Embora meu primeiro serviço de tradução tenha sido publicado em 2017 na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, sob a coordenação de Daniel Aarão Reis (a quem sempre vou ser grato por essa oportunidade), esta semana decidi trazer à página alguns dos textos que foram aí publicados, pois certamente sofreram alguma alteração dos editores e algum dia o livro pode se tornar raridade. Em 2022 eu já tinha publicado minhas traduções que não saíram na coletânea, mas agora trago meus outros originais, ainda que sob o risco de estar infringindo algum direito autoral. Infelizmente, nem todos os documentos em russo me foram fornecidos com a indicação da fonte, portanto, ela quase sempre vai estar ausente, mas quando a base mesma da tradução tiver sido conservada, ela vai aparecer após minha tradução ao português, com a ortografia atualizada.
Hoje encerro a série com trechos selecionados das memórias de Nikolái Nikoláievich Sukhánov (nascido em família alemã com o sobrenome Himmer, 1882-1940), ex-menchevique preso em 1931, deportado pra Sibéria em 1935 e fuzilado sob a duvidosa acusação de colaboração com a espionagem nazista e de “agitação antissoviética”. Engenheiro agrônomo e economista de profissão, foi preso várias vezes pela monarquia por atividades ligadas aos socialistas revolucionários. Sem estar ligado a partidos, se opôs à entrada na 1.ª Guerra Mundial, juntou-se aos mencheviques de esquerda após a revolução e, ao contrário de Iuli Martov, apoiou as negociações de paz. Trabalhou pro Estado bolchevique e passou a apoiar suas posições, mas nunca foi admitido no Partido Comunista.
Sukhanov escreveu de 1919 a 1921 suas famosas Notas sobre a revolução, consideradas um relato fidedigno mesmo por quem discordava do conteúdo. Ele as publicou em sete volumes (em russo) em Berlim, em 1922, mas só em 1955 elas apareceram em inglês, num só tomo e com texto resumido. Por razões que desconheço, me foi enviada parte da tradução francesa dessa edição em inglês, La Révolution russe 1917, datada de 1966 e da qual traduzi. Como não tive tempo de fazer novas revisões, me responsabilizo por eventuais erros ou imprecisões. Qualquer observação é bem-vinda, bastando escolher um dos canais de comunicação que apresento no menu à direita da página.

3. O primeiro dia da revolução começava. [...]
Ao longo da estrada, encontrei destacamentos de soldados sem oficiais, misturados à multidão. Os passantes contavam que esses soldados cediam facilmente seus fuzis e que, em grande quantidade, já se haviam reunido armas nos centros operários. [...]
[...] obtive a principal notícia desta manhã: tendo sido promulgado o ukaz que dissolvia a Duma, esta havia se recusado a aceitar e havia elegido um “Comitê Provisório da Duma”, composto de representantes de todas as frações, exceto da direita.
[...] Esse “Comitê da Duma” havia sido elegido com um único objetivo, declarado publicamente: a “restauração da ordem na capital e das ligações com as organizações e instituições públicas”...
A formação desse comitê era certamente um ato revolucionário do “bloco progressista”, mas de forma alguma significava a adesão da Duma à revolução ou um ato de solidariedade com o povo que atacava a fortaleza do tsarismo.
Ao contrário, apoiando seu bloco progressista, a burguesia só buscava preservar a dinastia dos Romanov e a ditadura plutocrática consolidada.
Com seu ato revolucionário de desobediência, ela esperava controlar o movimento insurrecional, modificar levemente o velho estado de coisas sem pôr em xeque o regime político, e assim salvar o tsarismo.
[...] Rodzianko, o porta-voz do grupo, pôs-se em contato com os principais comandantes militares para pedir-lhes que apoiassem a Duma junto ao tsar.
[...] Por sorte, a própria revolução popular acelerava sua iniciativa de modificar de hora em hora toda a conjuntura política, invalidando os arranjos dos liberais, generais e plutocratas e ultrapassando os horizontes políticos dos burgueses da Duma.
Soube também da história, depois bem conhecida, dos regimentos Volkinski e Litovski cujos homens haviam retomado a ação empreendida pelo Pavlovski; eles foram seguidos pelos homens do regimento Izmailovski. Por volta da uma hora, já se contavam ao lado do povo 25 mil homens da guarnição de São Petersburgo. Os regimentos amotinados se dirigiram à Duma e outra parte das tropas rebeldes seguiu para a prisão de Kresty e para a prisão preventiva para libertar os presos políticos. [...]
Dirigindo-se à Duma, os regimentos Volkinski e Litovski agiam sem um objetivo claro; talvez quisessem demonstrar solidariedade ao “Parlamento Revolucionário” dissolvido pelo tsar, talvez respondessem ao desejo de seus chefes de tornar a Duma, burguesa e patriótica, o centro político do movimento. Em todo caso, até então visivelmente mantida à margem do movimento, a Duma se tornou com esse ato seu centro geográfico e político.
[...]
Os representantes da esquerda – Kerenski, Chkheidze, Skobelev – receberam com discursos de boas-vindas os primeiros soldados da revolução. Os soldados responderam lhes prestando as honras militares. Assim, tomando já uma feição definida, a revolução integrava os elementos que formavam as colunas da antiga ordem, tornava-se popular e nacional no sentido mais amplo do termo.
[...]
Por volta das duas horas, observava-se no palácio de Tauride um grupo político muito diferente: deputados da esquerda, sindicalistas e cooperativistas, militantes socialistas e membros do grupo operário do Comitê Central da Indústria de Guerra, tendo à frente K. A. Gvozdev, libertado naquela manhã pelas unidades insurgidas.
Esses militantes formaram um “Comitê Executivo Provisório do Soviete dos Deputados Operários”, cuja única função era convocar para aquela noite, às sete horas, no palácio de Tauride, os deputados do Soviete eleitos ilegalmente nos dias anteriores, este sem objetivo concreto, mas para encarar toda eventualidade.
[...]
O Comitê Executivo Provisório do Soviete era formado por Gvozdev, Bogdanov, Kapelinski, Grinevich, Chkheidze, Skobelev, Frankorusski e, talvez, algum outro.
Após deixar meu escritório por volta das duas horas, vagueei pelas ruas e observei os atos revolucionários que podia encontrar. Destacamentos militares, com ou sem bandeira vermelha, passavam, rumavam sabe-se lá para onde, participavam de encontros coletivos, fraternizavam com a multidão. Os rostos brilhavam de excitação, porém reinavam uma certa confusão e uma inquietude quanto à situação presente e a seu desfecho. Não se deve esquecer que, entre esses soldados, em regra não havia nenhum oficial, nem mesmo oficiais subalternos. A expectativa de um combate contra as tropas ainda leais aumentava a tensão. Por fim, todos exageravam a importância de certos choques que ocorreram.
