sábado, 20 de setembro de 2014

Discurso de renúncia de Gorbachov


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Mikhail Gorbachov, abatido, durante seu discurso de renúncia.


Introdução (Erick Fishuk)

Em 2011, fez 20 anos que a União Soviética se dissolveu por obra e “graça” de Mikhail Gorbachov, ex-Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e Presidente da URSS. Porém, seu discurso de renúncia à Presidência, televisionado a 25 de dezembro de 1991 e que ratificava o fim do país, continuava não traduzido para o português, à exceção de alguns trechos transmitidos em telejornais de inúmeras redes já naquela época. Na internet, traduções havia já, embora mais apressadas do que fiéis (não que eu duvide que “toda tradução é uma traição”, claro), para o inglês, o francês e o espanhol, e talvez para outras línguas que desconheço.

No discurso, Gorbachov lamenta a tendência predominante que levou à dissolução da URSS e defende a justeza de suas próprias decisões e o alcance de inúmeras conquistas que o país teria alcançado desde 1985, como a liberalização econômica, o respeito às liberdades individuais e o fim da “guerra fria” e da “corrida armamentista”. Mesmo assim, não deixa de apontar os inúmeros tormentos e crises por que os soviéticos estavam passando, justificando-os como “necessários” para a efetivação das mudanças e atribuindo seu agravamento às resistências conservadoras no aparelho estatal e econômico, bem como na cultura política local. Ao final, agradece a todos os que o apoiaram na promoção das reformas e manifesta sua preocupação com a situação que deixará para trás, mas reafirma sua fé na grandeza nacional e na capacidade do povo de superar as dificuldades, e vaticina um futuro de prosperidade e paz àquela que havia deixado de ser a segunda superpotência mundial.

A beleza e a confiança das palavras disfarçavam uma situação de caos e falência que iriam marcar a Rússia e outros países do antigo bloco socialista após 1991. Embora, na maior parte dos casos, a glasnost (abertura política) fosse uma realidade, a perestroika (reconstrução econômica) havia esbarrado na precariedade da indústria, do comércio e dos serviços, já muito mal desenvolvidos e em estado precário desde a estagnação do início dos anos 1980. Isso resultou em aumento da pobreza, desemprego, encarecimento dos bens materiais e as consequentes criminalidade, diminuição da população e agravamento do problema das drogas, tornados ainda mais escancarados com o fim da censura à imprensa e à televisão. Já no período Gorbachov, a desestatização das empresas, longe de gerar aumento da produtividade e distribuição de riqueza, apenas as entregara nas mãos de máfias e oligopólios que se beneficiaram de uma privatização corrupta e pouco transparente, a agravar-se ainda mais sob o comando de Boris Ieltsin.

Realizei esta tradução na segunda metade de 2012, buscando ajudar aos interessados num assunto ainda muito debatido em nossos meios políticos, acadêmicos e intelectuais. Após uma primeira versão preliminar em português, cotejei o resultado, além do original em russo novamente, com as versões inglesa, francesa e espanhola e com uma interpretação simultânea italiana, antes de realizar novas revisões. As poucas notas são minhas, e se limitam a esclarecer pontos ainda escassamente conhecidos pelas(os) brasileiras(os) curiosas(os).

O texto do discurso no original se encontra, à guisa de prefácio, no tomo 1 das memórias de Gorbachov, Zhizn i reformy (Vida e reformas), Moscou, Novosti, 1995, pp. 5-8, e pode ser lido nesta página. Também pode ser encontrada uma cópia neste site de documentos, acompanhada de comentários e contextualização em russo. Logo abaixo também o próprio vídeo legendado:


Caros compatriotas! Concidadãos!

Por força da situação gerada com a formação da Comunidade de Estados Independentes, estou encerrando minha atuação como Presidente da URSS, decisão que tomo por razões de princípio.

Defendi firmemente a autonomia dos povos da URSS e a soberania das Repúblicas, mas lutei, ao mesmo tempo, pela preservação do Estado soviético e pela integridade do País.

Os acontecimentos tomaram outro rumo: prevaleceu uma linha de desmembramento do País e de desintegração do Estado com a qual eu não posso concordar.

