segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guarda britânica em Paris e vice-versa


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Em 8 de abril de 1904, a França e o Reino Unido assinaram uma série de acordos que ficou conhecida como “Entente Cordiale”, em francês literalmente “Aliança Cordial” (entente pode ser também, nesse contexto, “acordo” ou “entendimento”), fato que completou 120 anos no último 8 de abril de 2024. Eles finalizaram séculos de uma situação em que os dois países, outrora arqui-inimigos, formalizavam vários tipos de cooperações e reconhecimentos mútuos, o que deu origem à Tríplice Entente (incluindo também a Rússia) na 1.ª Guerra Mundial e foi fundamental pra vencer a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália), que também se enfraqueceu porque Roma se declarou neutra no conflito. Atualmente não parece, mas os mais velhos ainda têm lembranças dos tempos em que Londres e Paris eram de alguma forma rivais, e mesmo hoje nem todo “entendimento” é dado por garantido.

Mesmo assim, a Entente Cordiale foi crucial pra criar o equilíbrio global de poderes que durou durante todo o século 20 e como conhecemos até hoje. Porém, suas origens não deixam de ter algumas manchas, a começar pelo fato de que, no ápice do sistema colonial, eram reconhecidos o domínio britânico sobre o Egito e francês sobre o Marrocos, os quais o outro lado não mais buscaria contestar. Além disso, ela materializa o espírito do pensamento diplomático do então ministro do Exterior francês, Théophile Delcassé, um antialemão que procurou fortalecer um sistema de defensa na Europa Ocidental contra qualquer agressão do Kaiser e de sua Tríplice Aliança. De fato, ele foi profético...

Pra celebrar a data, foi promovido algo inédito: guardas reais britânicos e presidenciais franceses desfilaram e fizeram a guarda juntos, simultaneamente, do Palácio de Buckingham em Londres e do Palácio do Élysée em Paris. No Reino Unido, era a primeira vez na história em que um país não membro da Commonwealth participava dessa atividade. Na França, as tropas foram supervisionadas pelo presidente Emmanuel Macron, enquanto no Reino Unido a tarefa coube ao duque e à duquesa de Edimburgo, Edward (irmão mais novo do rei Charles 3.º) e Sophie. Num dos trechos mais interessantes, o coral militar que entoa Le Chant des partisans e La Marseillaise (hino francês) nas paradas de 14 de Julho canta God Save the King, hino britânico.

No canal do The Independent pode-se assistir à cerimônia da troca da guarda no Élysée, e num canal não oficial dedicado aos guardas britânicos pode-se assistir à troca da guarda em Buckingham. Porém, por serem dois vídeos muito longos e com vários trechos puramente silenciosos ou parados, seguem os dois respectivos resumos com os melhores momentos, sobretudo do ponto de vista musical:





domingo, 14 de abril de 2024

Milei deixou a companheira: MEMES!


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Na última sexta-feira, dia 12, Javier Milei, presidente da Argentina, anunciou ter se separado de sua companheira Fátima Flórez, atriz e comediante com quem passou a viver na residência oficial de chefe de Estado e de governo. Eles não eram formalmente casados e namoravam desde 2023, quando ela se separou do marido, com quem tinha se casado em 2001. Nenhum dos dois tem filhos de outros relacionamentos, mas Milei nunca tinha se casado antes. Segundo o presidente, eles sentiram essa necessidade porque enquanto ele trabalhava muito no governo, Flórez estaria decolando na carreira e teria sido convidada pra trabalhos na Europa e nos EUA (hmmm...), e como eles já ficavam pouco tempo juntos, ele preferiu lhe dar todo incentivo pro sucesso.

Não sou ninguém pra julgar a vida pessoal dos outros, mas o fato de Milei ter tornado isso público gerou indignação em muitos argentinos, pois além de ser irrelevante diante do nível de vida ainda difícil da população e da crescente repressão a protestos operários, muitos já o consideram como alguém que não distingue posses públicas e privadas, ao contrário do que pregava. E no humor político os hermanos são tão impiedosos quanto os brasileiros, e os memes não pararam de chover no Équis durante o sábado. Os mais ressentidos chamaram a relação de “forjada” pra disfarçar que ele seria um “cinquentão solteirão e virgem” ou mesmo que fosse gay. Mais amenamente, alguns disseram que ele “não tinha mais dinheiro” (no hay plata) pra sustentá-la e agora ficaria sem quem cuidar de seus cães, ou ainda que isso fazia parte do programa de cortes do governo.

Fiz aqui uma seleção dos memes ou fotos compartilhadas mais engraçados, com a devida explicação da piada ou a legenda que vinha junto. Como Milei postou, no dia anterior, várias fotos de gosto duvidoso durante uma visita a Ilomasque nos próprios EUA, mantendo a mesma cara de bobo e revelando puro complexo de vira-lata ao achar o despresário a pessoa mais importante do mundo, muitos brincaram que seria mais um “bromance” (como o de Lula e Macron) pivô da separação, rs. É o que mostra a montagem acima, mas a zoeira não parou por aí:


Essa é sua agora ex. O modo como Milei aparecia com Flórez nas mídias gerava estranheza entre a população: pouca aproximação, poucas aparições públicas juntos (sua irmã Karina é quem geralmente cumpre as funções protocolares atribuídas à “primeira-dama”) e até beijos na boca dados de olhos abertos. Essa posição boba padrão, ainda mais com os polegares em joinha, diz muita coisa!


Como Milei trata tudo como relações privadas e como também demitiu os trabalhadores do serviço público argentino cujo contrato tinha menos de um ano, outros equisnautas brincaram: acabou o contrato, rs.


Também, veja a cafonice dos stories que ela fazia no Instagram. Não quero acreditar que seja a pata do Milei, mas ela podia ter poupado seus fãs de tal visão do Inferno! E pra uma atriz e figura pública, até que os pés dela também tão bem mal cuidados...




Muitos argentinos, sobretudo na província de Buenos Aires, arredores e cidades mais desenvolvidas ou industrializadas, têm ascendência italiana, como grande parte dos habitantes dos estados brasileiros de São Paulo e da região Sul. Milei também tem, e dada uma presumida proximidade ideológica, sugeriram que outra recém-separada, a primeira-ministra Giorgia Meloni, podia se unir a ele. Vejam a intimidade muito maior do que com a própria “parça” e a sugestiva montagem!




