quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Um abraço à vida e à realidade (2009)


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NOTA: Mesmo sendo mais antigo, este texto parece, tanto na forma quanto no conteúdo, “intermediário” entre os dois últimos, publicado originalmente em 6 de julho de 2009 no meu extinto blog “Pensadores Libertos”. Sua tinta anticlerical, politizada e intelectualista antecedeu de certa forma o ainda ativo Materialismo.net, mas refletiu uma fase minha mais espontânea e bem menos sistemática do que as reflexões lançadas pelo Giuliano Casagrande. Em 2008, eu tinha feito matérias com a historiadora Margareth Rago, bastante atenta às temáticas libertárias, e pra agravar, no começo de 2009 estava no quarto ano da graduação e fiz uma matéria com o petista César Nunes. Eram apenas partes do caldeirão que estava me tirando do catolicismo e me levando à esquerda política. Começava então a ler também textos do filósofo libertário francês Michel Onfray, que me impressionaram e ajudaram a nutrir minha jovem rebeldia, que hoje não subscrevo totalmente, mas cujos pressupostos ainda acho válidos. Parece estranho alinhar uma leitura anarquista com atitudes mais bolcheviques, mas pra mim é outro capítulo da minha história intelectual digno de ser revelado.




Michel Onfray, com um viés libertário, privilegia a valorização do indivíduo em detrimento das “falsas coletividades” e põe o prazer, desde que não faça mal a si e aos outros, como principal meio de realização do ser humano. [Legenda da postagem original, mas com imagem de 2018]


Se alguém ferir seu escravo ou escrava a pauladas,
e o ferido lhe morrer nas mãos, aquele será punido.
Porém, se sobreviver um dia ou dois, não será punido,
pois aquele foi comprado a dinheiro.
(Êxodo 21, 20.)

Quais são esses direitos naturais? Viver e sobreviver, é o mínimo, supõe a satisfação das necessidades do corpo e do espírito à medida que, assim apaziguados, permitam a existência de um corpo que seja e dure livre de todo sofrimento, assim como a de uma alma, nas mesmas condições, desde que ela, por si própria, seja conservada dentro da dignidade. (Michel Onfray, A política do rebelde, p. 51.)


É provável que todas as pessoas, desde o operário braçal que mal tem tempo de refletir sobre sua vida, até o playboy ou socialite que vive da herança biliardária deixada pelo pai ou avô industrial, já pensaram sobre o propósito de sua existência. Parece uma coisa óbvia, pois o ser humano diferencia-se dos outros animais pela faculdade do raciocínio, da abstração e do planejamento. Porém, às vezes os acontecimentos passam tão depressa e preocupamo-nos tanto com os detalhes mais “importantes”, que costumamos esquecer-nos do que parece menor, mas na verdade tem uma importância fundamental na compreensão de nossa natureza. Qual é, pois, a finalidade da vida humana, e por que, embora tenhamos os mais belos sonhos, o mundo parece nunca querer enquadrar-se nem às utopias dos mais nobres pensadores da humanidade, nem aos humildes desejos dos que apenas dispõem de sua força de trabalho para vender?

À primeira vista, são notáveis as mazelas sociais e econômicas que afligem as sociedades contemporâneas, como a fome, o desemprego, a violência, a ausência de fraternidade entre as pessoas, as crises cíclicas do capitalismo, a desorientação das pessoas quanto ao que fazer de sua vida e quais referências seguir (e isso parece ser endêmico nos jovens à beira do vestibular...) etc. Todos os anos são dedicadas páginas e mais páginas impressas ou online para descrevê-las ou tentar dar-lhes uma solução definitiva. Embora seja comprovada a falácia de qualquer teodiceia, de qualquer conciliação entre a teórica primazia do Bem e a onipresença do Mal, todos concordam que as aflições e flagelos que comovem e castigam o planeta possuem causas puramente humanas. “Encardidos” à parte, parece ser verdadeiro aquele chavão de que o homem é o lobo do próprio homem.

A cultura brasileira possui outro clichê, talvez mais autoexplicativo, que afirma a predominância dos interesses particulares, pessoais (arrisco-me a dizer ainda, grupais), sobre os gerais, coletivos: é a famosa lei de Gérson e a “teoria do jeitinho”... Paralelamente, contradizendo a malícia do “jeito” e do egoísmo, nossas tradições são bastante moralistas, autoritárias e acríticas, qualidades típicas da herança ibérica e jesuítica trazida pelos portugueses há aproximadamente 500 anos. Essa sisudez pode ter a ver com o particularismo de grupos fechados, que citei acima, quando uns digladiam-se contra os outros e arrogam-se o domínio da “verdade”, supostamente válida para todos os cidadãos do Brasil, quiçá do globo. Tal é a materialização de um paradoxo que algumas pessoas expuseram sem saber: ao mesmo tempo em que somos expostos a moralismos, leis e regras ditados por cúpulas supostamente mais “vividas” e mais “sábias”, a busca da satisfação e prazer pessoal, geralmente sem grandes resultados, tornou-se para muitos a única razão de sua existência.

