quinta-feira, 1 de maio de 2025

Traidor, pilantra, ateu e maconheiro


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Você consegue dizer na lata quais foram os presidentes ateus ou não religiosos que o Brasil já teve? Bem, isso é muito complicado, pois a espiritualidade devia ser tratada como um assunto íntimo, e a adesão a uma religião não significa necessariamente aceitação de todos os seus dogmas ou a imunidade ao ecletismo tão típico de nossas terras. Porém, segundo o que consegui pesquisar na internet, tudo baseado em entrevistas e fontes impressas, posso citar três presidentes que não eram exatamente “religiosos” no sentido que costumamos entender.

Getúlio Vargas foi criado como positivista enquanto frequentava o Exército no Rio Grande do Sul e nunca fez uma profissão explícita de fé. Sua aproximação com o catolicismo após o golpe de 1930 teve fins politicamente táticos, levando em conta que virtualmente toda a população professava essa religião (descontando as exceções que, pra fins estatísticos, ainda eram irrelevantes). Daí emergiram a construção do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro e a introdução do ensino religioso nas escolas públicas. Ernesto Geisel, quarto presidente da ditadura civil-militar, era de família luterana e ocasionalmente frequentava seus cultos, embora sumamente pra fins sociais e familiares. Geralmente descrito como agnóstico, estava mais pra “anticlerical”, sobretudo diante do catolicismo, que já fazia razoável oposição naquela época, e teria influenciado na legalização do divórcio em 1977 – muito mais tardiamente do que em outros países do dito “Ocidente Civilizado”.

Pra além desses governos autoritários (se descontarmos o breve período Vargas em 1951-54), Fernando Henrique Cardoso pode ser considerado o único assumidamente irreligioso na democracia, pelo menos por algum tempo e em alguns aspectos. De família de intelectuais abastados, FHC foi acadêmico na área de Ciências Humanas (era sociólogo, mas enveredou por áreas afins) e se exilou pra fugir dos prezidentos milicos. Ingressou no PMDB, hoje MDB, partido originado da única oposição legal à ditadura, e ajudou a fundar o PSDB em 1988, cuja principal razão de ser era a rejeição do fisiologismo e estatismo de Sarney (também do PMDB) e a adesão a princípios de governança transparentes, enxutos e modernos. O modelo era a social-democracia reformista europeia, que em todo caso jamais seria chamada de “esquerda” pelos ultrarradicais, mas que a fachosfera consideraria “comunista”.

A posse do tucano Mário Covas como governador de São Paulo em 1995 foi considerada a vitrine do que o presidente FHC também faria em escala nacional no mesmo ano (Plano Real etc., lembra?), apesar das críticas geradas pela privatização de muitas estatais. Contudo, sem anacronismos, leve em conta o contexto do início da década de 1990, quando o Brasil afundava na hiperinflação e na pobreza, os governos paulistas anteriores de Quércia e Fleury (PMDB) quebraram o estado e os bancos estaduais, hoje privatizados, podiam emitir moeda pra cobrir rombos, enquanto equilíbrio de contas públicas era um conceito inexistente. O que o PSDB conseguiu fazer pode ser considerado uma pequena revolução, infelizmente não levada às últimas consequências...

Não vou citar Dilma, que pelo menos se diz nominalmente católica e que, embora pudesse ter sido agnóstica no passado, pode ter decidido se reaproximar; não cabe a mim julgar. E muito menos Lula, sindicalista inegavelmente católico (pesquisem sobre as origens não comunistas do PT!), fanático pelo finado bispo Bergoglio e atacado de todos os lados por qualquer miudeza. E voltando ao assunto religião, se você achou inédita a ascensão do bolsonarismo na onda do radicalismo evangélico, saiba que o suposto “ateísmo” do Efiagá já lhe rendeu muitas dores de cabeça. Abaixo você pode ver alguns vídeos e ler alguns textos sobre sua candidatura à prefeitura de São Paulo em 1984, quando perdeu pro já ex-presidente (que não ficou nem sete meses) Jânio Quadros, em parte devido ao que hoje chamaríamos de “fake news” sobre “maconha nas escolas” e “descrença em Deus”. Isso diz muito menos sobre o caráter do tucano do que do “homem da vassoura”...