Segundo alguns, a “opção” por Meloni seria tanto melhor porque ela teria sido bonita na juventude, e agora continuaria dando um “bom caldo”. Enfim, não sei qual é a relação entre as duas coisas, mas achei legal esse maiozinho de bandeira!


O sininho da Giorgia já estaria chamado pra refeição: “Hora de (me?) comer”, rs!


Myriam Bregman, deputada federal do PTS, partido de esquerda socialista, também é solteira está na casa dos 50. Muito crítica das recentes repressões policiais, foi sugerida como outra possível pretendente, afinal, “os opostos se atraem”...


Outra sugestão: “herdar” uma viúva que mora no bairro nobre portenho da Recoleta!


Alguns usuários disseram que depois dessa separação, ele vai ficar assim, “fazendo até com as paredes”!


E finalmente, a última montagem muito criativa: torça pra que “Javo” também curta seu perfil no Tinder e vocês deem match, rs...


sábado, 13 de abril de 2024

Terceira Guerra de qualquer coisa


A mínima biriba estourando em qualquer recôndito do globo: a

Banânia:


Agora temos que esperar o Ilomasque chinês usar seus bilõens pra trazer a paz mundial, rs. (Fonte: reportagem sobre imigrantes chineses na RTVE espanhola.)


BORIS SHTERN TÁ TODO BUGADO


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O programa informativo semanal Izraél za nedéliu (A semana em Israel), transmitido a partir de Nova York pelo canal em língua russa RTVI, é um dos poucos em que atualmente podemos conhecer a perspectiva dos israelenses médios sobre a atual guerra em larga escala contra milícias pró-palestinos, mas sem a contaminação da mídia hegemônica higienista ou das distorções históricas evangélicas. Iniciado em 2014 e com duração que variou muito ao longo de sua década de existência, hoje dura quase 1 hora (já descontadas as propagandas) e é apresentado a partir de Israel pelo jornalista Borís M. Shtern (Boris Stern). De fato, mesmo se pesquisarmos em cirílico, vamos recair muito em outro Boris Shtern que na verdade é um cientista russo, e esse próprio eme de nosso concernido começa um patronímico que não descobri qual é.

Por ser transmitido em língua russa e não possuir legendas ocultas, é de consumo muito pouco provável nesta Terra de Santa Cruz, sobretudo porque se trata de um conteúdo mais denso, informativo e bem feito, ao contrário de nossas diversas mídias, em especial as “alternativas”, que se sentem obrigadas a sujar tudo com partidarismo ou sensacionalismo. Contudo, ninguém é inocente em achar que nenhum veículo jornalístico tem lado. E lado é o que menos falta nos comentários de Shtern, sempre apoiando o governo (mas não sei se ele é partidário de Netanyahu), sempre atacando a ONU quando o mundo inteiro critica as ações do Tsahal e sempre dizendo que “Israel tem que ganhar, e Israel vai ganhar”. Isso há mais de meio ano...

O programa tem até um bordão, em que depois de desejar boa noite ao convidado do dia, Shtern sempre diz “Shavuá tov, khoróshei nedéli!”, ambas as expressões significando “Boa semana!” em hebraico e russo. Shavuá tov é especialmente usado ao anoitecer do sábado, que é quando termina o shabbat hebraico e começa a semana do calendário lunar (aliás, a hora em que Izraél za nedéliu é exibido pelo horário de Moscou). Shtern não nega que o povo da faixa de Gaza sofra imensamente, mas “a culpa é sempre do Hamas”, e as tristes imagens que a maioria dos telejornais do mundo transmite (embora a ex-querda bananeira delire que “o mundo se esqueceu des palestines”, mas deixa pra lá) quase não aparecem no asséptico programa. Inclusive, desde o Sete de Outubro e sem justificativa aparente, o programa foi apresentado num bunker, ou ao menos num cenário semelhante, durante 5 meses, sem deixar de ter como sempre as reportagens especiais e as entrevistas com convidados, obviamente nenhum deles crítico acerbo de Netanyahu, Itamar Ben-Gvir, Bezalel Smotrich, dos colonos ilegais na Cisjordânia (ou “Judeia e Samaria”, como eles chamam) et caterva. É lado, mas é um lado bem apresentado e deve ser visto com olho crítico por pessoas mais informadas.



Menino Maluquinho e a “teoria dos lados”: singela homenagem a Ziraldo, rs


Pouco se sabe da biografia de Boris Shtern, exceto que ele nasceu em Minsk, Belarus, lá foi criado e imigrou pra Israel com a esposa e filhos em 2003. A maior parte das informações que pude encontrar, além de umas fotos bem engraçadas, provém desta entrevista em russo, concedida em 2015, quando já trabalhava como “correspondente de guerra”, na verdade se enfiando em buracos quentes de um país que nunca deixou de estar em guerra. Além de seu Facebook pessoal, que externa sua militância contra as repressões políticas em Belarus (sobretudo pelo uso da bandeira branca com faixa vermelha, que é proibida pelo ditador), sua conta no SoundCloud revela que ele foi um ativo cantor, poeta e compositor (na entrevista, Shtern diz ter parado em 2001). Sobre a qualidade, deixo aos internautas pra que julguem, rs. Seu YouTube, que depois de janeiro de 2017 só voltaria a ser atualizado no fim de outubro de 2023 com algumas de suas antigas interpretações, também tem várias de suas participações em programas de TV.

Tudo isso pra dizer que estes últimos dias, sobretudo a primeira semana de abril, devem ter sido muito difíceis pra Shtern “tankar” (como dizem os jovens gamers de hoje), com Israel sendo acossado por todos os lados até pelo “Ocidente Coletivo”. Estes prints se referem à edição do dia 7 de abril, quando até Brandon Biden, inquilino de la Casa Blanca, já estava querendo pegar Netanyahu pelo colarinho. O próprio Shtern não “tankou” a resolução (não impositiva, diga-se) do Conselho de Segurança da ONU pedindo um cessar-fogo em Gaza, somente com a abstenção dos EUA, e a chamou de “anti-israelense”; se ele fosse brasileiro, chamaria de “antissemita”... Mas apesar do isolamento internacional, o governo está por cima e, além de estar prestes a atacar Rafah (a um possível custo civil altíssimo), último bastião do Hamas, eliminou num ataque aéreo boa parte da descendência de Ismail Haniya, líder supremo do grupo.


