domingo, 5 de abril de 2015

Discurso: Stalin entra na 2.ª Guerra


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Cartaz de propaganda: “Sob a direção do grande Stalin, avante rumo ao comunismo!”


Introdução (Erick Fishuk)

Discurso que traduzi direto do russo para o português e legendei na íntegra. Faz parte de uma série de discursos de Stalin que pretendo lançar até o dia 9 de maio de 2015 em memória dos 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.

No dia 22 de junho de 1941, apesar do Pacto Molotov-Ribbentrop de não agressão assinado entre os dois países em 1939, a Alemanha nazista invade a URSS a oeste. A incursão já era esperada pelos comunistas soviéticos, mas Hitler pegou os bolcheviques desmobilizados naquele momento. Após alguns dias de tensão na alta cúpula do Partido Comunista, Stalin decide pronunciar um discurso por rádio a todo o povo soviético, no dia 3 de julho seguinte.

Stalin inicia explicando a dimensão da invasão nazista pela mobilização antecipada dos alemães junto à fronteira, já que a URSS não queria ter rompido o pacto de 1939. Este é justificado pelo tempo adicional de paz que teria dado aos soviéticos para se prepararem melhor, sendo seu rompimento uma tragédia política para a Alemanha. Apontando a grandeza do perigo, Stalin conclama ao fim do relaxamento e da covardia, à militarização do cotidiano, a ajudarem o Exército Vermelho e a formarem guerrilhas, sabotagens e outras forças que estorvassem os nazistas. Por fim, Stalin exalta o caráter patriótico e salvador da guerra, ligada com a resistência da Europa e América e sua bem-vinda ajuda à URSS, e chama o povo a estar em torno do partido e do governo para vencer.

Dentro das Obras completas de Stalin, o discurso em russo pode ser lido no tomo 15 (Moscou, Pisatel, 1997), pp. 56-61. Seu título original é “Vystuplenie po radio, 3 iulia 1941 goda”. No site Sovmusic.ru, além de ler o texto é possível baixar o áudio em MP3. Existem ainda uma tradução parcial em espanhol e uma integral em francês que cotejei com meu trabalho para melhorá-lo. Depois que concluí tradução e legendagem, fui informado que uma primeira tradução em português já estava publicada no livro Stalin, de Emil Ludwig (Rio de Janeiro, Calvino, 1943), mas não fiz o cotejamento por falta de tempo.

Abaixo você pode ver também montagem em vídeo que fiz com fotos e o áudio do discurso, que legendei sendo feitas no texto, como sempre, as necessárias adaptações a esse tipo de mídia:


Camaradas! Cidadãos! Irmãos e irmãs!

Combatentes de nosso exército e marinha!

É a vocês que me dirijo, meus amigos!

A traiçoeira agressão militar da Alemanha hitlerista à nossa Pátria, iniciada em 22 de junho, continua. Apesar da heroica resistência do Exército Vermelho, apesar das melhores divisões e melhores unidades de aviação inimigas já terem sido destruídas e perecido nos campos de batalha, o inimigo avança em sua incursão, lançando ao front novas forças. As tropas hitleristas conseguiram tomar a Lituânia, uma parte significativa da Letônia, o Oeste da Bielorrússia e parte do Oeste da Ucrânia. A aviação fascista está ampliando as áreas de operação de seus bombardeiros, submetendo a seu fogo Murmansk, Orsha, Magiliou, Smolensk, Kyiv, Odesa, Sevastopol. Nossa Pátria está correndo um sério perigo.

Como pôde ocorrer de nosso glorioso Exército Vermelho ter cedido às tropas fascistas tantas cidades e distritos nossos? Será que as tropas fascistas alemãs são realmente um exército invencível, como apregoa sem descanso a vaidosa propaganda fascista?

Claro que não! A história ensina que não há e nunca houve exércitos invencíveis. O exército de Napoleão se reputava invencível, mas foi destruído em sucessão por tropas russas, inglesas e alemãs. O exército alemão de Guilherme 2.º na época da primeira guerra imperialista também se reputava invencível, mas foi várias vezes derrotado pelas tropas russas e anglo-francesas e finalmente destruído por ingleses e franceses. Deve-se dizer hoje o mesmo sobre o exército fascista alemão de Hitler. Esse exército ainda não havia encontrado séria resistência no continente europeu, e apenas em nosso território se deparou com real oposição. E se por conta dessa resistência as melhores divisões do exército fascista alemão foram destruídas por nosso Exército Vermelho, significa que as tropas hitleristas também podem ser, e serão, destruídas, tal como o foram os exércitos de Napoleão e de Guilherme 2.º.

Quanto ao fato de parte de nosso território, mesmo assim, estar ocupada pelas tropas fascistas alemãs, a explicação principal é que a guerra da Alemanha fascista contra a URSS começou sob condições favoráveis às tropas alemãs e desfavoráveis às tropas soviéticas. Ocorre que a Alemanha, como país que conduz a guerra, já tinha as tropas inteiramente mobilizadas, e as 170 divisões alemãs lançadas contra a URSS e alocadas junto às nossas fronteiras se encontravam em estado de total prontidão, esperando apenas o sinal para avançar, enquanto as tropas soviéticas ainda deviam se mobilizar e se alocar nas fronteiras. Aqui também importou muito a circunstância da Alemanha fascista ter violado de forma inesperada e traiçoeira o pacto de não agressão que ela assinou em 1939 com a URSS, não contando que seria considerada pelo mundo inteiro como o lado agressor. É natural que nosso pacífico país, não querendo tomar para si a iniciativa de violar o pacto, não podia seguir o caminho da traição.

Pode-se perguntar: como pôde ocorrer do Governo Soviético ter-se posto a assinar um pacto de não agressão com pessoas tão traiçoeiras e monstruosas como Hitler e Ribbentrop? Não teria sido aqui cometido um erro da parte do Governo Soviético? Claro que não! O pacto de não agressão é um tratado de paz entre dois Estados, e foi exatamente algo assim que nos propôs a Alemanha em 1939. Podia o Governo Soviético recusar tal proposta? Penso que nenhum Estado pacífico pode recusar um acordo de paz com potência vizinha, mesmo que no comando dela se encontrem monstros e canibais como Hitler e Ribbentrop. E isso, claro, sob a condição obrigatória de que o acordo de paz não fira direta ou indiretamente a integridade territorial, a independência e a honra do Estado pacífico. Como se sabe, o pacto de não agressão entre a Alemanha e a URSS é exatamente dessa natureza.

O que nós ganhamos ao assinar com a Alemanha o pacto de não agressão? Garantimos paz a nosso país durante um ano e meio e a possibilidade de preparar suas forças para reagir, caso a Alemanha fascista se arriscasse a agredi-lo a despeito do pacto. É um ganho inegável para nós e uma perda para a Alemanha fascista.

O que ganhou e perdeu a Alemanha fascista ao romper traiçoeiramente o pacto e cometer a agressão à URSS? Ela alcançou situação um tanto vantajosa para suas tropas durante um curto prazo, mas perdeu politicamente, revelando-se aos olhos do mundo inteiro como uma agressora sanguinária. Não se pode duvidar que esse ganho militar passageiro para a Alemanha é apenas episódico, e que o imenso ganho político para a URSS constitui o fator sério e duradouro em cuja base devem se desdobrar os sucessos militares decisivos do Exército Vermelho na guerra contra a Alemanha fascista.



A cidade russa de Smolensk destruída após duro combate entre alemães e soviéticos.


É por isso que todo nosso valoroso exército, toda nossa valorosa marinha de guerra, todos os nossos pilotos-falcões, todos os povos de nosso país, toda a melhor gente da Europa, América e Ásia, enfim, toda a melhor gente da Alemanha repudiam as ações traiçoeiras dos fascistas alemães e demonstram simpatia pelo Governo Soviético, aprovam a conduta dele e veem que nossa causa é justa, que o inimigo será destruído, que nós devemos vencer.

