sábado, 11 de agosto de 2018

Escrita à mão e sensações particulares


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NOTA: Este é mais um texto que publiquei no antigo blog “Pensadores Libertos”, em 14 de novembro de 2009, tendo-o criado sete dias antes. Constitui mais uma baliza transparente de minha vida intelectual, e achei útil trazê-la de volta, sem nenhuma correção ou alteração, pra que pensemos um pouco a respeito de nossa vida cheia de tablets e smartphones. O mais grave é que estamos os jogando às crianças pequenas sem saber direito ainda quais consequências isso pode ter em seu desenvolvimento cerebral e emocional. Mais interessantes do que as próprias reflexões são o registro de meu cotidiano passado, a linguagem empolada que eu usava e o “saudosismo” ante recursos eletrônicos ainda não tão atraentes ou evoluídos.

Não, chega por um momento de criar com as mãos sobre um teclado e os olhos voltados para um cansativo monitor. Não é improvável que estas reflexões cheguem alguma hora a meu blogue Pensadores Libertos, mas o processo de criação diretamente no computador pessoal tem-me deixado um tanto enfastiado. Os pulsos começam a doer, a vista seca pela falta de piscadas e começa a arder, gasta-se energia elétrica, lida-se com os frequentes piripaques dos programas de texto, distrai-se facilmente, com a internet ligada, a qualquer outro site que se venha à cabeça... Isso sem contar a questão das pausas: por vezes, devido à chamada a uma refeição, a uma saída ou à necessidade de assistir a um programa de TV, sou obrigado ou a desligar o computador, ou a desligar apenas o monitor e deixar a máquina funcionando, praticamente sem qualquer atividade. Sim, eu sei que PCs ligados quase não gastam energia... mas gastam alguma coisa, pelo menos. Tenho uma cisma inexplicável contra deixar aparelhos ligados sem uso, também, não sei. O mais importante é que escrevendo à mão sinto-me com mais liberdade para refletir, parar a hora que desejar, sair para tomar um ar no jardim simplesmente levantando minha bunda da escrivaninha e atravessando a porta que separa meu quarto da varanda...

Outrossim, escrever à mão parece ter um encanto a mais. Também não é fácil explicar, e isso poderia até soar estranho para quem passou a maior parte de sua formação intelectual na frente de um monitor e com as mãos sobre o teclado e o mouse digitando os trabalhos e, quando necessário, utilizando-se do ratinho cibernético para eventuais correções. Afinal, que encanto é esse? Ele parece ter brotado em minhas ideias desde que comecei a fazer um estágio no CLE (Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência) da Unicamp, mais precisamente no setor de arquivos históricos, o lugar mais apropriado quando esse estágio é matéria obrigatória do curso de Licenciatura em História. Foi quando comecei a catalogar as correspondências ativa e passiva do Dr. Walter Hugo de Andrade Cunha, pioneiro da etologia e da psicologia animal no Brasil. Ele trocou várias cartas com especialistas do Brasil e de várias partes do mundo, e embora várias delas fossem datilografadas, inúmeras eram manuscritas, o que às vezes me deixava desanimado em se tratando de epístolas do Dr. Cunha a seus homólogos, pois o sujeito tem uma caligrafia do cão... (Não que eu seja a reencarnação de um calígrafo imperial chinês, de um escriba egípcio ou de qualquer outra pessoa que tenha exercido tal arte na era cristã, mas minha subjetividade não é muito alterófila para com letras rabiscadas, mesmo sabendo que outras pessoas tiveram e terão a mesma sensação ao ler manuscritos meus.)