Claro que nem todo programa ou publicação que tenha lado está imune aos ataques, críticas e xingamentos de quem defende o lado oposto. Portanto, sempre há os comentários daqueles que defendem a Palestina, mesmo em língua russa. Mas acho que esse perfil hater exagerou um pouquinho, e além de usar uma foto de perfil duvidosa, escreveu em russo usando maiúsculas: “Liberdade à Rússia e à Ucrânia (bem como ao mundo todo) do fascismo judeu!” Não fica devendo nada pros extremistas de ex-querda na Banânia, que podiam inclusive dizer que Lula, ao comparar discretamente Netanyahu a Hitler, estava enunciando o novo conceito de “judeo-fascismo”, rs.


Essa aqui é pura abobrinha mesmo, porque o logo da Dona Jacira, considerada pelos interlocutores uma “mentirosa contumaz” (êêêê, Jacira!), foi calhar de aparecer bem do lado do Shtern. Agora ele podia ser contratado pra fazer um programa especial sobre seu país, ou mesmo uma edição em árabe de A semana em Israel, apresentada diretamente do Se Catar. E de preferência, com o nome que mesmo falando em francês, meus conhecidos árabes sempre chamam a “Éretz”: israíl, rs.


E pra terminar, um simples adendo. Eu tava usando o Instagram da interlíngua no Brasil, quando de repente apareceu esta estranha imagem no feed... Não quero fazer propaganda da moça, mas achei engraçado e resolvi copiar aqui! Ela mesma vende um negócio de “meditação criança interior” que me cheira a pura picaretagem, mas decidi procurar a respeito da imagem, pois o meme pelo menos ficou ótimo. E acabei descobrindo que a imagem, assim como outras iluminuras medievais, é usada como “meme” em outros sites há pelo menos uns 10 anos. E nessa gravura em específico, o menino Jesus é comparado a uma larva ou uma baguete, rs.

Em todo caso, se você já conhecia a imagem, mas não sabia, ela integra um livro datado entre 1320 e 1340 chamado Saltério de Luttrell, que tem esse nome justamente por ter sido encomendado por um lorde inglês e dono de terras chamado Geoffrey Luttrell. Escrito em latim por um escriba, seu valor se deve a que as figuras, feitas por ao menos cinco artistas diferentes, constituem uma rara fonte de representação gráfica da vida camponesa inglesa daquela época. Além de imagens prosaicas e da vida do próprio Luttrell e sua família, existem ainda algumas entidades fantásticas e grotescas, elas mesmas também constituindo memes à parte...


quinta-feira, 11 de abril de 2024

O francês de Qays Saeed (2020)


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Após a “revolução de jasmim” de janeiro de 2011, que deu início às outras revoltas no mundo árabe logo sufocadas e, por vezes, descambadas em governos ainda mais repressivos ou, nos piores casos, em guerras civis até hoje intermináveis, a Tunísia voltou a ter um ditador. Em 2019, no quadro de seu novo regime democrático parlamentar, o povo do pequeno país do extremo norte da África e ex-colônia francesa elegeu como presidente o jurista e professor universitário Qays Saeed, que no mais das vezes aparece como “Kaïs Saïed” na mídia francesa. Uma transliteração mais estrita seria “Qays Saʿīd” (قيس سعيد), mas a primeira versão que dei, a meu ver, parece mais próxima do original e palatável pra não falantes de árabe.

Na verdade nem sei exatamente por que durante anos guardei parte deste vídeo em meus backups, pretendendo, claro, o legendar quando ainda tinha o canal Pan-Eslavo Brasil. Talvez o trabalho tivesse mais interesse imediato, mas decidi mesmo assim trazer este raro trecho de Saeed falando francês, língua que ele domina (embora fale com forte sotaque), ao se encontrar com o homólogo francês Emmanuel Macron em Paris, em 2020. Ele disse que sabe francês, gosta do idioma e fez nele boa parte de sua formação acadêmica, mas que como está também se dirigindo ao povo da Tunísia, decidiu falar em árabe (naturalmente, no fus-haa padrão, com ocasionais traços regionais).

Por que Qays Saeed é um ditador? Porque ele logo começou a se desentender com o parlamento igualmente eleito por voto popular, sobretudo com o partido então dominante, o An-Nahda (Renascimento, às vezes romanizado Ennahda), de matriz islâmica. Em 25 de julho de 2021, com o povo protestando contra a crise econômica e a impotência do governo diante da pandemia de covid-19, Saeed “suspendeu” o parlamento, fez o exército bloquear o prédio e se arrogou os principais poderes, até que ele dissolveu a casa em 30 de março de 2022. Em julho de 2022, com participação de apenas 30,5%, uma nova constituição foi submetida e aprovada por referendo popular, abolindo o parlamentarismo de 2014 e restabelecendo o presidencialismo. Em março de 2023, um novo parlamento tomou posse após as eleições nos dois meses anteriores, mas a maioria dos grandes partidos, como o An-Nahda, boicotou a votação e somente 11% dos eleitores aptos foram às urnas.

Nesse ínterim, sob a vista grossa de uma França que perde cada vez mais influência entre os tradicionais parceiros africanos e de uma União Europeia que tenta a todo custo barrar a imigração ilegal através do Mediterrâneo, Saeed manda prender a maior parte dos desafetos políticos, interfere no judiciário e toca o “apito pra cachorro” do racismo contra a população negra. Toda essa deriva autoritária não resolveu a pobreza crescente nem a inflação galopante, a qual tomou vulto nos últimos anos de assombro inflacionário no mundo todo. Mesmo assim, objeto de culto à personalidade e associado à onda “populista” global, Saeed tem o apoio de pelo menos metade da população, pois o antigo parlamento era considerado símbolo de uma classe política corrupta e inepta (pra muitos, encarnada exatamente no An-Nahda) e, portanto, da desilusão com o gatilho da “primavera árabe” em 2011.

Eu mesmo transcrevi e traduzi o texto da parte em francês falada por Saeed, sem ter tempo de legendar o vídeo em si:


Monsieur le Président a parlé en langue française. J’ai fait toutes mes études en langue française. Mais aujourd’hui, parce que les Tunisiens me suivent partout, je vais parler en arabe, ma langue maternelle. Peut-être je corrigerais un certain nombre de concepts ou de traductions, parce que j’ai toujours aimé la sémantique juridique. J’ai étudié pratiquement une vingtaine d’années sur les origines des mots, des concepts, et ça m’a énormément enrichi. As-sayyid ra’iis al-Jumhuriyya al-Faransiyya… [Monsieur le Président de la République française].