Por força da guerra que nos foi imposta, nosso país entrou num embate mortal com seu pérfido e fidagal inimigo, o fascismo alemão. Nossas tropas estão combatendo heroicamente um adversário armado até os dentes com tanques e aviões. O Exército e a Marinha Vermelhos, superando inúmeras dificuldades, estão lutando abnegadamente por cada palmo da Terra Soviética. Estão entrando em combate as principais forças do Exército Vermelho, armadas com milhares de tanques e aviões. A bravura dos guerreiros do Exército Vermelho não tem paralelo. Nossa reação ao inimigo está ficando maior e mais forte. Junto ao Exército Vermelho está se erguendo em defesa da Pátria todo o povo soviético.

O que se exige para liquidar o perigo que nossa Pátria está correndo, e que medidas devemos tomar para derrotar o inimigo?

Antes de tudo, é indispensável que nosso povo, o povo soviético, entenda toda a profundidade do perigo que ameaça nosso país e renuncie à benevolência, ao relaxamento, aos humores da edificação pacífica, plenamente compreensíveis antes da guerra, mas atualmente nocivos, já que ela mudou radicalmente a situação. O inimigo é cruel e implacável. Ele tem por objetivo tomar nossas terras, regadas com nosso suor, tomar nossos cereais e nosso petróleo, produzidos com nosso esforço. Ele tem por objetivo restaurar o poder dos latifundiários e o tsarismo, destruir cultura e instituições nacionais de russos, ucranianos, bielorrussos, lituanos, letões, estonianos, usbeques, tártaros, moldávios, georgianos, armênios, azerbaijanos e outros povos livres da União Soviética, germanizar esses povos, transformá-los em escravos dos príncipes e barões alemães. Trata-se, assim, da vida ou morte do Estado Soviético, da vida ou morte dos povos da URSS e seu ingresso na liberdade ou na escravização. Os soviéticos precisam entender isso, deixar de ser descuidados, mobilizar-se e reorganizar todo seu trabalho de um jeito novo, bélico, que não inspire pena do inimigo.

É indispensável, a seguir, que em nossas fileiras não haja lugar para chorões e covardes, alarmistas e desertores, que nossa gente desconheça o temor na luta e vá abnegadamente à nossa Guerra Libertadora Patriótica contra os escravizadores fascistas. O grande Lenin, fundador de nosso Estado, dizia que as qualidades essenciais dos soviéticos deviam ser a bravura, a ousadia, a ausência de temor na luta, a disposição para combater junto ao povo os inimigos de nossa Pátria. É indispensável que essas excelentes qualidades de um bolchevique se tornem atributos dos milhões e milhões em nosso Exército e Marinha Vermelhos e em todos os povos da União Soviética.

Devemos desde já reorganizar todo nosso trabalho de um jeito bélico, submetendo tudo aos interesses do front e às tarefas que organizem a derrota do inimigo. Os povos da União Soviética veem agora que o fascismo alemão é irrefreável em seu rancor e ódio ensandecidos à nossa Pátria, a qual garantiu a todos os trabalhadores emprego livre e bem-estar. Os povos da União Soviética devem se erguer em defesa de seus direitos e de sua terra contra o inimigo.

O Exército e a Marinha Vermelhos e todos os cidadãos da União Soviética devem proteger cada palmo da Terra Soviética, brigar até a última gota de sangue por nossas cidades e povoados, demonstrar a coragem, iniciativa e astúcia próprias de nosso povo.

Devemos organizar uma ajuda multilateral ao Exército Vermelho, garantir o reforço intensivo de suas fileiras, garantir-lhe o abastecimento com todo o necessário, organizar o rápido avanço dos transportes de tropas e carga militar e uma ampla ajuda aos feridos.

Devemos fortalecer a retaguarda do Exército Vermelho, submetendo aos interesses dessa missão todo o nosso trabalho, garantir o funcionamento intensivo de todas as empresas, fabricar mais fuzis, metralhadoras, canhões, cartuchos, projéteis, aviões, organizar a salvaguarda das fábricas, centrais elétricas, serviços telefônicos e telegráficos, ajustar a defesa antiaérea local.



Histórica parada militar na Praça Vermelha a 7 de novembro de 1941, sob cerco nazista.


Devemos organizar uma luta sem trégua contra quaisquer desorganizadores da retaguarda, desertores, alarmistas, espalhadores de boatos, aniquilar os espiões, diversionistas, para-quedistas inimigos, prestando em tudo isso assistência rápida a nossos batalhões de extermínio. Precisamos ter em vista que o inimigo é pérfido, ardiloso, perito em enganar e espalhar falsos boatos. É preciso levar tudo isso em conta e resistir às provocações. Precisamos desde já julgar no tribunal de guerra todos os que estorvam com seu alarmismo e covardia a causa da defesa, sem qualquer distinção.

Em caso de retirada forçada das unidades do Exército Vermelho, devemos levar todo material ferroviário rodante, não deixar ao inimigo uma só locomotiva, um só vagão, não deixar ao adversário um só quilo de cereais, um só litro de combustível. Os kolkhozianos devem levar todo o gado, entregar os cereais à proteção dos órgãos estatais para serem transportados a regiões na retaguarda. Todos os bens valiosos, inclusive metais não ferrosos, cereais e combustível, que não puderem ser levados devem ser absolutamente destruídos.

Nas regiões ocupadas pelo inimigo, devemos criar grupos guerrilheiros de cavalaria e infantaria, criar grupos de sabotagem que combatam as unidades do exército inimigo, fomentem guerrilhas por toda parte, explodam pontes e estradas, avariem serviços telefônicos e telegráficos, incendeiem bosques, depósitos e comboios. Nas regiões ocupadas, devemos criar condições intoleráveis ao inimigo e todos os seus cúmplices, perseguir e aniquilá-los a cada passo, frustrar todas as suas iniciativas.

A guerra contra a Alemanha fascista não deve ser tida como uma guerra qualquer. Ela não é apenas uma guerra entre dois exércitos. Ela é, além disso, uma grande guerra de todo o povo soviético contra as tropas fascistas alemãs. O objetivo dessa Guerra Patriótica nacional contra os opressores fascistas não é apenas liquidar o perigo que nosso país está correndo, mas também ajudar todos os povos da Europa dobrados pelo jugo do fascismo alemão. Nessa guerra libertadora não estaremos sozinhos. Nessa grande guerra teremos aliados fiéis na figura dos povos da Europa e América, inclusive do povo alemão escravizado pelos figurões hitleristas. Nossa guerra pela liberdade da Pátria se confundirá com a luta dos povos da Europa e América por sua independência e pelas liberdades democráticas. Essa será uma frente única dos povos que defendem a liberdade, contra a escravização e a ameaça de escravização por parte dos exércitos fascistas de Hitler. Por essa razão, o histórico discurso do Sr. Churchill, premiê britânico, sobre a ajuda à União Soviética e a declaração do governo dos EUA sobre a disposição em prestar ajuda a nosso país, os quais só podem despertar um sentimento de gratidão nos corações dos povos da União Soviética, são plenamente compreensíveis e significativos.

Camaradas! Nossas forças são incalculáveis. O inimigo, cheio de presunção, logo deverá se convencer disso. Junto ao Exército Vermelho estão se erguendo milhares e milhares de operários, kolkhozianos e intelectuais para a guerra contra o inimigo agressor. Vão se levantar as massas de milhões de nosso povo. Os trabalhadores de Moscou e Leningrado já se puseram a formar aos milhares uma milícia popular em apoio ao Exército Vermelho. Em cada cidade que correr o perigo de invasão inimiga, devemos formar tal milícia popular, erguer todos os trabalhadores à luta para defender de corpo e alma sua liberdade, sua honra e sua Pátria em nossa Guerra Patriótica contra o fascismo alemão.