Enfim, o que me tem atraído para a escrita e a correspondência manuais, bem na era da internet banda larga e apesar de eu não ter o mínimo dom para a paleografia? (No semestre que vem haverá no IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp – um tópico tratando de paleografia de documentos de nossa era colonial, do qual passarei longe, por ser um aficionado pelo século XX e mesmo com a crescente demanda pela matéria no instituto, incluindo a de alguns colegas meus de turma.) Bem, acho tudo uma questão de personalidade e de revelação de suas características pessoais, pois a letra de uma pessoa é algo só dela, particular, insubstituível, e muitas pessoas dizem até que a caligrafia, assim como a data de nascimento, o nome, o desenho das palmas das mãos e a posição dos astros no natalício da(o) escrevente, pode revelar muita coisa sobre sua essência, pensamentos, aspirações e outras características particulares de sua vida, suas atitudes e seu físico. (Pasmem, todavia, que identifiquei, por meio de algumas cartas datilografadas do Dr. Cunha das décadas de 1960 e 1970, uma particularidade: o O minúsculo possuía a lateral esquerda apagada, de modo que se assemelhava a um C minúsculo invertido...) Não sei, escrever à mão faz com que nos sintamos mais próximos do texto, mais colaboradores em sua produção, mais íntimos, pode-se rabiscá-lo, desenhar nas margens, amassá-lo ou até chorar sobre ele! (Um escritor, não me recordo exatamente se foi José Saramago, falou justamente que não podemos derramar prantos sobre o monitor de um computador...)

Pois então, podemos fazer tudo isso escrevendo em nosso amigo ordenador? Obviamente, como traços pessoais, podem-se contar nele o uso de maiúsculas e minúsculas, a tabulação, o espaçamento (seja entre palavras ou entre um sinal de pontuação e a palavra seguinte), a própria ortografia, os erros ou a polidez gramaticais e outras formas de construir as frases ou escolher as palavras que costumam ser diretamente relacionados a fulano, beltrano ou sicrano. Entretanto, não deixo de pensar que o texto digitado torna-se bastante despersonalizado, já que tanto erros como acertos na escrita costumam ser mais ou menos padronizados de acordo com o nível de instrução e a idade da pessoa, e porque textos digitados possuem sempre a mesma fonte, pelo menos se se escolhe a mesma (por exemplo, o Times New Roman padrão dos trabalhos universitários); é claro que em certas modalidades de texto a escolha da fonte é livre, mas fontes são sempre padronizadas, caligrafias não. Além do mais, estas não deixam de expressar o estado de espírito daquela(e) que escreve, pois temos uma letra mais corrida no caso da pressa, uma letra mais arredondada em momentos mais tranquilos; traços finos feitos por alguém que se encontra calmo, traços grossos indicando fúria ou o esforço de fazer a caneta (pelo menos no meu caso) escrever quando ela falha, como acabou de acontecer comigo alguns minutos atrás (troquei uma caneta promocional gorda e emperiquitada por uma boa, velha, esbelta e singela Bic).

Escrever à mão ainda é um recurso acessível para a maioria das pessoas em qualquer lugar em que se encontrem. Não tenho laptop, por isso só posso escrever na praia, no jardim ou num café a lápis ou a caneta, sobre o sempre disponível caderno, aquele fiel companheiro que me seguiu do primeiro rabisco até o bê-a-bá, como canta Toquinho. Acredito que grandes intelectuais revolucionários, descontados seus ranços despóticos, como Lenin e Mao Zedong, não dispunham, nos momentos mais difíceis, de máquinas de escrever, muito menos de computadores, e mesmo assim nos legaram importantes obras teóricas, como Que fazer? e Sobre a contradição, só para citar as mais exaustivamente conhecidas, além de alguns poemas, como no caso do líder chinês. É assim que me parece que a escrita manual toma um tom revolucionário, de crítica, de contestação, de nado contra a titânica maré da digitação informática, sujeita às mutilações da necessidade de composição rápida (o famoso “internetês”), a qual assumo praticar no MSN. Mas fazer o quê, é como eu já disse, este texto vai, uma hora ou outra, parar em meu blogue, e pode ser que perca seu encanto. Foram sete páginas dum caderno em formato 14,4 x 20,2 cm ocupadas frente e verso, o que dá ao texto humilde majestade e magnitude, ainda mais para quem foi criado intelectualmente grudado a um computador. Mas não, no editor de texto as margens talvez aumentarão, a letra ficará menor e esta produção que tanta energia e inspiração me custou não parecerá mais do que uma nota esparsa.

Paciência, é o condicionamento da necessidade de quem ainda não entrou no Panteão dos grandes prosadores do mundo, sequer de sua cidade, mas tem como obrigação moral garantir seu mínimo lugar ao sol para que sua modesta tentativa de transformar o mundo, nem que seja em sua rua, não seja relegada ao esquecimento. Ah, o esquecimento: a dor maior dos que acreditam que após esta vida não há nada além do vazio, do silêncio e duma inútil sepultura.


Bragança Paulista, 7 de novembro de 2009