domingo, 2 de setembro de 2018

Doideiras no filme “Stalin” (I. Passer)


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Em dois momentos diferentes do ano passado, selecionei duas cenas recortadas do filme histórico Stalin, escrito e dirigido por Ivan Passer, que conta a história do dirigente russo-georgiano por um viés bem ocidentalista. A primeira parte ilustra a dança da lezginka, que eu já tinha citado várias vezes no site ao falar do falecido comandante Givi do Donbass e dos cossacos do Cáucaso. É uma dança bem típica da Geórgia e do Cáucaso em geral, e Stalin a domina razoavelmente, como alguém simples que veio do povão. A segunda parte, ainda mais engraçada, refaz um dos vários jantares com bebedeira e música que Iosif “Koba” Dzhugashvili dava pra alta cúpula do partido comunista soviético, já próximo do fim da vida. Os líderes supremos da URSS passam um micão na frente da primeira-filha, Svetlana Alliluieva, moça que sempre teve problemas de relacionamento com o pai, fugiu anos depois pro Ocidente, casou-se e adotou o nome de Lana Peters.

A primeira cena representa o casamento de Stalin com sua segunda esposa, Nadezhda Alliluieva, que nos anos 30 supostamente teria se suicidado. Sua primeira esposa tinha sido Ekaterina Svanidze, também georgiana, que militava no mesmo partido, mas morreu por doença. Dizem que esta teria sido a mulher que Stalin mais e unicamente amou, e a perda nunca teria sido superada. Nadezhda (Nadia) é de família russa, e nas cenas anteriores os pais demonstram preconceito, como muitos sulistas do Brasil têm para com os nortistas.

A opção ideológica do filme, que vi inteiro há alguns anos, é clara: Stalin é o tirano rude, deselegante, pouco instruído e sem escrúpulos. Trotsky seria tão violento quanto, mas não chegou a exercer o poder, e Khruschov, bem ao final, é visto como um arrependido, no fundo um democrata, sem mencionar a matança que ele fez na Ucrânia. O resto eu acho que está acorde à realidade, a começar pelo papel de Grigori Zinoviev e Lev Kamenev: são intelectuais, desprezam o “montanhês rude” e desde o início se unem a Trotsky. Nikolai Bukharin aparece dançando alegre, como que servindo de ponte entre os dois grupos rivais: realmente, ele ficou junto a Stalin até 1929, mas ao criticar a crescente violência, foi excomungado.

Outras duas coisas que devem ser notadas são as seguintes. Primeira, o filme é narrado por Svetlana Alliluieva: não sei se o roteiro é baseado em algum escrito dela, mas podemos ver bem que ele reflete as opiniões dela, ou seja, insatisfeita com Stalin e com a URSS. Segunda coisa, o outro dançarino do quarteto, parecido com o cantor Belchior, certamente é Sergo Ordzhonikidze, georgiano que por muito tempo foi próximo de Stalin, mas morreu em 1937 em circunstâncias incertas: uns dizem que teria se matado, desiludido com os rumos da política, outros dizem que teria sido forçado ao suicídio, por ser um potencial alvo dos expurgos de 1936-38. Neste vídeo podemos ver uma breve tomada com Stalin e Sergo juntos. E Lenin, num dado momento, logo que entra na sala, até ensaia um passinho! O líder começou com alguma complacência com Stalin, mas também foi se desiludindo (o que o filme não retrata são suas contradições com Trotsky).


Fora Stalin, que está muito bem caracterizado e de voz igualzinha, é difícil reconhecer na segunda cena as fisionomias dos personagens nos outros. Se bem que, convenhamos, se já acharam no Reino Unido alguém parecido com o “guia genial”, seria pedir muito achar clones de todos os restantes. Nikita Khruschov (o “Careca”), por exemplo, não lembra nem parece nada, mesmo se pegamos fotos de quando ele era novo (a cena é no começo dos anos 50). Lavrenti, claro, sabemos que era Beria, o fiel chefe do NKVD, a polícia secreta, e o militar medroso talvez seja o marechal Kliment Voroshilov, herói da Segunda Guerra.

A diversão fica por conta de vocês verem o vídeo! Stalin não confia em ninguém, hein? Vou provocar vocês, dizendo que eu cortei a parte da “sopa envenenada” que viria logo depois. Uma das coisas que critico no filme é pintar Khruschov como um democrata que já estava se arrependendo da ditadura. Na verdade, ele ajudou a efetivar o Grande Terror de 1936-1938 na Ucrânia, de cujo partido local ele era o chefe, e ficou ao lado de Stalin elogiando-o até o final, antes de fazer uma “ruptura” escandalosa como parte de uma luta interna pelo poder. Ruptura cuja implicada crítica à opressão foi mais do que parcial.

Nesta página está o filme completo, legendado em português. Pra não perder informações gráficas, eu deixei os dois vídeos com o mesmo enquadramento, sem recortar. Tive preguiça de pôr os nomes dos atores e a ficha técnica do filme...


Nesta outra cena ambígua, Trotsky está num dos quartos, talvez do Kremlin, onde ocorre a festa de casamento de Stalin, porque não quer participar da celebração. Zinoviev vai bater na porta e Trotsky atende, nervoso, após ser interrompido durante a leitura de um livro. Pela cara do ucraniano, acho que o livro devia ter umas figurinhas supeitas, e que ele estava praticando uma coisa que em outras eras chamaríamos de onanismo, hehehe. Pensando nessa leitura, coloquei como fundo uma música humorística de quando eu era adolescente (primeira metade dos anos 2000), chamada Teco do teleco teco, com uns trocadilhos de tiozão bem infames mesmo. Infelizmente, uns anos depois de fazer esse meme, não encontrei de novo o vídeo da canção no YouTube, que tinha a versão mais próxima daquela que eu escutava na escola. Outras versões não são idênticas, e eu nunca soube quem gravou esta primeira versão...


sexta-feira, 31 de agosto de 2018

G. Kasparov e o pintocóptero de Putin


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Esse foi um daqueles lampejos que costumo ter na cabeça de repente, na parte da tarde. Me lembrei por acaso de um vídeo circulado há alguns anos, em que alguém direcionava um pênis teleguiado, munido de hélice, no rumo da bancada ou do discursante num evento político ou empresarial. Não me lembrava do que se tratava, embora tivesse a vaga lembrança de que fosse russo, e foi batata: xeretando o YouTube e o Google, descobri que era uma alocução feita por Garry Kasparov, o famoso enxadrista, durante a campanha presidencial da Rússia em 2008. Mais uma mitada cossaca que estava esquecida na rede.

Eu busquei no YouTube pela palavra “pintocóptero”, e apareceram uns vídeos de qualidade meio ruim que não faziam alusão a que evento se tratava. Daí num deles, alguém cometou sobre Kasparov e consegui achar em inglês no Google Notícias sobre o assunto. Como Kasparov fala muito rápido e pra dentro, pesquei algumas palavras em russo e taquei novamente na busca. Resolvido o mistério: há algum tempo, Kasparov já tinha se decidido a passar à oposição ativa contra Vladimir Putin e seu governo, e por isso percorria o país em busca de apoio. Em 2008, tentou se candidatar à Presidência, mas não obteve forças suficientes e encontrou os obstáculos do regime.

Especificamente, esse evento foi em 17 de maio, na primeira reunião da que era então chamada “Assembleia Nacional – Protoparlamento Alternativo”, que dizia reunir “representantes do mais amplo espectro político oposicionista, de nacional-patriotas a defensores dos direitos humanos, de socialistas e comunistas a liberais”. Está transcrito todo em russo o discurso de Kasparov, e embora não haja indícios diretos da ação de Putin, tá na cara que foi zoeira de algum simpatizante da situação. Saiu na imprensa internacional que quando o “peniscóptero” foi derrubado, Kasparov disse que esse era o nível de discurso que deviam enfrentar na campanha, em geral com argumentos “abaixo da cintura”. Alguém do público gritou: “O poder político revelou sua face!” Kasparov respondeu: “Se essa é a face, imagine o resto...”

