imprimir dinheiro e de investir enormes somas em projetos insensatos, como a rodovia transpolar ao longo do oceano Ártico através do permafrost ou o túnel até a ilha Sacalina. Cortaram-se os gastos estatais. E o principal, começou-se a gastar muito menos em tanques, mísseis e rifles e retiraram-se as enormes tropas dos países da Europa Oriental que se tornaram livres. E o plano em que se baseava toda a economia soviética se transformou em licitações (contratos) públicas. Finalmente, foi então que as autoridades implantaram um sistema de impostos pra empresas na economia de mercado. Em particular, surgiu o IVA, que se tornou uma fonte nova e muito grande de restauração do erário. E foram elaborados novos impostos pras empresas petrolíferas, porque era necessário restaurar o erário, antes reabastecido pela impressão de dinheiro.

As desvantagens das reformas – Bem, é claro que a crise da economia soviética era tão profunda que cada conquista das reformas teve um efeito negativo. Embora a liberação dos preços tenha enchido as lojas, levou à hiperinflação. Agora reclamamos de uma inflação altíssima girando em torno de 10% ao ano: verdade que é muito pra economia. Mas no fim de 1992, os preços tinham aumentado em média mais de 25 vezes: significa que a inflação foi de 2 500% em um ano. Você podia ir à loja e ver a manteiga custando 100 rublos num dia e 150 rublos no dia seguinte.

Praticamente todos os russos viram suas rendas caírem drasticamente na década de 1990. Os primeiros anos das reformas foram muito dolorosos para a esmagadora maioria das famílias. Frequentemente a privatização se resumia à tomada do controle pelos diretores, não tendo os trabalhadores comuns as mesmas oportunidades. E quando começou a privatização por vouchers, os funcionários inferiores simplesmente vendiam seus cheques, porque precisavam de algo pra viver hoje, mas não havia dinheiro suficiente, e alguns trocavam o voucher por uma garrafa de vodca.

Eis, por exemplo, a famosa história de como o oligarca Aleksei Mordashov se tornou proprietário da Severstal, uma das maiores produtoras de metal laminado. O esquema, chamado de vendas controladas, foi descrito em detalhes pela revista Forbes. Em meados da década de 1990, Mordashov criou a empresa Severstal Invest, da qual ele detinha 76%. A Severstal vendia metal a essa empresa a um preço baixo, e a Severstal Invest o revendia a um preço muito mais alto. Tendo acumulado capital, esta primeiro comprou ações da Severstal num leilão e, em seguida, comprou ações de trabalhadores que corriam pra vender suas ações por ser impossível viver com seus salários, em todo caso, há muito tempo atrasados.

A reforma tributária também teve um efeito negativo, já que pouquíssimas pessoas pagavam impostos. Em 1994, o orçamento não recebeu um décimo do que deveria. Em meados da década de 1990, esse número tinha crescido cerca de uma vez e meia, atingindo a enorme dívida tributária de 25 bilhões de dólares das empresas com o orçamento. Um dos motivos foram as alíquotas excessivamente altas: 32% de imposto de renda corporativo e 28% de IVA. Tudo isso ajudava a preencher o orçamento, mas não eram os pagamentos de impostos que cresciam como uma bola de neve. O orçamento continuou sofrendo de falta de dinheiro, os preços subiam e não havia como pagar benefícios e pensões, e muito menos aumentar o apoio social.

Podia ter sido feito melhor? – Economistas que estudaram as reformas de Ieltsin criticam com razão os reformistas e, sobretudo, sua lentidão e indecisão. Tudo devia ter sido feito mais rápido, e não por etapas, como o governo russo fez no início da década de 1990. E muitas reformas também foram iniciadas, mas não concluídas. A indecisão, por exemplo, residia em não ousarem privatizar a terra, o que teria ajudado, mais rapidamente, a lançar um novo agronegócio e a resolver o problema da escassez de alimentos. Mas os comunistas e uma parte significativa dos eleitores se opuseram veementemente.

O desamparo das autoridades também se refletiu no fato de grandes empresas acumularem dívidas fiscais por meses e anos a fio, empresas do porte, por exemplo, da Gazprom ou da Norilsk Nickel [Nornickel desde 2016]. Pra obrigá-las a cumprir suas obrigações fiscais, foi preciso convocar reuniões extraordinárias do governo, pôr as empresas sob pressão e reiterar as exigências. Os bens e contas bancárias da Gazprom foram confiscados. Em muitos aspectos, a lentidão das reformas foi motivada pelo confronto político entre o presidente e os parlamentares russos, o qual levou em 1993 a uma crise política generalizada e a tiroteios nas ruas de Moscou.

E os reformadores não explicaram aos russos os objetivos e o sentido das reformas, quando era necessária uma campanha educacional completa. [Como escreveu Pedro Doria, parte do sucesso do Plano Real se deveu justamente à receptividade de uma população previamente informada, o que hoje podia não dar totalmente certo, tamanho o poder da desinformação veiculada pela internet.] Além disso, o sistema de previdência social era extremamente precário e muitas pessoas se sentiam abandonadas e roubadas. Isso drasticamente privou de apoio o governo Ieltsin. Todos esses problemas não foram resolvidos e se acumularam por meses e anos, até a segunda metade da década de 1990. E eles começaram então a prenunciar outra crise econômica generalizada.

Conclusão – O que aconteceu depois? Centenas de fábricas fecharam, resultando em mais de 10 milhões de desempregados. Havia produtos em abundância nas prateleiras das lojas, mas poucos tinham condições de os comprar. IUKOS, Nornickel, Sibneft: os principais recursos naturais e as maiores empresas do país passaram às mãos de oligarcas ligados ao poder. Tudo isso na próxima parte de nossa série.