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Por que temos impressão de que, ao estudarmos História, Sociologia, Filosofia e às vezes Geografia, estamos recebendo as cartilhas da esquerda de forma unilateral? Penso que isso se deve ao simples fato de correntes identificadas com as direitas ou ao liberalismo não terem dado recentemente nada de relevante em matéria de análise social, pois simplesmente julgam que os objetos daquelas disciplinas devam ser tratados com absoluta igualdade aos das ciências exatas, físicas e biológicas. Desse modo, em nosso tempo, as várias interpretações do marxismo (grande parte delas não se identificando ou até mesmo se contrapondo à aventura socialista soviética) continuam sendo as mais frutíferas metodologias para ler as complexas e dinâmicas sociedades.
É óbvio que nas universidades públicas nem sempre é assim, e estão também presentes visões alternativas, não marxistas ou não dialéticas, na História, Ciência Política e Economia. Porém, como a utilização do marxismo em geral vem acompanhada de uma opção política, dado que os estudos de humanidades têm alto poder de contestação social e de refutação do senso comum, ele se tornou opção muito difundida, e mesmo outras escolas já incorporaram muitas de suas deduções.
Essa predominância da crítica dialética, e em consequência de alguns postulados caros à esquerda política, gerou preocupação em militantes direitistas, cujos pressupostos sobre os estudos sociais, em geral, têm dois pontos problemáticos: 1) pensar que a realidade se apresenta tal como a percebemos diretamente com nossos sentidos; 2) julgar que existe conhecimento neutro e ciência desinteressada, de forma que tudo o que é ensinado nas escolas ou faculdades formaria “conteúdo” fechado. Nada disso funciona na prática: ao contrário, o processo de aprendizagem em qualquer fase da vida requer troca de experiências entre estudante e professor. Com raras exceções, por não mostrarem abordagens alternativas robustas, só afirmam que as universidades foram aparelhadas por “partidos de esquerda” e que os docentes do nível básico têm atuado como “militantes doutrinadores”.
Nesse âmbito, há dois problemas básicos a ser atacados. Primeiro, a formação de professores deve ser completamente refeita, reduzindo um pouco o aspecto teórico (daí os ataques despropositados a Paulo Freire) e ampliando muitíssimo a didática prática, de modo a munir-lhes com certa aproximação da vida real nas salas de aula. Isso se nota há anos, quando na Unicamp, os estudantes das licenciaturas, sobretudo meus colegas de História, sempre detestaram as chamadas ELs como algo inútil e cansativo demais. E segundo, com formação mais sólida e específica, os professores de Ensino Fundamental e Médio não deveriam mais ser recrutados entre recém-formandos de qualquer área que, não raro criados pra pesquisa e sem oportunidades de emprego, acabam passando pelas escolas como “bico”. Tornando a docência básica uma grande e estruturada carreira, com razoáveis salários e valorização pela comunidade, seus membros podiam se dedicar apenas a ela e em poucas escolas, sem ter que recorrer à pesquisa (só quando, pra fins de qualificação, ao menos o pudessem, e o mesmo vale aos pós-graduandos sem bolsa) ou outros empregos.
Assim, haveria menos confusão entre a exposição de opiniões ou a militância partidária e a transmissão de conhecimento, levando-se em conta que rixas sempre podem ocorrer, em especial nas universidades, onde muitos professores de fato militam nas esquerdas e influem no cotidiano curricular em caso de turbulências sociais. Contudo, nada obrigaria um professor a despir-se de suas convicções, desde que a justificasse aos alunos e os permitisse também conhecer outras, muito embora, claro, aulas de História e quejandos não sejam refeições em que se apresentam “cardápios” de rótulos políticos variados à livre escolha do freguês.
Eu mesmo tive ótimos professores de esquerda (com opções diversas) no Fundamental e no Médio particulares, que determinaram minha escolha pela História como ofício. Mas diante de uma que, inclusive, defendia Che Guevara, sabíamos (ou ela sabia nos orientar nisso?...) abstrair suas profissões e suas mensagens, até porque, ao contrário do que pregam os asseclas do Escola Sem Partido, nenhum estudante é uma folha em branco, e de algum modo, ele tem vivências que vão interagir com as do mestre. Isso no tratamento da política, mas mesmo o conteúdo de humanidades é impassível de ser passado como caixas fechadas, sem nenhum grau de debate ou relação com a atualidade. Descontemos ainda que a “tia do Che” também vivia citando Cristo, e isso já daria pano pra manga a infindos debates online...