[...] viam-se correr pelas ruas carros cheios de homens armados. Além do rio, bem longe à esquerda, colunas de fumaça subiam por sobre a cidade e viam-se as chamas de um grande incêndio. Era o Tribunal Regional que queimava; a multidão enlouquecida o havia saqueado e incendiado simultaneamente à prisão preventiva.
[...] esforcei-me em explicar a Shliapnikov a situação tal como eu a via, mas fiquei convencido, mais uma vez, que os bolcheviques não vislumbravam nenhuma solução e estavam totalmente despreparados para os acontecimentos.
[...] Víamos carros e caminhões ocupados por soldados, operários, estudantes, moças jovens (com ou sem a braçadeira da Cruz Vermelha). Toda essa gente enlouquecida gritava, mexia os braços, certamente não tinham nenhuma noção do que estavam fazendo. Os fuzis eram apontados para os passantes e um tiro acidental podia ser disparado à menor distração.
[...] precipitamo-nos rumo ao palácio de Tauride. Continuava-se ouvindo disparos ao longe. Perto do palácio, a animação era ainda maior. Uma multidão aglomerada, dividida em grupos, espremia-se nas calçadas e no asfalto, não se percebiam oradores nem discursos. Uma longa fila de carros aguardava, homens armados entravam neles, notavam-se também muitas mulheres, alguns desses veículos tinham metralhadoras de mão. Tudo isso ocorria em desordem, em meio a gritos e brigas; visivelmente havia um monte de gente querendo de repente mandar e muitos poucos dispostos a obedecer.
Adentramos no palácio, envoltos por um espesso cordão de soldados. Essas enormes construções absorviam sem dificuldade e sem que fossem notadas várias centenas de pessoas que iam e vinham parecendo ocupadas, mas aborrecidas de não ter nada a fazer: eram os deputados, senhores da casa. Mas eles eram minoria; toda a população de São Petersburgo que tinha ou queria ter um papel na vida política começava a se reunir lá.
Mas, por outro lado, o que havia sido feito? Haviam sido ocupadas as estações para evitar um movimento de tropas enviadas do front? Haviam sido ocupadas a Tesouraria, o Banco Estatal, o Telégrafo? Haviam sido presos os membros do governo tsarista? Haviam sido destruídos o departamento de polícia e a Okhrana?
Atualmente, sei muito bem que nada havia sido feito nem havia à disposição qualquer força que permitisse fazer o que quer que fosse. Que diferença da forma minuciosa com que foi executada mais tarde a revolução de Outubro!
[...] Não havia nenhum plano estratégico ou agentes executores. Em suma, o exército revolucionário carecia de qualquer coesão. A situação era crítica, podia-se ainda temer que as forças tsaristas esmagassem a revolução.
Da cidade, chegavam vagos rumores sobre anarquia, pilhagens e incêndios.
[...] a situação dos soldados. Ocorria que estes eram cada vez mais numerosos e passeavam até o interior do palácio; eles se apressavam em grupos e rodavam pelos salões como carneiros sem pastor. [...]
Antes de abrir-se a sessão do Soviete, eu queria muitíssimo conhecer os sentimentos dos meios burgueses e a atitude de seus líderes diante do poder revolucionário. [...]
A resposta de Miliukov – não lembro as palavras, mas retomo o sentido – foi a seguinte: “Antes de tudo, pertenço a um partido cujos atos dependem da decisão de uma coletividade mais ampla, a saber o bloco progressista. Sem ele, meu partido não pode empreender nem decidir nada. Enquanto oposição responsável, naturalmente aspiramos ao poder, mas dentro da legalidade. A via revolucionária não era a nossa...” [...] Essa resposta refletia precisamente nosso movimento liberal com sua cauda de raposa e suas presas de lobo, sua covardia, sua morosidade e seu espírito reacionário. Na hora decisiva e à luz das considerações elementares que eu havia expressado, o representante mais qualificado da burguesia progressista só respondia com essa evasiva e com essa vontade de agir no seio de antiga ordem consolidada, como se a revolução não tivesse ocorrido. Estava claro que a burguesia não aderiria à nossa revolução, mesmo aparente e provisoriamente. As forças democráticas deviam estar prontas a tomar sobre si mesmas o esforço de continuar até o final, tendo contra si as forças reunidas do tsarismo e de todas as classes possuidoras.
[...]
Falei umas verdades a Braunstein, meu velho camarada de deportação, um menchevique e um economista cogitado. Ele ainda estava influído pelo que havia visto na cidade: “Está começando uma anarquia absoluta, dizia ele. Os soldados estão pilhando, guiados por policiais e agentes da Okhrana. A polícia, os alunos da Escola Militar e todas as forças do antigo regime estão se mobilizando. Tiros são disparados das janelas e dos sótãos para provocar a multidão. A primeira coisa que o Soviete deve fazer é garantir a proteção da cidade e cessar a anarquia. É essa a questão que deve ser posta primeiro na ordem do dia, senão o movimento será esmagado.”
[...] o salão se sessões que estava lotando. N. D. Sokolov estava agitado, dava instruções, posicionava os delegados. Com autoridade, mas sem justificativa exata, ele explicava a uns que eles teriam um voto deliberativo ou consultivo, a outros que eles não teriam voto nenhum. [...]
[...] No momento em que se abriu a sessão, havia uns 250 deputados, mas novos grupos não paravam de adentrar o salão, sabe Deus com que mandatos, poderes e objetivos!
Entre os candidatos à mesa diretora, foram eleitos sem oposição os deputados da Duma Chkheidze, Kerenski e Skobelev, além de quatro secretários, dentre os quais o operário Penkov, menchevique de esquerda. [...]
No barulho e agitação gerais, ao longo de debates desorganizados, desde sua primeira sessão o Soviete cumpriu uma tarefa fundamental: a criação de um centro único de toda a democracia de São Petersburgo, centro investido de uma autoridade soberana, capaz de agir rápida e energicamente.
Mas a elaboração da ordem do dia logo foi interrompida por soldados que exigiram a palavra para ler seu informe; essa exigência foi aprovada com entusiasmo.
De pé sobre um banquinho, fuzil na mão, emocionados e gaguejantes, concentrados em transmitir as poucas frases da mensagem que lhes haviam incumbido, talvez sem entender a importância dos fatos que eles relatavam, em linguagem simples e rústica, sem ênfase, os delegados dos soldados narraram um após o outro o que ocorria em sua unidade. Como que fascinado, o salão escutava.
“Viemos dos regimentos Volkinski..., Pavlovski..., Litovski..., Keksgolmski..., de engenheiros..., de caçadores..., do regimento da Finlândia..., de granadeiros...”. O nome de cada regimento recebia tempestuosos aplausos. “Nós nos reunimos... nos incumbiram de dizer... Os oficiais desapareceram... Não queremos mais servir contra o povo, estamos nos unindo a nossos irmãos operários, todos unidos para defender a causa popular... Daremos nossa vida para isso... Nossa assembleia geral recomendou saudar...”
