Em meio a meus backups nos quais estou fazendo uma limpeza esses dias, achei estes fichamentos de dois documentos importantes pra história da Internacional Comunista (Comintern, ou 3.ª Internacional), provavelmente destinados à redação de minha tese de doutorado. O primeiro é uma resolução sobre a chamada “questão nacional e colonial”, aprovada no 2.º Congresso da Comintern (o primeiro, de fato, em que a instituição funcionou), em 1920, e cujo inspirador foi Vladimir Lenin, alguém muito mal informado sobre as peculiaridades dos países concernidos, pra dizer o mínimo. Algo que pro Homer Simpson de hoje pode parecer estranho, houve tamanha falta de consenso que foram aprovadas “teses adicionais” sobre o mesmo tema, avançadas pelo comunista indiano Manabendra Nath Roy (mais tarde passado ao reformista Congresso Nacional Indiano), respeitado pelos russos e também ativo no movimento latino-americano.
Pra evitar choques maiores ou não passar a impressão de autoritarismo, a “emenda” diferia do “soneto”, basicamente, no tocante à descrença na união dos comunistas, ainda mal organizados em verdadeiros partidos, com os movimentos independentistas e anticoloniais das burguesias nativas. Pra Lenin, a dificuldade desses povos chegarem diretamente ao socialismo exigia fases “intermediárias” (raciocínio que, de certa forma, também seria aplicado ao Brasil), enquanto Roy, ao menos de início, representava uma corrente que advogava caminhos particulares a situações diferentes da russa ou da europeia em geral, sobretudo recusando ou suspeitando da colaboração com outras classes não proletárias. A reflexão sobre o papel do campesinato em revoluções mundo afora também gerou uma tal “questão agrária”, conforme o terceiro fichamento abaixo.
De início, já vemos que Lenin lançou o germe do pensamento que Stalin levaria às últimas consequências, ou seja, que a revolução proletária pra instalação do socialismo não poderia estar madura em países economicamente atrasados ou que simplesmente não tinham... proletariado industrial. No caso do ex-georgiano, essa teoria simplesmente foi instrumentalizada pra que Moscou pudesse controlar de perto os comunistas ao redor do globo e que eles não fizessem revoluções que contrariassem sua razão de Estado. O caso mais emblemático foi quando a Comintern ordenou que o PC chinês aderisse ao Guomindang (Partido Nacional Popular) nacionalista, mas seu líder Jiang Jieshi, futuro fundador de Taiwan, acabou o massacrando todo. Como era de se esperar, Stalin e seus enviados locais nunca reconheceram o erro de avaliação nem se arrependeram da atitude que, décadas depois, exacerbaria o ressentimento de Mao Zedong. Eram fins da década de 1920, quando a estrela de Roy já tinha se apagado e ele enfim seria expulso da Comintern (1929), na esteira das perseguições a Nikolai Bukharin e seus simpatizantes.
Esta não é uma tradução dos referidos documentos, e sim fichamentos que podem ajudar a esclarecer os interessados no assunto. Eu usei as atas em russo publicadas pouco depois do 2.º Congresso, a cujas páginas remeto em cada caso, e quem quiser se aprofundar, por favor recorra aos originais.
Resolução sobre as questões nacional e colonial (p. 490-496)
1) A “democracia burguesa” coloca a igualdade entre todas as pessoas “em geral” como um princípio abstrato, na verdade pondo exploradores e explorados no mesmo plano e combatendo a eliminação das classes. Para os comunistas, só haveria igualdade universal com a eliminação das classes.
2) Essa desigualdade também se reflete na oposição entre nações opressoras, poderosas, e nações oprimidas, dependentes, como as colônias europeias em geral, ampliando em escala mundial a servidão da esmagadora maioria da população a um punhado de capitalistas ricos.
3) A guerra mundial mostrou que as fronteiras nacionais são apenas “objeto de negócio”, ou seja, as grandes potências disputaram entre si o butim colonial numa disputa interimperialista, desmentindo assim o mito da igualdade entre as nações e seu direito à autodeterminação. Tal utopia só seria possível se a burguesia mundial fosse privada de seu poder.
4) Somente a aproximação dos operários do mundo todo pode tornar viável a “luta revolucionária” mundial e a “eliminação da opressão e desigualdade entre nações”.
5) A situação internacional põe na ordem do dia a ditadura do proletariado, pois a burguesia mundial está efetuando um cerco ofensivo à Rússia soviética. A resistência deveria se dar pelos “movimentos soviéticos dos trabalhadores de vanguarda de todos os países” e por “todos os movimentos de libertação nacional das colônias e nacionalidades oprimidas que pela amarga experiência convenceram-se de que eles não têm outra salvação fora da união com o proletariado revolucionário e da vitória do poder soviético sobre o imperialismo mundial” (p. 492).
6) Por isso, os movimentos de libertação nacional e colonial deveriam efetivamente, e não apenas em palavras, unir-se à Rússia soviética de uma forma a ser determinada pelo desenvolvimento do movimento comunista em cada país e daqueles próprios movimentos nos países atrasados.
7) A constituição federativa em escala mundial será uma “forma transitória rumo à plena unidade dos trabalhadores de diversos países”, tomando como exemplo a formação federativa da RSFS da Rússia e da Rússia soviética como um todo.
8) A função da Comintern no início e no decorrer do processo seria “instruir e corrigir” cada experiência federativa local.
9) Só a organização em sovietes pode levar à vitória dos povos coloniais e das nacionalidades oprimidas.