Parafraseando Manuel Bandeira: “Eles passarão, e eu passaralho”!

A parte semântica inteira da fala, com o áudio sublinhado, é esta:

Стало очевидно: прежде чем договариваться о совместных действиях, необходимо договориться об общих правилах политической борьбы. В основе этих правил – уважительное отношение к политическому оппоненту; признание равноправия политиков, придерживающихся различных взглядов; стремление к открытому диалогу; приверженность ненасильственным, демократическим методам борьбы.

Tradução: Ficou evidente que, antes de combinarmos ações conjuntas, é preciso combinar as regras gerais da luta política. O básico dessas regras são a relação respeitosa para com o oponente político, a admissão de direitos iguais aos políticos que tenham visões divergentes, o esforço pelo diálogo aberto e a fidelidade aos métodos democráticos e não violentos de luta.

Ironicamente, o elemento voador apareceu logo depois que Kasparov falou em “relação respeitosa”, “admissão de direitos iguais” e “esforço pelo diálogo aberto”: de fato, se essa era a cara do governo Putin, poderíamos dizer sem receio que ele tinha “cara de pau”! Imaginem que resposta pra quem pedia diálogo, respeito, compreensão e direitos iguais... O vídeo sem legendas que eu usei está com a qualidade bem melhor do que a dos outros clones, e eu o cortei em comprimento e enquadramento. Também traduzi direto do russo e legendei:



quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Michel Teló em esperanto e interlíngua


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Em meados de 2012, eu estava ainda começando meu antigo canal no YouTube e sequer tinha uma internet decente em casa. Porém, tendo acabado de terminar minha graduação em História, me preparando pro mestrado e incrementando meus conhecimentos linguísticos, já tinha algumas ideias de vídeos zoeiros pra criar, quando os “virais” e canais como o SAM sequer eram cogitados. Pior: quando ninguém sonhava que youtuber podia ser profissão e, no Brasil, o Facebook ainda estava começando a bombar!

Pra chegar até onde cheguei com meu site e meu canal, eu precisava ainda de muito estudo de russo, muita leitura, muita tradução, muito dicionário e muito material melhor e mais acessível do que havia à época. Por isso, meu poliglotismo e comunicações internacionais ainda se limitavam aos projetos de línguas auxiliares esperanto e interlíngua, ou ao menos eram predominantemente neles, e um pouco também em inglês e francês. Mas como vocês viram em outras postagens, vinham já de anos minhas traduções da música brasileira pro esperanto. A novidade é que agora eu acrescentava um razoável conhecimento da interlíngua, projeto mais “naturalista” e próximo do grupo românico, lançado em 1951 e que eu estudava sem compromisso desde 2009.

Qual hit internacional estava bombando lá em 2012? A canção Ai, se eu te pego, do cantor sertanejo Michel Teló, que ficou grudada por anos na cabeça dos brasileiros e de muito mais gente pelo planeta! Claro que foram feitas paródias em muitas línguas, a maioria seguindo muito mais o som do que o significado da letra. Mas... num sábado daquele ano, eu estava tão “artisticamente” aceso que minha cabeça começou a fazer sozinha uma tradução em esperanto e interlíngua, que eram os idiomas que eu mais dominava na época. Mas não me contentei com isso: fiz minha primeira experiência, que só repetiria anos depois (e que você também já conhecem), de gravar minha voz por cima de uma melodia de videokê, mas cantando a letra em outra língua! Esse vídeo, portanto, foi inaugural pra mim.

Ai, se eu te pego teve a versão de Teló lançada em 2011, a qual rodou o mundo em 2012, mas a história da canção, que não cabe retraçar aqui (leiam a Wikipédia em português), é bem mais complexa. Ela está registrada com a autoria de Antonio Dyggs e Sharon Acioly, datada de 2008, mas tem coautoria de algumas garotas paraibanas que, em 2006, criaram numa brincadeira as palavras que deram origem ao refrão. Antes de Teló, algumas bandas de forró já a tinham gravado, e era bem conhecida, portanto, no Nordeste.

Muita gente do círculo dos idiomas auxiliares planejados achou por acaso esse vídeo e saudou a iniciativa, e até compartilhei em alguns grupos do Facebook do qual eu participava. Mas sobrou um grande problema: em geral, os “adeptos” do esperanto ou da interlíngua costumam rivalizar entre si, então os mais fanáticos não gostaram nada da mistura dos dois textos... Nem liguei, porque não acho que ambos se excluam mutuamente, mas hoje penso que talvez teria mais compartilhamentos se tivesse feito um vídeo pra cada língua, o que obviamente me daria muito mais trabalho. Porém, o grande lance é que deixei o vídeo vegetando no canal, nem dei mais tanta bola, e vez ou outra era achado, mas foi passado por outras produções minhas.

Só que agora, como tenho um longo plano de trazer pra este site tudo do canal Eslavo que ainda não tem uma “base HTML”, decidi contar essa história que vocês leram e dar a forma escrita final pros textos em esperanto e interlíngua. Assim, vocês podem compartilhar muito mais fácil o material e ainda cantar junto! Até porque até hoje o vídeo nunca teve uma descrição no YouTube, e pretendo que esta postagem sirva a tal papel. Portanto, seguem a tosca montagem com as legendas nos dois idiomas, o texto em português e as traduções em esperanto e interlíngua. Pra fins didáticos, vou trazer também as traduções literais das novas versões, pra vocês verem que não são totalmente literais, mas se aproximam muito do original, ou até o completam:


Nossa, nossa,
Assim você me mata.
Ai, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ai, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.

Sábado na balada
A galera começou a dançar
E passou a menina mais linda.
Tomei coragem e comecei a falar:

Nossa, nossa,
Assim você me mata.
Ai, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ai, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.

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Esperanto:

Ho Dio, ho Dio,
Vi tiel min mortigas.
Ha, mi vin kaptos,
Aj, aj, mi vin kaptos.
Delico, delico,
Vi tiel min mortigas.
Ha, mi vin kaptos,
Aj, aj, mi vin kaptos.

Semajnfin’, ĝoja festo,
Ni distriĝis per drinko,
Kis’ kaj danc’.
Kiam pasis knabin’
La plej bela,
Al ŝi mi diris,
En ĝusta horo de ŝanc’:

Ho Dio, ho Dio,
Vi tiel min mortigas.
Ha, mi vin kaptos,
Aj, aj, mi vin kaptos.
Delico, delico,
Vi tiel min mortigas.
Ha, mi vin kaptos,
Aj, aj, mi vin kaptos.

Tradução literal:

Ó Deus, ó Deus,
Assim você me mata.
Ah, vou te pegar,
Ai, ai, vou te pegar.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ah, vou te pegar,
Ai, ai, vou te pegar.

Fim de semana, festa alegre,
Nos distraíamos com bebida,
Beijo e dança.
Ao passar a menina
Mais linda,
Eu disse a ela,
Na hora certa de sorte:

Ó Deus, ó Deus,
Assim você me mata.
Ah, vou te pegar,
Ai, ai, vou te pegar.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ah, vou te pegar,
Ai, ai, vou te pegar.

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Interlíngua:

O Deo, o Deo,
Assi tu me occide.
Ah, si io te prende,
Ai, ai, si io te prende.
Delicia, delicia,
Assi tu me occide.
Ah, si io te prende,
Ai, ai, si io te prende.

Sabbato in le festa
Nos allegre
Comenciava a dansar
E passava le plus
Belle pupa.
Incoragiate,
Io comenciava a parlar:

O Deo, o Deo,
Assi tu me occide.
Ah, si io te prende,
Ai, ai, si io te prende.
Delicia, delicia,
Assi tu me occide.
Ah, si io te prende,
Ai, ai, si io te prende.

Tradução literal:

Ó Deus, ó Deus,
Assim você me mata.
Ah, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ah, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.