E mesmo diante das decisões tomadas no encontro de Alma-Ata, minha posição quanto a isso não mudou. (1)

Além disso, estou convencido de que tais decisões, em vista de seu amplo alcance, deveriam ter sido ratificadas pela vontade popular.

Entretanto, farei todo o possível para que os acordos assinados no encontro conduzam a uma real harmonia na sociedade e facilitem em algum grau a solução da crise e o processo de reformas.

Discursando a vocês pela última vez como Presidente da URSS, julgo necessário expressar minha avaliação do caminho percorrido desde 1985, tanto mais que não são poucos, a esse respeito, os juízos contraditórios, superficiais e subjetivos.



Prateleiras vazias nos mercados da URSS.


Quis o destino que já estivesse claro, quando assumi a chefia do Estado, que havia algo de errado com o país. Tudo aqui existia em abundância: terra, petróleo, gás e outras riquezas naturais, bem como inteligência e talento de sobra. Porém, vivíamos muito pior do que nos países desenvolvidos, em relação aos quais nos atrasávamos cada vez mais.

A razão disso já era evidente: a sociedade era asfixiada por um sistema de governo autoritário e burocrático. Condenada a servir à ideologia e a carregar o temível fardo da corrida armamentista, ela se encontrava no limite de suas capacidades.

Todas as tentativas parciais de reforma, que não foram poucas, terminaram em sucessivos fracassos. O país havia perdido a perspectiva. Não se podia continuar a viver assim. Era preciso mudar tudo drasticamente.

Eis por que jamais lamentei não ter aproveitado o cargo de Secretário-Geral para apenas “reinar” por alguns anos, atitude que eu consideraria irresponsável e imoral. (2)

Eu compreendia que iniciar reformas de tal amplitude, numa sociedade como a nossa, era uma tarefa dificílima e até mesmo arriscada. Mas ainda hoje sigo convencido da justeza histórica das reformas democráticas iniciadas na primavera de 1985.

O processo de renovação do País e de mudanças radicais na comunidade mundial se mostrou muito mais complexo do que se podia supor. Todavia, deve ser atribuído o devido valor a tudo o que foi feito:

– A sociedade ganhou liberdade, emancipou-se política e intelectualmente. Essa foi a principal conquista, a qual ainda não assimilamos inteiramente, já que não aprendemos ainda a usufruí-la. Entretanto, foi realizado um trabalho de significado histórico:

– Liquidou-se o sistema totalitário que havia privado o País da possibilidade de há muito tempo ter se tornado próspero e florescente.

– Realizou-se uma abertura rumo a transformações democráticas, tornando-se uma realidade as eleições livres, as liberdades religiosas e de imprensa, os órgãos representativos de poder e o multipartidarismo. Os direitos humanos foram reconhecidos como o princípio mais elevado.

– Iniciou-se a transição para uma economia mista, sendo estabelecidos direitos iguais a todas as formas de propriedade. No âmbito da reforma agrária, o campesinato começou a renascer, surgiram fazendas privadas e milhões de hectares de terra foram distribuídos aos moradores do campo e da cidade. Legalizou-se a liberdade econômica dos produtores e começaram a ganhar força a atividade empresarial, a venda de ações e a privatização.



Enorme fila para o primeiro McDonald's aberto na URSS.


– Vale lembrar que o direcionamento da economia para o mercado está sendo feito em prol das pessoas. Nestes tempos difíceis, tudo deve ser feito para que elas tenham proteção social garantida, especialmente os idosos e as crianças.

Nós vivemos num mundo novo:

– Deu-se um fim à “guerra fria”, à corrida armamentista e à disparatada militarização do País, a qual havia mutilado nossa economia, nossa consciência pública e nossa moral. Foi liquidada a ameaça de uma guerra mundial.

Mais uma vez quero frisar que nesse período de transição, de minha parte, tudo foi feito para que se mantivesse um firme controle sobre o armamento nuclear.

– Nós nos abrimos para o mundo e renunciamos à intromissão nos assuntos de outros países e ao emprego de tropas fora de nossas fronteiras, pelo que fomos retribuídos com solidariedade, confiança e respeito.