Mas será que uma vida regrada e controlada, visando à moderação que leve, por sua vez, à abundância constante, é incompatível com a colocação da satisfação e do desfrute (diria ainda, bem-estar) em primeiro lugar? Não concordo. Para mim, o segundo fato é condição primordial para o primeiro. Se não possuímos uma vida que nos satisfaça plenamente, o descontrole nas horas de “fome e sede”, e mesmo o excesso de autoimposições psicológicas, pode levar-nos até mesmo a adoecer. As amarras mentais, seja do vício pelo gozo, seja da tara pelas restrições, fazem-nos viver para o futuro, pensar apenas no que virá, e não concluir que a razão de nossa existência está no PRESENTE. “Só terei satisfação no amanhã, quando cumprir uma série de regras que me anestesiem (para os libidinosos) ou me aumentem (para os ascéticos) o sofrimento”, dizem essas pessoas. Elas esquecem-se de que o esforço para o sucesso é necessário, mas nem de mais, nem de menos. A vida é agora, e não amanhã.

O filósofo francês Michel Onfray, na primeira parte de seu magnífico livro A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão (minha edição é da Rocco, 2001), expõe magistralmente uma apologia do individualismo e do amor pela vida para que nos mantenhamos equilibrados, satisfeitos e, creio eu (embora ele não diga), aptos para fazermos as melhores coisas pelos outros. Os regimes totalitários, e mesmo o mundo capitalista de hoje, pregaram uma “igualdade” entre as pessoas que termina por formatá-las, privá-las de sua individualidade, de suas particularidades; igualdade, lembre-se, que só existe dentro da Pátria, da Família, da Religião, do Partido e outros grupelhos. A um tempo só, contudo, alguns são mais “iguais” do que os outros, surgindo as diferenciações hierárquicas.

Sua filosofia postula que todos os seres humanos fazem parte de uma só espécie (e, para mim, a palavra “espécie” ressalta nossa condição de meros animais, parte da natureza, sem qualquer traço divino ou humanístico que nos desse qualquer superioridade sobre os outros seres), mas que devemos manter a unidade indivisível que compõe essa “grande família”, que é a individualidade, base de todo o direito que se pretenda justo. Os únicos princípios aplicados a todos os lugares e épocas, assim, longe de toda ideologia, são os da manutenção da vida e do direito à sobrevivência, desrespeitados pelas inúmeras ditaduras do século XX. Assim, longe da pregação de um individualismo egoísta, Onfray valoriza a satisfação pessoal, o desfrute da existência (que, para ele, já é o mais puro prazer), longe do ideal ascético e de “renúncia do eu” pregado pela direita e outros setores mais conservantistas. Ou seja, é um hedonista, sem que esse termo tenha qualquer sentido negativo.

Retornemos, então, às questões postas no início do texto: por que o sofrimento no mundo? O que fazer diante dele? Como todo bom materialista (se bem que ainda não me considero um tão bom assim...), acredito que suas causas são puramente materiais, em outras palavras, relacionam-se basicamente a problemas da péssima distribuição material nas sociedades capitalistas e da exploração desenfreada do trabalho alheio, não diferindo em nada da “boa e velha” escravidão. Na atualidade, a ânsia pelo lucro faz com que o proletariado possua apenas o mínimo para viver, sem espaço para o estudo, a reflexão e o lazer. Outros, porém, caem na miséria por terem sido expulsos de seus empregos, sob o pretexto, dizem as empresas, de “otimizar a produção”. Junte falta de educação e lazer aos mais pobres com pessoas sem as mínimas condições de vida: o que temos? Explosões materializadas na violência e na indigência, da qual os exploradores acabam sendo vítimas, com os assaltos a suas mansões ou carros de luxo. Aí, sim, é que se começa a falar em “problemas sociais”!!!!!

Novamente entra a ênfase na individualidade: é este bem precioso que perdem os explorados políticos e econômicos, que se tornam números, seja na prisão, na fábrica ou mesmo no cemitério. Aliás, quase todos nós já somos um número, o RG, para o Estado! Todas as elites da sociedade interessam-se pelo ocultamento do conhecimento ao povo, pois seu esclarecimento abri-los-ia para a verdadeira raiz do problema e poderia causar uma insatisfação generalizada jamais vista antes. E os intelectuais, embora não devam tornar-se uma espécie de “vanguarda messiânica”, deveriam ter o papel de tornar esse conhecimento mais acessível e basear toda a sua produção nas necessidades das classes subalternas; deveriam ajudar na elaboração de soluções aos problemas científicos e sociais do mundo. Mas não! A televisão, as revistas, os jornais sensacionalistas, as religiões, o cinema e certos sites estão aí para eternizar a “política do pão e circo”: benefícios rápidos a custo baixo, vendidos como verdades imutáveis! Enquanto isso, a intelectualidade é paga pelas classes dominantes para fazer sua apologia e legitimar suas ideias diante do público leitor, que “compra” todos os “analgésicos” oferecidos para a escamoteação de suas chagas.

Por isso, manter e afirmar uma individualidade própria e dedicar-se ao conhecimento da história, da natureza e dos sistemas sociais é fundamental para fazermo-nos agentes daquela mesma história, para fortalecermo-nos como verdadeiros modificadores, ainda que com pequenas ações, do meio que nos rodeia, seja o bairro, a cidade, o estado ou o país; e, potencialmente, do mundo e do opressivo regime capitalista, a ser reformado ou, se necessário, derrubado. Chegou a hora de abraçarmos a vida e a realidade a fim de sabermos quais são as verdadeiras causas dos males da humanidade e que sua solução não exige mais do que o esclarecimento racional dos indivíduos, a vivência do presente e a consciência da materialidade do mundo; sem idealismos, “analgésicos” ou tapa-olhos.