Sábado na festa
Nós começamos
A dançar alegres
E passou a menina
Mais linda.
Encorajado,
Eu comecei a falar:

Ó Deus, ó Deus,
Assim você me mata.
Ah, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.
Delícia, delícia,
Assim você me mata.
Ah, se eu te pego,
Ai, ai, se eu te pego.



segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Capitulação incondicional nazista, 1945


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O documento dado hoje é o Ato de Capitulação Militar da Alemanha, também conhecido como Instrumento da Rendição Alemã, assinado em Berlim pelo Alto Comando das Forças Armadas nazistas em 8 de maio de 1945 e transmitido em russo pela rádio soviética na voz de Iuri Levitan, o mais conhecido locutor do período de Iosif Stalin. Há um bom tempo eu já tinha legendado o áudio, mas só agora me lembrei de postar no site.

Já em 1944, as potências aliadas na 2.ª Guerra Mundial preparavam o rito da rendição incondicional alemã, prevendo a iminente derrota de um Adolf Hitler que recuava cada vez mais. Com o suicídio do Führer, os líderes remanescentes que tomaram o Terceiro Reich nas mãos enfim se entregaram em maio de 1945. O primeiro documento de rendição foi assinado em 7 de maio, na cidade de Reims, e o segundo documento, lido neste vídeo, foi assinado no dia 8, em instalações soviéticas de Berlim. Em nome da Alemanha, puseram assinaturas o marechal-de-campo Wilhelm Keitel, o general-almirante Hans-Georg von Friedeburg e o coronel-general Hans-Jürgen Stumpff. Pelo lado aliado, estiveram o marechal Georgi Zhukov (URSS), o marechal da Royal Air Force Arthur Tedder (Reino Unido), o general Carl Spaatz (Estados Unidos) e o general Jean de Lattre de Tassigny (França).

Quem está falando o áudio em russo é o famoso locutor Iuri Borisovich Levitan (1914-1983), que por ter narrado a maioria dos grandes fatos históricos da Era Stalin, pode ser justamente conhecido como o “Cid Moreira soviético”, até pela semelhança na voz. Radialista da Rádio Soviética desde 1931, era membro do partido comunista desde 1941 e narrava a maioria dos documentários oficiais. Condecorado Artista Popular da URSS em 1980, possuía uma locução de expressividade e timbre raros, e até hoje está muito presente na cultura popular. Vivia com simplicidade num apartamento em Moscou, junto com a filha e a sogra, não se casando mais após sua esposa ter lhe deixado.

O áudio e o texto em russo transcrito podem ser encontrados no ótimo site de material histórico soviético SovMusic.ru (em russo e inglês). O conteúdo do ato de rendição está dado conforme foi publicado no jornal Izvestia em 9 de maio de 1945, p. 1, e pode-se ler ainda no link mencionado a matéria “Esta noite em Moscou”, de correspondentes do Izvestia nas ruas da capital na madrugada de 8 pra 9 de maio. Eu mesmo traduzi, montei o vídeo e legendei. Seguem a legendagem no meu canal, a tradução e, pelo alto valor didático, o original em russo:


Moscou Fala!


ATO DE CAPITULAÇÃO MILITAR
Assinatura do ato de rendição incondicional pelas forças armadas alemãs.

1. Nós, subscreventes, em nome do Alto Comando Alemão, aceitamos a rendição incondicional de todas as nossas forças armadas em terra, água e ar e de todas as forças encontradas atualmente sob comando alemão ao Comando Superior do Exército Vermelho e ao Alto Comando das Forças Aliadas Expedicionárias.

2. O Alto Comando Alemão expedirá imediatamente a ordem para que todos os comandantes alemães de forças terrestres, marítimas e aéreas e todas as forças encontradas sob comando alemão cessem as atividades militares às 23h01min, horário da Europa Central, de 8 de maio de 1945, permaneçam nos lugares onde então se encontrarem e se desarmem totalmente, entregando todas as suas armas e pertences bélicos aos comandantes ou oficiais aliados locais escolhidos como representantes do Alto Comando Aliado, não destruam nem causem quaisquer avarias a vapores, navios e aviões, a seus cascos, motores e equipamentos, nem a máquinas, munições, aparelhos e a todos os meios técnico-militares em geral de gestão da guerra.

3. O Alto Comando Alemão entregará imediatamente os comandantes correspondentes e garantirá o cumprimento de todas as ordens que serão emitidas pelo Comando Superior do Exército Vermelho e pelo Alto Comando das Forças Expedicionárias Aliadas.

4. Este ato não impedirá que ele seja substituído por outro documento geral sobre a capitulação, assinado pelas nações unidas ou em nome delas e aplicável à Alemanha e às forças armadas alemãs como um todo.

5. No caso do Alto Comando Alemão ou de quaisquer forças armadas que se encontrem sob seu comando não agirem de acordo com este ato de capitulação, o Comando Superior do Exército Vermelho e o Alto Comando das Forças Expedicionárias Aliadas tomarão as medidas punitivas ou outras atitudes que eles considerarem necessárias.

6. Este ato está redigido nas línguas russa, inglesa e alemã. Apenas os textos em russo e em inglês gozam de autenticidade.

Assinado a 8 de maio de 1945, na cidade de Berlim.

Em nome do Alto Comando Alemão:
KEITEL, FRIEDEBURG, STUMPFF.

Na presença de:

representando o Comando Superior do Exército Vermelho
o Marechal da União Soviética G. ZHUKOV;

representando o Alto Comandante das Forças Expedicionárias Aliadas
o Marechal da Royal Air Force TEDDER.

Também estiveram na assinatura na qualidade de testemunhas:

o comandante das Forças Aéreas Estratégicas dos EUA
general SPAATZ;

o Comandante em Chefe do Exército Francês
general DE LATTRE DE TASSIGNY.

Transmitimos o Ato de Capitulação Militar da Alemanha!

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Говорит Москва!

АКТ О ВОЕННОЙ КАПИТУЛЯЦИИ
Подписание акта о безоговорочной капитуляции германских вооруженных сил.

1. Мы, нижеподписавшиеся, действуя от имени Германского Верховного Командования, соглашаемся на безоговорочную капитуляцию всех наших вооруженных сил на суше, на море и в воздухе, а также всех сил, находящихся в настоящее время под немецким командованием, – Верховному Главнокомандованию Красной Армии и одновременно Верховному Командованию Союзных экспедиционных сил.

2. Германское Верховное Командование немедленно издаст приказы всем немецким командующим сухопутными, морскими и воздушными силами и всем силам, находящимся под германским командованием, прекратить военные действия в 23-01 часа по центрально-европейскому времени 8-го мая 1945 года, остаться на своих местах, где они находятся в это время и полностью разоружиться, передав всё их оружие и военное имущество местным союзным командующим или офицерам, выделенным представителями союзного Верховного Командования, не разрушать и не причинять никаких повреждений пароходам, судам и самолётам, их двигателям, корпусам и оборудованию, а также машинам, вооружению, аппаратам и всем вообще военно-техническим средствам ведения войны.

3. Германское Верховное Командование немедленно выделит соответствующих командиров и обеспечит выполнение всех дальнейших приказов, изданных Верховным главнокомандованием Красной Армии и Верховным Командованием Союзных экспедиционных сил.

4. Этот акт не будет являться препятствием к замене его другим генеральным документом о капитуляции, заключенным объединенными нациями или от их имени, применимым к Германии и германским вооруженным силам в целом.

5. В случае, если немецкое Верховное Командование или какие-либо вооруженные силы, находящиеся под его командованием, не будут действовать в соответствии с этим актом о капитуляции, Верховное Командование Красной Армии, а также Верховное командование Союзных экспедиционных сил, предпримут такие карательные меры, или другие действия, которые они сочтут необходимыми.

6. Этот акт составлен на русском, английском и немецком языках. Только русский и английский тексты являются аутентичными.

Подписано 8 мая 1945 года в гор. Берлине.

От имени Германского Верховного Командования:
КЕЙТЕЛЬ, ФРИДЕБУРГ, ШТУМПФ.