Para mobilizarmos rapidamente todas as forças dos povos da URSS e para conduzirmos a reação ao inimigo e sua agressão traiçoeira à nossa Pátria, criamos o Comitê Estatal de Defesa, em cujas mãos concentramos a plenitude do poder do Estado. O Comitê Estatal de Defesa se pôs a trabalhar e está conclamando todo o povo a cerrar-se em torno do partido de Lenin e Stalin, em torno do Governo Soviético para apoiar com abnegação o Exército e a Marinha Vermelhos, para derrotar o inimigo, para vencer.

Todas as nossas forças em apoio a nosso heroico Exército Vermelho, à nossa gloriosa Marinha Vermelha!

Todas as forças do povo à derrota do inimigo!

Avante, pela nossa vitória!



Guerrilheiras soviéticas na Frente Oriental de combate aos nazistas.

domingo, 29 de março de 2015

Veillons au salut de l’Empire (tradução)


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Esta é uma canção revolucionária francesa cuja letra foi escrita nos últimos meses de 1791 por Adrien-Simon Boy, cirurgião-chefe do Exército do Reno, sobre a melodia da romança (canção sentimental) Vous qui d’amoureuse aventure, courez et plaisirs et dangers, da comédia Renaud d’Ast, composta em 1787 por Nicolas Dalayrac. Muito tocada em eventos oficiais do Primeiro Império de Napoleão Bonaparte, quase virou de vez o hino nacional no lugar da Marselhesa.

Originalmente, a palavra empire (império) do título e do primeiro verso, com E minúsculo, que cumpria essencialmente a função da rima, tinha o sentido de “pátria”, ou, no sentido mais geral, de “pátria de todos os homens livres”. Com o E de Empire tornado maiúsculo, a referência passou a ser ao império napoleônico.

Esta versão da música foi gravada em 1989 no álbum La Révolution française en chansons, protagonizado pelo Chorale Populaire Paris, pelo Sextuor de la Cité e por Bernard Demigny. A quarta estrofe não é cantada, enquanto o estribilho da terceira, que é diferente, aparece igual, sendo originalmente “Liberté, liberté ! que ce nom sacré nous rallie/Poursuivons les tyrans, punissons leurs forfaits/Nous servons la même patrie/Les hommes libres sont Français” (Liberdade, liberdade! Que esse nome sagrado nos una/Persigamos os tiranos, punamos seus desmandos/Nós servimos à mesma pátria/Os homens livres são franceses). Leia aqui a letra integral em francês!

Eu baixei o áudio para legendagem a partir deste vídeo, traduzi e legendei. Logo abaixo meu próprio vídeo, além da letra em francês e em português, apenas com as estrofes cantadas no vídeo:


1. Veillons au salut de l’Empire,
Veillons au maintien de nos lois ;
Si le despotisme conspire,
Conspirons la perte des rois !

Refrain (2x):
Liberté, liberté ! que tout mortel te rende hommage !
Tyrans, tremblez ! vous allez expier vos forfaits !
Plutôt la mort que l’esclavage !
C’est la devise des Français.

2. Du salut de notre patrie
Dépend celui de l’univers ;
Si jamais elle est asservie,
Tous les peuples sont dans les fers.

(Refrain 2x)

3. Ennemis de la tyrannie,
Paraissez tous, armez vos bras.
Du fond de l’Europe avilie,
Marchez avec nous aux combats.

(Refrain 2x)

____________________


1. Cuidemos da salvação do Império,
Cuidemos para manter nossas leis;
Se o despotismo conspirar,
Conspiremos a ruína dos reis!

Refrão (2x):
Liberdade, liberdade! Todo mortal lhe renda homenagem!
Tremam, tiranos! Vocês pagarão por seus desmandos!
Antes morte do que escravidão!
Esse é o lema dos franceses.

2. Da salvação de nossa pátria
Depende a do universo;
Quando ela é escravizada,
Todos os povos são agrilhoados.

(Refrão 2x)

3. Inimigos da tirania,
Apareçam todos, peguem em armas.
Do fundo da Europa humilhada,
Marchem conosco nos combates.

(Refrão 2x)



domingo, 22 de março de 2015

Le Chant du départ (tradução)


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Esta é uma canção revolucionária francesa composta em 1794 por Étienne Nicolas Méhul (melodia) e Marie-Joseph Chénier (letra), que sobreviveu à época da Revolução e do Primeiro Império (período napoleônico), tendo sido usada em diversas situações com vários fins e simbologias. Também conhecida como Hymne à la liberté (Hino à liberdade), era muito tocada em eventos do governo de Napoleão Bonaparte, e por isso é conhecida como um de seus hinos não oficiais.

A canção tem um formato pelo qual cada estrofe é cantada por uma personagem diferente, alusiva à história da Revolução Francesa e da população local, enquanto o refrão é cantado por um conjunto de guerreiros, visto ser uma canção de combate. Na versão que legendei, são cantadas a primeira (deputado do povo), a segunda (mãe de família), a quarta (um menino), a sexta (uma moça) e a sétima (três guerreiros) estrofes. Leia aqui a letra integral em francês!

Esta versão da música foi gravada no álbum Révolution Française em 1990 pelo Coral e Orquestra do Capitólio de Toulouse, então regidos pelos maestros Michel Plasson e Marcel Seminara.

Segundo a Wikipédia em francês, a palavra barrière logo no primeiro verso, que traduzi como “paliçada”, tem o sentido de “liça”, ou seja, uma área em torno dos castelos fortificados, cercada por paliçadas de madeira, em que se realizavam torneios, combates e justas. Em francês, lice nomeia essa paliçada ou a área que ela circula, enquanto em português “liça” designa o local de combate, e “paliçada” é um sinônimo seu. Barrière também poderia ser uma referência à fronteira norte da França, regida pelo “Traité de la Barrière” (Tratado da Barreira) de 1715, que visava impedir invasões francesas aos Estados limítrofes locais.

Midi designa correntemente o Sul da França, daí eu ter traduzido du nord au midi como “de norte a sul”. Bara e Viala são Joseph Bara e Joseph Agricol Viala, dois adolescentes republicanos mortos no início dos anos 1790 em conflitos com realistas, e cuja mitologia foi amplamente desenvolvida na posteridade. Hyménée, ou “himeneu”, é um sinônimo de “matrimônio”, e fer, ou “ferro”, traduzi como “espada”, da qual acredito que seja sinônimo.

Eu baixei o áudio para legendagem a partir deste vídeo, traduzi e legendei. Logo abaixo meu próprio vídeo, além da letra em francês e em português, apenas com as estrofes cantadas no vídeo:


(Un député du Peuple)
La victoire en chantant nous ouvre la barrière.
La Liberté guide nos pas.
Et du nord au midi, la trompette guerrière
A sonné l’heure des combats.
Tremblez, ennemis de la France,
Rois ivres de sang et d’orgueil !
Le Peuple souverain s’avance ;
Tyrans descendez au cercueil.

Chant des guerriers (Refrain) :
La République nous appelle
Sachons vaincre ou sachons périr
Un Français doit vivre pour elle
Pour elle un Français doit mourir.
Un Français doit vivre pour elle
Pour elle un Français doit mourir.

(Une mère de famille)
De nos yeux maternels ne craignez pas les larmes :
Loin de nous de lâches douleurs !
Nous devons triompher quand vous prenez les armes :
C’est aux rois à verser des pleurs.
Nous vous avons donné la vie,
Guerriers, elle n’est plus à vous ;
Tous vos jours sont à la Patrie :
Elle est votre mère avant nous.