– Nós nos tornamos um dos principais bastiões da reestruturação da civilização moderna sob princípios pacíficos e democráticos.

– Os povos e nações soviéticos ganharam real liberdade de optar pela via da autodeterminação. A busca da reforma democrática do Estado multinacional nos deixou, inclusive, à beira de concluir um novo Tratado da União. (3)

Todas essas transformações exigiram enormes esforços e uma luta acirrada contra a crescente resistência das forças obsoletas e reacionárias encarnadas na antiga estrutura partidário-estatal e no aparelho econômico, bem como em nossos hábitos, nossos preconceitos ideológicos e nossa psicologia niveladora e parasitária. As mudanças se chocaram ainda com nossa intolerância, com o baixo nível de nossa cultura política e com nosso medo de mudar. Eis por que perdemos tanto tempo: o velho sistema ruiu antes que um novo conseguisse entrar em funcionamento, o que agravou ainda mais a crise social.

Eu sei o quanto é insatisfatória e difícil a situação atual e o quanto são duras as críticas às autoridades em todos os níveis e, particularmente, à minha atuação. Porém, mais uma vez quero frisar que mudanças drásticas num país tão vasto, ainda mais com uma herança dessas, não podem se realizar sem tormentos, dificuldades e abalos.

O golpe de agosto levou ao limite a crise geral, na qual o colapso da URSS como Estado é o que há de mais nocivo. E hoje me preocupa que nossa população esteja perdendo a cidadania de um grande país, podendo ser as consequências disso muito graves para todos.



Povo resiste ao golpe de agosto de 1991, quando a linha-dura do PCUS tentou depor Gorbachov.


Penso ser de vital importância conservar as conquistas democráticas dos últimos anos, as quais foram o árduo coroamento de nossa trágica experiência histórica. Não se deve renunciar a elas em nenhuma circunstância, sob nenhum pretexto, caso contrário, todas as nossas melhores esperanças terminarão sepultadas.

Falo sobre tudo isso de maneira franca e direta, pois esse é meu dever moral.

Quero expressar hoje meu reconhecimento a todos os cidadãos que apoiaram a política de renovação do País e se envolveram na realização das reformas democráticas.

Sou grato ainda aos estadistas, políticos, figuras públicas e aos milhões de pessoas no exterior que compreenderam e apoiaram nossos planos e nos dispensaram sua ajuda e sua cooperação sincera.

Deixo meu posto com preocupação, mas também com esperança, com fé em vocês, em sua sabedoria e sua força moral. Somos os herdeiros de uma grande civilização, e agora depende de cada um de nós que ela renasça para uma vida nova, moderna e digna.

Quero agradecer de todo coração aos que, nesses anos, defenderam junto comigo uma causa justa e boa. Certamente alguns erros poderiam ter sido evitados e muita coisa poderia ter sido feita melhor. Mas estou confiante de que, mais cedo ou mais tarde, nossos esforços conjuntos darão frutos e nossos povos viverão numa sociedade próspera e democrática.

Desejo a vocês tudo de melhor.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Nesse encontro, a 21 de dezembro de 1991, 11 chefes de Estado das antigas Repúblicas soviéticas ratificaram a Declaração de Alma-Ata (cidade rebatizada como Almaty em 1993), na qual se definiam os objetivos e princípios da CEI, fundada no dia 8, e a composição principal do bloco. O texto em inglês da declaração pode ser lido nesta página.

(2) Quem comandava o país, na prática, era o Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, cargo que Gorbachov ocupava desde 1985. Com a abolição do monopólio do PC, em 1990, Gorbachov criou o posto de Presidente da URSS, do qual foi o primeiro e último ocupante, enquanto renunciaria à Secretaria-Geral do PCUS em agosto de 1991, pouco após o fracassado golpe de Estado da linha-dura.

(3) A União dos Estados Soberanos foi uma proposta lançada por Gorbachov em 1991 para reformar e democratizar a URSS sem a dissolver, mas cujo tratado nunca chegou a ser assinado. Mais informações na página da Wikipédia sobre o Tratado da União dos Estados Soberanos (também em outras línguas).



Estátua de Lenin sendo removida de Vilnius, capital da Lituânia.