в присутствии:

по уполномочию Верховного Главнокомандования Красной Армии
Маршала Советского Союза Г. ЖУКОВА.

по уполномочию Верховного командующего экспедиционными cилами союзников
Главного Маршала Авиации ТЕДДЕРА.

При подписании также присутствовали в качестве свидетелей:

командующий стратегическими воздушными силами США
генерал СПААТС.

Главнокомандующий Французской армией
генерал ДЕЛАТР де ТАССИНЬИ.

Мы передавали Акт о военной капитуляции Германии!


Acrescento ainda uma breve montagem com música e diversos trechos de filmes e discursos, criada e lançada nas redes sociais em maio de 2015 pelo russo Dmitri Babich, em homenagem aos 70 anos da vitória dos Aliados sobre o Eixo na 2.ª Guerra Mundial. A alusão também é à Parada da Vitória que Vladimir Putin organizaria na Praça Vermelha pra essa comemoração, a maior inclusive em comparação com os tempos da URSS. Eu mesmo traduzi e legendei.

O vídeo original tem o título “9 мая. Жизнь за победу” (9 maia. Zhizn za pobedu) e pode ser assistido também no canal de Dmitri Babich (Дмитрий Бабич), seu produtor. A música de fundo se chama Dream Chasers, e é executada pela banda orquestral Future World Music. No fuso horário de Moscou, já era 9 de maio no momento da capitulação.

O discurso de Stalin, do qual se pode ver um pequeno trecho depois do início do vídeo, foi pronunciado na Praça Vermelha no aniversário da Revolução Bolchevique, em 7 de novembro de 1941. É o trecho em que ele diz: “Великая освободительная миссия выпала на вашу долю. Будьте же достойными этой миссии!” A tradução e o vídeo legendado podem ser vistos na íntegra nesta página.

O anúncio da invasão nazista à União Soviética tinha sido feito pelo rádio em 22 de junho de 1941 por Iuri Levitan, que também narrou muitos outros materiais importantes, como o famoso filme A batalha de Stalingrado, produzido em 1942-43, que pretendo lançar legendado no canal Eslavo. O anúncio pode ser escutado nesta página, e o texto em russo, lido na descrição do vídeo.

O discurso do presidente russo Vladimir Putin, do qual também se usa um breve trecho, foi pronunciado numa festa solene em comemoração ao Dia da Defesa da Pátria, em 20 de fevereiro de 2015. Ele diz o seguinte: “... и в нашей памяти, и в нашем сердце всегда будут места для тех, кто совершил уникальный подвиг во имя нашей Родины, защищая её ценою своей жизни, своего здоровья, беззаветно служа Отечеству.”




sábado, 25 de agosto de 2018

“Беларусачка” (Mocinha belarussa)


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Esta música, talvez gravada por volta de 2011 (quando foi postada no canal original), tem o nome “Дзяўчынка-беларусачка” (Dziauchynka-belarusachka), Uma mocinha belarussa (ou A mocinha...). Está na língua belarussa, e quem canta é Angelina Pipper, garota de Belarus então com 10 anos de idade, que ficou famosa na internet ao gravar canções típicas e históricas da Rússia e da antiga URSS. Assista ao clipe sem legendas num dos canais da cantora, que tem muitas outras músicas de quando ela era criancinha.

Eu copiei a letra original do site Lyricstranslate.com, onde há também traduções em russo e inglês, que facilitaram minha tarefa. A língua belarussa é do ramo eslavo oriental, como o russo e o ucraniano, então mesmo eu não sendo fluente em belarusso, essa genética facilita a tarefa. Isso é verdadeiro, sobretudo, quando a estrutura do idioma, em especial da gramática, é a mesma, devendo-se apenas procurar as palavras no dicionário. Pra isso, além do Google Tradutor e do Wiktionary, me vali principalmente do dicionário bidirecional russo e belarusso Skarnik.by. Em poucos pontos, o texto não bate com o áudio, então este foi minha referência pra fixar o escrito.

Infelizmente, não achei nenhuma informação adicional sobre a canção, nem os compositores, nem a data de surgimento. Eu supus, portanto, que fosse popular e anônima, inclusive por uma indicação que vi num site obscuro de arquivos MP3. Nos próprios canais da Angelina, quase não há pistas, o que dificulta o trabalho de se citarem as origens. Eu mesmo traduzi e legendei o vídeo, e embora a tradução seja bem fiel, não está estritamente literal. Uma das coisas difíceis é traduzir os inúmeros diminutivos das línguas eslavas, que são usados com muito mais frequência do que em português, mas não deixam as palavras tão pesadas. O tema é bem “feudal-romântico”, e acho que isso deu alegria aos críticos do comunismo no meu YouTube.

Angelina Pipper, cuja língua principal de trabalho é o russo, nasceu em 14 de maio de 2000, mora atualmente na cidade de Brest e já ganhou vários prêmios, tendo sido inclusive finalista do Festival de Sanremo Junior. Hoje com 18 anos, permanece ativa e sempre se renovando, tendo começado no ano passado seu trabalho com o nome “Jolya Pi”. Como redes sociais e canais, ela tem seu VK oficial, seu grupo no VK, seus Instagrams como Angelina e como Jolya Pi, seu site oficial com fotos, vídeos, áudios, biografia e notícias, seu canal antigo no YouTube e seu canal novo. Mas não criem esperanças: ela tem namorado...

O russo é a língua mais falada em Belarus, sobretudo nas cidades e como idioma profissional, enquanto o belarusso e seus vários dialetos se limitam ao campo e aos mais velhos, mas com novos movimentos de ressurgimento. Eu mesmo legendei o vídeo original, e abaixo se encontram a legendagem, a letra em belarusso e a tradução em português:


1. Ручаёнак, ручаёнак, ручаіначка,
Я дзяўчынка-беларуска, белалічанька.
Светлы броўкі быццам бы шнурочкі,
Ну а вочкі, нібы ў жыце васілёчкі.
Светлы броўкі быццам бы шнурочкі,
Ну а вочкі, нібы ў жыце васілёчкі.

Прыпеў:
Вось так я, Вось такая я,
Дзяўчынка-беларусачка.
Вось так я, Вось такая я,
Дзяўчынка-беларусачка.

2. Ручаёнак, ручаёнак, ручаіначка,
Я дзяўчынка-беларуска, белалічанька.
Дома маме я заўсёды памагаю,
Калі сумна мне, то песенькі спяваю.
Дома маме я заўсёды памагаю,
Калі сумна мне, то песенькі спяваю.

(Прыпеў)

3. Я жыву ў нашай роднай Беларусі
І сваёй Радзімай любай ганаруся.
Размаўляць на роднай мове мне не сорам,
Хай узлятае мая песня на прасторі.
Размаўляць на роднай мове мне не сорам,
Хай узлятае мая песня на прасторі.

(Прыпеў)

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1. Riachinho, riachinho, ribeirinho,
Sou uma mocinha belarussa, de rostinho branco,
Sombrancelhas clarinhas como um fio,
Olhos azuis como um campo de centáureas.
Sombrancelhas clarinhas como um fio,
Olhos azuis como um campo de centáureas.

Refrão:
Eis como sou, assim que sou,
Uma mocinha belarussa.
Eis como sou, assim que sou,
Uma mocinha belarussa.

2. Riachinho, riachinho, ribeirinho,
Sou uma mocinha belarussa, de rostinho branco.
Sempre ajudo mamãe em casa,
Quando estou tristinha, entoo uma canção.
Sempre ajudo mamãe em casa,
Quando estou tristinha, entoo uma canção.

(Refrão)

3. Vivo em nossa Belarus natal
E me orgulho da querida Pátria.
Não me envergonho da língua materna,
Que minha canção voe pela imensidão.
Não me envergonho da língua materna,
Que minha canção voe pela imensidão.