E, com uma voz embargada pela emoção, sob as ovações da assembleia agitada, o delegado acrescentou: “Viva a revolução!”
Logo se propôs e se aceitou, sob uma tempestade de aplausos, fundir como um só o exército revolucionário e o proletariado da capital, criando um organismo único que se chamaria “Soviete dos Deputados Operários e Soldados”.
[...]
Em seguida, Frankorusski resumiu em algumas palavras a situação do abastecimento em São Petersburgo. Ele propôs elegerem oficialmente uma comissão que se ocupasse disso; não houve nenhuma discussão a respeito; essa comissão foi logo composta por especialistas, todos socialistas, com V. G. Groman à frente, e ela deixou de imediato a sessão para começar seu trabalho.
Braunstein então interviu e propôs que em cada fábrica se formasse uma milícia (cem homens para cada mil operários), criassem-se comitês de bairro e se nomeasse em cada bairro um comissário com plenos poderes para restaurar a ordem e combater a anarquia e as pilhagens. [...]
Em decorrência da questão da proteção da cidade, pôs-se naturalmente a necessidade de um manifesto do Soviete à população. Nesse momento, era essencial dar à cidade e, na medida do possível ao interior, informações e algumas diretivas elementares.
Enquanto um de meus vizinhos propunha elegerem uma “comissão literária” incumbida de redigir imediatamente o manifesto e submetê-lo à aprovação da assembleia, a seção foi novamente interrompida. Um jovem soldado correu para o meio do salão e, sem fôlego, levantando seu fuzil e o agitando sobre a cabeça, exclamou a feliz notícia:
“Camaradas e irmãos, estou lhes trazendo a saudação de todos os homens do regimento Semionovski. Todos nós decidimos, sem nenhuma exceção, juntar-nos ao povo...” [...] Ninguém o impediu de encerrar seu interminável discurso. Uma onda de entusiasmo romântico percorria a assembleia desviada de suas funções prementes. Era de fato uma notícia importante: o regimento Semionovski representava um dos suportes mais seguros do tsarismo. As más lembranças de 1905 haviam se dissipado sob a luz de um novo sol.
Melhor ainda, delegados de outras unidades recém-insurgidas, estando na sala e não tendo ousado pedir a palavra, instigados pelo exemplo do jovem soldado, fizeram-se então conhecer e apresentaram seu informe: regimento de cossacos, divisão de carros blindados, batalhão eletrotécnico, regimento de metralhadores... A revolução se desdobrava e se reforçava a cada instante.
[...]
A multidão era muito densa, dezenas de milhares de homens haviam vindo saudar a revolução. Os salões do palácio não podiam comportar mais gente e, nas portas, os cordões da Comissão Militar mal conseguiam conter uma multidão ainda mais numerosa. Muito poucos soldados mantinham a ordem; outros, sentados no chão, com os fuzis dispostos em feixes, jantavam com pão, arenques e chá; mais longe, outros já dormiam. A dois passos da porta de entrada, amontoavam-se sacos de farinha. O chão, onde a neve se misturava com a lama, havia ficado escorregadio. Reinava a desordem. Pela porta soprava um vento impiedoso, pairava no ar um cheiro de botas e capotes militares.
[...]
Soube então que a fortaleza de Pedro e Paulo havia caído, capitulado sem nenhum tiro. O governo tsarista estava encerrado no Almirantado, protegido por unidades que continuavam fiéis por pouco tempo ainda. A terceira notícia era a mais importante: Kronstadt inteira havia aderido à revolução.
Apenas uma nota errada, mas de monta, destoava incômoda nesse concerto de êxitos: as tropas dirigidas contra a capital estavam em pleno movimento, o 17.º regimento de infantaria já havia chegado, havia ocupado a estação Nicolau e havia ocorrido um combate. É verdade que essa expedição terminou num fragoroso fracasso: todas as unidades “fiéis” só obedeciam a seus chefes até as estações; logo aderindo à revolução, agora eram os comandantes que deviam lhes obedecer.
[...] soube que Rodzianko havia voltado e que sua tentativa de mediação com o poder tsarista havia fracassado.
A revolução popular, não desejando esperar as forças inimigas se mobilizarem, havia avançado tão grandemente que, daí em diante, haviam se evidenciado inúteis as intrigas de bastidores. A partir de então, as classes possuidoras tinham a certeza de que a tática tendente a manipular a revolução por meio de uma frente única com as forças tsaristas se tornava arriscada; era preciso substituí-las por uma tentativa de utilizar a revolução sob o pretexto de tomar suas rédeas.
Um dos deputados radicais, irrompendo no recinto em que havíamos nos instalado, transmitiu-nos com ar de mistério uma importante “notícia política”: após conferenciar com o Comitê da Duma, Rodzianko havia se fechado em seu escritório, bem ao lado do nosso, e pedia alguns minutos para refletir.
Não tínhamos tempo a perder. Era quase meia-noite e trabalhávamos com nossa ordem do dia fazia 15 minutos, quando Miliukov entrou no recinto. Ele caminhou diretamente para a nossa mesa, com um ar solene e um sorriso nos lábios: “Foi tomada uma decisão, disse ele, nós tomaremos o poder...”
Eu não questionava o que significava esse “nós”, mas senti que havia se criado uma situação nova e favorável. O barco da revolução, até então sacudido pelas intempéries, içando enfim suas velas e conseguindo uma estabilidade entre os recifes, tomava a direção rumo a um ponto ainda distante, invisível na neblina, mas garantido. Tendo se assegurado a sobrevivência todo o aparelho de Estado, a revolução não seria sufocada pela fome e pelo caos. Era preciso que daí em diante os democratas cuidassem de conservar a revolução e derrotar uma ditadura burguesa, em prol da verdadeira vitória da democracia.
A burguesia da Duma tinha dois objetivos claros: submeter as forças da revolução e impregnar praticamente todo o aparelho militar. Assim se definia a política do primeiro governo revolucionário e se esboçava sua atitude para com a democracia encarnada no Soviete dos Deputados Operários.
[...] Em seguida, houve um rápido debate sobre a questão da imprensa. Lembro-me de duas intervenções contrárias, a de Steklov e a de Sokolov. O primeiro sugeria a interdição da imprensa nos dias seguintes, ressaltando o perigo de uma intervenção reacionária; o segundo, aludindo ao princípio da liberdade, declarava que restabelecer as condições normais de vida só ajudaria a consolidar a revolução.
Eu partilhava totalmente este último ponto de vista e, durante toda a revolução, mesmo nos momentos mais críticos, defendi a plena liberdade de imprensa, que só devia, a meu ver, dar satisfações aos tribunais.