Por isso, seguem abaixo três textos dissertativos (estilo vestibular) que escrevi no terceiro ano do Ensino Médio (2005), na Escola Viverde, de Bragança Paulista, quando ela ainda usava o material interdisciplinar do Pueri Domus. Dois deles foram pra matéria de Geografia do Prof. José Augusto, e o outro deve ter sido de Português, dentro do domínio da redação, mas não tenho certeza. Deste eu não tenho a data exata, talvez sendo, pela estrutura, do segundo semestre, mas aquele sobre trabalhadoras data de 30 de setembro, e aquele sobre racismo, de 18 de outubro. Estes dois fazem parte de atividades propostas na apostila “População: mobilidade e particularidades” (área Ciências Humanas), e embora tratassem de Geografia, têm muita interseção com História, Sociologia, Antropologia etc. O primeiro texto tem realmente quatro parágrafos, e os outros apenas três, podendo os não iniciais nem finais ser lidos como um só. Corrigi apenas a velha ortografia e passagens com evidente erro redacional.
Modesto Brocos, A redenção de Cã (pedaço da tela)
Nós e o outro
Apesar de todos os seres humanos pertencerem a uma mesma espécie, eles têm várias diferenças entre si, que se concentram basicamente nas características fisionômicas (cor da pele, textura do cabelo, formato dos olhos etc.) e culturais (língua, religião, costumes etc.). Devido a algum instinto, eles têm a tendência de pensar que sua própria raça (neste caso, conjunto das características próprias) é superior às outras e, por isso, tentam impor seus hábitos ou até mesmo destruí-las. Se não o conseguem, tentam ao menos difamá-la para indicar sua própria “superioridade”.
As guerras são a forma mais antiga de imposição da vontade própria e ocorreram aos milhares na história da humanidade. Entre seus motivos se encontram desde a posse de terras e riquezas até a destruição do outro por razões particulares. Adolf Hitler foi o que mais levou a sério essa forma de pensar e, julgando a raça ariana como superior em detrimento das outras, promoveu guerras para expandir o território alemão e matanças de minorias étnicas, em nome de um ideal chamado “eugenia”. O ex-ditador da antiga Iugoslávia (atual Sérvia e Montenegro), Slobodan Milošević, a favor da preponderância dos sérvios, seguindo uma linha parecida à do ditador citado anteriormente, promoveu matanças a outras etnias que viviam no país, como os bósnios e os kosovares. Durante o século XX, os Estados Unidos também procuraram impor suas vontades através das armas em prol do sistema capitalista, mas seu maior e mais poderoso arsenal se concentra no grande poder de “vender” ideias e massificar povos inteiros dentro do American way of life por meio da propaganda e de vultosos empréstimos monetários.
Hoje, a ideia da superioridade de um povo ou país sobre o outro está condenada à ilegalidade (pelo menos nos tratados internacionais sobre direitos humanos) e o máximo que um pode fazer ao outro é passar sobre este uma imagem negativa. As maiores expressões dessa corrente são as rivalidades históricas que foram acumuladas, expressas muitas vezes em piadas racistas, preconceituosas e sem fundamento. Os exemplos mais clássicos são as piadas que os brasileiros fazem sobre portugueses e argentinos: os primeiros, seus antigos colonizadores, taxados de pouco inteligentes devido às diferenças entre os dois dialetos de seu idioma comum, o português, e os segundos, chamados de arrogantes por fazerem frente à economia e à cultura brasileiras com uma grande europeização, um IDH superior ao do Brasil e um considerável crescimento econômico na primeira metade do século XX. Com certeza está explícita aí uma certa inveja dos lusófonos sul-americanos em relação às características supostamente superiores e aos momentos de vantagem dos referidos países.
As diferenças existem desde que o ser humano se entende como ser social, e essa origem quase pré-histórica das distinções pessoais está arraigada de tal modo no imaginário humano que, para ele, é difícil livrar-se delas, dificultando a cicatrização de feridas nas almas dos povos causadas pelo preconceito mútuo.
A difícil condição das trabalhadoras
Com as revoluções sociais das últimas décadas, cujo estopim se deu nos anos 1960 e 1970, a mulher obteve várias conquistas, entre elas o direito de ter o próprio trabalho, com salário autônomo e fora do ambiente doméstico. Porém, sofreu problemas quase piores do que aqueles enfrentados pelos homens, o que teve como consequência a queda da taxa de fecundidade feminina.
Legalmente, os direitos de homens e mulheres foram equiparados, o que propiciou à mulher abocanhar um bom pedaço do mercado de trabalho antes ocupado pelos homens, mas os preconceitos continuaram, e as exigências para a manutenção do emprego se tornaram mais rígidas. Ainda se supõe que os homens são superiores em sua produção devido à sua menor sensibilidade e à ausência de ciclos naturais dentro dos quais elas estão inseridas, que podem causar várias alterações comportamentais e de saúde.