O senhor presidente falou em língua francesa. Fiz todos os meus estudos em língua francesa. Mas hoje, como os tunisianos estão me acompanhando em toda parte, vou falar em árabe, minha língua materna. Talvez eu corrigisse um certo número de conceitos ou de traduções, porque sempre amei a semântica jurídica. Estudei por praticamente vinte anos a origem das palavras, dos conceitos, e isso me enriqueceu enormemente. As-sayyid ra’iis al-Jumhuriyya al-Faransiyya… [Senhor presidente da República Francesa].

O jornal tunisiano La Presse também dá as seguintes transcrições: “Pour ma part, j’ai fait toutes mes études…” (De minha parte, fiz todos os meus estudos...), “mais aujourd’hui et parce que les Tunisiens...” (mas hoje e porque os tunisianos...) e “Je rectifierais, peut-être, un certain nombre” (Eu retificaria, talvez, um certo número...).


terça-feira, 9 de abril de 2024

Acredite: inviável fazer o L na Rússia


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Dizem que o brasileiro precisa ser estudado pela NASA, porque aqui acontece cada coisa de que até Deus duvida. Porém, diante da crescente paranoia de Vladimir Putin contra qualquer sinal de resistência a sua ditadura e de apoio à Ucrânia agredida, os órgãos de repressão – polícia, justiça, inteligência, mídias, empresas estatais – tomam a dianteira pra não perderem as próprias cabeças. E as crescentes restrições surgidas na Rússia tomam um caráter cada dia mais bizarro... É claro que os falsos esquerdistas bananeiros que chupam saco de ditador (inclusive do Kim Be-cil) só pra se afastarem da OTAN vão ecoar que é “mentira imperialista”, “complô da mídia burguesa”, mas o mundo ao qual aspiro não é o mesmo em que eles desejam viver. Portanto, vamos deixar essa corja remoendo sozinha seus delírios.

Obviamente nem todo russo, étnico ou não (e se étnico, nem todos os que vivem na Ucrânia), é a favor da guerra que Putin lançou primeiro contra Kyiv, depois contra os próprios cidadãos e contra o mundo inteiro. E nem todo ucraniano aceita pegar em armas pra defender o país, seja por simples medo de prejuízos físicos, seja por coisas pessoais pelas quais deve velar, seja simplesmente porque não acha que o trágico governo Zelensky deva ser defendido. Mas muito poucos são os russos que se manifestam abertamente, e muito menos os que pegam em armas pra lutar ao lado dos ucranianos ou pra tentar minar a ditadura do Kremlin. Alguns desses russos, desde os primeiros dias da invasão em larga escala, se reuniram na fronteira entre os dois países pra formar o que chamam Legião “Liberdade à Rússia”, um batalhão de voluntários vindos da Rússia ou de soldados do Exército Russo que deixaram suas fileiras. O governo da Ucrânia reconhece abertamente que esse é um dos grupos (além de outros grupos étnicos de chechenos, georgianos etc.) lutando ao lado da resistência, mas evitar falar demais sobre eles.

O nome “Liberdade à Rússia” vem do russo “Svobóda Rossíi”, sendo que Rossii pode ser tanto o dativo (“à Rússia”) quanto o genitivo (“da Rússia”) do topônimo Rossía, por isso as duas traduções podem ser encontradas em várias outras línguas. Em inglês mesmo também se usa “Free Russia Legion”, mas eu prefiro “Liberdade à Rússia”, pra manter a literalidade e pra ressaltar que eles estão buscando algo para seu país, sendo que “da Rússia” não faria muito sentido nesse contexto. A Legião não distingue crença, posição política ou etnia, portanto, por favor, não confunda com o “Corpo Voluntário Russo”, que só aceita russos étnicos (rússkie) e tem uma ideologia variando da extrema-direita a simpatias nazistas puras, embora eles mesmos se digam “conservadores de direita”. Colocar todos no mesmo saco dos “nazistas” dá ainda mais munição à propaganda putinista sobre Zelensky, além do que essa tendência não é predominante na Legião, apesar do conservadorismo geral de seus membros.

Não esqueçamos que na prática e até em parte na simbologia, Putin se aproxima muito mais dos nazistas (não adianta ele deturpar a memória sobre a derrota de Hitler!) e que Aleksándr Dúgin, agora assumidamente um ideólogo seu, assume posições de autores que basearam o fascismo italiano. Além disso, o Grupo Wagner de mercenários privados pagos pelo Estado tira seu nome exatamente do compositor favorito de Hitler, e Dmítri Útkin, um de seus fundadores, nunca renegou sua adesão ao nazismo. Quer mais? Após o assassinato de Prigozhin pelo próprio Putin, suas forças têm cada vez mais se integrado ao aparelho estatal russo, enquanto as tropas na África foram incorporadas sob o nome Africa Corps, que em inglês soa igual ao batalhão que lutava por Hitler no norte da África na guerra mundial. Esses bandoleiros na África não só servem pra generais golpistas que usam a desculpa de combater o jihadismo, como no Mali, no Níger e em Burquina-Fasso, mas também apoiam as facções mais genocidas das guerras civis, como o general Hemedti no Sudão e o general Haftar na Líbia.



Acho que essa máscara de Vladimir maliano ficou Putin demais, não? Rs


Voltando ao assunto principal, essa Legião “Liberdade à Rússia” foi proscrita na própria Rússia como organização terrorista segundo decisão da Suprema Corte de 16 de março de 2023 (portanto, mais de um ano depois de sua criação), mas o texto da sentença não foi tornado público, nem mesmo pra aqueles que foram processados segundo essa decisão. A própria sessão se deu a portas fechadas, como noticiaram à época as agências estatais RIA Novosti e TASS e a chapa-branca RBK. Porém, há alguns dias, o coletivo Pérvy otdél (Primeiro departamento), formado por juristas e advogados que combatem a opacidade da ditadura do Kremlin, buscam ao máximo tornar públicas as decisões imputadas secretas e defendem os perseguidos políticos, conseguiu o texto da sentença do ano passado e descobriu a maior das bizarrices: a proibição da letra ele latina maiúscula (“L”) como símbolo de qualquer coisa, sob o risco de condenação por “extremismo”!