(Refrão)




quinta-feira, 23 de agosto de 2018

“Світи, місяченько” (Brilhe, luazinha)


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/luazinha

Esta foi a segunda vez que Tiago Rocha Gonçalves colaborou comigo traduzindo uma linda canção folclórica ucraniana. Agora se chama “Світи, місяченько” (Svity, misiachenko), Brilhe, luazinha, e não tem autor conhecido. Em algumas versões, a protagonista é feminina, mas nesta é um rapaz que chora pelo amor de sua amada. A Lua, também conhecida nas línguas eslavas pela palavra equivalente a “mês”, tem um papel importante na mitologia e no folclore, como símbolo máximo da noite.

Quem canta no áudio é o conjunto folclórico ucraniano Pikkardiiska Tertsia, em faixa gravada no álbum Antologia. Tomo 2. Folk, de 2006. Nesse disco de 16 canções, predominam cantos populares cantados a cappella, ou seja, apenas o coro sem acompanhamento instrumental, como é o caso deste vídeo. O grupo Pikkardiiska Tertsia foi formado em 1992 na cidade de Lviv, famosa por sua resistência nacionalista, e desde então tem ganhado muitos prêmios na Ucrânia. Seu nome vem da expressão “terceira/cadência picarda” (em francês, tierce/cadence picarde), sequência melódica muito utilizada no tipo de música que eles interpretam. Contando hoje com seis membros, já fez shows em muitos países, sobretudo nos EUA, e sua música Plyve kacha foi conhecida no estrangeiro em 2014 durante o funeral de manifestantes do Euromaidan. No repertório do grupo, que tem site oficial, existem canções modernas, folclóricas, religiosas e até do século 15.

O Tiago legendou a montagem que já estava pronta neste vídeo. Ele mesmo traduziu direto do ucraniano e sugeriu que eu podia trocar as imagens, mas resolvi deixar assim mesmo. Também não fiz nenhuma correção na tradução, mas quem quiser dar uma sugestão ou opinião, pode escrever direto pro tradutor. Seguem abaixo a legendagem do Tiago, a letra em ucraniano e a tradução em português:


Світи, місяченько, світи на діброву,
Нехай я перейду, нехай я перейду
До дівчини на розмову.
Нехай я перейду, нехай я перейду
До дівчини на розмову.

Світи, місяченько, світи через річку,
Нехай я перейду, нехай я перейду
До милої на всю нічку.
Нехай я перейду, нехай я перейду
До милої на всю нічку.

Нехай я перейду, чобіт не замочу,
Най ніхто не знає, най ніхто не чує
До якої я ходжу.
Най ніхто не знає, най ніхто не чує
До якої я ходжу.

Світив місяченько та й зайшов за хмари,
А я бідний плачу, а я бідний тужу,
Що не маю собі пари.
А я бідний плачу, а я бідний тужу,
Що не маю собі пари.

Світи, місяченько, світи на діброву,
Нехай я перейду, нехай я перейду
До дівчини на розмову.
Нехай я перейду, нехай я перейду
До дівчини на розмову.

____________________


Brilhe, luazinha, brilhe no carvalho
E deixe que eu vá, e deixe que eu vá
Até a menina pra conversar.
E deixe que eu vá, e deixe que eu vá
Até a menina pra conversar.

Brilhe, luazinha, brilhe pelo rio
E deixe que eu fique, e deixe que eu fique
Com meu amor a noite inteira.
E deixe que eu fique, e deixe que eu fique
Com meu amor a noite inteira.

Deixe que eu vá, as botas não molho,
Ninguém sabe e ninguém escuta
Até onde eu vou.
Ninguém sabe e ninguém escuta
Até onde eu vou.

Brilhou luazinha, e se escondeu na nuvem,
E eu, pobre, choro, eu, pobre, remoo
Que não tenho companheira.
E eu, pobre, choro, eu, pobre, remoo
Que não tenho companheira.

Brilhe, luazinha, brilhe no carvalho
E deixe que eu vá, e deixe que eu vá
Até a menina pra conversar.
E deixe que eu vá, e deixe que eu vá
Até a menina pra conversar.



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Novo Dia (Nossa Pátria é a Revolução)


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Como pedido de um fã do meu antigo canal do YouTube, apresento a canção “Новый день” (Novy den), Um novo dia, também chamada “Наша Родина – Революция” (Nasha Rodina – Revoliutsia), Nossa Pátria é a Revolução, de 1977, com letra de Nikolai Dobronravov (n. 1928) e melodia de Aleksandra Pakhmutova (n. 1929). Como eu disse outras vezes, esse casal foi famoso por compor músicas ufanistas soviéticas, num tempo em que a URSS já começava a viver de glórias passadas e recorria à sacralização de seus mitos, com consequente ar de catecismo dado à cultura política. Os dois vídeos têm o mesmo áudio, mas no segundo vocês podem ver os rostos cantando e uma tela em cores. Eu ia também legendar esta montagem (vejam que pôsteres lindos), ou fazer a minha própria com o áudio, gravado só pelo coral infantil, mas não quis saturar o público.

Esta canção podia muito bem ser usada em aulas de história política e cultural soviética. Nos anos 70, tornaram-se muito comuns músicas em estilo bélico, incorporando inclusive elementos do rock ocidental, com chamado à juventude pra apoiar o país em todas as ocasiões e manter o legado ideológico da revolução. Aquela década foi de crescente descrédito internacional da URSS e incipiente declínio econômico e social, e as alusões a Lenin, cada vez mais próximas da linguagem religiosa cristã, procuravam suprir a lacuna deixada pelo líder Leonid Brezhnev e sua burocracia cinzenta. E isso, envolvendo um conteúdo ateísta, como vemos em “Somos mestres e deuses no trabalho” e “Cremos em milagres humanos”: “humanos” que, literalmente, é o adjetivo pra “feitos/produzidos com as mãos”. Na evidente vitória americana da corrida espacial, a nostalgia ainda mastigava Gagarin e o sputnik, e a hipertrofia estatal contradizia a crença de Lenin que a Rússia seria o mero elo de uma cadeia: “Nossa Pátria é a Revolução”.

Quem canta nos vídeos é o famoso azerbaijano Muslim Magomaiev, junto com o Grande Coral Infantil soviético. Magomaiev (1942-2008) nasceu em Baku, capital da RSS do Azerbaijão, numa família com várias gerações de músicos e artistas, tendo o pai morrido na 2.ª Guerra Mundial. Fez estudos em conservatório musical e nos anos 60 começou a embalar sua carreira, tendo inclusive se apresentado no exterior, não sem chios da emigração anticomunista. Foi condecorado Artista Popular da URSS (1973), Artista Popular da RSS do Azerbaijão (1971) e com a Ordem da Honra (2002) pelo próprio Putin. Em 1998 encerrou voluntariamente a carreira, tendo se dedicado à pintura e a correspondências até morrer do coração.

Esta montagem foi feita com cenas de documentário (talvez de 1969) por um canal russo, enquanto a gravação ao vivo deve datar dos anos 80 ou do fim dos anos 70. Baixando os vídeos sem legendas, eu mesmo traduzi, legendei e cortei os quadros, e embora não em todos os pontos, minha tradução foi basicamente literal. Nas legendas tive que reduzir um pouco o texto pra cumprir os padrões do ofício ou tornar a leitura melhor, mas sem mudar o sentido. Seguem abaixo as duas legendagens, o texto em russo e a tradução em português:




1. Новый день берёт своё начало
На бескрайних улицах Москвы.
Никогда у неба не бывало
Глаз такой влюблённой синевы.

Припев:
Светом солнца озарены,
Светом правды своей сильны.
Наша Родина – Революция,
Ей единственной мы верны.
Наша Родина – Революция,
Ей единственной мы верны.

2. Мы в труде и мастера, и боги.
Рукотворным верим чудесам.
Бесконечно дороги дороги,
Если их прокладываешь сам.

(Припев)

3. Мы улыбкой честной и открытой
Освещаем праздничный парад.
И от счастья светятся орбиты,
Где друзья Гагарина летят.