Chegou-se a um compromisso: autorizar a circulação de jornais sob a responsabilidade do redator.
[...]
Eram quase seis horas. Através da vidraça, penetrava uma luz esbranquiçada. Do salão Catarina chegava um ruído de botas e se ouviam comandos breves. Poderia se pensar que os destacamentos organizados desfilavam devagar.
Eu adormeci, ou talvez, simplesmente cochilei. Havia passado o primeiro dia da revolução.
4. Fui acordado por dois soldados que rasgavam ritmicamente com suas baionetas a tela do retrato de Nicolau 2.º pintado por Repin. Algum tempo depois, por sobre a poltrona do presidente, não havia mais do que uma moldura vazia, que assim continuou pendurada nesse salão da revolução durante vários meses.
[...] Diziam-me que a situação estava melhorando. Para começar, não se ouvia falar de nenhuma ação militar. E depois, em São Petersburgo, os oficiais voltavam a seus postos e a comissão recebia deles em massa oferecimentos de serviço. Além disso, a ocupação da fortaleza de Pedro e Paulo havia se tornado um fato consumado: a guarnição inteira, encabeçada pelo comandante, havia reconhecido os poderes do Comitê da Duma. [...]
Obviamente, a adesão dos oficiais à revolução tinha uma enorme importância. Nesse momento, a revolução não dispunha de nenhuma formação que pudesse substituir o corpo de oficiais, salvar o exército de uma desintegração total e impedi-lo de transformar-se em fator de anarquia ou de ditadura. [...] visto que a liquidação do tsarismo não podia se realizar sem a burguesia, menos ainda contra a burguesia, era importante neutralizar essa força.
[...]
Mas, quanto ao âmago dessa questão, as aspirações dos meios dirigentes da burguesia e as da democracia não somente diferiam, mas também suas divergências se tornariam o ponto de partida de uma luta profunda e obstinada. [...]
Na esperança compreensível de tornar o corpo de oficiais um serviçal fiel da burguesia, o Comitê Provisório desejava que a soldadesca continuasse sendo o que sempre foi, ou seja, ferramentas sem vontade, “fuzis automáticos”.
[...]
Estava fora de questão o retorno à velha obediência passiva e cega da massa democrática. Estavam sendo erguidos para o Estado novos fundamentos, que implicavam necessariamente novas inter-relações dentro do exército e uma estrutura nova que inviabilizasse o uso dos soldados para uma agressão contra o povo.
[...]
A multidão, civis e soldados misturados, afluía ao palácio como no dia anterior. Pessoas vindas da cidade nos disseram que a ordem estava longe de ser reimposta. Lojas, armazéns e apartamentos haviam sido saqueados em vários bairros, e o motim continuava. Os criminosos, libertados com os presos políticos um dia antes, lideravam os rebelados, pilhando e incendiando. As ruas estavam perigosas: os agentes de polícia, os porteiros, a polícia secreta e a guarda civil davam tiros escondidos nas guaritas. Alguns incêndios mal apagados ainda ardiam.
[...]
A sessão desse primeiro Comitê Executivo, esse Comitê que lançou as bases da revolução e que, durante dois meses, teve o destino dela em suas mãos, podia se abrir.
[...]
Na manhã de 28 de fevereiro, os representantes de partidos vieram se juntar aos membros eleitos do Comitê Executivo. [...]
Qual era a tendência dominante dentro do Comitê Executivo? Embora o acaso houvesse predominado nas votações da primeira sessão, deve-se ressaltar que a maioria era de esquerda e se compunha basicamente de representantes do movimento de Zimmerwald. Quanto à direita, a ala militarista, que de início não tinha muito peso, mas foi depois tomando uma importância especial, compunha-se principalmente de representantes de partidos enviados ao Comitê Executivo por seus órgãos centrais e munidos apenas de um voto deliberativo.
[...] Mas, a partir do dia seguinte, sua composição aumentou com a adição de nove representantes da recém-formada “seção dos soldados”.
Não tendo opção política definida, esses homens constituíam um pântano. Quando se formou a maioria socialista-revolucionária, vários deles a apoiaram, na medida em que eram atraídos por um “partido camponês”.
Contudo, sem deslocar o centro de gravidade do Comitê Executivo e sem modificar sua fisionomia geral, esses novos soldados tornaram bastante movediço o chão em que caminhava a maioria de esquerda.
Durante as primeiras semanas da revolução, não se viu no Comitê nenhum dos líderes reconhecidos pelos partidos socialistas, nenhuma das futuras figuras centrais da revolução. Eles estavam afastados pelo exílio ou pelas fronteiras. Porém, os primeiros dirigentes do Comitê Executivo logo ficaram em minoria e na oposição. Os papéis centrais foram dados aos velhos chefes provados, mas já eram representantes de outras tendências que imprimiam à política do Soviete uma direção nova.
A sessão do Comitê Executivo se abriu às onze horas. Era uma atividade frenética e cansativa, mas nem nessa sessão nem nas dos dias seguintes foi possível seguir qualquer cronograma de trabalho. A cada cinco minutos os debates eram cortados por “declarações a se fazerem imediatamente”, “questões de excepcional importância” e “moções ligadas ao destino da revolução”!
Na maioria das vezes, esses assuntos extraordinários não eram nada importantes. Mas nos primeiros dias, não somente era impossível combater essa praga, mas também seria sido perigoso repeli-las impensadamente.
Na própria sessão não havia nenhuma ordem, nem mesmo um presidente fixo. [...]
[...] Também não havia um secretário permanente e as atas das sessões não eram redigidas. É verdade que elas só revelariam o caos, comunicados urgentes sobre toda espécie de perigos e excessos contra os quais não tínhamos condições de lutar. Dávamos ordens sem esperar que elas fossem cumpridas, enviávamos destacamento sem ter certeza de que eles seriam formados e executariam suas missões.
No salão vizinho onde estavam os membros do Soviete, ouvia-se cada vez mais barulho, era ensurdecedor. Via-se chegar empregados das comunicações, professores, engenheiros, vendedores, médicos, advogados, atores...
Sem dúvida, os representantes intelectuais mais conscientes da burguesa haviam sido atraídos para a direita, ao Comitê da Duma, e percebiam que o “Soviete de Deputados Operários” era uma fonte de anarquia que formava um obstáculo para conquistarem o regime de liberdade que Guchkov e Miliukov haviam se incumbido de estabelecer para eles. Mas a massa estava tomada de entusiasmo revolucionário. Como em 1905, todo mundo das classes médias havia se tornado socialista do dia para a noite e se sentia irresistivelmente atraída pelo Soviete. O fato de que o poder real, ou antes a força real, estava nas mãos dele contribuía sobremaneira à sua popularidade.