Explico. Tal interpretação é plausível num regime que já condenou como “extremista” uma organização inexistente (o “Movimento Internacional LGBT”, que só existia nos delírios de Olavo de Carvalho) e seu pressuposto símbolo, que é a bandeira arco-íris; se bem que os burocratas não fazem distinção e proíbem não apenas a de seis faixas, original, mas atormentam quem usa a de sete faixas, meteorológica, pra qualquer fim decorativo! As penas variam de multas pesadas, passando por alguns dias na prisão, até vários anos em colônias... As definições dos símbolos a serem proibidos são vagas demais, e os juízes definem arbitrariamente quando podem perseguir os cidadãos. Devido à associação com as palavras legion e liberty em inglês, alguns materiais da Legião já vinham com a letra “L” integrando seus símbolos, mas um “L” formado com os braços, sobretudo, era o sinal de soldados russos que se entregavam às tropas ucranianas e passavam a integrar aquele batalhão.

O grande problema é que a definição, que vem junto com os símbolos da Legião, é bastante vaga, e qualquer lugar que exiba um “L” maiúsculo sinalizando qualquer coisa poderia ser motivo pra inquérito, se o poder não for com sua cara. É apenas mais um fornecedor de álibis prévios, pois quanto mais “crimes” existirem, mais fácil a pessoa cometer um... A mesma informação é dada pelos sites em russo Sotavision (cujo vídeo também incorporei abaixo), Vesti-UA (agência ucraniana) e Agentstvo, todos baseados na mesma fonte original. A única versão em inglês que achei vem do portal pertencente a um conglomerado polonês.

Após o longo introito que já ficou maior do que o próprio artigo original, reitero que a tradução foi minha, toda a pesquisa também, e seguem abaixo o vídeo da Sotavision e a investigação do Pervy otdel:


Publicamos a sentença da Suprema Corte sobre a proibição da Legião “Liberdade à Rússia”

Os muitíssimos inquéritos e condenações, a descrição dos símbolos da organização e a explicação sobre a “atividade anti-Rússia”

O site “Pérvy otdél” recebeu uma cópia da sentença da Suprema Corte da Federação Russa sobre a classificação da Legião “Liberdade à Rússia” como uma organização terrorista e sua proibição no território da Rússia. Igualmente, assim como no caso da sentença que enquadrou como extremista o chamado “Movimento Social Internacional LGBT”, a Suprema Corte negava os pedidos de apresentação do documento. O recebimento da sentença foi possível num dos inúmeros inquéritos criminais sobre a preparação ao crime de lesa-pátria na forma da “passagem ao lado do inimigo”, em que trabalham os advogados do Pervy otdel. A própria sessão em que a Legião foi proibida ocorreu a portas fechadas, tendo proferido a sentença o juiz Olég Nefiódov, o mesmo responsável pelo “inquérito do LGBT”.

Quem é o juiz Oleg Nefiodov? – Em 2023, Nefiodov se tornou um dos principais especialistas em sentenças políticas “corretas”. Foi ele quem rejeitou o pedido de Ekaterína Duntsóva pra que se revertesse a retirada de sua candidatura às eleições presidenciais. Em maio de 2023, Nefiodov efetivou a ação do Ministério da Justiça pra dissolução do partido político “Parnás”. Foi também Nefiodov quem proferiu algumas sentenças nos inquéritos relacionados a Alekséi Naválny. Em junho de 2023, por exemplo, o opositor depôs uma ação no Ministério da Justiça relacionada à recusa da administração da Colônia Correcional n.º 6 em Mélekhovo a lhe entregar os pertences de escrita. Nefiodov negou e brincou: “Mas para exigir a entrega dos pertences de escrita não foi necessária uma declaração por escrito?”

Os inquéritos ligados à Legião “Liberdade à Rússia” – Das resoluções da Suprema Corte sobre a classificação da Legião como organização terrorista, verifica-se que os inquéritos pela ligação com ela começaram a ser abertos antes da data que a corte define como data de fundação da organização.

O tribunal afirma que a Legião “Liberdade à Rússia” foi criada na Ucrânia em 10 de março de 2022. Porém, o mesmo documento informa que a Legião esteve envolvida nos incêndios de postos de recrutamento russos de 28 de fevereiro (ou seja, 10 dias antes de sua suposta fundação) até 22 de maio de 2022.

Por volta de 16 de março de 2023 (data da sentença da Corte Suprema), os órgãos de investigação já tinham aberto “não menos” do que 20 inquéritos contra os participantes e apoiadores da Legião. Antes, alguns desses inquéritos eram desconhecidos. Também foram listados os artigos segundo os quais os inquéritos criminais foram abertos: 205.2 (“apologia e propaganda do terrorismo”), 208 (“organização de ou participação em formação armada ilegal”), 281 (“diversionismo”), 275.1 (“colaboração secreta com estrangeiros”) e 275 (“lesa-pátria”).

Nas decisões da Suprema Corte, menciona-se o inquérito do antifascista Savéli Floróv, condenado a seis anos de colônia penal por “preparação para a passagem ao lado inimigo”. Os juristas do Pervy otdel estão certos da inocência de Frolov. Ele foi detido na fronteira com a Geórgia enquanto tentava deixar a Rússia pra escapar à mobilização. No telefone de Frolov, os guardas de fronteira descobriram que ele era inscrito na página da Legião “Liberdade à Rússia”, e em sua mochila havia calças camufladas. Mais tarde, essas “provas” foram usadas no tribunal contra Savéli.

Ievgéni Smirnóv, advogado: “20 inquéritos antes da classificação da organização como terrorista é uma soma enorme. Frequentemente vemos tais indicadores alguns anos após a classificação de uma organização como terrorista.”

Os símbolos da organização – De acordo com a resolução da Suprema Corte, “para mostrar a identificação com a Legião, usam-se símbolos como a letra latina ‘L’ e a bandeira branca e anil, bem como o emblema constituído por um escudo preto atravessado por um punho fechado branco e as palavras ‘СВОБОДА РОССИИ’ [LIBERDADE À RÚSSIA], usados nas cores branca e anil”. Esses símbolos estão atualmente proibidos na Rússia.

A mesma Corte Suprema descreve o esquema que indica a intenção de entrar em formação pra se entregar ao inimigo: “levantar a mão direita e segurar o cotovelo direito com a mão esquerda, formando assim uma letra ‘L’”. Antes, essa instrução era conhecida por meio de supostos panfletos lançados do ar pra chamar à Legião e publicados em 2022.