(Припев 2x)

____________________


1. Está começando um novo dia
Nas infinitas ruas de Moscou.
Nunca esteve no céu
Um olho de azul tão amoroso.

Refrão:
A luz do Sol nos ilumina,
A luz de nossa verdade nos reforça.
Nossa Pátria é a Revolução,
Só a ela somos fiéis.
Nossa Pátria é a Revolução,
Só a ela somos fiéis.

2. Somos mestres e deuses no trabalho.
Cremos em milagres humanos.
Os caminhos são infinitamente queridos
Se você mesmo os constrói.

(Refrão)

3. Com um sorriso franco e aberto
Iluminamos o desfile festivo.
E de alegria brilham as órbitas
Onde voam os amigos de Gagarin.

(Refrão 2x)




domingo, 19 de agosto de 2018

“Варшавянка” (A Varsoviana de 1905)


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/varsoviana


Esta é uma canção que pediam pra legendar desde 2010. Trata-se da canção socialista polonesa A Varsoviana, traduzida a partir de sua versão russa. Em polonês, ela é conhecida como Warszawianka, e em russo, “Варшавянка”, ambas com a mesma pronúncia: “Varshavianka”. Às vezes se diz também A Varsoviana de 1905, pra não ser confundida com A Varsoviana de 1831, hino nacionalista polonês composto durante uma revolta contra o Império Russo em 1830-31.

A música de 1905 teve a letra escrita em 1879 por Wacław Święcicki (1848-1900), que então estava preso por militância socialista. Mesmo assim, dependendo de quem executa, a letra varia bastante. Ela foi publicada inicialmente em 1883 na revista ilegal polonesa Proletariat, quando Święcicki voltou de seu exílio na Sibéria. O título A Varsoviana fixou-se depois dos protestos do 1.º de Maio na capital polonesa em 1905, quando 30 trabalhadores morreram sob tiroteio, iniciando uma revolta local mais ampla contra o tsarismo.

A melodia foi composta por Józef Pławiński (1853 ou 1854-1880), que esteve na cadeia com Święcicki e se inspirou na Marcha dos Zuavos, símbolo de outra revolta polonesa de 1863-64. O autor desta melodia é desconhecido, mas há quem suponha ser ele o compositor Stanisław Moniuszko (1819-1872). Considera-se que o tradutor pro russo tenha sido Gleb Krzhizhanovski (1872-1959), que a teria feito na prisão em 1897 e publicado no início de 1900. Como na Polônia, a difusão se ampliou também em 1905, na dita Primeira Revolução Russa.

Sendo duas línguas eslavas de mútua influência, as versões em russo e polonês têm sentido muito parecido, apenas o refrão original sendo: “Naprzód Warszawo!/Na walkę krwawą,/Świętą a prawą!/Marsz, marsz, Warszawo!” (Avante, Varsóvia!/À luta cruenta,/Santa e justa!/Marche, marche, Varsóvia!). No século 20, foram feitas traduções em inúmeras línguas, sendo talvez a mais famosa A las barricadas, criada em 1936 por Valeriano Orobón Fernández e tornada popular entre anarquistas durante a guerra civil na Espanha. Em inglês, é conhecida a tradução Whirlwinds of Danger (Tempestades de perigo) de Douglas Robson, membro da IWW, nos anos 20. Uma letra bastante modificada foi feita por Randall Swingler e publicada em 1938, mas nunca se popularizou.

Conheçam este canal de onde eu tirei a montagem sem legendas, pois ele tem muito mais material histórico sobre o comunismo, embora seja partidário. Eu mesmo traduzi do russo (não do polonês), legendei e cortei o quadro em proporção moderna. O Prof. Daniel Aarão Reis também publicou em 2017 a própria tradução, na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa (p. 181-182), que ele organizou e comentou, e em que contribuí com algumas traduções. Mas o resultado dele ficou levemente diferente do meu. Pelas informações que achei no site Sovmusic.ru, o áudio foi gravado em 1993 pelo coral do Conjunto de Canto e Dança “Estrela Vermelha”, fundado no seio do Exército em 1977 e ainda muito atuante. Ele tem um site oficial e, como percebemos, também conta com mulheres.

Seguem abaixo minha legendagem, o texto em russo, a tradução em português e a transcrição traduzida das inscrições que aparecem no vídeo. Vocês podem lê-las na escrita original em que aparecem (caso tenha sido diferente antes de 1918), na grafia atual e em português:


1. Вихри враждебные веют над нами,
Тёмные силы нас злобно гнетут.
В бой роковой мы вступили с врагами,
Нас ещё судьбы безвестные ждут.
Но мы подымем гордо и смело
Знамя борьбы за рабочее дело,
Знамя великой борьбы всех народов
За лучший мир, за святую свободу.

Припев (2x):
На бой кровавый,
Святой и правый
Марш, марш вперёд,
Рабочий народ.

2. Мрёт в наши дни с голодухи рабочий,
Станем ли, братья, мы дольше молчать?
Наших сподвижников юные очи
Может ли вид эшафота пугать?
В битве великой не сгинут бесследно
Павшие с честью во имя идей.
Их имена с нашей песней победной
Станут священны мильонам людей.

(Припев 2x)

3. Нам ненавистны тиранов короны,
Цепи народа-страдальца мы чтим.
Кровью народной залитые троны
Кровью мы наших врагов обагрим!
Смерть беспощадная всем супостатам!
Всем паразитам трудящихся масс!
Мщенье и смерть всем царям-плутократам!
Близок победы торжественный час.

(Припев 2x)

____________________


1. Ventanias inimigas sopram sobre nós,
Forças obscuras nos oprimem com maldade.
Entramos em luta fatal contra os inimigos,
Um destino ainda desconhecido nos espera.
Mas levantaremos com orgulho e coragem
A bandeira da luta pela causa operária,
Bandeira da grande luta de todos os povos
Por um mundo melhor e uma santa liberdade.

Refrão (2x):
À luta sangrenta,
Santa e justa
Marche, marche avante,
Povo operário.

2. Atualmente o operário morre de fome,
Irmãos, devemos continuar calados?
Pode a visão do cadafalso assustar
Os jovens olhos de nossos camaradas?
Não ficarão esquecidos os que tombaram
Lutando com grande honra pelos ideais.
Seus nomes, com nosso canto da vitória,
Se tornarão sagrados a milhões de pessoas.

(Refrão 2x)

3. Nós detestamos as coroas dos tiranos,
Respeitamos as cadeias do povo sofredor.
Os tronos cobertos com sangue do povo
Regaremos com o dos nossos inimigos!
Morte impiedosa a todos os canalhas!
A todos que parasitam os trabalhadores!
Vingança e morte aos reis plutocratas!
A hora solene da vitória está próxima!

(Refrão 2x)


Петиція рабочихъ царю = Петиция рабочих царю (Petição dos operários ao tsar)

“... наш девиз: ... свобода для всего народа.” Слава народным героям Потёмкинцам! (“... nossa divisa é: ... liberdade para todo o povo.” Glória aos heróis populares do encouraçado Potiomkin!)

Слава буревестникам пролетарской революции! (Glória aos albatrozes da revolução proletária!)

Забастовка на Ленскихъ пріискахъ = Забастовка на Ленских приисках (Greve dos garimpeiros do rio Lena)

Позоръ палачамъ! = Позор палачам! (Malditos os carrascos!)

Просили хлѣба, дали пулю = Просили хлеба, дали пулю (Pedimos pão, deram balas)

Рабочее движеніе. Стачки = Рабочее движение. Стачки (Movimento operário. Greves)

Правда – ежедневная рабочая газета. Открыта подписка. (Pravda/Verdade – jornal operário diário. Abriram-se as assinaturas.)

Долой самодержавіе! = Долой самодержавие! (Abaixo o absolutismo!)

Долой старую власть (Abaixo o antigo regime)

Февраль 1917 (Fevereiro de 1917)

Народъ и армія. Братскій союзъ и свобода. = Народ и армия. Братский союз и свобода. (O povo e o exército. União fraterna e liberdade.)

