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Após uma breve análise da natureza epistemológica das religiões e do que se costuma genericamente chamar de “ciência”, pode-se dizer que não cabe aos cientistas provar ou refutar a existência de Deus: essa não é uma questão empírica, mas filosófica, por ser relativa à produção humana de significados abstratos feita sobre a natureza e, portanto, à construção de um sentido ético para a existência material.
A percepção humana possui dois âmbitos: o subjetivo (consciência, pensamento, abstrações, interioridade e gostos) e o objetivo (existência e objetos reais, materialidade, sensorialidade e exterioridade). Ambos não se misturam, mas interagem dialeticamente: a subjetividade não pode funcionar se não encontra objetos para perceber e que a condicionem e lhe deem uma utilidade, e a realidade não aparece “pronta” em nosso cérebro, mas é configurada de acordo com as características particulares de cada sujeito, vindas sobretudo de acidentes genéticos ou mecânicos.
A ciência trata dos objetos materiais, reais, sensíveis e de suas consequências mensuráveis no mundo objetivo, procurando explicações e soluções a problemas de nossa vivência prática. A filosofia, como diria Caio Prado Junior, não é exatamente uma ciência (ou “conhecimento”, como ele chama a codificação do mundo externo), mas um “conhecimento do conhecimento”, ou seja, uma disciplina que trata da forma como adquirimos, processamos e expressamos o “conhecimento”; não trata dos objetos e suas manifestações em si, mas do modo como eles são transformados em saber. Na filosofia, portanto, também entram os significados e objetivos dados às ações humanas e às coisas naturais ou artificiais, portanto, ela possui uma função existencial. Resumindo, as ciências tratam de como e por que assim funcionam a natureza e a sociedade, e a filosofia tenta decifrar para que servem todos esses códigos explicativos.
A religião ou os ritos sobrenaturais de todos os povos sempre buscaram explicar o mundo natural e social e dar um sentido à trajetória humana; essas funções, até há pouco mais de 600 anos, não eram radicalmente distintas. Com o desenvolvimento da ciência, as explicações religiosas para os fenômenos perceptíveis tornaram-se inadequadas, e ainda hoje, desde que a filosofia tomou corpo e independência, luta-se também no campo dos propósitos éticos e morais, e aí o fideísmo, ao exigir obediência cega em detrimento da livre escolha, perdeu muito espaço. Ditas essas coisas, é plausível afirmar que a questão de Deus ou da experiência religiosa, por se dar e fazer sentido apenas na “consciência subjetiva” (uma redundância), é um assunto da filosofia.
E ainda assim, a filosofia tem condições de negar a existência de Deus sem a ciência. Diz-se que a dimensão divina é imaterial; ora, tudo o que está fora do material só pode ser subjetivo, particular, produto do pensamento. Portanto, Deus não possui uma existência empírica, extracerebral, e assim é lícito reduzi-lo a uma ideia, um produto estético, um jeu d’esprit de quem o concebe. Além do mais, as dimensões subjetiva e objetiva da “consciência humana” (outra redundância) não geram material uma da outra, mas apenas o moldam; assim, Deus deveria ser necessariamente uma parte do material moldada pelo pensamento, o que vai contra as crenças sagradas. Trata-se aqui, porém, de negar a existência do mundo espiritual, e não o funcionamento e a validade das religiões, instituições sociais que podem ser objeto das ciências humanas ou de outras. Igualmente, as neurociências podem explicar o funcionamento do cérebro, mas não têm a competência para atribuir um significado cultural àquele fenômeno.
O “Deus-espírito” tem sido muito substituído pelo “Deus-ciência”, mas deve-se lembrar que os avanços tecnológicos podem ser ambivalentes. Por isso, cabe uma reflexão exterior a eles que os fiscalize e deles extraia sua razão de existir, sem tratar a si e a seus objetos como ídolos mais importantes que sua própria função social.