A criminalização da difusão de informações sobre a Legião – Na sentença da Suprema Corte estão listados os inquéritos relacionados à Legião, nos quais as condenações já entraram em vigor. Entre elas, chama a atenção o inquérito contra S. M. Aleksándrov, julgado em 16 de janeiro de 2023 conforme o artigo 205.2 do Código Penal da Federação Russa (apelos públicos à realização de atividade terrorista, apologia pública do terrorismo ou propaganda do terrorismo) por ter, na condição de administrador do canal “O mundo túrquico e seus vizinhos” no Telegram, publicado “informações sobre a atividade da Legião para familiarização e visualização”. Agora, o canal possui 95 inscritos e não é atualizado desde o verão [Hemisfério Norte] de 2022.

Das resoluções da Suprema Corte, verifica-se que a Legião difunde publicações “de caráter anti-Rússia”. Segundo a versão do juiz, informação anti-Rússia é aquela direcionada pra “descreditar a direção do país” e condenar a “operação militar especial de desnazificação e desmilitarização da Ucrânia” – é assim que o documento desdobra a sigla [em russo] da chamada “SVO”.

Ievgeni Smirnov, advogado: “Pros agentes da repressão, a Legião ‘Liberdade à Rússia’ é como o cartão de visita de Dmytró Iárosh (meme surgido após os agentes terem comunicado que descobriram uma cópia do então membro do Právy Séktor num carro queimado em Slaviansk) 10 anos atrás. Em cada inquérito, o FSB tenta encontrar uma pista da Legião ou ele mesmo fornece essa pista. Enumeramos dezenas de inquéritos abertos com relação à Legião após provocações do FSB. Obviamente, a ordem pra buscar e duramente punir pela colaboração com a Legião é dada do próprio alto, por isso se deve tomar cuidado ao entrar em contato com os ‘representantes’ da chamada ‘Legião’ e tentar de diversas formas se certificar a respeito do interlocutor.”


Se precisasse desenhar, eis aí uma das publicações da página do Facebook da Legião. Eu deixei apenas a figura humana até a altura do quadril e sem as instruções que vinham abaixo e ao lado, estas sendo basicamente “baixar as armas, entregar-se aos ucranianos e informar que deseja ingressar na Legião”. O sinal corporal exibido ao lado facilitaria visualmente a sinalização da intenção de desertar do invasor russo e passar pra resistência.


domingo, 7 de abril de 2024

Interlíngua da IALA no jornal O Globo


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/iala-oglobo

A criação e o uso de idiomas “planejados”, “artificiais” ou “auxiliares” como um sub-ramo de estudo da interlinguística ainda estão pra ser muito explorados e trazer resultados volumosos. Os acadêmicos não parecem ver o esperanto, o volapuque, a interlíngua, o ido, o occidental, o latino sine flexione, o toki pona ou mesmo as chamadas “línguas zonais” neolatino, intereslavo e Folksprak como fenômenos humanos reveladores de atitudes individuais ou coletivas pra com a comunicação linguística em geral e seus reflexos nas relações culturais, políticas e econômicas. Se esse assunto nunca foi objeto de preocupação durante o século 20, ele adquiriu ainda mais importância com o advento da internet e, sobretudo, das redes sociais, pois embora seja verdade que o inglês reine como lingua franca do ambiente virtual, as novas tecnologias permitiram a democratização do acesso à informação (livros gratuitos, vídeos), a rapidez das comunicações (e-mails e videochamadas, ao invés das demoradas cartas e cartões postais) e a facilidade de reunião entre pessoas com os mesmos interesses (fóruns, listas de e-mail, grupos nas redes sociais e no WhatsApp ou no Telegram).

Contudo, embora a formação dessa “aldeia global” tenha tornado mais visíveis a existência desses idiomas (desde os mais antigos até os projetos, sem exceção coletivos, mais recentes) e de seus usuários orais e escritos, em geral o fenômeno ainda é tratado como “inexistente”. O próprio esperanto, alvo de preconceito e mesmo de perseguição durante o século 20, obteve muito mais visibilidade e acumulou muito mais materiais, como o famoso portal de aprendizado Lernu.net e o curso gratuito no Duolingo, mas muitos desavisados ainda o consideram uma “língua morta” ou “não falada por ninguém”. Que dirá então da interlíngua da IALA, que podia se tornar um xodozinho dos brasileiros e de outros latino-americanos devido a sua compreensão imediata na escrita (e ocasionalmente na fala), ainda mais quando visitamos um site bonito e organizado como este, em que podemos ler praticamente tudo: interlingua.com? Apesar da semelhança com as línguas românicas mais faladas, a interlíngua não foi concebida como uma “zonal neolatina”, como é o caso do neolatino, ou o caso do intereslavo pras eslavas e do Folksprak (bem menos estruturado e divulgado) pras germânicas. Contudo, estas que não se enquadram no grupo dos projetos “internacionais” ou “universais” podem ser tema de outra publicação.

Uma palavra adicional sobre dois desses projetos. Primeiro, tome cuidado pra sempre usar o endereço interslavic.com (e aquele pro qual ele redirecionar), e não outros, sobretudo interslavic.org, pois Mark Hučko, criador do Slovio, um projeto mais antigo, totalmente arbitrário e hoje marginal, buscou sabotar ao máximo os outros projetos intereslavos, sobretudo acaparando os diversos domínios que eles poderiam usar. Você pode conhecer o Slovio (slovianski) por curiosidade, mas ele não vai servir pra nada!

Segundo, o status de um ou mais idiomas intergermânicos é bastante controverso, pois vários projetos convivem pacificamente ou subitamente brotam uns dos outros. Talvez essa falta de unidade e articulação seja justamente um reflexo da ausência de um movimento “pan-germânico” ou de um sentimento semelhante ao que sempre juntou (mesmo sem unir) latinos, eslavos (em algum grau, sobretudo quando o imperialismo russo não está envolvido) e, por que não, árabes, cuja “língua padrão” é a “interlíngua” que justamente unifica as dezenas de “dialetos” espalhados do Saara Ocidental ao golfo Perso-Arábico... Pelo que pude verificar, o chamado Middelgermanisch é a iniciativa mais recente, mas não achei nenhum material, já que o referido grupo do Facebook é privado. O endereço original do Folksprak parece bastante abandonado e as informações aí contidas são dispersas e genéricas. A evolução mais recente deste parece ter desaguado no Sprak (ou seja, “língua”), sendo esta a versão em alemão do link em inglês que coloquei lá em cima. Outra página em inglês que conserva o antigo nome longo também possui muita informação útil. Agora, se todos esses projetos estão ligados entre si, já é outra questão misteriosa.