Долой десять министровъ капиталистовъ = Долой десять министров капиталистов (Abaixo os dez ministros dos capitalistas)

(Faixas diversas) Долой, долой, долой (Abaixo, abaixo, abaixo)

(Sendo tirada e rasgada) Да здравствуетъ Временное правительство = Да здравствует Временное правительство (Viva o Governo Provisório)

Власть совѣтамъ = Власть советам (O poder aos sovietes)

Пролетаріи всѣхъ странъ, соединяйтесь! = Пролетарии всех стран, соединяйтесь! (Proletários de todos os países, uni-vos! – Marx)

Нарвскій районъ = Нарвский район (Bairro Narva – São Petersburgo, que fica muito próxima da Estônia, em cuja fronteira com a Rússia está a cidade de Narva)

Октябрь 1917 (Outubro de 1917)

Вся власть совѣтамъ = Вся власть советам (Todo o poder aos sovietes)




sexta-feira, 17 de agosto de 2018

A natureza pede socorro (poema, 2005)


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Mais um poema dos muitos meus que vocês já leram, mas este tem uma história peculiar. Originalmente, devia ser a letra de uma canção a ser musicada por uma banda formada por antigos colegas da escola Viverde, em Bragança Paulista. A Viverde, onde estudei de 1994 a 2005 (ou seja, dos 6 aos 17 anos, praticamente toda a escolaridade básica) e que fica muito perto de casa, tem uma proposta ecológica muito interessante incorporada à sua estrutura pedagógica. O casal de mantenedores fundou-a em 1991 num antigo sítio da família, e por isso pudemos aproveitar tudo o que um ambiente assim oferece: ar puro, mata, animais, espaço livre, vizinhança a um ribeirão... O currículo é o mesmo de qualquer colégio tradicional, mas toda a conscientização ambiental e valores afins são incorporados no dia a dia das aulas.

Eu fiz parte da primeira turma da escola, progredindo de série em série até integrarmos a primeira formatura de “terceirão” (2005). Recuando algumas turmas antes da minha, os garotos eram muito talentosos, e vários tocavam instrumentos musicais. Alguns deles, hoje renomados profissionais formados ou até pós-graduados, tinham criado uma banda chamada “Opu_c”, ainda um sucesso na região. Em 2005, não me lembro se pra um evento da escola ou algo parecido, tínhamos combinado meio vagamente de eu fazer a letra de uma canção com tema ecológico, e eles musicarem e tocarem em público (da minha classe, só eu participava). De alguma forma, o poema chegou até eles, mas por razão que desconheço, ele foi negligenciado. Se não me engano, a iniciativa até foi realizada, mas sem minha participação.

O poema “A natureza pede socorro” constituiu, desde então, uma música sem melodia, por assim dizer. O papel com o texto estava guardado havia uns anos, até que em março de 2010, provavelmente por volta do começo das aulas na Unicamp, resolvi publicá-lo em meu antigo blog “Pensadores Libertos”. Eu cursava meu quinto ano da graduação, e as informações que tenho até agora em meu backup são ainda mais reveladoras: eu tinha acabado de voltar pra casa, de uma aula de russo, e elogiava os “velhos amigos e colegas” da Unicamp... Eu estaria então “inspirado para postar coisas antigas”, e então digitei a referida música pela primeira vez, na esperança que alguém se interessasse em compor uma melodia. Infelizmente, alguns meses depois apaguei meu blog, desinteressado em postar coisas novas e em continuar com a mesma proposta crítico-política.

Eu mesmo, exibindo a criação, pedi que relevassem ou porventura corrigissem o “tique parnasiano” típico das minhas poesias, mas hoje penso que o problema pode ser outro: a incerteza da adaptação da letra a qualquer melodia. Pensando que um músico pudesse acertar a situação, não segui métricas rigorosas, embora tentasse equilibrar as sílabas poéticas, mas como apenas no meu pensamento fiz uma “sugestão de melodia”, o texto segue como hipótese não testada. Agora, ao menos, vocês podem lê-lo como um dos muitos frutos de minha educação ecológica!

____________________


Aquela árvore que você está vendo
Na sombra da qual você descansa
Está morrendo aos poucos nas mãos dos homens
Vítima de uma matança.

Ela lhe dá madeira para os seus móveis
E a celulose para fazer papel,
Além da cura para suas doenças,
Mas tratada tão cruel

Queimadas e cortes ilegais
Até nas reservas demarcadas.
Nos tiram o filtro do nosso ar
Em proporções tão desenfreadas.

Belezas já não se encontram mais,
Os bichos já não têm onde morar,
E por lixo são contaminadas.
Será que isso um dia vai parar?

Refrão:
Queremos natureza
Para nossos passeios e canções.
Queremos as paisagens
De presente às futuras gerações.
Queremos rios e matas
Para equilibrar nossos ecossistemas.
Nós não desistiremos
De acabar de uma vez com esses problemas.
Vida para sempre,
Dela somos parte,
Viver é uma ordem,
Preservar é arte!

É hora da conscientização
E fazer das tripas coração.
Usando nossa imaginação
Daremos a nossa proteção.

Quando o útlimo rio apodrecer
E a última mata perecer
Só então é que vamos perceber:
Dinheiro não podemos comer!

(Refrão)




quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Um abraço à vida e à realidade (2009)


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NOTA: Mesmo sendo mais antigo, este texto parece, tanto na forma quanto no conteúdo, “intermediário” entre os dois últimos, publicado originalmente em 6 de julho de 2009 no meu extinto blog “Pensadores Libertos”. Sua tinta anticlerical, politizada e intelectualista antecedeu de certa forma o ainda ativo Materialismo.net, mas refletiu uma fase minha mais espontânea e bem menos sistemática do que as reflexões lançadas pelo Giuliano Casagrande. Em 2008, eu tinha feito matérias com a historiadora Margareth Rago, bastante atenta às temáticas libertárias, e pra agravar, no começo de 2009 estava no quarto ano da graduação e fiz uma matéria com o petista César Nunes. Eram apenas partes do caldeirão que estava me tirando do catolicismo e me levando à esquerda política. Começava então a ler também textos do filósofo libertário francês Michel Onfray, que me impressionaram e ajudaram a nutrir minha jovem rebeldia, que hoje não subscrevo totalmente, mas cujos pressupostos ainda acho válidos. Parece estranho alinhar uma leitura anarquista com atitudes mais bolcheviques, mas pra mim é outro capítulo da minha história intelectual digno de ser revelado.




Michel Onfray, com um viés libertário, privilegia a valorização do indivíduo em detrimento das “falsas coletividades” e põe o prazer, desde que não faça mal a si e aos outros, como principal meio de realização do ser humano. [Legenda da postagem original, mas com imagem de 2018]


Se alguém ferir seu escravo ou escrava a pauladas,
e o ferido lhe morrer nas mãos, aquele será punido.
Porém, se sobreviver um dia ou dois, não será punido,
pois aquele foi comprado a dinheiro.
(Êxodo 21, 20.)

Quais são esses direitos naturais? Viver e sobreviver, é o mínimo, supõe a satisfação das necessidades do corpo e do espírito à medida que, assim apaziguados, permitam a existência de um corpo que seja e dure livre de todo sofrimento, assim como a de uma alma, nas mesmas condições, desde que ela, por si própria, seja conservada dentro da dignidade. (Michel Onfray, A política do rebelde, p. 51.)


É provável que todas as pessoas, desde o operário braçal que mal tem tempo de refletir sobre sua vida, até o playboy ou socialite que vive da herança biliardária deixada pelo pai ou avô industrial, já pensaram sobre o propósito de sua existência. Parece uma coisa óbvia, pois o ser humano diferencia-se dos outros animais pela faculdade do raciocínio, da abstração e do planejamento. Porém, às vezes os acontecimentos passam tão depressa e preocupamo-nos tanto com os detalhes mais “importantes”, que costumamos esquecer-nos do que parece menor, mas na verdade tem uma importância fundamental na compreensão de nossa natureza. Qual é, pois, a finalidade da vida humana, e por que, embora tenhamos os mais belos sonhos, o mundo parece nunca querer enquadrar-se nem às utopias dos mais nobres pensadores da humanidade, nem aos humildes desejos dos que apenas dispõem de sua força de trabalho para vender?

