segunda-feira, 13 de agosto de 2018

A sociedade da saturação (texto, 2012)


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NOTA: Comparar este texto com o da postagem anterior é um belo exercício. Com um intervalo de quase três anos, ele foi publicado pela primeira vez no blog Materialismo.net, ainda em atividade, em 18 de março de 2012, dois dias depois de eu tê-lo escrito. Agora, a única cópia está aqui, embora eu não tenha feito nenhuma alteração ou correção (exceto em formatações pontuais). A linguagem já está mais fluida, e a redação ganhou qualidade, apesar do certo “carregamento” que ela ainda guarda em relação a meu estilo atual. Eu tinha acabado de terminar a graduação e ganhado muito conhecimento, mas sem o presente aparato da atividade acadêmica, minhas reflexões eram bem especulativas e um tanto prolixas. Mesmo assim, me impressiono como o tema e os problemas continuam atuais, e como em seis anos a coisa piorou tanto! O engraçado é que o Brasil já se deliciava com os smartphones, mas eu seguia atado ao desktop, e contraditoriamente só iria me apegar ainda mais ao Facebook, abandonando-o apenas em 2015. Pouco se falava ainda da SPA, mas parece que minhas ideias já estavam bem avançadas, pra quem só anos depois leria a decisiva série Ansiedade de Augusto Cury.

Não é fácil aventurar-se a observar um fenômeno da vida real e tentar sistematizá-lo na linguagem científica, filosófica ou mesmo na prosa de divulgação. Hoje em dia, como se fala muito na área, não há mais filósofos ou pensadores, mas historiadores da filosofia e comentadores de filósofos. Mais difícil ainda é o escrevinhador confessar que há inúmeras obras atuais refletindo sobre a vida moderna, mas que não leu nenhuma ou só teve contato indireto com seus principais argumentos. Assim, a pessoa comum que tenta descrever criticamente o mundo ao redor por meio do raciocínio independente passa por especuladora vã, especialmente aos olhos da academia, e a blogosfera de qualidade se perde no meio do lixo virtual cometido por pseudointelectuais e revolucionários de gabinete.

Por falar em internet, ela é um dos cenários privilegiados de um fenômeno que se tornou uma praga da atualidade e que afeta a qualidade das relações humanas, da inteligência individual e do conteúdo transmitido nos sistemas de ensino básico. Trata-se de uma espécie de saturação mental de informações e dados muitas vezes inúteis e quase sempre sem qualquer valor intelectual. Não sou o primeiro a levantar a questão, tanto que o que faço agora é sintetizar essas leituras prévias, e o fenômeno não se restringe à esfera da aquisição de conhecimento, como veremos adiante. Mas é melhor começar por uma descrição geral do cenário social.

O avanço da tecnologia mudou nossa noção do tempo, e tarefas que demoravam para ser cumpridas agora se realizam rapidamente. As autopistas e os carros mais eficientes tornam certas viagens muito menos penosas, o telefone celular permite que ligações telefônicas e várias outras funções sejam realizadas em qualquer lugar e o computador facilita consideravelmente a produção de sons, textos e imagens. A internet, certamente a ferramenta mais revolucionária das últimas décadas, transformou totalmente a concepção de comunicação, pesquisa, entretenimento e até mesmo de amizade, tornando-se uma espécie de mundo paralelo não por acaso chamado de virtual.

Com as tarefas cotidianas podendo se realizar tão rapidamente, os gestores do trabalho não poderiam deixar de exigir mais produção num prazo menor, e, com tanta mobilidade e praticidade tecnológica, extravasando o velho local de serviço e invadindo o lar, como não escapou a alguns observadores. Resultou que, como me ensinou bem cedo minha antiga professora de História do Fundamental e do Médio, tais avanços não diminuíram a carga horária dos trabalhadores, mas a aumentaram, o que obviamente afetou o período de lazer, de refeições, de descanso, de amor e de reflexão sobre a vida. Com o que se tornou não um alívio, mas uma sobrecarga de trabalho, começaram a aparecer problemas como o estresse, a depressão, a ansiedade e outras afetações psicológicas ou de humor.

Mas o que tem a ver a ideia de saturação com isso? É necessário retornar mais adiante aos referidos problemas mentais, mas por enquanto vamos explicar o título do texto. Mesmo sem recorrer a definições de dicionários, fica claro que a saturação é um conceito contrário ao de saciedade. A referência ao processo digestivo ajuda a explicar melhor: quando comemos alimentos saudáveis e ricos em substâncias necessárias ao organismo, e quando o fazemos de maneira calma e frugal, chega um momento em que nos sentimos saciados e livres da vontade de comer por algumas horas, até que nosso corpo necessite de comida novamente. Contudo, com menos tempo para realizarmos o ritual da refeição que, embora muitos não saibam, é tão importante culturalmente para a coesão das pessoas e para o conhecimento mútuo, comemos em qualquer canto ou banqueta que nos surja por sorte, comemos alimentos rapidamente preparados, artificiais, que enchem o estômago, mas não evitam o aparecimento da fome pouco tempo depois, e comemos com pressa, não atentando para a mastigação e a degustação. Em resumo, nós nos tornamos saturados, ou seja, empanturrados sem qualquer benefício para o corpo, enquanto a saciedade é apenas ilusão, e mesmo uma irrealidade, pois é muito diferente a sensação de já termos comido o suficiente daquela de estarmos com a comida subindo pela garganta.

