sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Buscar as coisas do alto, ainda hoje?


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NOTA: Mais um desses textos que escrevi em 2011, no florescimento da minha aptidão crítica, juntando religião, política e comportamento. Não está datado, e talvez seja do final de abril, no máximo começo de maio, embora a última modificação do meu arquivo Word esteja datada de 9 de setembro. Como se verá, era uma época em que eu ainda não me incomodava de continuar acompanhando minha família na missa, sendo que atualmente quase não vou, e até os meus relaxam cada vez mais. O interessante é que eu acabei articulando isso com leituras que estava fazendo na época, e fiquei bem feliz de ter reencontrado notas de impressão desses textos. Da mesma forma, hoje não uso mais a torto e a direito o rótulo “ateu”, como fazia nos tempos em que a dessacralização era a moda. Mesmo que muitos agora considerem o neoateísmo como uma “modinha”, essas minhas reflexões da época se fazem mais atuais do que nunca, dado o presente emburrecimento geral do Brasil e do mundo. Quem não se incomoda com parágrafos longos, pode entender cada parte como um só.



Apresentação – O magnânimo padre Marcelo Falsarela, da Diocese de Bragança Paulista, fez um sermão instigante, no fim da tarde de 24 de abril de 2010, a respeito, entre outras leituras, de uma carta de São Paulo que exortava seus fiéis a buscarem as coisas “celestes, do alto”, e não as coisas terrenas. Esse pároco, embora jovem, ou talvez por isso mesmo, é um dos poucos ainda vivos no Brasil que não se põe acima de seu rebanho e comunga com o povo, fazendo as vezes de psicólogo, amigo, parente, arrecadador de verbas e várias outras funções.

A loquacidade de sua pregação, minha simpatia por sua pessoa e meu cruzamento de certas ideias e leituras com o tema da prédica fez-me concluir que devemos, sim, se não aspirar ao “celeste”, pelo menos visar ao duradouro, ao longo prazo e à qualidade, e não ao imediato, ao fugaz e ao quantitativo.

O ateu na missa – A primeira pergunta que a leitora ou o leitor podem fazer ao que escreve é o que alguém que declarou seu ateísmo em outros textos estaria fazendo no serviço dominical de um templo católico. A resposta só pode ser dada por quem já superou a mera repulsa aos aspectos exteriores da religião e, tendo adquirido o senso crítico diante dos sermões e compreendido as incontáveis determinações materiais e antropológicas que resultam no que se presencia em um culto, vê a este mais como uma bela manifestação artística, semelhante a um concerto, uma exposição de arte ou mesmo à narração de contos literários, do que como algo realmente sobrenatural e, por isso mesmo, inevitavelmente maligno.

Deve-se dizer ainda que é tranquilizante, às vezes, descansar das críticas materialistas à fé católica e simplesmente vivenciar o momento presente e a convivência com pessoas desinteressadas e familiares, porque o ódio não faz relaxar e nos cega ao desfrute de presenciar o desfile simultâneo, em apenas uma hora e na era da banda larga, de inúmeras culturas da Antiguidade e da Idade Média, cujo estudo ainda não está difundido à maioria da população, com seus deuses, roupas, gestos, alimentação, filosofia e língua. Uma verdadeira aula de história gratuita!

As pessoas “incultas” estão sendo “enganadas”? Ora, lembremos que a Igreja Católica não é um bloco monolítico – assim como nunca o foi o mundo do “socialismo real” – e que seus frequentadores mais comuns hoje são pessoas de cabeça aberta e sincrética e mais preocupadas com o pão do dia seguinte do que com a “compra” de terrenos no céu.

Einstein e suas aspirações – A leitura de um livro em especial – e a lembrança que ele me evocou de outras leituras – me fez criar uma forte associação entre os pensamentos religiosos de um formidável cientista e a homilia daquele domingo: é Einstein e a religião, de Max Jammer, editado no Brasil em 2000 pela Contraponto. Eu já havia travado conhecimento com o livro Como vejo o mundo, também de Einstein, e suas ideias, logo no início da obra, a respeito da condição humana, dos valores existências do físico alemão e de sua tão comentada e controvertida “religião cósmica”, que deu ensejo tanto a imputações de ateísmo quanto de teísmo ou de panteísmo.