O poder formal pertencia ao Comitê da Duma, que se apressava em dividir as funções entre os deputados do Bloco Progressista, aos membros do Partido Progressista e, fato característico, os trabalhistas, promulgando durante a noite e o dia de 28 de fevereiro toda uma pilha de decretos, nomeações, portarias e manifestos. Mas essa era a expressão de um mero poder no papel, ou, como se queira, de um poder moral. Nessas horas de crise, o Comitê da Duma em nada era capaz de governar o Estado, carecendo de qualquer força real para conseguir restabelecer a ordem e uma vida normal na cidade.
Somente o Soviete tinha os meios de agir; ele começava a controlar a massa de operários e soldados e tinha à sua disposição as organizações obreiras, quaisquer que fossem suas tendências... [...]
[...] No fim das contas, alguns dias depois, os efetivos do Soviete atingiam a cifra absurda de uns dois mil membros. Disso resultaram várias inquietações e dificuldades para o Comitê Executivo, que devia montar uma organização correta do Soviete e normas adequadas de representação. Dada sua composição numérica e qualitativa, o Soviete era claramente incapaz de agir efetivamente, mesmo como Parlamento, e cumpria uma função exclusivamente moral.
Era ao Comitê Executivo que cabia realizar com suas próprias forças todo o trabalho corrente e elaborar um programa de governo. A aprovação desse programa pelo Soviete era claramente uma simples formalidade. [...]
“E então, o que se passa no Soviete?”, perguntei um dia a alguém que saía de lá. Meu informante teve um gesto fatalista: “É um comício. Fala quem quiser e do que quiser!”
Tive de atravessar várias vezes o salão de sessões. No começo, o quadro lembrava o do dia anterior: os deputados estavam sentados em cadeiras e bancos em volta da mesa, no meio do salão e pelas paredes. Algumas horas depois, as cadeiras haviam desaparecido do salão, elas ocupavam muito espaço, as pessoas em pé transpiravam e se espremiam umas nas outras. Os membros da Mesa Diretora ficavam de pé sobre uma mesa e toda uma penca de expectadores se pendurava nos ombros do presidente, impedindo-o de dirigir a assembleia. No dia seguinte ou no próximo, as mesas também haviam sumido e as sessões tomaram um aspecto definitivo de comícios num turbilhão.
[...] A salvação estava em que o tsarismo, privado de forças, estava desmoronando como um castelo de cartas. Porém, a revolução continuava carente de forças militares.
Era indispensável garantir o bom funcionamento de um dos ramos mais importantes da economia soviética em vias de formação, qual seja o gráfico. Na noite do dia anterior, V. D. Bonch-Bruievich, ajudado por não sei que voluntários, havia ocupado a gráfica Kopeika, que na sequência serviu à impressão do Izvestia. Era uma das melhores gráficas de São Petersburgo, que devia ser conservada para o Soviete. Bonch-Bruievich havia aí instalado uma guarda e empregado alguns operários. Mas não havia orçamento para pagá-los, nem provisões, nem segurança. Os operários desapareciam uns após os outros, num momento decisivo, o Soviete podia se encontrar privado desse meio essencial de ação sobre a população.
Bonch-Bruievich começou enviando ao Comitê Executivo uma nota escrita nos termos mais enérgicos, e depois veio em pessoa exigindo que garantissem à gráfica meios financeiros, víveres e um exército. Fui encarregado de acertar a questão com Bonch. Era então indispensável aprovisionar os cem homens da gráfica, algo bem difícil. Foram precisas longas horas de trabalho para organizar, com dificuldade, a instalação de uma guarnição e a distribuição de víveres. Em todo caso, o cansaço que me deram esses esforços me mostrou em que condições o Comitê Executivo trabalhava durante essas primeiras horas da revolução.
[...]
Naquele dia, houve perto das cinco horas um alerta falso: escutou-se no pátio um ou dois tiros. Isso não era nada incomum, mas o pânico foi bastante indecoroso no salão abarrotado do Soviete. Todos gritavam: “Os cossacos!” Os oficiais e os outros militares sequer sonhavam em fugir, mas se jogaram no chão. Ninguém sabia o que devia fazer, qual era seu posto, como defender a revolução e o palácio de Tauride. Se realmente tivesse se tratado de um ataque dos cossacos, é certo que não podia ter havido salvação de parte alguma e que a revolução teria parado por aí.
[...] Mas sem inimigo à vista e ninguém a atacar, ficou evidente que se tratava de um alerta falso. [...]
A agudeza da situação geral diminuía a cada hora. Soube-se que Moscou já havia aderido e que a revolução havia sido aí facilmente realizada, com a ajuda da guarnição.
A Rússia estava livre. A autocracia havia acabado. Era o fim da Okhrana, e depois da clandestinidade. Havia às nossas vistas algo diferente, impressionante, desconhecido. Tais eram os pensamentos que atravessavam meu espírito em meio a eventos irrelevantes que aparentemente em nada se relacionavam com a grande vitória do povo. Mas, por alguns instantes, cada um de nós pensava: é um sonho, é um encanto, não vamos acordar?
[...] no dia seguinte, sua próxima reunião.
[...] durante o dia todo, grupos formados espontaneamente haviam apresentado mandados de prisão que eles mesmos haviam redigido, assinados pelos membros do Comitê Executivo. Recusar-se a assinar em tais circunstâncias teria significado aceitar violências arbitrárias, até mesmo excessos, dirigidos contra vítimas talvez inocentes; conceder implicava, em certos casos, sustentar uma ação oportuna, e em outros, garantir a segurança daqueles que eram alvo de suspeitas. Numa atmosfera de paixões desenfreadas, havia mais chances de provocar injustiças opondo-se à prisão do que a aprovando. Em todo caso, posso afirmar que não me lembro de nenhum caso de prisão efetuada por ordem do Comitê Executivo.
Desde o início, a revolução se achava forte demais para julgar necessário defender-se com procedimentos desse tipo. Os métodos da autocracia só voltaram a florescer mais tarde, sob o governo de coalizão, e predominaram vastamente com os bolcheviques.
[...]
Pela primeira vez fiquei sozinho e andei pelas ruas de uma cidade livre da Rússia nova. Refletia sobre os diversos problemas que então urgiam, mas meus pensamentos eram atravessados por impulsos de alegria, de orgulho triunfante e também de um certo assombro diante das coisas imensas, explosivas, incompreensíveis que haviam se realizado nesses últimos dias.
[...]
Sim, a causa da revolução havia triunfado! Lembrei-me dos soldados que naquela manhã haviam arrancado o retrato de Nicolau 2.º. Nicolau ainda estava em liberdade e ainda se dizia Tsar. Mas onde estava o tsarismo? Sumiu, afundou num só golpe! Para edificá-lo foram precisos três séculos, e para destruí-lo, três dias.
