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1. Definir-se pelo que não se é consiste num desafio e num paradoxo no mundo de hoje. Existem apolíticos, apartidários, irreligiosos e ateus com atitudes bastante positivas, mas ainda estigmatizados pelo caráter negatório dos rótulos que adotam. (Rótulos, claro, de que nem sempre eles mesmos foram os inventores.)
É um desafio porque se negam verdadeiros ídolos da modernidade, do mundo burguês forjado no século 19, sacralizados pelos grupos dirigentes e considerados naturais pelo cidadão comum. É ainda um paradoxo porque a nomenclatura negativa é apenas a superfície da ideia, quando não se está preocupado apenas em destruir, mas também em construir; na verdade, é a tomada daquele conceito negado como um reflexo invertido do novo projeto a se realizar no mundo.
2. Depois das polêmicas religiosas envolvendo ateus e irreligiosos, mas especialmente ateus, mais organizados e mais consistentes ideologicamente, os grupos mais contestados pelos ideólogos militantes (“ideólogo” como aquele que adere a um conjunto de ideias, não apenas aquele que o produz) são os apolíticos e os apartidários, num debate com reflexos principalmente nas universidades, quando não limitados às redes sociais da internet.
Ambas as posturas expressam uma desilusão com a maneira moderna de fazer política, especialmente nos níveis estatal e institucional (das organizações instituídas não necessariamente influentes no Estado), e não vislumbram para ela qualquer possibilidade de aperfeiçoamento ou correção que possam resolver os problemas estruturais de qualquer país. Contudo, apoliticismo e apartidarismo são posições absolutamente divergentes, diferindo no que se poderia classificar respectivamente como passividade e ativismo.
3. Talvez não exista, até onde eu conheça, uma definição científica, consensual e definitiva sobre o que é ser apolítico. Mas não tem qualquer valor encerrar-se na mera tomada do termo como um dado primitivo e não o submeter a alguma reflexão. Pode ser que, contrastando-o com seu oposto, o ativismo político, chegue-se a alguma conclusão: ser politizado é conhecer o meio em que se vive, lutar para intervir nele com melhoras e sugestões, é considerar a si mesmo agente da história e da vida dos semelhantes, é tomar partido (no sentido de tomar uma posição) nas questões mais prementes da sociedade, sem espaço para a neutralidade ou o absenteísmo.
Assim, ser apolítico é adotar a postura contrária a tudo isso. Veremos adiante que o politicismo não tem relação necessária com qualquer adesão organizacional. Os historiadores dizem que Benjamim Constant, considerado o Pai Fundador de nossa República, não tinha qualquer interesse por política, nem mesmo por jornais noticiosos, até ser chamado para compor o novo regime. Parece estar aí um dos estigmas do Estado brasileiro, em que temos políticos sem ideias, mas bem corporativistas; muitos partidos, mas nenhuma atitude positiva diante de nossos problemas.
4. A crítica ao sistema político partidário é uma decisão ativa, consciente, não tem nada de apolítica e muito menos de passiva. Porém, nem sempre o apartidarismo surge da contestação explícita do sistema partidário, mas pode vir de outro posicionamento consciente no teatro social. Estritamente falando, o apolítico, claro, é um apartidário por definição: quem não se interessa por política não se filia em partidos. Digo “estritamente” porque me situo no nível conceitual, não falo dos políticos conchavistas sem ideias concretas que citei acima. Mas nem todo apartidário é necessariamente um apolítico: existem pessoas e movimentos, não ligados a partidos ou correntes político-ideológicas, que atuam ativamente por determinadas causas gerais ou pelo bem-estar de uma população ou de uma dada localidade.
Além disso, existem dois tipos de apartidarismo. O primeiro é aquele descrente em toda forma de organização ideológica, que também vê a ideologia apenas como um obstáculo à ação, como uma forma de dogmatismo cego, castrador das iniciativas práticas e pragmáticas. O segundo apartidarismo é um reconhecimento explícito da opção por não aderir a qualquer partido, corrente ou tendência não pela descrença neles ou nas ideologias, mas pela escolha em atuar social e politicamente de outras maneiras. É essa definição, menos conhecida, que quero aprofundar.