À primeira vista, são notáveis as mazelas sociais e econômicas que afligem as sociedades contemporâneas, como a fome, o desemprego, a violência, a ausência de fraternidade entre as pessoas, as crises cíclicas do capitalismo, a desorientação das pessoas quanto ao que fazer de sua vida e quais referências seguir (e isso parece ser endêmico nos jovens à beira do vestibular...) etc. Todos os anos são dedicadas páginas e mais páginas impressas ou online para descrevê-las ou tentar dar-lhes uma solução definitiva. Embora seja comprovada a falácia de qualquer teodiceia, de qualquer conciliação entre a teórica primazia do Bem e a onipresença do Mal, todos concordam que as aflições e flagelos que comovem e castigam o planeta possuem causas puramente humanas. “Encardidos” à parte, parece ser verdadeiro aquele chavão de que o homem é o lobo do próprio homem.

A cultura brasileira possui outro clichê, talvez mais autoexplicativo, que afirma a predominância dos interesses particulares, pessoais (arrisco-me a dizer ainda, grupais), sobre os gerais, coletivos: é a famosa lei de Gérson e a “teoria do jeitinho”... Paralelamente, contradizendo a malícia do “jeito” e do egoísmo, nossas tradições são bastante moralistas, autoritárias e acríticas, qualidades típicas da herança ibérica e jesuítica trazida pelos portugueses há aproximadamente 500 anos. Essa sisudez pode ter a ver com o particularismo de grupos fechados, que citei acima, quando uns digladiam-se contra os outros e arrogam-se o domínio da “verdade”, supostamente válida para todos os cidadãos do Brasil, quiçá do globo. Tal é a materialização de um paradoxo que algumas pessoas expuseram sem saber: ao mesmo tempo em que somos expostos a moralismos, leis e regras ditados por cúpulas supostamente mais “vividas” e mais “sábias”, a busca da satisfação e prazer pessoal, geralmente sem grandes resultados, tornou-se para muitos a única razão de sua existência.

Mas será que uma vida regrada e controlada, visando à moderação que leve, por sua vez, à abundância constante, é incompatível com a colocação da satisfação e do desfrute (diria ainda, bem-estar) em primeiro lugar? Não concordo. Para mim, o segundo fato é condição primordial para o primeiro. Se não possuímos uma vida que nos satisfaça plenamente, o descontrole nas horas de “fome e sede”, e mesmo o excesso de autoimposições psicológicas, pode levar-nos até mesmo a adoecer. As amarras mentais, seja do vício pelo gozo, seja da tara pelas restrições, fazem-nos viver para o futuro, pensar apenas no que virá, e não concluir que a razão de nossa existência está no PRESENTE. “Só terei satisfação no amanhã, quando cumprir uma série de regras que me anestesiem (para os libidinosos) ou me aumentem (para os ascéticos) o sofrimento”, dizem essas pessoas. Elas esquecem-se de que o esforço para o sucesso é necessário, mas nem de mais, nem de menos. A vida é agora, e não amanhã.

O filósofo francês Michel Onfray, na primeira parte de seu magnífico livro A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão (minha edição é da Rocco, 2001), expõe magistralmente uma apologia do individualismo e do amor pela vida para que nos mantenhamos equilibrados, satisfeitos e, creio eu (embora ele não diga), aptos para fazermos as melhores coisas pelos outros. Os regimes totalitários, e mesmo o mundo capitalista de hoje, pregaram uma “igualdade” entre as pessoas que termina por formatá-las, privá-las de sua individualidade, de suas particularidades; igualdade, lembre-se, que só existe dentro da Pátria, da Família, da Religião, do Partido e outros grupelhos. A um tempo só, contudo, alguns são mais “iguais” do que os outros, surgindo as diferenciações hierárquicas.

Sua filosofia postula que todos os seres humanos fazem parte de uma só espécie (e, para mim, a palavra “espécie” ressalta nossa condição de meros animais, parte da natureza, sem qualquer traço divino ou humanístico que nos desse qualquer superioridade sobre os outros seres), mas que devemos manter a unidade indivisível que compõe essa “grande família”, que é a individualidade, base de todo o direito que se pretenda justo. Os únicos princípios aplicados a todos os lugares e épocas, assim, longe de toda ideologia, são os da manutenção da vida e do direito à sobrevivência, desrespeitados pelas inúmeras ditaduras do século XX. Assim, longe da pregação de um individualismo egoísta, Onfray valoriza a satisfação pessoal, o desfrute da existência (que, para ele, já é o mais puro prazer), longe do ideal ascético e de “renúncia do eu” pregado pela direita e outros setores mais conservantistas. Ou seja, é um hedonista, sem que esse termo tenha qualquer sentido negativo.

Retornemos, então, às questões postas no início do texto: por que o sofrimento no mundo? O que fazer diante dele? Como todo bom materialista (se bem que ainda não me considero um tão bom assim...), acredito que suas causas são puramente materiais, em outras palavras, relacionam-se basicamente a problemas da péssima distribuição material nas sociedades capitalistas e da exploração desenfreada do trabalho alheio, não diferindo em nada da “boa e velha” escravidão. Na atualidade, a ânsia pelo lucro faz com que o proletariado possua apenas o mínimo para viver, sem espaço para o estudo, a reflexão e o lazer. Outros, porém, caem na miséria por terem sido expulsos de seus empregos, sob o pretexto, dizem as empresas, de “otimizar a produção”. Junte falta de educação e lazer aos mais pobres com pessoas sem as mínimas condições de vida: o que temos? Explosões materializadas na violência e na indigência, da qual os exploradores acabam sendo vítimas, com os assaltos a suas mansões ou carros de luxo. Aí, sim, é que se começa a falar em “problemas sociais”!!!!!

Novamente entra a ênfase na individualidade: é este bem precioso que perdem os explorados políticos e econômicos, que se tornam números, seja na prisão, na fábrica ou mesmo no cemitério. Aliás, quase todos nós já somos um número, o RG, para o Estado! Todas as elites da sociedade interessam-se pelo ocultamento do conhecimento ao povo, pois seu esclarecimento abri-los-ia para a verdadeira raiz do problema e poderia causar uma insatisfação generalizada jamais vista antes. E os intelectuais, embora não devam tornar-se uma espécie de “vanguarda messiânica”, deveriam ter o papel de tornar esse conhecimento mais acessível e basear toda a sua produção nas necessidades das classes subalternas; deveriam ajudar na elaboração de soluções aos problemas científicos e sociais do mundo. Mas não! A televisão, as revistas, os jornais sensacionalistas, as religiões, o cinema e certos sites estão aí para eternizar a “política do pão e circo”: benefícios rápidos a custo baixo, vendidos como verdades imutáveis! Enquanto isso, a intelectualidade é paga pelas classes dominantes para fazer sua apologia e legitimar suas ideias diante do público leitor, que “compra” todos os “analgésicos” oferecidos para a escamoteação de suas chagas.

Por isso, manter e afirmar uma individualidade própria e dedicar-se ao conhecimento da história, da natureza e dos sistemas sociais é fundamental para fazermo-nos agentes daquela mesma história, para fortalecermo-nos como verdadeiros modificadores, ainda que com pequenas ações, do meio que nos rodeia, seja o bairro, a cidade, o estado ou o país; e, potencialmente, do mundo e do opressivo regime capitalista, a ser reformado ou, se necessário, derrubado. Chegou a hora de abraçarmos a vida e a realidade a fim de sabermos quais são as verdadeiras causas dos males da humanidade e que sua solução não exige mais do que o esclarecimento racional dos indivíduos, a vivência do presente e a consciência da materialidade do mundo; sem idealismos, “analgésicos” ou tapa-olhos.