Primeiro, um vídeo de 2019 que achei na página Quebrando o Tabu, uma iniciativa de combate à polarização do debate político. Segundo, o trecho de uma entrevista que ele concedeu ao programa Conversa com Bial em 25 de abril de 2018, seguido de recortes do primeiro vídeo com a frase que dá titulo a esta publicação (“Traidor, pilantra, ateu e maconheiro”, rs) e com a famosa declaração de Bolsonaro em 1999 sobre a “guerra civil pra acabar com os problemas”. Terceiro, os trechos que achei sobre a suposta reconversão de FHC, de uma matéria de Ailton de Freitas pro Globo e uma matéria de Augusto “Covarde” Nunes pro Jornal do Brasil (22 de maio de 2002). E finalmente, dois artigos da Folha de S. Paulo publicados em 2 de abril de 1994 (primeira eleição...) e que fiz questão de transcrever, com atualização ortográfica: um da redação sobre as eleições de 1984 e outro da enviada a Buritis, onde o tucano descansava.

Leia também esta seleta que Vanice Cioccari fez pro Globo chamada “Referências de FH a Deus se multiplicam. Presidente, que se dizia ateu, passa a insistir nas citações e divide religiosos”, datando (que novidade!) das eleições de 1998.













Debate em 1985 afetou candidatura

Em 12 de novembro de 1985, durante o último debate na TV entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo, o senador Fernando Henrique Cardoso hesitou em responder a uma pergunta do jornalista Boris Casoy sobre sua crença em Deus. O tropeço foi fatal, e FHC perdeu a eleição para Jânio Quadros. Leia o trecho do debate:

Boris Casoy – Senador, o sr. acredita em Deus?
Fernando Henrique Cardoso – Essa pergunta o sr. disse que não me faria.
Casoy – Eu não disse nada.
Fernando Henrique – Perdão, foi num almoço sobre este mesmo debate.
Casoy – Mas eu não disse se faria ou não.
Fernando Henrique – É uma pergunta típica de alguém que quer levar uma questão íntima para o público, que quer usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique Cardoso, que não está em jogo. Devo dizer ao deputado Boris Casoy que esse nosso povo é religioso. Respeito a religião do povo e, na medida em que respeito as várias religiões do povo, estou, automaticamente, abrindo uma chance para a crença em Deus.

No dia seguinte, em sua última aparição no horário eleitoral, Fernando Henrique disse que estava sendo vítima de uma montagem de seus adversários e narrou sua participação em um culto: “Recordo pungentemente o dia em que rezamos juntos o rabino Sobel, d. Paulo, d. Angélico, o pastor Wright, na igreja da Sé. Chorávamos todos pedindo a infinita misericórdia de Deus porque matavam na tortura brasileiros, aqui em São Paulo.”

Em seguida, perguntou: “É a mim que vão chamar de ateu? É a mim, esses mesmos que foram algozes, direta ou indiretamente, de todo um povo. Não.”


“Acredito em Deus” diz Fernando Henrique (Susi Aissa)

O ex-ministro Fernando Henrique Cardoso, candidato do PSDB à Presidência, disse ontem à Folha que sempre acreditou em Deus. “Eu nunca disse que não acreditava”, afirmou. “Eu acredito em Deus, e já disse isso em outras ocasiões”, disse FHC, que ao contrário de seu sucessor Rubens Ricupero trocou as cerimônias da Semana Santa pelo descanso em sua fazenda, a 200 km de Brasília.

FHC afirmou sua crença em Deus ao ser indagado se não temia perder votos por conta de seu suposto ateísmo, como se acredita que ocorreu em 85 nas eleições para Prefeitura de São Paulo. Segundo Fernando Henrique, sua resposta à pergunta do jornalista Boris Casoy, um dos mediadores do último debate na TV, foi de que esse tipo de assunto não deveria ser abordado.

“Mas, sinceramente, não acredito que aquele episódio tenha pesado no resultado da eleição. A própria Tutu (Tutu Quadros, filha de Jânio), dizia que aquela eleição foi roubada”.

FHC chegou à fazenda na quinta, acompanhado da mulher, Ruth. Ontem de manhã, ao ver os repórteres da Folha se aproximando de sua casa na fazenda, o ex-ministro foi ao seu encontro. “Até aqui vocês me procuram... Eu vim aqui para descansar. Acho que mereço isso”, disse. Acompanhado do administrador da fazenda, Vander, FHC convidou a reportagem para “um papo rápido”. “Eu não quero dar entrevistas”, afirmou o ministro, que vestia jeans, camisa xadrez e botas.



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