5. Por volta das dez horas retomei o caminho do palácio de Tauride. A multidão se espremia nas ruas diante das proclamações do Poder Executivo e do Comitê Provisório da Duma. Ao chegar, soube que o trem do tsar, enquanto rumava para Tsarskoie Selo, havia sido detido na estação de Dno pelas tropas revolucionárias.
Assim, a questão da aniquilação dos Romanov se achava posta na ordem do dia. Mas a estruturação de um novo Estado e da futura política da democracia me parecia um desafio mais importante. Todo mundo falava do Tsar e da decisão a tomar a seu respeito.
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Quais eram os objetivos da burguesia ao tomar o poder? E, por outro lado, quais eram as condições indispensáveis para a vida política da democracia?
As posições e intenções da Rússia dos possuidores não se prestavam a qualquer dúvida. Elas se limitavam a liquidar o despotismo com a ajuda do movimento popular (e, de preferência, sem ele!), a consolidar a ditadura do capital e da renda fundiária, nos quadros de um regime político dito “liberal”, e a criar um parlamento onipotente no qual a maioria burguesa estaria garantida. A Rússia dos possuidores queria parar a revolução nessa fase, após ter transformado o Estado em instrumento de sua dominação de classe e o país, em oligarquia de capitalistas, no modelo da Inglaterra e da França, as “grandes democracias ocidentais”. Toda movimentação para além desse projeto devia ser sufocada por todos os meios.
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Para a democracia soviética, aquela dos soldados, dos camponeses, dos operários, da pequena burguesia e do proletariado, os objetivos eram mais nuançados, ou até opostos uns aos outros.
Os marxistas do grupo de Potresov haviam chegado à conclusão de que nossa revolução era uma revolução burguesa. Disso deduziam que todas as intenções e todos os objetivos da burguesia eram legítimos; portanto, a guerra também era um fenômeno inevitável; por fim, a classe operária e o campesinato deviam restringir suas reivindicações e seu programa. No fundo, essa posição implicava simplesmente ceder o poder a Guchkov e Miliukov, incondicionalmente, ou seja, realizar seu programa liberal e imperialista a exemplo do Ocidente.
Os elementos bolcheviques e socialistas revolucionários estavam crentes numa revolução socialista mundial, inevitável ao terminar a guerra. Para eles, a insurreição popular na Rússia representava não apenas a liquidação do absolutismo tsarista, mas também a destruição do poder do capital. Em posse da força real, o povo insurgido devia desde já o utilizar até o fim, tomar em mãos o poder de Estado e se dedicar com rapidez a aplicar o programa máximo e a suspender a guerra. Recusando um governo burguês nos quadros da revolução, dever-se-ia cuidar para prevenir as condições nas quais se poderia transmitir-lhe o poder.
Os representantes desse ponto de vista eram totalmente fracos dentro do Comitê Executivo, tanto em número quanto em qualidade. Quando se debateu a questão, esses elementos, por assim dizer, não se fizeram notar e uniram forças com os adeptos da terceira tendência, à qual eu mesmo me alinhava.
Eu pensava que, enquanto a evolução histórica da Europa entrava na fase de liquidação do capitalismo, devíamos considerar a marcha de nossa própria revolução à luz desse fato.
É certo que, embora realizada pelas massas democráticas, nossa revolução não tinha nem forças reais nem a organização indispensável para uma transformação socialista imediata da Rússia. Realmente, só poderíamos erigir no país uma ordem socialista tendo ao fundo uma Europa socialista, e com a ajuda dela. Mas estava fora de cogitação consolidar a ditadura burguesa no país.
Se a revolução não podia imediatamente dar o socialismo à Rússia, ela devia ao menos guiá-la em sua direção. E para isso, era preciso desde então estabelecer e consolidar a ditadura das classes democráticas. A democracia soviética devia provisoriamente devolver o poder à classe possuidora, sem a qual ela não poderia dominar a técnica de governo nas desastrosas condições da derrocada, mas devia, ao mesmo tempo, garantir-se a mais completa liberdade para combatê-la assim que possível.
Restava o problema de saber se a classe burguesa aceitaria tomar o poder enquanto o partido socialista estivesse na oposição. Devíamos obrigá-la a aceitar o poder deixando-lhe a esperança de ganhar a luta que poderíamos promover contra ela.
Devíamos então evitar exigências que poderiam desencorajá-la e levá-la a buscar outras vias para consolidar sua dominação de classe, devíamos conseguir essa combinação nos limitando a uma colaboração mínima realmente indispensável.
Eu julgava que o poder devia ser confiado ao governo de Miliukov, desde que ele concedesse total liberdade para organizarmos nossa propaganda. Estimando que, nas semanas por vir, a Rússia democrática se cobriria de uma sólida rede de organizações de trabalho, partidos, sindicatos, municipalidades e Sovietes, pensava que ela se uniria e se tornaria invencível ante o front do capital e do imperialismo. Eu considerava que a liberdade de consciência bastava para impedir que a burguesia imperialista reforçasse a ditadura do capital, para evitar que se consolidassem no país formas europeias da república burguesa e para levar o país, num futuro próximo, à ditadura política da maioria camponesa e operária, com todas as suas decorrências.
No fundo, eu raciocinava da mesma forma que os bolcheviques alguns meses depois, quando eles, cedendo total liberdade de manobra ao governo de coalizão, exigiram apenas uma só garantia: a liberdade de propaganda.
A essa condição de absoluta liberdade política, devia-se juntar uma anistia total e irrestrita. Depois, era preciso elaborar não somente uma declaração das liberdades, mas também instituições constitucionais democráticas. Cumpria então conseguir o quanto antes a convocação de uma Assembleia Constituinte dotada de plenos poderes e representando todos os setores do povo, com base numa lei eleitoral democrática.
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Assentíamos todos em recusar qualquer participação no governo. O próprio fato de se constituir um governo burguês havia sido aceito como algo já combinado. Pelo que eu me lembre, nenhuma voz se levantou para propor um governo democrático. [...]
Eram quase dez horas da noite. Steklov havia partido para ler no Soviete um relatório sobre a questão do poder. Atrás da porta do salão 13, onde acabava de ocorrer a sessão do Comitê Executivo, encontrei o seguinte quadro: Sokolov estava escrevendo, inclinado na escrivaninha; soldados o cercavam por todos os lados, sentados, de pé ou apoiados na escrivaninha. Esses soldados lhe ditavam ou lhe sopravam o que estava escrevendo. Recordei-me da descrição de Tolstoi: como ele inventava, na escola de Iasnaia Poliana, histórias com as crianças. Mas não se tratava de infantilidades, era a Comissão eleita pelo Soviete para trabalhar na redação da “Ordem do Dia no Exército”. Eles trabalhavam sem nenhum plano e sem debate, todos falavam e todos estavam inteiramente absorvidos em suas tarefas. Eles não precisavam de votos para dar uma forma à sua opinião coletiva. Fiquei de pé escutando, interessado no mais alto grau. Quando o serviço foi concluído, deu-se à folha um título: “Ordem do dia número 1”.