(Refrain)

(Un enfant)
De Bara, de Viala le sort nous fait envie ;
Ils sont morts, mais ils ont vaincu.
Le lâche accablé d’ans n’a point connu la vie :
Qui meurt pour le peuple a vécu.
Vous êtes vaillants, nous le sommes :
Guidez-nous contre les tyrans ;
Les républicains sont des hommes,
Les esclaves sont des enfants.

(Refrain)

(Une jeune fille)
Et nous, sœurs des héros, nous qui de l’hyménée
Ignorons les aimables nœuds ;
Si, pour s’unir un jour à notre destinée,
Les citoyens forment des vœux,
Qu’ils reviennent dans nos murailles
Beaux de gloire et de liberté,
Et que leur sang, dans les batailles,
Ait coulé pour l’égalité.

(Refrain)

(Trois guerriers)
Sur le fer devant Dieu, nous jurons à nos pères,
À nos épouses, à nos sœurs,
À nos représentants, à nos fils, à nos mères,
D’anéantir les oppresseurs :
En tous lieux, dans la nuit profonde,
Plongeant l’infâme royauté,
Les Français donneront au monde
Et la paix et la liberté.

(Refrain)

____________________


(Um deputado do Povo)
A vitória, cantando, nos abre a paliçada.
A Liberdade guia nossos passos.
E de norte a sul, o clarim de guerra
Anunciou a hora dos combates.
Tremam, inimigos da França,
Reis ébrios de sangue e orgulho!
O Povo soberano avança;
Tiranos, desçam à tumba.

Canto dos guerreiros (Refrão):
A República nos chama
Saibamos vencer ou perecer
Um francês deve viver por ela
Por ela um francês deve morrer.
Um francês deve viver por ela
Por ela um francês deve morrer.

(Uma mãe de família)
Não temam as lágrimas de nossos olhos maternais:
Não temos nenhum sofrimento vil!
Devemos triunfar quando vocês pegarem em armas:
São os reis que devem chorar.
Nós demos a vida a vocês,
Guerreiros, mas não é mais sua;
Todos os seus dias são da Pátria:
Ela é sua mãe antes de nós.

(Refrão)

(Uma criança)
Nós invejamos o destino de Bara e de Viala;
Eles morreram, mas venceram.
Um covarde bem vivido não sabe nada da vida:
Quem morre pelo povo é que viveu.
Vocês são valentes, e nós também:
Guiem-nos contra os tiranos;
Os republicanos são homens,
Os escravos são crianças.

(Refrão)

(Uma moça)
E nós, irmãs dos heróis, nós que ignoramos
Os amáveis laços do matrimônio;
Se, de se unir um dia a nosso destino,
Os cidadãos expressarem o desejo,
Que voltem para nossa cidade
Adornados de glória e liberdade,
E que seu sangue, nas batalhas,
Tenha corrido pela igualdade.

(Refrão)

(Três guerreiros)
Pela espada, ante Deus, juramos a nossos pais,
A nossas esposas, a nossas irmãs,
A nossos representantes, a nossos filhos, a nossas mães
Aniquilar os opressores:
Em todo lugar, na noite profunda,
Submergindo a infame realeza,
Os franceses darão ao mundo
A paz e a liberdade.

(Refrão)



Marianne, símbolo feminino da República na França.

domingo, 15 de março de 2015

Garçom/Reginaldo Rossi em esperanto


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Mais uma de minhas traduções de músicas brasileiras para o esperanto. Hoje apresento a vocês uma peça no mínimo pitoresca: uma versão da música Garçom (Kelnero), composta e cantada por Reginaldo Rossi, que fiz em 7 de dezembro de 2002. Um grande sucesso do brega! Nesta página você pode ler a letra em português, e abaixo a letra em esperanto e o vídeo com a música.

Ĉi tiu kanzono estas granda sukceso de muziko “bizara” en Brazilo, kantata kaj komponita de Reginaldo Rossi, kies tradukon de la portugala lingvo al Esperanto mi faris la 7-an de Decembro 2002. La originala titolo en la portugala estas Garçom, kiu ankaŭ signifas “kelnero”. Ĉi-paĝe vi povas legi la tekston en la portugala, kaj ĉi-sube vi rigardos videon kun la kanzono kaj legos tekston en Esperanto.


Kelnero

1. Kelner’,
Ĉe tiu ĉi tablo malnova
Al vi historioj sin ŝovas
Kaj centoj parolas pri am’.
Kelner’,
Drinkejoj nin vidas egale.
Mi diras okazojn banale.
Aŭskultu min, jen mia dram’.

Rekantaĵo/Refrão:
Mia virin’ edziniĝos hodiaŭ por ĝoj’,
Letero pri tio al mi estis voj’
Por la disŝirado de tiu ĉi kor’.
En la drinkejo, ĉe tablo, foriras la trist’.
Mi min ebriigos, fariĝos “drinkist’”
Kaj sur lita planko alvenos la dorm’.

2. Kelner’,
Mi scias, ke mi vin malplaĉas,
Sed la ebriuloj sin aĉas
Kaj tuj venas prav’ kaj kuraĝ’.
Kelner’,
Plorad’, por mi, estas cel’ nura.
Mi donos la monon fakturan.
Min aŭdu, se helpos vin saĝ’.

(Rekantaĵo/Refrão)



domingo, 8 de março de 2015

Stalin diz em 1935 que a vida melhorou


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Breve trecho de discurso do líder soviético Iosif Stalin no último dia da 1.ª Conferência Stakhanovista Pan-Soviética, ocorrida no Kremlin entre 14 e 17 de novembro de 1935. Tendo sublinhado a importância do movimento stakhanovista no incremento da produção industrial soviética, Stalin também aludiu à relativa melhora no padrão de vida dos cidadãos soviéticos ao longo dos anos 1930, em trecho que ficou famoso pela frase inicial “Camaradas, a vida ficou melhor, ficou mais alegre” (Zhit stalo luchshe, tovarischi. Zhit stalo veseleie).

Muitos leram na frase uma espécie de humor negro, por ter sido pronunciada pouco antes de se iniciar a repressão em massa às oposições, entre 1936 e 1938, o que fica ainda mais nítido quando se conhece a famosa canção propagandística que ela inspirou na época, Zhit stalo luchshe (A vida ficou melhorassista ao clipe que eu traduzi. Ainda hoje, no jargão russo, a expressão “Zhit stalo luchshe, zhit stalo veseleie” é usada para se referir a governos que fazem muita propaganda sobre melhorias no padrão de vida da população, mas escondem vários problemas sociais ou realizam o desenvolvimento sob direção autoritária, quando não promovem as duas coisas.

O stakhanovismo, ou movimento stakhanovista, foi uma campanha de massa favorecida pelo governo soviético para aumentar a produtividade no trabalho, marcando a introdução de métodos tayloristas de controle nas indústrias e nas fazendas, sob a inspiração do mineiro de carvão Aleksei Stakhanov, que numa madrugada de 1935 teria ultrapassado 14 vezes sua quota de extração diária. A iniciativa deveria contar com a força de vontade dos próprios trabalhadores, reunidos em “brigadas de choque” para o incremento da produção, mas foi posteriormente abandonada por conta de sua impopularidade e das disparidades que gerou entre os assalariados, sendo estigmatizada pelo sucessor de Stalin, Nikita Khruschov.