10) O internacionalismo proletário deve opor-se ao pacifismo socialista e ao nacionalismo pequeno-burguês, o qual é fonte (nas palavras de hoje) de racismo e xenofobia.
11) Alguns pontos importantes da luta operária nos países coloniais: combate ao feudalismo, ao clero reacionário, às missões cristãs ocidentais e a movimentos transnacionais como o “pan-arabismo” e o “pan-asiatismo” (capitaneado pelo Japão militarista); ajuda aos camponeses revolucionários; aliança temporária com as forças democráticas burguesas, sem qualquer fusão com elas, o que seria melhor do que os partidos esquerdistas dizendo-se comunistas, mas não o sendo na essência; desmascaramento, perante o operariado, dos movimentos das elites locais que, muitas vezes apoiados pelas potências, capitaneiam projetos de independência com base na opressão classista ou sem qualquer possibilidade de independência econômica e produtiva (é citado notavelmente o sionismo na Palestina, que em 1948 culminaria no Estado de Israel).
12) A degeneração nacionalista da social-democracia com a eclosão da guerra mundial demonstrou que somente a erradicação do imperialismo e do capitalismo podem pôr fim aos preconceitos nacionais e raciais. Por isso é tão importante a união entre os operários do mundo todo para superar os sentimentos nacionalistas, embora se reconheça o longo caminho até sua completa extinção.
Teses adicionais sobre as questões nacional e colonial (p. 496-499)
1) A centralização do capitalismo mundial e o envio de tropas coloniais para lutarem no front europeu da guerra mundial demonstra como os trabalhadores das metrópoles e das colônias devem ser solidários entre si.
2) Sem as colônias, sobretudo no caso britânico, as potências europeias não seriam nada, pois assim tiveram acesso direto às matérias-primas e ampliaram o mercado para escoar seu excedente produtivo. Essa bonança proporcionou à burguesia manter submisso o proletariado da colônia.
3) O superlucro obtido nas colônias proporcionou também o financiamento da chamada “aristocracia operária”, menos propensa, assim, a criticar o colonialismo.
4) O papel da Comintern é atuar para unir e ampliar as duas forças necessárias à derrubada do capitalismo na Europa: a revolução proletária e a aniquilação do colonialismo.
5) A 2.ª Internacional não pôde entender o papel do movimento colonial porque não conseguia enxergar o mundo fora da Europa, tornando-se assim ela mesma imperialista.
6) O domínio colonial exigia impedir que as colônias se desenvolvessem industrialmente e negar a educação à sua população. Porém, a independência econômica não passa pelo apoio às burguesias locais, e sim pela abertura do caminho ao proletariado.
7) Nas colônias, estariam distanciando-se cada vez mais o movimento nacional democrático-burguês, que deseja a independência dentro do capitalismo, e as massas operárias e camponesas pobres, que o primeiro tenta subjugar. É com essas que a Comintern deve atuar, e mesmo não recusando de início colaborar com a burguesia radical, o objetivo primeiro deve ser a formação de um Partido Comunista com aquelas massas. O comunismo nas colônias não deve ser alcançado por um desenvolvimento capitalista prévio, e sim “sob a liderança do proletariado conscientizado dos países capitalistas avançados”.
8) A Comintern deve reforçar seus vínculos com os movimentos radicais e proletários nas colônias, e destes com os comunistas locais.
9) As primeiras etapas da revolução nas colônias não seriam comunistas, mas o objetivo poderia ficar mais próximo se desde o começo os comunistas liderassem o movimento. Nem toda abordagem deveria ser imediatamente comunista, como a questão agrária, em que ainda valeriam alguns pontos pequeno-burgueses. Mas isso não significa que a liderança deva ser dada à burguesia ou à pequena burguesia.
Resolução sobre a questão agrária (p. 522-531)
1) Somente liderados pelo proletariado fabril urbano os camponeses podem alcançar sua libertação, mas ao mesmo tempo os operários não podem fechar-se em sua própria classe nem dispensar o apoio do campesinato, já que a luta de classes também ocorre no meio rural.
2) Entre as diversas camadas de camponeses enumeradas, a que merece a maior atenção dos Partido Comunistas é a de proletários agrícolas e trabalhadores sazonais (naiomnye).
3) O semiproletariado rural e os pequenos camponeses devem ser afastados da influência dos médios e grandes camponeses e da burguesia, mas a ação definitiva no campo (como a criação de sovietes) só deve deslanchar quando o proletariado industrial já tiver tomado o poder.
4) Ao menos em tese, a ação sobre os camponeses médios não deve ser violenta, mas, pelo menos no início da revolução, deve-se “neutralizá-los”, ou seja, impedir que suas possíveis oscilações políticas pendam para o lado dos grandes camponeses e da burguesia, de forma que possam não os apoiar ou ajudar.
5) Espera-se que os grandes camponeses sejam combatidos na hora em que expressarem resistência à tomada do poder e ao derrubamento da burguesia pelos operários fabris, mas ainda assim o confisco das terras não deve ser imediato, devido à ausência de condições materiais, técnicas e sociais.
6) Quanto aos grandes latifundiários e proprietários de terra (diferentes de “grandes camponeses”), o confisco deve ser imediato.
7) O socialismo só triunfará sobre o capitalismo quando toda a indústria tiver sido reorganizada com base na produção coletiva, na eletrificação geral e na modernização técnica. Só então o campo poderá sofrer uma transformação total.
8) Os comunistas também devem cuidar da organização de greves e de cooperativas no campo.