Eis a história do documento que se tornou tão famoso. [...]
Era hora de organizar uma conferência com o Comitê da Duma, com o objetivo de criar um Governo Provisório e definir seu programa. [...]
[...] Finalmente, quatro pessoas foram incumbidas de conduzir as conversações: Chkheidze, Sokolov, Steklov e eu próprio.
[...] Afirmei que o objetivo da conferência era outro: devia-se criar um governo provisório. Os dirigentes da Duma deviam ter suas opiniões a esse respeito. O Soviete deixava a seus cuidados formar esse governo, considerando que isso derivava da presente conjuntura e respondia aos interesses da revolução. Mas, a fim de evitar qualquer embaraço, e visto que o Soviete dispunha sozinho da força efetiva, ele desejava apresentar um programa de reivindicações.
Nossos interlocutores não podiam objetar nada. Então Steklov se levantou, com sua folha de papel na mão, e falou por bastante tempo. Ele repetiu o discurso que tinha acabado de fazer no Soviete, explicando ponto por ponto, do modo mais acessível, o programa mínimo socialista. “Um bate-papo popular num círculo operário!”, pensava eu ouvindo esse infindável discurso.
Steklov tentava comprovar aos presentes o caráter razoável de nossas exigências. Ele terminou expressando a esperança de que nos entenderíamos e que o governo a ser criado aceitaria nossas reivindicações e as publicaria como parte integrante de seu programa.
Miliukov tomou a palavra para responder. Ele falou em nome do Comitê da Duma inteiro, o que parecia natural para todos os ouvintes. Era visível que aqui, na ala direita, Miliukov era não somente o líder, mas também o mestre.
“As condições do Soviete de Deputados Operários e Soldados, declarou, são aceitáveis como um todo e podem servir de base para um acordo com o Comitê da Duma. Contudo, há pontos contra os quais o Comitê levanta objeções categóricas.”
Ele pediu a folha em que estava exposto nosso programa e, enquanto a copiava, fez suas observações. A anistia era compreensível. Miliukov julgou conveniente não a discutir e escreveu docilmente: “... para todos os delitos agrários, militares, terroristas...”. O mesmo se deu com o segundo ponto: a liberdade política, a suspensão das restrições de ordem corporativa, confessional etc.
Mas o terceiro ponto suscitou forte resistência de sua parte. Esse ponto dizia: “O governo provisório não deve tomar nenhuma iniciativa que predefina a futura forma de governo.” Miliukov defendia a monarquia e a dinastia dos Romanov, com Aleksei como Tsar e Miguel como Regente.
Para mim, surpreendia bastante que Miliukov, entre todas as nossas condições, fosse contra esta. Atualmente, entendo-o muito bem e penso que, de seu ponto de vista, ele tinha toda razão e demonstrou uma grande lucidez.
Ele estimava que com um Tsar da casa dos Romanov, e talvez somente nessa condição, ele ganharia sua batalha e justificaria o risco enorme que, na pessoa dele, toda a burguesia aceitava. Com um Romanov no trono, todo o resto seria dado por acréscimo, sem precisar temer a liberdade do exército ou a assembleia constituinte, que ele considerava como algo provisoriamente tolerável e como um obstáculo possível de ser superado.
[...]
Ele nos indicou “avanços liberais” insistindo que os Romanov não podiam mais ser perigosos. Ele tentou nos persuadir de que seu arranjo era admissível para a democracia, falando sobre seus candidatos: “Um é uma criança doente, e o outro é um homem totalmente idiota.”
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Chkheidze e Sokolov destacaram que o plano de Miliukov era inaceitável, bem como utópico, tendo em vista o ódio geral das massas populares pela monarquia. Eles fizeram saber que a tentativa de apoiar os Romanov com nosso aval seria absurda, inconcebível e não podia dar em nada. [...]
Tomei então a palavra e comecei dizendo que as demandas apresentadas eram reivindicações mínimas, categóricas e definitivas. Demonstrei que se sentiam entre as massas aspirações mais importantes a cada dia. Provei que apenas nossos dirigentes tinham a confiança do povo, que o poder real estava, pois, em nossas mãos, que havia apenas uma única saída: aceitar nossas reivindicações como programa de governo.
Miliukov retomou a palavra para exigir-nos, por sua vez, uma declaração confirmando que o governo constituído após acordo com o Soviete de Deputados Operários era legítimo. Ele também queria que essa declaração contivesse um apelo para que se confiasse nos oficiais e que os soldados os reconhecessem. Ele entendia que nenhum governo podia surgir ou resistir sem um acordo com o Soviete; ele descobria o poder do Comitê Executivo, adivinhava que ele receberia o poder não das mãos do Tsar, como havia esperado durante os dez últimos anos, mas sim das mãos do povo insurgido e vitorioso. Foi por isso que ele exigiu que nossas declarações fossem impressas e divulgadas.
[...]
Steklov relatava no Comitê Executivo nossa conferência com o futuro governo. Eu peguei o telefone para dar as últimas notícias ao jornal Izvestia, mas a edição já estava no prelo. Soube nessa ocasião de um fato que achei desagradável: a gráfica havia recebido dois “manifestos aos soldados” durante o dia. Um era a célebre “Ordem do dia número 1” que já mencionei; o outro havia sido lido pelos tipógrafos, que manifestaram sua oposição e se recusaram a imprimir: era o apelo redigido por mim e por Steklov contra os linchamentos e violências. Esse abuso me indignou. Não somente ele demonstrava um estado de espírito agressivo para com os oficiais, mas também era inaceitável que um grupo de tipógrafos tomasse nesse momento as rédeas da “alta política”, contrariando o Comitê Executivo. Mas nada podia ser feito, os gráficos haviam saído e muitos outros manifestos urgentes iriam ocupar todo o espaço no dia seguinte.
6. O Soviete ia se reunir para discutir e resolver em sessão plenária a questão do poder. Desta vez, o Comitê Executivo devia agir e manobrar para tornar ratificada sem incidentes sua decisão política. [...]
Para garantir que o Soviete adotasse todos os projetos do Comitê Executivo, adotamos a seguinte tática: como Steklov novamente faria um relatório, convenci-o a estender-se longamente e ficar entrando em minúcias; eu argumentava que um discurso longo convenceria a Assembleia e abreviaria os debates que se seguiriam, impedindo uma ou outra tendência de romper o equilíbrio.
Para mim é duro relembrar essas duvidosas manobras políticas que mais tarde condenei com relação a outra maioria.
A sessão do Soviete começou. [...]