Pode ser lida nesta página a íntegra do referido discurso de Stalin em russo, mas grande parte dele deve ter sido modificada ou mal captada, pois o trecho que legendei, cuja transcrição pode ser vista mais abaixo, está bem diferente do publicado. Eu mesmo traduzi e legendei:


ВОСТОРЖЕННО ВСТРЕТИЛИ СТАХАНОВЦЫ ПОЯВЛЕНИЕ НА ТРИБУНЕ ЛЮБИМОГО ВОЖДЯ И УЧИТЕЛЯ ТОВАРИЩА СТАЛИНА

Жить стало лучше, товарищи. Жить стало веселее. Когда веселее живется, работа спорится. Если бы у нас был кризис, если бы у нас была безработица – бич рабочего класса, если бы у нас было нищенство, если бы наша продукция не росла, если бы у рабочих и крестьян нашей страны не было такого хорошего правительства, которое заботится о них и считается с их нуждами, словом если бы жилось плохо и не весело, то никакого большевистского движения у нас не было бы. Заверяю вас. Не было бы.


OS STAKHANOVISTAS ACOLHERAM COM ENTUSIASMO, AO APARECER NA TRIBUNA, O AMADO GUIA E MESTRE, CAMARADA STALIN

Camaradas, a vida ficou melhor, ficou mais alegre. Vida mais alegre resulta em trabalho produtivo. Se estivéssemos afundados na crise ou no desemprego, flagelo do operariado, se a miséria reinasse entre nós, se nossa produção não crescesse, se nossos operários e camponeses não tivessem tão bom governo que cuidasse deles e considerasse suas necessidades, em suma, se a vida fosse ruim e triste garanto que hoje o movimento bolchevique não existiria.



Aliás, feliz Dia Internacional das Mulheres, meninas do mundo!!! (Foto de 1937)

domingo, 1 de março de 2015

“Escrito nas estrelas” em esperanto


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Há algum tempo não posto coisas relativas a um dos meus passatempos preferidos da adolescência: verter músicas brasileiras para o esperanto. Eu tinha um site em que publicava os textos, mas como hoje ele não existe mais, tenho todas as versões guardadas em meu pendrive e vou continuar as postando aos poucos. Muitos brasileiros, mesmo novos, já ouviram falar da canção Escrito nas estrelas, um sucesso de Tetê Espíndola, composto por Arnaldo Black e Carlos Rennó, que estourou num dos velhos festivais dos anos 1980. Verti esta canção para o esperanto em 27 de agosto de 2004, quando tinha 16 anos, e lhe dei o novo título de Stelaro de l’ pasi’, literalmente Constelação da paixão. Obviamente não é uma tradução literal, mas procurei me manter o mais próximo possível das ideias originais. Você pode ler nesta página a letra em português, e abaixo e abaixo a letra em esperanto e o vídeo com a música.

Nota (23/7/2022): Vim do futuro pra dizer que há muito tempo, pra quase tudo, o pendrive virou nuvem, hehehe.

Ĉi tiu kanzono estis sukceso de la 1980-aj jaroj en brazila muzika festivalo, kantata de Tetê Espíndola kaj komponita de Arnaldo Black kaj Carlos Rennó, kies tradukon de la portugala lingvo al Esperanto mi faris la 27-an de Aŭgusto 2004, kiam mi estis 16-jara. La originala titolo en la portugala, Escrito nas estrelas, signifas laŭlitere Skribita sur la steloj. Ĉi-paĝe vi povas legi la tekston en la portugala, kaj ĉi-sube vi rigardos videon kun la kanzono kaj legos tekston en Esperanto.


Stelaro de l’ pasi’

1. Por mi vi estis la sun’
De tiu nokto sen fin’;
Por mia korpo, rebril’
Relumiginta do min.
Vin plaĉi estas per ĝu’
Ĉi tie mia misi’,
Kunesti ĉie kun vi
Kaj fari nenion pli.

Rekantaĵo/Refrão:
Ni kuniĝis forte, kiel montras kartoj de l’ tarok’:
Amatin’ (*), tia am’
Videbla estas sur la tablo
Nur por ni.
L’ estonteco nin regalis per romana laŭtalvok’.
Amatin’ (*), nia am’
Skribita estis sur stelaro
De l’ pasi’.

2. El vi l’ atento pri mi
Utilis kiel zorgil’:
Per tiu vivmanier’
Ni vivu dum la jarmil’.
Sen vi finiĝas feliĉ’
Kaj tuta mia estec’.
Atentu, ke super ni
Nun ŝvebas geedziĝec’.

(Rekantaĵo/Refrão)

(*) Kantantino uzus anstataŭe/Cantora usaria no lugar: Ho amul’, ho amat’.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Nova “classe” ou “camada” média em Trotsky?


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As traduções de clássicos do pensamento sistemático mundial a partir de línguas bem diferentes em estrutura das euro-ocidentais (inglês, francês, espanhol, italiano, português) sempre levantaram muitas dificuldades e deram origem a mal-entendidos, especialmente no tocante ao vocabulário. Freud a partir do alemão deve ser o desafio mais conhecido, e também o mais rico em casos, dentre os quais cito apenas a polêmica distinção entre “cultura” e “civilização”. Até dizem por aí, também, que a virgindade de Maria teria se baseado em problemas de tradução dos textos sagrados do hebraico para o grego...

O russo não causa menos problemas, principalmente porque em vários domínios seu vocabulário é bem mais rico do que os das línguas euro-ocidentais, e só para “trabalho”, “trabalhador”, “escravo”, “batalha” e “lutador”, por exemplo, existem diversos sinônimos que ainda por cima, às vezes, fazem o favor de aparecer juntos em trechos bem curtos de texto! Na semana passada mesmo troquei alguns e-mails com Alvaro Bianchi, professor de ciência política da Unicamp, militante do PSTU, especialista e teórico da ideologia e prática trotskistas, a respeito de uma expressão que aparece em algumas traduções inglesas de textos de Leon Trotsky, e que Alvaro julgava ser a tradução errada de alguma expressão do alemão ou do russo.

Segue abaixo o essencial de sua primeira mensagem do dia 19 de fevereiro, com algumas adaptações, mas que nos ensina muita coisa interessante: “Trotsky escrevia em russo, obviamente, mas também era fluente em alemão e ocasionalmente escrevia em francês. O problema está com os textos do exílio mexicano, os quais eram vertidos para o inglês imediatamente e publicados nessa língua em revistas como New International, ou no jornal The Militant. Minha dúvida está com uma expressão que geralmente é traduzida por ‘nova classe média’. Ela aparece em dois textos publicados em inglês em 1938 e 1939 como ‘new middle classes’. Minha dúvida é se essa foi uma tradução exata. Em Marx é comum a expressão ‘Mittelstand’, que literalmente é camadas ou estratos médios. Com Marx as traduções em inglês cometem a impropriedade de traduzir ‘Mittelstand’ por ‘middle class’.”

“O erro pode ter se reproduzido com Trotsky. Na literatura alemã, particularmente nos textos de Kautsky, nos quais aparece pela primeira vez essa noção, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelstand’. Em alguns textos de Trotsky que eu tenho certeza que foram imediatamente publicados em alemão (particularmente aqueles sobre o nazismo), a palavra usada é ‘neuen Mittelstand’ (ler o texto “Was Nun?”). Ele pode ter escrito esses textos em alemão ou revisado as traduções. Em outros, aparentemente traduzidos do inglês, a expressão utilizada é ‘neuen Mittelklassen’ (ler o texto “Neunzig Jahre Kommunistisches Manifest). A resposta para a questão pode estar nas edições russas de Nossas tarefas políticas (ler a parte 3 em inglês) e de 1905 (ler o capítulo 4 em inglês), ambas existentes nas Sochinenia, as obras completas de Trotsky. Nas edições em inglês aparece a expressão ‘new middle classes’. Você faz ideia de qual é a palavra utilizada por Trotsky em russo nesses dois textos? Tem como descobrir isso?”