Aqui não é o espaço para se destrinchar tal filosofia complexa e edificante, o que Jammer já faz com inimitável maestria, mas algumas mensagens básicas de Einstein me têm ocupado a mente nesse processo intelectual. O criador da “teoria da relatividade” afirmava desprezar, desde moço, os objetivos humanos puramente materiais, mesquinhos e passageiros, como a glória, a fama e o poder, e pensava que a pessoa verdadeiramente religiosa era aquela que se havia libertado de seu “eu”, entrando em sintonia e fusão com o universal, o todo da humanidade e a essência verdadeiramente eterna e incompreensível por trás das leis perfeitas e imutáveis da natureza, essência que não raro foi considerada como o “Deus einsteiniano”.

Se forem levados em conta, ainda, os exemplos que Einstein deu em sua vida e que são relatados em suas muitas biografias, notam-se também um imenso desprendimento do luxo e da celebridade, uma ânsia ininterrupta de levar uma vida simples e comedida e uma explícita humildade de caráter e de conduta. Em suma, estamos diante de um exemplo teórico e prático de economia material e espiritual e de uma lhaneza interna e externa bem refletida na qualidade de seu trabalho científico.

O cristianismo e o estresse – Passando para a mídia atual, tem-se, ainda que de forma bastante incipiente, representantes dos diversos cristianismos alertando para os riscos do concorrentismo capitalista e de suas nefastas consequências no padrão de vida da população mundial, seja na deterioração de valores éticos e das condições psicofísicas, seja na destruição dos recursos naturais e da biodiversidade. Um exemplo notável, ainda que tardio, é a Campanha da Fraternidade promovida pela CNBB para 2011, com o tema “A criação geme em dores de parto”, relativo à poluição atmosférica e hídrica, à extinção de florestas e de espécies animais e às consequentes alterações das condições climáticas e do ritmo ecossistêmico do planeta.

Por outro lado, e aqui assumo o risco de ser tendencioso, a maioria das igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais e as neopentecostais, com largo alcance na televisão, no rádio e na internet, mantêm-se distantes das preocupações sociais que não concirnam a seus próprios interesses políticos – à exceção de iniciativas esporádicas, mas não generalizadas, de combate à miséria, à orfandade e à marginalização civil – e ainda atraem seguidores com a promessa de prosperidade financeira, pessoal e profissional, sem qualquer esforço adicional além do sacrifício de boa parte de suas economias às denominações nem a previsão das consequências de uma ascensão tão súbita.

Se a Igreja Católica lhes “cede” membros por não oferecer soluções imediatas para os tormentos cotidianos, ao menos tem colaborado de modo decrescente com os grandes capitalistas na aceleração do pensamento dos trabalhadores, no fomento da luxúria e da busca desenfreada por dinheiro e na falta de previsão de gastos, metas futuras e resultados dos excessos. No fundo, opõem-se um cristianismo “terreno” demais e outro um pouco mais “celeste”.

O papel da existência de Deus – E Deus, estaria ligando para a correria do dia a dia e para a caça humana cada vez mais desenfreada ao progresso e à vitória a qualquer custo? Ele poderia ajudar a encerrar essa correria e retornar a civilização a sua velocidade primitiva? Bem, primeiramente se deveria definir de qual Deus estamos falando: do Deus que prometeu um país e uma ampla descendência a um povo pequeno e oprimido, do Deus que redimiu o mundo do pecado e o salvou por meio do sacrifício de seu filho único ou do Deus que falou aos homens do deserto e incitou-os a conquistar o máximo possível de terras conhecidas à sua fé e à mensagem da única e onipotente divindade?