Além disso, a necessidade de dedicação aos filhos também levaria à queda no rendimento, já que, com os cuidados à prole, o tempo ao trabalho se reduziria: compare-se ao celibato católico, cujo pretexto é o de fazer o sacerdote mais preocupado com os afazeres da Igreja. Por esses fatores de uma suposta “inferioridade”, os salários das mulheres também são reduzidos, e o seu desemprego, ao contrário, sofre crescimento, ou seja, somada aos problemas econômicos enfrentados pelos homens que tanto lutam por emprego e salário bons, está a própria condição de ser mulher.
Para reduzir os efeitos do preconceito e da difícil vida social, as mulheres estão optando por ter menos filhos do que o tradicional ou não ter nenhum, a fim de igualar sua condição à dos homens, que não possuem o costume de dedicar boa parte de seu tempo aos afazeres domésticos. Isso acabou causando uma queda significativa na taxa de fecundidade feminina, concretizando uma das características da sociedade capitalista industrial, em cuja dinâmica a figura feminina passa a se inserir: poucos filhos, a fim de conter despesas e de ganhar mais tempo para a profissionalização e para a especialização.
Costumes arraigados na tradição não mudam totalmente o perfil de uma sociedade, mas influem bastante no principal agente modelador, que é a política socioeconômica, sendo este o principal transformador de dados que revelam a face do brasileiro do início do século XXI.
Preto por fora, branco por dentro
Apesar de o povo brasileiro ser de um tipo que constituiu sua cultura através da mistura de elementos europeus (brancos), africanos (negros) e ameríndios, os índices socioeconômicos continuam favoráveis àqueles descendentes dos colonizadores, enquanto aos outros, inclusive aos mestiços, seja de que raças tiverem se originado, resta ser componentes de números relativos à exclusão e à falta de oportunidades. Essa situação já vem de muitos séculos, e o transcorrer da história só favoreceu a continuidade desse processo.
Os negros e os índios sofreram uma “integração forçada” à nova nação através de sua escravização e submissão ao branco português. A eles restava praticar sua cultura, devido a proibições, disfarçada por panos europeus. Aos negros, foi proibido praticar suas religiões, o que os fez usar santos da Igreja Católica em seus rituais, e aos índios (e a toda a população branca), falar a língua geral (tupi adaptado), que acabou influenciando o idioma português brasileiro no vocabulário e no jeito de falar: assim se formou a cultura genuinamente brasileira.
Mesmo a visão das raças não brancas como inferiores colaborou para o quadro da miscigenação: os senhores de engenho, mesmo que a elite se recusasse a se misturar com os negros, na falta de mulheres, mantinham consigo mulheres negras e tinham filhos mulatos com ela, que acabavam sendo entregues a outrem, e, mesmo entre os pobres, apesar de o racismo não predominar com tanta força, dominando a ideia de superioridade europeia, as negras preferiam ter filhos com brancos em sucessivas gerações para que ocorresse o gradual “branqueamento” da população, tal como expresso no famoso quadro A redenção de Cã.
Porém, com a abolição da escravatura, mesmo que todos os negros passassem a ser homens livres, eles e boa parte dos mestiços acabaram entregues a um destino incerto, pois não receberam qualquer tipo de auxílio que os ajudasse a obter por conta própria uma vida digna de qualquer cidadão, e isso acabou gerando sua pobreza, que teve como consequência a indigência e a falta de acesso à educação de qualidade, por sua vez necessária para a obtenção de um bom emprego.
O quadro se agravou com a vinda dos imigrantes europeus e asiáticos para o Brasil: além de ocuparem postos que poderiam ser ocupados pelos negros, mas não o foram por falta de especialização e favorecimento estatal, eles trouxeram o sentimento de xenofobia, que considerava inferior qualquer cultura que não fosse a europeia, gerando ideias de inferioridade de africanos e ameríndios e a discriminação presente mesmo nas mais “inocentes” piadas e colóquios diários.
O Brasil, no que tange ao “visível” e ao “audível”, ou seja, o fenótipo das pessoas, o jeito de falar, o vocabulário, a culinária, os costumes etc., é um país plural, mas com relação ao “invisível”, ou seja, as ideias sobre uma raça ou outra, os preconceitos, a igualdade de oportunidades etc., nota-se que é preciso uma cura para esse mal, que é difícil de ser extirpado porque está na raiz da formação nacional, ou seja, o brasileiro foi criado para ver o índio e o negro como pessoas inferiores e dignas de ser escravizadas.