Na sequência, as ideias principais de minha resposta. Entre os dias 19 e 20, fiz uma pesquisa no Google e em páginas com obras de Trotsky em russo digitalizadas, e a primeira coisa que notei foi a citação, no prefácio em inglês de Nossas tarefas políticas que o Alvaro me indicou, de quão raro é achar essa obra em qualquer língua, por causa da contradição entre seu conteúdo político e a adesão posterior de Trotsky às fileiras bolcheviques. E de fato, mesmo procurando muito, não achei em russo nem essa obra, que de fato existe como uma brochura chamada Наши политические задачи [Nashi politicheskie zadachi], nem 1905.

Porém, combinei algumas palavras em russo também no Google com o que seria “nova classe média” em russo (“новый средний класс” [novy sredni klass]), e acabei chegando a obras de Trotsky que usavam o termo “новое среднее сословие” [novoye sredneie soslovie], sendo “сословие” [soslovie], pois, o termo em torno do qual gira a questão.

Segundo minhas consultas a dicionário e enciclopédia, “сословие” [soslovie] tem várias traduções, dentre as quais “classe” mesmo, “estamento”, “estado” (como em “terceiro estado”), “casta”, “grêmio”, “ofício”, “grupo” (por exemplo, na expressão “женское сословие” [zhenskoie soslovie], “o mulherio”), e acredito que se refira a um grupo mais fechado, que exige algum tipo de iniciação ou a posse de uma característica inata ou herdada, sendo que na Wikipédia o artigo em russo “Soslovie” remete ao português “Estamento”. Não conheço alemão para confirmar a equivalência com os termos que o Alvaro me indicou nessa língua, e lhe sugeri polidamente que talvez ele compreendesse melhor do que eu essa sociologia das “camadas” e “classes” ao longo da história.

Em todo caso, apontei-lhe ainda que nessa busca acabei caindo em outros escritos de Trotsky, e um deles que me chamou mais a atenção está no tomo 4 das Sochinenia, tomo que se chama “Ante um limiar histórico. Crônica política” e tem artigos dele relacionados a acontecimentos políticos entre 1900 e 1914. Como o Alvaro disse, vários desses artigos foram publicados em jornais estrangeiros e tiveram de ser traduzidos para o russo. Nesse tomo, há uma subdivisão chamada “Às vésperas da revolução” (referência à Revolução Russa de 1905), em que se encontram vários artigos publicados no Iskra (periódico de socialistas russos exilados do início do século 20) entre 1903 e 1905, e sete deles estão agrupados sob o título geral de “Cartas políticas”, embora eu não saiba o contexto geral de sua redação, nem por que receberam juntas esse título.

O referido artigo saiu no número 59 do Iskra de 10 de fevereiro de 1904 e tem o longo título “Новое ‘среднее сословие’. Выборы в Петербургскую думу. ‘Более или менее социалистическая’ демократия. ‘Оседло-образовательный’ ценз. Кто скажет последнее слово?”, traduzindo aproximadamente, “A nova ‘classe [soslovie] média’. Eleições para a Duma de São Petersburgo. Uma democracia ‘mais ou menos socialista’. Grau de ‘instrução-sedentarismo’. Quem dirá a última palavra?”. A tradução dos escritos dessa época é um tanto difícil, porque Trotsky se vale de um estilo muito peculiar, com ironias e repetições só compreensíveis naquele contexto. Porém, as primeiras palavras do artigo são as seguintes, muito sugestivas:

Русская “интеллигенция” дописывает последние страницы своей истории. Ее рост, развитие, упрочение ее позиций вызывают полное ее перерождение. Из своеобразного “ордена” с привлекательной романтической окраской она превращается в прозаическое “среднее сословие” буржуазного общества. В среднее сословие, ибо она стоит между крайними социальными классами, буржуазией и пролетариатом.
Tradução aproximada:
A “intelligentsia” russa está concluindo a escrita da última página de sua história. Seu crescimento, desenvolvimento e o fortalecimento de suas posições estão provocando seu pleno renascimento. De algo semelhante a uma “ordem” com uma atraente coloração romântica, ela está se transformando numa prosaica “classe [soslovie] média” da sociedade burguesa. É uma classe [soslovie] média, pois se localiza entre as classes [klassami, instrumental plural de klass] sociais extremas, a burguesia e o proletariado.
Como o paciente leitor deste blog deve ter notado, falei, falei, joguei inúmeras informações e no fim não dei nenhuma resposta pronta sobre a tradução da palavra russa “soslovie”. De fato, só notei isso ao terminar de transformar esta conversa em postagem, mas acredito que a resposta agradecida do Prof. Alvaro Bianchi já no fim da tarde do dia 20 deu o fecho que supre minha omissão involuntária: “Fiz outras consultas e cheguei à conclusão de que no início do século 20 a palavra ‘soslovie’ era utilizada na literatura marxista com o sentido de ‘estamento’ ou ‘casta’. Assim, parece-me que a melhor tradução para ‘новое среднее сословие’ [novoie sredneie soslovie] é ‘nova camada média’ ou ‘novos estamentos médios’. Quando se fala de classe burguesa ou classe operária, em russo o termo é sempre ‘класс’ [klass], e nunca ‘soslovie’.”

Coisas da vida, hehehe. Minha alegria só aumentou quando ele comunicou, por fim, que “Quando terminar de redigir a pequena nota na qual estou trabalhando te envio para dar uma olhada.” Vamos aguardar, quem sabe até eu não comunique algo a vocês quando sair!

Nota (29/5/2015): Um acadêmico, após ler esta postagem, enviou em meu e-mail pessoal alguns excertos de textos de Gregory L. Freeze, historiador da Rússia e professor da Universidade Brandeis, localizada em Waltham, perto de Boston, nos EUA. Um deles é o curto verbete “Soslovie”, da Encyclopedia of Russian History, publicado no site Encyclopedia.com. Outro é o artigo “The Soslovie (Estate) Paradigm and Russian Social History”, publicado na American Historical Review, vol. 91, n. 1 (Feb., 1986), pp. 11-36, e que pode ser visualizado e baixado na base de dados JSTOR, mas apenas em computadores de faculdades ou outras entidades cadastradas. Eu não tive tempo de ler a fundo os textos, mas quem quiser se aventurar, fique à vontade! Também agradeço ao amigo correspondente pelas dicas.



“Até a próxima postagem, amigos! Nos encontramos na revolução!”

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Luto de Hollande por “Charlie Hebdo”


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Em Paris, logo após o atentado terrorista à sede do jornal satírico Charlie Hebdo a 7 de janeiro de 2015, o Presidente da República François Hollande falou em cadeia nacional sobre o crime, louvando as vítimas como “heróis da liberdade”, agradecendo às mensagens de solidariedade vindas do mundo inteiro, prometendo capturar, julgar e punir os atiradores e pedindo à população que permanecesse unida como principal arma contra o medo.

A comoção em torno dos assassinatos desses cartunistas e jornalistas daria espaço, nos dias seguintes, ao movimento “Nous sommes tous Charlie” (Somos todos Charlie), para defender a liberdade de expressão e de imprensa, condenar a disseminação do terror por motivos religiosos e garantir a continuidade da publicação do periódico, apesar das graves baixas e das ameaças recebidas havia muitos anos. Na sequência da caçada aos criminosos, eles acabaram sendo mortos pela polícia após praticarem outros delitos, frustrando o desejo de Hollande de vê-los julgados e punidos.

Difundiu-se por algum tempo nas redes sociais o uso da mensagem em preto “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), mas alguns críticos julgaram como mais graves os frequentes “insultos” às religiões que os desenhistas faziam e a suposta “incitação” à islamofobia daí derivada, já que eram comuns caricaturas que diziam retratar o profeta Maomé. Após o atentado, ocorreram até mesmo muitas manifestações antifrancesas e antiocidentais em países muçulmanos, culminando em estrangeiros mortos e igrejas e embaixadas depredadas.