5. Vladimir Lenin, o revolucionário bolchevique russo, dizia que não existe prática revolucionária sem teoria revolucionária. Essa afirmação deve ser tomada junto com sua definição de partido, uma associação de vanguarda com poucos militantes ativos que encarnam a vontade das massas e agem sozinhos, ou quase sozinhos, para derrubar o poder opressor. Apesar dessa concepção limitadora, a maior parte da esquerda brasileira de hoje (e talvez não só a brasileira) acredita que não existe política fora dos partidos ou das correntes. Eu digo que existe, sim, embora concorde com Lenin e com outros pensadores que não existe prática sem ideologia, sem teoria ou reflexão.
Uma coisa, e digo pela minha experiência, é optarmos pelo trabalho científico ou outra forma de serviço como nossa forma de fazer política, conscientes de que temos um dever a cumprir em nossa sociedade. Outra coisa é a militância ativa, a luta manifesta por direitos na forma de intervenções e protestos dentro do cotidiano coletivo. Nem sempre quem opta pela primeira opção tem tempo ou disposição para encarar a segunda. Mas ainda assim, ambas as formas são fruto de uma escolha consciente, bem pensada e adequada à própria vida, se bem que no primeiro caso a exigência de reflexão é maior, pois nem sempre a dedicação a um ofício permite saber que forças ocultas, com seu próprio ideário, comandam nossas ações e moldam nossa maneira de agir.
6. E a exigência de uma postura ética humanista de um trabalhador que lida com pessoas, especialmente do cientista, é fundamental. Não devemos ignorar que muitas vezes atuamos sob os interesses velados dos governos ou das grandes corporações midiáticas, financeiras ou industriais, e que costumamos reproduzir na prática cotidiana seu modo de pensar e agir. Mas é melhor antes estar atento a esse dado do que não estar, e é melhor antes buscar direcionar as forças do trabalho para o interesse geral ou dos mais necessitados do que execrar essa opção, tal como deveria valer, para os revolucionários, mais um burguês comunista do que um burguês reacionário, apesar da mesma situação de classe.
Não estou formulando um receituário ideológico para todo cientista ou para todos os que lidam com pessoas, mas princípios de destruição e ódio são até autofágicos, sem contar que atrasam o desenvolvimento da humanidade, criando sofrimentos inúteis. O mais importante é ter uma posição ideológica, se não pré-definida por outros nem ligada a partidos, ao menos forjada na vivência prática, na experiência de vida, ou mesmo transigir com as influências superiores e involuntárias, compondo com elas quando necessário, mas sabendo também a hora de direcioná-las diferentemente. Neutralidade é algo impossível; apoliticismo é uma forma de neutralismo, mas apartidarismo não é necessariamente um neutralismo.
7. No Brasil, assim como nos países onde a crise econômica e de civilização se agrava, a afirmação do apartidarismo é um ato corajoso, pois nos momentos dramáticos, os modelos revolucionários institucionalizados, mas nem sempre consentidos pelos ativistas sociais, e os extremismos resultantes da insatisfação com os modelos democráticos ocidentais exigem de todos, sem qualquer hesitação, uma filiação nominal muitas vezes usada como rótulo denegritório antes de qualquer argumentação.
O livre-pensamento e a independência pessoal, nesse cenário, tornam-se difíceis e se passam por sinônimos da apatia, descompromisso e fuga ao posicionamento de nosso apolítico já citado. Entretanto, apesar das tormentas, não há ao final sensação melhor do que a de ser responsável pelas suas próprias ações e ideias, sem ter que levar junto outros inocentes nem ter também que pagar pelos erros de outros colegas de partido.
Bragança Paulista, 23 de fevereiro de 2013.