Voltando a nosso tema principal, quando li o livro Babel & Anti-Babel de Paulo Rónai pela primeira vez, em 2011, cujo assunto eram justamente esses incontáveis projetos que queriam “destruir Babel”, mas acabaram “criando outra Babel”, há uma referência ao fato de que por algum tempo na década de 1950, o jornal O Globo manteve uma pequena coluna em interlíngua com curtas notícias sobre ciência. Nunca fui atrás do material, que não é citado em nenhum outro espaço, mas no final de 2023, em vias de terminar meu doutorado, decidi xeretar no acervo aberto do jornal, e não é que achei as tais notas e mais algumas coisas? Segundo a redação, a coluna era mantida pelo carioca Marcos Expedito Cândido Gomes que vivia num prédio na Praia de Botafogo, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital federal. Mas afora seu endereço, nada mais é mencionado sobre sua biografia, origem, formação e relação com o movimento internacional pela interlíngua, e não consegui achar nada em outras fontes.

Não existe uma história do uso, da recepção e da difusão da “interlíngua da IALA” no Brasil, projeto cujo primeiro dicionário com uma pequena gramática foi publicado em 1951 nos EUA, após um trabalho que se estendia desde meados da década de 1920 e interrompido apenas pela 2.ª Guerra Mundial. Exceto por dois pequenos dicionários publicados por Euclides Bordignon e Waldson Pinheiro em 1993, sabemos apenas que em 1990, Ramiro Barros de Castro foi o fundador da União Brasileira Pró-Interlíngua, representante oficial da Union Mundial Pro Interlingua, e ele integra um “núcleo duro” de outros interlinguistas que vieram depois (eu, inclusive, embora não muito ativo). Portanto, se há um “elo perdido” entre a geração dos 50 e a geração dos 80-90, ele não foi encontrado ou precisa ser mais bem documentado e vulgarizado.

Fato é que de alguma forma a interlíngua (pelos “interlinguistas” ou por alguns entusiastas que trouxeram os primeiros materiais) já pairava pelo Brasil na década de 1950, pouco após seu lançamento, enquanto o movimento esperantista data pelo menos do início do século 20, talvez até antes (a liga nacional foi fundada ainda em 1907). De autoria da seção de interlíngua do Science Service dos EUA, que herdou o material da IALA quando ela se dissolveu, as notas eram irregularmente publicadas na seção Arte, Ciência e Cultura de O Globo, o que ocorreu de finais de 1955 a meados de 1956. Não sei se Gomes pagou pra fazer essa eficaz propaganda da interlíngua, e como é provável que sim, essa deve ter sido a razão pra irregularidade e pro fim súbito da iniciativa. Antes das publicações começarem, porém, o jornal também trouxe uma gentil apresentação de outra língua auxiliar, então conhecida como Interlingue, nome adotado pelo projeto de Edgar de Wahl que tinha sido lançado como Occidental (ver detalhes mais adiante), mas antes deste ainda, também pelo projeto de Giuseppe Peano, mais tarde conhecido como latino sine flexione.

Curiosamente, a seção alternou algumas das notas com pequenas lições de esperanto ou textos sobre sua história, isso quando ambos os idiomas não apareciam juntos, o que hoje pode parecer muito engraçado, rs. Fiz a pesquisa em dezembro de 2023 e janeiro de 2024, e como a busca por conteúdo cada vez mais específico no acervo digital de O Globo exigia uma assinatura, a fiz e depois “desassinei” ao acabar a pesquisa. Parte das notas já aparecia em arquivos separados, mas várias outras procurei manualmente, nos jornais de época, e as recortei do resto da página. A partir de meados de 1956, as notas foram escasseando, e em fins do ano, praticamente sumiram, então a partir da data em que aparece a última, decidi não procurar mais, pra não perder tempo demais, e porque dado o caráter incomum da iniciativa, provavelmente ela tinha mesmo parado por aí. (Se alguém se dispor a continuar a busca, sinta-se à vontade!)

Pra fins de organização, vou colocar o material em esperanto (pelo menos o que salvei) depois do material em interlíngua, embora cada texto esteja indicado com a data correta. A qualidade das imagens pode variar, mas tentei padronizar o tamanho pra que pudessem ficar igualmente legíveis. Desta forma, espero que possa estar contribuindo um pouco pra escrita da história do movimento pró-interlíngua não só no Brasil, mas também no mundo.


Por alguma razão desconhecida, em 17 de setembro de 1955, saiu primeiramente este anúncio sobre a “Interlingue”, que não deve ser confundida com a interlíngua da IALA, primeiro porque foi criação de um só homem, e segundo porque ela mistura arbitrariamente palavras do inglês que não são exatamente “internacionais” no sentido de representarem a maior parte das línguas ocidentais. Trata-se realmente dela, pois além de ter aparecido em 1922, o centro do movimento estava na época justamente na Suíça, mas também não achei nenhuma informação sobre o tal “R. Boelting”.

Inicialmente chamada “Occidental”, foi lançada pelo estoniano de família alemã Edgar de Wahl, professor de física e matemática que foi primeiro um entusiasta do volapuque, depois do esperanto e enfim de uma solução “naturalista”, ou seja, mais parecida visualmente com as principais línguas ocidentais. O lançamento do projeto se deu com a edição do primeiro número da revista Kosmoglott, publicada ainda hoje sob o nome Cosmoglotta, e foi o primeiro projeto não “apriorístico” (fácil de aprender, mas incompreensível à primeira vista, como esperanto e volapuque) a ganhar algum sucesso. De família nobre, “von Wahl”, porém, era um fervoroso anticomunista e tinha uma visão mais elitista e restrita à Europa Ocidental da comunicação internacional.

Sofrendo de uma progressiva demência, de Wahl foi internado num hospital psiquiátrico ainda durante a invasão nazista, e quando a URSS anexou a Estônia, essa condição o livrou de ser deportado, como ocorreu com outros alemães nos Bálticos. A internação e a descida da “cortina de ferro” isolaram de Wahl de seus correspondentes na Suíça, que tiveram poucas notícias dele até sua morte, em 1948, aos 80 anos. A recorrência de alguns adeptos no “bloco soviético” levou os continuadores a mudarem o nome do Occidental, que poderia soar como uma intervenção do capitalismo estrangeiro, pra Interlingue. Isso não impediu o idioma de ser cada vez mais esquecido e hoje sobreviver quase só na e graças à internet, embora sua compreensão imediata seja relativamente elevada.

Curiosamente, ao contrário de Marcos, seu sucessor mais astuto, R. Boelting não achou por bem inserir um excerto escrito em Interlingue, pra comprovar na prática sua inteligibilidade imediata...