O título original do pronunciamento é “Allocution à la suite de l’attentat au siège de Charlie Hebdo”, publicado na página do Élysée, a Presidência da República francesa, e que é acompanhado do vídeo, do áudio e de uma versão em PDF para baixar. O vídeo que legendei foi baixado do canal YouTube da agência de notícias RT France, e pode ser assistido nesta página. Eu traduzi e legendei o vídeo do pronunciamento, e as legendas sempre têm alguma adaptação em relação ao texto escrito, o qual, porém, pode ser lido mais abaixo, logo após o vídeo:


Meus caros compatriotas,

A França foi hoje atacada em Paris, seu coração, nas próprias instalações de um jornal. Esse tiroteio extremamente violento matou doze pessoas e feriu várias outras. Desenhistas de grande talento, cronistas corajosos foram mortos. Eles haviam marcado, por sua influência, sua insolência e sua independência, gerações e gerações de franceses. Quero dizer aqui a eles que continuaremos a defender essa mensagem de liberdade em seu nome.

Este desprezível atentado matou também dois policiais, aqueles mesmos que estavam encarregados de proteger o Charlie Hebdo e a redação dele, que eram há anos ameaçados pelo obscurantismo e que defendiam a liberdade de expressão.

Esses homens e essa mulher foram mortos pela ideia que tinham da França, isto é, a liberdade. Em nome de vocês, quero expressar aqui todo nosso reconhecimento às famílias, às vítimas, aos feridos, a seus próximos, a todos os que sofreram na pele com este desprezível assassinato. Eles são hoje nossos heróis, e por isso decretei que amanhã será um dia nacional de luto. Às doze horas haverá um momento de concentração em todos os serviços públicos, do qual convido toda a população a participar. As bandeiras ficarão por três dias a meio mastro.

Hoje, a República inteira é que foi agredida. A República é a liberdade de expressão. A República é a cultura, é a criação, é o pluralismo, é a democracia. É tudo isso que era visado pelos assassinos. É o ideal de justiça e paz que a França leva para todo o cenário internacional e essa mensagem de paz e tolerância que defendemos também por meio de nossos soldados na luta contra o terrorismo e o fundamentalismo.

A França recebeu mensagens de solidariedade e fraternidade do mundo inteiro, das quais devemos bem avaliar a dimensão. Temos de responder à altura este crime que nos atinge, primeiro buscando os autores dessa infâmia e fazendo com que eles possam ser presos, e então julgados e punidos com todo rigor. Tudo será feito para capturá-los. A investigação está avançando sob a autoridade da justiça.

Devemos também proteger todos os locais públicos, e o governo pôs em operação o chamado plano Vigipirate Attentat, isto é, forças de segurança serão deslocadas por toda a parte, onde quer que possa haver um foco de ameaça.

Nós mesmos, enfim, devemos ter em mente que nossa melhor arma é a unidade, a unidade de todos os concidadãos diante dessa adversidade. Nada pode nos dividir, nada deve nos opor e nada deve nos separar. Amanhã reunirei os presidentes das duas assembleias, bem como as forças representadas no Parlamento, para mostrarmos nossa determinação comum.

A França é grande quando consegue, numa adversidade, alçar-se ao melhor padrão, ou seja, seu padrão, o padrão que sempre permitiu ao país superar seus problemas. A liberdade será sempre mais forte do que a barbárie. A França sempre venceu seus inimigos quando soube justamente se congregar em torno de seus valores. É o que convido vocês a fazer. A união, a união de todos, sob todas as formas, é que deve ser nossa resposta.

Unamo-nos diante dessa adversidade. Nós venceremos, pois temos todas as aptidões para crer em nosso destino e nada poderá arrefecer essa determinação que é tão nossa.

Unamo-nos.

Viva a República e viva a França!



domingo, 8 de fevereiro de 2015

A “Canção do exílio” em interlíngua


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Revelo pouco às pessoas, mas tenho uma incipiente veia poética, por vezes manifesta em originais em português ou outras línguas, por vezes em traduções de clássicos da língua portuguesa para outras línguas. À medida que minhas obrigações acadêmicas foram apertando, e que me centrei mais na tradução de prosa histórica, fui deixando a poesia de lado, mas ainda guardo com carinho muitos resultados.

Um deles é a tradução da famosa “Canção do exílio”, escrita em 1843 pelo poeta brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864), para a interlíngua, um idioma auxiliar planejado que veio à luz nos Estados Unidos em 1951, é muito parecido com as principais línguas românicas e tentou ocupar o lugar do esperanto como principal candidato a língua internacional que substituísse o inglês e o francês como instrumentos da diplomacia, do intercâmbio entre os povos e da difusão cultural. Mantive o esquema métrico e de rimas, embora não mantivesse todas as rimas iguais entre uma versão e outra, e consegui não colocar nenhum adjetivo, assim como na versão em português. Como toda tradução poética, esta não é literal, mas tentei passar ao máximo a mesma ideia da primeira versão.

A versão final de minha tradução está datada de 13 de dezembro de 2012, mas minha declamação em áudio só foi dada a público em 4 de março de 2013, no site da Radio Interlingua, administrada por meu amigo húngaro Péter Kovács, na emissão concernente àquele mês que pode ser escutada na própria página clicando em “Ascolta”, ou baixada, clicando em “discarga file audio”. Você também pode assistir ao vídeo abaixo (legendas) apenas com o áudio da minha declamação, sem o programa. Após o texto do poema, dou outras informações sobre a interlíngua!

____________________


Canto del exilio

Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia;
Ci le aves nunquam trilla
Equalmente como la.

Nostre celo: plus de stellas,
Nostre valles: plus de flores,
Nostre boscos: plus de vita,
Nostre vita: plus de amores.

In soniar sol in le nocte
Io gaude me plus la;
Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia.

Mi pais ha meravilias
Que le terra ci non da;
In soniar – sol, in le nocte –
Io gaude me plus la;
Mi pais habe palmieros,
Ubi canta un Sabia.

Ante deceder, oh Deo,
Io vole vader la;
E fruer le meravilias
Que le terra ci non da;
E vider ille palmieros,
Ubi canta un Sabia.



A interlíngua, também conhecida como Interlingua de IALA, resultou de um intenso trabalho de pesquisa conduzido entre 1924 e 1951 por especialistas reunidos na IALA (sigla em inglês para Associação para a Adoção de uma Língua Internacional), dos EUA. Levando ao extremo o ideal de compreensão imediata e visando menos à regularidade gramatical do que, por exemplo, o esperanto, teve editados, ao final dos trabalhos, um dicionário interlíngua-inglês e uma gramática em inglês, especialmente por obra do alemão naturalizado norte-americano Alexander Gode (1906-1970) e do norte-americano Hugh Blair (1909-1967).

É considerada sua característica principal a compreensibilidade praticamente perfeita a falantes de idiomas ocidentais, especialmente os românicos, por ter como fonte elementos que aparecem ao menos em duas ou três das principais línguas de cultura do mundo ocidentalizado: o inglês, o francês, o italiano e, considerados em conjunto, o espanhol e o português. Também são utilizados abundantes radicais latinos e gregos de uso internacional, e são aceitas ainda palavras eslavas, germânicas ou de outras origens que tenham se difundido mundialmente.

Para saber mais sobre a interlíngua em português, conheça a União Brasileira Pró-Interlíngua, e para saber na própria interlíngua, verificando se você já a entende à primeira leitura, visite a página da Union Mundial Pro Interlingua. Você pode ainda ler o ótimo artigo da Wikipédia em inglês a respeito ou visitar o blog de um amigo americano, Interlingua multilingue, também com vários textos em interlíngua, mas que não é atualizado desde 2011.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

“Encantação pelo riso”, de Khlebnikov


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/khlebnikov


Sempre gostei de traduzir prosa, especialmente textos em russo do período soviético, com cujo vocabulário estou acostumado. Mas hoje estou me arriscando pelo caminho pétreo da tradução de poesia, cujas dificuldades residem exatamente no fato de termos que sacrificar muito do conteúdo para manter o efeito da forma, e às vezes nem sempre serem iguais os valores do que é ou não poético em uma ou outra sociedade. Por isso mesmo, em poesia nem sempre devemos esperar “corretas traduções literais”, como nos ensinam um dos miniclássicos no assunto, Oficina de tradução: a teoria na prática, de Rosemary Arrojo, e, mais recente e mais específico sobre poesia, Tradução: teoria e prática, de John Milton.