A novidade que quero trazer aqui é a passagem desse conceito de saturação para a atividade intelectual. Como já sabiam nossos antepassados, livros bem lidos, lidos com calma, atenção e dedicação exclusiva nos trazem a satisfação de termos adquirido um conhecimento sólido, termos ativado criticamente nossa inteligência e termos passado momentos agradáveis de distração e concentração, o que vale para livros de entretenimento, de autoajuda ou de conteúdo mais denso. Atualmente, não se leem mais livros, mas fica-se navegando na internet acessando os mais diversos conteúdos. São de boa qualidade? Depende: há coisas muito boas, mas a maioria é mera pipoca intelectual, daquelas que empanturram, mas não ensinam nada. Em outras palavras, temos acesso a uma quantidade enorme de informações, mas não as peneiramos nem selecionamos e apenas saturamos nossa mente com nomes e fatos os mais desconexos e descontextualizados possíveis.

O fenômeno dos telejornais comuns já prenunciava a saturação de informações, quando éramos bombardeados por notícias, fofocas e dados aleatórios sem qualquer utilidade para nosso cotidiano e vendidos como suposto conteúdo essencial para cosmopolitas e cidadãos do mundo. A internet banda larga e as tecnologias informáticas, atualizadas a cada dia, potencializaram essa enxurrada descontrolada, privilegiando, além de tudo, a brevidade da mensagem e a produção em massa de várias delas. O Twitter é o ápice desse processo, quando devemos nos restringir a escrever futilidades em 140 caracteres, o que nos obriga a escrever sem parar e ainda nos viciarmos a ler cada coisa que escrevem os perfis que seguimos. O Facebook não fica atrás, e os históricos de atualizações de nossos amigos são um convite para distrairmos nossa atenção e perdermos um bom tempo atados a seus compartilhamentos de vídeos e a suas postagens de fotos. Mesmo vários serviços de e-mail tentam seus usuários com tarjas de notícias alternantes por cima da caixa de mensagens, de títulos vagos, mas com palavras chamativas e, por isso mesmo, irresistíveis.

As pessoas comuns, muitas vezes sem qualquer preparo diante dessa democratização súbita da produção e da aquisição de informações, terminam por se tornar protagonistas de duas degradações, uma subjetiva e outra objetiva. A subjetiva, relativa aos já citados problemas psicológicos, trata da necessidade que criamos de aparecer na rede mundial, de dar qualquer opinião que seja e de estar informados sobre piadas, memes, jargões, vídeos e assuntos que estão na moda virtual. Tanto esforço mental somente leva a fadigas, ansiedade, insônia e a chamada atualmente SPA, ou síndrome do pensamento acelerado: passamos tanto tempo conectados a tantas coisas, com tanta ânsia de produzir e assimilar, que nossa mente não desliga mais, não conseguimos mais relaxar nem nos relacionar socialmente de forma satisfatória. O vício em jogos eletrônicos é outra faceta mais antiga desse problema.

A degradação objetiva causada por esse vale-tudo comunicativo é relacionada à primeira, mas tem mais a ver com a produção em massa de informações e opiniões. Qualquer pessoa sem preparo intelectual ou psicológico suficiente se sente apta a aparecer para o máximo possível de internautas, e proliferam as mensagens com erros gramaticais, ideias falaciosas, preconceitos e os famosos xingamentos e outras brigas entre usuários, por causa do fácil descontrole de muitos ao serem contrariados, o que também afeta no subjetivo com transtornos de humor e até mesmo depressão.

Certamente o uso racional das ferramentas mais avançadas e de rápida atualização rápida pode ajudar, com atitudes como o controle do tempo que elas são usadas, a execução de pausas entre certos períodos de uso, a fuga de contendas ou discussões que podem se tornar muito acaloradas ou baixas e a difusão de um conteúdo cultural e informacional mais sólido, qualitativo e ligado à realidade dos leitores. Porém, sabemos que ideologia e tecnologia não são realidades totalmente independentes, mas também se ligam à situação material, real, concreta do nível intelectual e de conhecimento de um grupo humano. Assim, a disposição para ler apenas mensagens de até cinco linhas e a frequência das falhas vocabulares, ortográficas e gramaticais na escrita são um reflexo da incapacidade de nossas famílias, de nossas escolas e de nossa política em produzir inteligências disciplinadas, críticas, independentes e cultas, enquanto o gosto pelo efêmero e pelo impactante advém de uma lógica de mercado consumista e fútil que enxerga em cada cidadão apenas números, consumidores e massa de manobra para a divulgação de marcas, produtos e modas.

Uma reviravolta cultural geral, antes de tudo, é mais do que necessária, e a persistência e a força de vontade talvez possam transformar os meios virtuais em transformadores positivos da realidade, como se provou em várias mobilizações recentes ao redor do mundo. Basta tomarmos os controles de assalto e virarmos as rédeas para o lado do progresso, da harmonia e da fraternidade.


Bragança Paulista, 16 de março de 2012