A Occidental/Interlingue e o sr. R. Boelting sumiram de O Globo sem deixar rastros; sério, não há mais referências a esse primeiro projeto, nem mesmo na seção Arte, Ciência e Cultura! Subitamente, em 12 de dezembro de 1955, o jornal anunciou solenemente o início de uma colaboração com o Science Service (pra ser exato, com sua seção de interlíngua, herdeira da IALA e antecessora da UMI), cujo responsável seria Marcos Gomes. Os objetivos são mais claros: difusão da ciência, língua com princípios científicos e já vai metendo logo um parágrafo no meio da apresentação, sem contar o texto 1 das notas científicas.

Nosso “pobre” Marcos não tinha telefone, mas seguiu firme e forte com sua “língua do futuro”, embora o aparecimento dos textos fosse esporádico. E assim continuou, na mesma Arte, Ciência e Cultura (coloquei apenas o espaço com a nota em interlíngua):



13 de dezembro de 1955


14 de dezembro de 1955


22 de dezembro de 1955


24 de dezembro de 1955


28 de dezembro de 1955


29 de dezembro de 1955


30 de dezembro de 1955


2 de janeiro de 1956


3 de janeiro de 1956


4 de janeiro de 1956


5 de janeiro de 1956


6 de janeiro de 1956


10 de janeiro de 1956


14 de janeiro de 1956


6 de fevereiro de 1956


7 de fevereiro de 1956


8 de fevereiro de 1956


9 de fevereiro de 1956


10 de fevereiro de 1956


11 de fevereiro de 1956


17 de fevereiro de 1956


20 de fevereiro de 1956


27 de fevereiro de 1956


2 de abril de 1956


3 de abril de 1956


4 de abril de 1956


6 de abril de 1956


9 de abril de 1956


14 de abril de 1956


16 de abril de 1956


17 de abril de 1956


19 de abril de 1956


28 de maio de 1956


29 de maio de 1956


31 de maio de 1956


1.º de junho de 1956


16 de junho de 1956


18 de junho de 1956


19 de junho de 1956


4 de julho de 1956

Seguem algumas das edições em que a coluna Cultura e Intercompreensão, que nada mais era do que uma propaganda e um pequeno curso de esperanto (infelizmente, a tipografia de O Globo não tinha as letras com diacríticos: Ĉĉ Ĝĝ Ĥĥ Ĵĵ Ŝŝ Ŭŭ, rs), alternava com as Notas ou Notícias em Interlíngua. Obviamente esta última era tão óbvia que não precisava de gramática, bastava “ler pra assimilar”... Mas o leitor culto médio do jornal devia se confundir com as propostas concorrentes e preferir entrar em contato com algumas das escolas e professores de inglês que faziam propaganda em espaço próximo!

Esta primeira edição é de 9 de janeiro de 1956. Como minha prioridade era a interlíngua, e como a meu ver esse “curso” pareceu extremamente tosco, não copiei todos e coloquei os copiados aqui como uma curiosidade, aliás, interessantíssima pros esperantistas de hoje, que talvez não a conheçam. Em algumas das cópias, deixei exatamente as notas em interlíngua do dia, pra mostrar como as duas línguas apareciam lado a lado!



10 de janeiro de 1956


11 de janeiro de 1956


13 de janeiro de 1956


16 de janeiro de 1956


17 de janeiro de 1956


18 de janeiro de 1956


19 de janeiro de 1956


Quando taquei a palavra “interlingua” na busca do acervo de O Globo, apareceram outros textos que usavam a palavra ou citavam o próprio idioma da IALA, mas não tinham relação com as referidas notas. De fato, primeiramente me vali desse recurso, mas quando percebi que algumas edições me “escapavam”, comecei a folhear manualmente, tendo parado exatamente quando percebi uma possível parada definitiva. Já vou apresentar todos aqui, e reeditei alguns deles pra que todas as partes pudessem ficar juntas, de forma mais ou menos quadrada.

O primeiro (16 de setembro de 1958) é uma resenha do livro One Language for the World, do linguista Mario Pei, também citado por Rónai em Babel & Anti-Babel; imagino que ele fosse um leitor assíduo do cotidiano da família Marinho... Pei advoga pelo aprendizado de um único idioma internacional pelo mundo todo, mas não faz propaganda de um ou outro, fosse étnico ou planejado, apenas sugere que ele devia ser escolhido em comum acordo. É realmente uma utopia, levando em conta como se desenvolveu o caos na geopolítica no século 21.

O segundo e o terceiro, publicados respectivamente nos dias 10 de maio e 23 de setembro de 1960, foram aparições inesperadas na seção que agora se chamava “O leitor em dia com a Ciência” e não traziam excertos do idioma intuitivo, mas relatos de “conquistas” consistentes no amplo uso da interlíngua em congressos de medicina e resumos de artigos em revistas médicas. De fato, esse uso no meio acadêmico foi uma das principais intenções iniciais da IALA, bem como seu primeiro emprego prático, sobretudo porque o vocabulário científico bebe em grande parte do latim e do grego clássicos, mas essa não seria sua principal marca nos anos posteriores.

O quarto texto (18 de outubro de 1961) é a contribuição de um tal “Jack Carson” apresentando alguns dos principais projetos de línguas auxiliares e eventos a elas relacionados, como se de tempos em tempos sua existência precisasse ser relembrada na imprensa... Eu só mantive a primeira parte do artigo, que cita justamente a interlíngua, a qual, pro autor, seria justamente “mais usada hoje por cientistas, por causa de seus fundadores”, caráter igualmente atribuído por Affonso Romano de Sant’Anna (n. 1937) no quinto artigo que encontrei por coincidência. No distante 12 de maio de 1993, o escritor e poeta diria que por volta da década de 1970, a interlíngua já teria entrado em decadência, diante do crescimento contínuo do esperanto.

O nome do artigo é sugestivo: “Línguas estranhas”, entre as quais ele naturalmente lista o polonês (me perdoem, curitibanos, rs!) e narra outras experiências pessoais desconexas. A julgar pelo desconhecimento quase geral sobre a interlíngua, e pelo fato de muita gente sequer saber que o esperanto existe, Sant’Anna pode ter tido razão. Apenas com a internet e, sobretudo, com as redes sociais, a interlíngua se tornou geralmente visível e o esperanto ganhou um novo impulso. Essa foi a última ocorrência da palavra “interlingua” que obtive usando somente a ferramenta de busca.