Tendo conhecido meu trabalho de tradução e legendagens, um rapaz me contatou pelo Facebook para falar de um poema do russo Viktor Vladimirovich Khlebnikov, mais conhecido sob o nome artístico de Velimir Khlebnikov (Велимир Хлебников), nascido em 1885 e falecido em 1922. Também dramaturgo, foi cronologicamente o primeiro vanguardista na poesia russa e uma figura central no movimento futurista nacional, embora sua influência tenha ultrapassado essas fronteiras. O referido poema, denominado “Заклятие смехом” (Zakliatie smekhom) e escrito em 1908 ou 1909, foi traduzido no Brasil pelos irmãos Campos nos anos 1950, e era uma versão de que aquele jovem gostava muito, com o título “A encantação pelo riso”. Ele também havia encontrado, após alguma pesquisa, uma versão em inglês, cuja fonte, título e tradutor ele não soube me dizer, e que em sua opinião “é muito fechada e peremptória, me remete quase que a Joyce”, enquanto a brasileira “é muito mais lúdica, apesar dos termos”.

Seu desejo que o motivou a me escrever era o de sempre querer “saber em russo como é, se o poema está mais bem traduzido em português ou inglês, qual o verdadeiro sentido que Khlebnikov quis lhe dar”; enfim, “saber qual que se aproxima mais do original”, “tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. Por isso, quebrando um pouco a ordem cronológica de nossa conversa, vou postar primeiro a versão em russo, que achei na Wikipédia, depois em português e finalmente em inglês:


«Заклятие смехом»

О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!
Что смеются смехами, что смеянствуют смеяльно,
О, засмейтесь усмеяльно!
О, рассмешищ надсмеяльных — смех усмейных смехачей!
О, иссмейся рассмеяльно, смех надсмейных смеячей!
Смейево, смейево,
Усмей, осмей, смешики, смешики,
Смеюнчики, смеюнчики.
О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!


“A encantação pelo riso”

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!


O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
You who laugh with laughs, you who laugh it up laughishly
O, laugh out laugheringly
O, belaughable laughterhood - the laughter of laughering laughers!
O, unlaugh it outlaughingly, belaughering laughists!
Laughily, laughily,
Uplaugh, enlaugh, laughlings, laughlings
Laughlets, laughlets.
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!


Como eu havia dito, embora eu tenha traduzido alguma poesia para o esperanto e para a interlíngua, nunca fui um especialista no assunto, e o que respondi ao rapaz foi uma percepção baseada naqueles dois livros que citei inicialmente. A primeira coisa que notei de cara é que não há preocupação com métrica: essa despreocupação também passou às traduções. Segundo minha pesquisa na Wikipédia em russo, o poema original nasceu de uma técnica do Khlebnikov que consistia em formar famílias de neologismos a partir de um mesmo radical, o que achei semelhante a um famoso hábito de Guimarães Rosa. Por isso abundam prefixos, sufixos, mutações consonânticas e flexões... O russo é uma língua muito rica e frutífera nessas derivações, então ele pôde jogar inclusive com terminações de adjetivos, verbos etc., em suas várias pessoas e casos. Além de tudo as palavras são bem compridas, o que dá dinamismo à fala.

A sacada principal do poema foi jogar com três formas de um radical do russo que passa a ideia de “riso”, “graça”, e que se encontram nestas palavras: “смех” (smekh – riso), “смеяться” (smeiatsia – rir) е “смешно” (smeshno – engraçado). Assim, esses três radicais (smey-, smekh-, smesh-) se combinam com uma infinidade de prefixos e sufixos que dão os mais finos matizes de significado. Por exemplo, “рассмейтесь”, “смехачи”, “засмейтесь”, “смеянствуют”, “усмеяльно”, “рассмешищ”, “смейево”, “смеюнчики” etc.

Esses radicais e afixos promovem uma riqueza sonora que passa a ideia do riso, da zombaria, do fuxico, do sussurro, e que se dá essencialmente em torno das consoantes С (som de SS, especialmente em sua versão branda, palatizada; escute a palavra russa “семь”, com essa palatal), Х (que soa como o J espanhol) e Ш (versão dura do nosso CH). Acresçam-se também vários sufixos diminutivos em que aparecem as consoantes Ч (TCH) e Щ (versão branda do nosso CH; escute a palavra russa “щи”, com essa consoante), também chiantes. Acredito que a repetição das vogais Я (YA), Е (YE) e Ю (YU), além da semivogal Й (Y, como no inglês “yard” ou “say”), também ajuda no efeito.

Flexões ricas e palavras compridas são propriedades muito presentes no russo, um pouco menos no português e quase ausentes no inglês, e isso justifica a impressão do rapaz, para quem a versão nesta língua seria repetitiva e breve. Acredito que os três poemas também trabalham com os sons que cada língua considera característicos do riso: a concepção de russo e do português é mais consonântica, e a dos ingleses, mais vocálica, e acredito que com um toque de glotalismo. Por isso a versão em inglês fica limitada à combinação dos sons “ló”, “lóf”, derivada do único radical repetido (“laugh”), enquanto a versão em português nos oferece no máximo duas consoantes associadas ao riso e à zombaria (RR e Z), a partir de derivados de “rir” e “riso”. Como falei acima, o russo tem uma repetição de chiantes, sibilantes, fricativas e palatais inimitável em qualquer tradução.

Além da parte formal, ainda não falei do conteúdo. Afinal, como disse nosso amigo do Facebook, “Eu queria saber qual que se aproxima mais do original. Queria tentar alcançar o que o Khlebnikov realmente quis dizer”. De fato, logo após começar a consultar dicionários, eu desisti, pois quase todas as palavras estão ausentes de dicionários russos, e a saída dos tradutores deve ter sido, portanto, “inventar” eles também palavras novas em suas línguas para manter a graça do poema. A qualquer um que leia o poema em russo resta a alternativa de captar nos prefixos e sufixos as ideias de “início”, “dispersão”, “excesso”, “agentes”, “maneiras”, “propriedades”, enfim, combiná-las com a ideia mais geral de “riso” ou “graça” e ao menos entender o sentido global de cada palavra, e não tentar achar outras palavras que traduzam literalmente esses neologismos.

Portanto, de forma geral, as duas traduções estão “próximas” na semântica, mas o português consegue recriar um pouco mais que o inglês o efeito sonoro. Mesmo assim, na verdade os dois estão muito longe de recriar o efeito primário, e se o objetivo do leitor é buscar o que Khlebnikov quis dizer, que ele “largue mão”, como dizemos no interior de São Paulo: tradução não é transposição de palavras, mas interpretação (quase sempre subjetiva) do conteúdo da língua de chegada e recriação da forma na língua de partida. E ainda mais em poesia, geralmente o conteúdo é sacrificado em favor da forma. Por isso falei que na busca de tentar recriar as invenções neologísticas do russo, os dois autores acertaram, mas a língua russa tem vários aspectos formais que se mostraram irreproduzíveis: a riqueza de consoantes sibilantes, chiantes e palatais; a riqueza de prefixos e sufixos formadores de todas as classes de palavras e que dão vários matizes precisos de significado; a riqueza das terminações de caso, que permitem ampliar ainda mais os efeitos sonoros.