Obviamente são considerados, aqui, os dogmas internos, e não os condicionamentos mútuos entre essas três crenças ou de sua parte visível por influências de outras culturas e hábitos. O que ocorre, de fato, é a criação de deuses de acordo com as necessidades e prioridades de cada conglomerado, de forma que presenciamos, na história do ser humano, desde a “ingerência” de deuses que curavam doenças por meio da incorporação em iniciados extasiados ou que guerreavam junto com os soldados que os cultuavam até os “milagres” de um deus que distribui bênçãos e graças em troca de dinheiro vivo e abundante.

Infelizmente, são poucas as esperanças de uma intervenção sobrenatural para o fim do estresse e do gládio entre os indivíduos, pois, a cada vez que uma nova classe ascende ao controle de uma sociedade, ela trata de criar entidades e rituais sagrados que representem seus próprios ideais e empurram-nos goela abaixo das massas dominadas. Assim, parece que, até ser criado um Deus da tranquilidade e da moderação, a humanidade já estará quase destruída pela ambição e pelo tecnicismo cego.

Os valores de longo prazo – Está bem claro, agora, que apesar do renascimento religioso e dos misticismos surgidos, volta e meia, na forma de barulhentos best-sellers, a maioria dos cidadãos comuns dos países ocidentalizados perdeu os valores mais básicos que os uniam entre si, com o meio-ambiente e com os outros terráqueos, e perderam até mesmo a capacidade de criar e recriar aquilo que lhes é realmente sagrado. A ética se resume às regras de “ter” e de “parecer”, de possuir riquezas ou de passar uma falsa impressão de que se as tem, por meio do engano e do autoengano, em um sistema moral não ensinado, mas vendido, não adotado pela persuasão interna, mas pela coerção externa.

A pressa imposta pela rapidez do trabalho e do estudo e pelo bombardeio das crianças e dos adolescentes com uma quantidade inassimilável de informações, aliada, às vezes, a predisposições genéticas, gera cada vez mais ansiedade, depressão e outras doenças psíquicas que fazem cada vez mais vítimas no plano físico e mental. Como resultado da mesma saturação e resultando nos mesmos males, o espírito de competição, extravasado do nível saudável à compulsão doentia, extingue os últimos resquícios de cooperação e respeito ao próximo das culturas tradicionais e descamba no bullying infanto-juvenil, na criminalidade, na trapaça e no preconceito adultos e no abandono durante o que a propaganda chama, ironicamente, de “melhor idade”.

Como síntese desse desespero espiritual, o presente é deixado de lado, remói-se o passado, preocupa-se em demasia com o futuro e o mediato, o inalienável, o justo e o holístico são menosprezados em prol do rápido, do excitante, do superficial e do eficiente. A sociedade, sem paciência para escutar e pensar sobre si mesma, não edifica estruturas sólidas sobre as quais se assentar e a chamada literatura “pós-moderna” é menos um acinte à intelectualidade do que a descrição fiel de um mundo caótico que precisa dar-se conta disso para reinventar-se.

Conclusão – Se eu pregasse um retorno maciço de adeptos à Igreja Católica, a esta ou aquela religião, ou o abraçamento desta ou daquela ladainha sobrenatural, estaria mentindo para mim mesmo e trapaceando aqueles que pretendo ajudar. Contudo, à exceção dos cúmplices do materialismo ingênuo e dos perpetuadores de desavenças e hierarquizações, sejam crentes ou apóstatas, sejam capitalistas ou socialistas, creio que nada pode separar aqueles que lutam pela integridade individual, pelo amor sem limites, pelo prazer sem tabus, pela moderação dos impulsos irracionais e pela liberdade de conhecimento, de expressão e de crença.

Mas nada disso pode ser pensado sem os pés fincados na atualidade e sem uma largueza de visão direcionada à posteridade, para que, apesar das forças contrárias, crie-se uma aldeia global simultaneamente humilde e rica, desça-se o que é santo dos altares para as ruas e impere não uma filosofia celestial, porém imediatista, mas uma filosofia terrena, porém longeva e solidária.