Enquanto Steklov diluía à exaustão o programa do Comitê Executivo diante de um auditório impaciente, Kerenski veio me reencontrar, visivelmente querendo alguma coisa. Eram quase três horas da tarde, Steklov estava falando há mais de uma hora. Quando ele terminou seu discurso, o salão explodiu em aplausos. Então, como se houvesse sido picado por uma cobra, Kerenski se exaltou e correu pelo salão de sessões. Não podendo alcançar a tribuna presidencial, ele subiu na primeira mesa que encontrou e pediu a palavra. Eu o segui, pensando no que ia acontecer e aonde ele queria chegar. Não precisei esperar para tirar uma conclusão: ele havia escolhido o pior dos caminhos disponíveis para que ele se tornasse primeiro-ministro, o “golpe de Estado”! Ele menosprezava o Comitê Executivo.
Pálido, também inspirado, muito comovido, com uma voz surda, apoiado em frases breves e bruscas, cortadas por longas pausas, ele começou um discurso no qual, por trás da histeria e do teatralismo patético, discernia-se um trabalho diplomático hábil que devia influenciar os eleitores:
“Camaradas, vocês confiam em mim? Falo do fundo de minha alma, do fundo de meu coração... Se vocês não confiam em mim, estou disposto a morrer, aqui mesmo, à vista de vocês!...”
A surpresa e a emoção preencheram a sala. Esses procedimentos nunca antes empregados entre nós tiveram um efeito surpreendente. Kerenski se aproveitou disso para tratar sem demora do principal assunto que o interessava: “Camaradas! Sem que vocês devessem aprovar, fui obrigado a dar a resposta à proposta que me fizeram de assumir o posto de ministro da Justiça... Os representantes do antigo poder estão em minhas mãos, não quis deixá-los escapar. Aceitei a oferta e entrei no governo provisório. Meu primeiro ato foi mandar libertarem todos os presos políticos e fazer voltarem da Sibéria, com as honras especiais, nossos camaradas social-democratas deputados da Duma...”
Obviamente essa declaração foi recebida com aplausos. A questão da anistia ainda era apenas um “parágrafo do programa”, deve-se recordar do clima de então para entender o que essa declaração podia despertar de entusiasmos, não estávamos acostumados a todas as possibilidades dessa liberdade toda nova.
Após tal preparação de artilharia, Kerenski podia se lançar à ofensiva: “Assumi então as funções de ministro da Justiça antes de vocês me concederem formalmente esses poderes. Dessa forma, estou renunciando às minhas funções de vice-presidente do Soviete de Deputados Operários. Entretanto, estou pronto para reassumi-las se vocês julgarem necessário...” Houve gritos de “Sim, sim!...” e aplausos.
Ovacionado, Kerenski deixou o salão sem esperar que discutissem o assunto, certo de sua vitória e de que sua entrada no governo seria aprovada. Ele se tornava ministro da democracia conservando seu título de vice-presidente do Soviete.
[...]
Por volta das sete horas da noite, quase terminando a sessão do Soviete, levou-se a voto a resolução do Comitê Executivo. O resultado do pleito foi brilhante: a linha e o programa do Comitê Executivo foram aprovados por quase todos os membros do Soviete presentes (algumas centenas de votos contra quinze).
Tendo sido adotada a resolução e tendo sido aprovado o compromisso passado com os elementos burgueses, era preciso dar conta da constituição do governo e informar o povo a respeito. [...]
[...] nesse ínterim, Guchkov e Shulgin já se encontravam perto de Pskov, tendo de manhã tomado um trem para chegarem até o tsar e convencerem-no a abdicar em favor de Aleksei, com Miguel como regente. Era a última tentativa da “burguesia constitucional” de conservar a monarquia por meio de um golpe de Estado. Assim, os líderes monarquistas queriam colocar a Rússia, tanto a burguesia radical quanto a democracia, cujas intenções, porém, foram precisadas na noite anterior, diante de um fato consumado. Era uma violação flagrante do acordo combinado conosco.
[...]
No fim das contas, a questão do terceiro ponto foi resolvida da seguinte forma: aceitávamos não introduzir na declaração ministerial o compromisso oficial de “não tomar iniciativas que predefinam a forma de governo”. Aceitávamos deixar a questão em suspenso e deixar que certos membros do governo ainda tentassem salvar a monarquia. Mas declarávamos categoricamente que “de sua parte, o Soviete conduziria desse já uma luta intensa para instituir uma república democrática”.
Era evidente que o compromisso pesava mais do lado dos monarquistas do que do nosso. Mas um compromisso oficial da parte deles de abandonar os Romanov não iria ter grande impacto no plano prático. Nada iria os impedir de prosseguir “iniciativas” como as que já haviam sido tomadas nos bastidores a nosso despeito. Enquanto isso, a “liberdade de luta” que proclamávamos dava todas as chances para a república vingar, não apenas por causa do desejo popular de vê-la ser instaurada e da força efetiva que estava nas mãos do povo, mas também por causa da divisão predominante entre a burguesia nesse âmbito.
[...]
Faltava encontrar um título para esse documento.
“Em nome do Comitê Provisório da Duma, propôs Miliukov. Para manter a linha legítima de sucessão, esse documento deve levar a assinatura de Rodzianko.”
Eu não gostei nada disso. O que importavam a Duma, seu Comitê, Rodzianko e a “linha de sucessão” nessa história? Insisti para que o documento fosse intitulado “Em nome do governo provisório”. Já estava muito bom!
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Terminava o quarto dia da revolução. Finalmente se podia pensar em comer e descansar.
Despedi-me de Miliukov. Reencontrar-nos-íamos num futuro muito próximo, agora não mais na qualidade de intermediários, mas de representantes de dois grupos que travariam uma luta de morte. Nosso acordo não passava de um acordo quanto às “condições de um duelo”.
Nesse ínterim, os srs. Guchkov e Shulgin acabavam de chegar a Pskov e combinavam com o tsar sobre sua abdicação. Nicolau 2.º lhes declarou que havia decidido abdicar por conta própria, mas não em favor de Aleksei, do qual ele não suportaria se separar, e sim do grão-duque Miguel, que havia sido proposto como regente. Lá pela meia-noite, os delegados da burguesia voltaram de trem para São Petersburgo, levando consigo o ato de abdicação. Mas nada disso adiantava mais.
Todavia, esse ato representava o coroamento da revolução. A dinastia estava liquidada e, com ela, a monarquia. Estava estabelecido um poder revolucionário e postos os fundamentos da nova ordem. Novas perspectivas se abriam para o movimento proletário mundial.
Nesse momento eu andava pelas ruas desertas. Não mais se viam soldados desabrigados e famintos. A mudança de regime era um fato consumado. A capital e, com ela, o país inteiro podiam começar a viver uma vida nova [...].
