Na edição mais recente da revista Crítica Marxista (n.º 58), publicada pelo IFCH da Unicamp, foi publicado um artigo do professor João Quartim de Moraes intitulado “As posições filosóficas de Lênin” (com circunflexo mesmo). Nesse texto, ele expõe os princípios básicos da filosofia do revolucionário russo, percorrendo os principais escritos de sua vida, e já começa taxativo: “A filosofia está presente do começo ao fim da obra de Lênin.” Prolífico escritor e expositor, Quartim também é famoso por seus livros sobre os militares brasileiros e a política, especialmente aqueles setores fardados identificados com a esquerda.
Suas primeiras observações tratam do ataque de Vladimir Lenin (de fato, uma de suas primeiras polêmicas) aos narodniks, uma das correntes da esquerda russa no século 19 que não se identificava com o marxismo. A primeira nota de rodapé já contém uma observação interessante e a transcrevo na íntegra: “O título habitual dessa obra nas traduções em língua portuguesa não é O que são, mas Quem são os ‘amigos do povo’. Não conheço a língua russa, mas parece-me que as traduções para o inglês (What the ‘Friends of the People’ are) e o francês (Ce que sont les ‘amis du peuple’) oferecem um melhor sentido, a saber, O que são. Não se trata, com efeito, de identificar quem são os ‘amigos do povo’, perfeitamente conhecidos, a começar de Mikhailovski, mas de mostrar quais são suas ideias e refutar a superficialidade e a má-fé da crítica que fazem ao marxismo.”
O sublinhado é meu, e embora eu respeite o professor, com quem já tive bons intercâmbios, e considere altamente sua obra (especialmente a organização e as contribuições pra coletânea História do marxismo no Brasil), ando meio cansado desses especialistas em alguma coisa que não se põem, porém, a aprender o idioma relativo àquilo de que tratam. Não acho que esse seja o caso de Quartim, pois muito boas análises podem ser feitas a partir de traduções, as quais, aliás, servem pra isso mesmo. Contudo, não estamos falando de um mero militante, curioso ou não especialista que precisa fazer uma consulta rápida. Estamos falando de alguém que estuda profundamente um autor, um sistema de ideias e uma época, mas desconhece a língua em que foram expressados.
Imagine estudar Shakespeare, Hume ou Burke sem saber inglês, imagine pesquisar sobre Molière, Voltaire ou Comte desconhecendo o francês. Há décadas as universidades estaduais paulistas oferecem programas de ensino de russo, e hoje não é difícil encontrar online professores, aplicativos ou materiais diversos. Até Marx, perto do fim da vida, se pôs a aprender russo pra entender melhor o império tsarista, com cujos súditos socialistas trocava cartas. Mais uma vez, essa não é uma crítica direta a Quartim, muito menos à qualidade de seu artigo, ai de mim! Decidi apenas trazer hoje aqui um e-mail privado que lhe mandei apenas como comentário àquela nota de rodapé, fornecendo alguns lampejos gramaticais interessantes a respeito de sua própria dúvida sobre a melhor tradução. Além disso, achei que a mensagem podia ser de interesse público por conter outras informações estimulantes.
Ainda não recebi nenhuma resposta, se é que ela realmente vai chegar um dia. Quartim é de uma geração de “velhos guerreiros”, combatentes da ditadura civil-militar de 1964-85, portanto, não posso julgar seus conhecimentos linguísticos. Contudo, me preocupa que uma geração relativamente mais nova de pesquisadores e polemistas queira ter a última palavra (geralmente asquerosa) sobre assuntos bem mais sérios, mas igualmente se contenta com fontes indiretas traduzidas pro inglês, francês ou espanhol. E isso vale, com raríssimas exceções, pra inúmeros recém-formados “especialistas” em URSS e ideologia bolchevique.
Arlene Clemesha e Breno Altman (um jornalista, e não um historiador!), por exemplo, mentem aos quatro ventos sobre a história do sionismo e instilam insidiosamente o antissemitismo entre as “ex-querdas”, mas sequer leem árabe ou hebraico. Ele, pela natureza da formação, não tem Currículo Lattes, mas ela informa apenas que “lê razoavelmente” árabe, isto é, pode nem sequer entender pra acompanhar canais de notícias, e ambos, salvo engano, desconhecem o hebraico. Quebram aquela velha regra do método científico: se você quer falar sobre Israel, simplesmente ache um israelense e ouça sua opinião. Recentemente, também soube de uma doutoranda que pesquisa o feminismo iraniano, mas recorre quase sempre a versões francesas de uma revista porque seu persa ainda é incipiente.
Rigorismo? Despeito? Não, apenas honestidade, pois infelizmente esse problema é crônico na academia brasileira e demonstra como estamos formando apenas repetidores de terceiros, e não pesquisadores genuínos que criam conhecimento original direto das fontes. É minha concepção de mundo, e acabou. Se você não gosta de aprender idiomas, não seja historiador. Dito isso, segue a carta ao filósofo do Cemarx, por quem reitero meu profundo respeito.

Caro professor Quartim,
Folheando a última edição da revista Crítica Marxista, somente agora tive a oportunidade de me deparar com seu artigo sobre as réplicas de V. I. Lenin em 1894 aos populistas, como também são conhecidos os naródniks. Com todo respeito que guardo por seu trabalho de professor e pesquisador, gostaria de comentar as dúvidas que expressa em nota inicial sobre as diversas traduções do título da obra.
Sim, literalmente a tradução “O que são...” se justifica melhor do que “Quem são...”. Em russo, o início do título (não há problemas com o resto) é “Что такое...” (Chto takóie...), expressão que se refere, segundo o Wikcionário russo, a seres inanimados. Ou seja, neste caso, provavelmente ao grupo e às ideias, e não à identidade individual de seus adeptos.
Ressalto que a ausência do verbo “ser” no presente, característica das línguas eslavas orientais, compensa-se por meio de vários idiomatismos não traduzíveis literalmente nas línguas euro-ocidentais. Embora o uso do pronome “takóie” (aqui neutro singular) tenha essencialmente uma função enfática, ele também é muito usado para pessoas nas formas “takói” (masc. sing.), “takáia” (fem. sing.) e “takíe” (plural): “Kto takói... ” etc. Naturalmente, “kto” significa “quem" e “chto”, “o que”.
Confirmo também que o segundo volume da brochura se perdeu, isso não é uma suposição. Sendo uma das primeiras obras de Lenin, impressa e divulgada na clandestinidade, deve ter sofrido as vicissitudes a que tal situação impele. E se contarmos todo o turbilhão que se tornaria a história posterior da Rússia e da URSS, creio que o volume só poderia aparecer por um milagre. É o que informam o verbete da Wikipédia em russo sobre a brochura e o final da nota introdutória (p. 577) numa das versões em HTML da edição de 1967 das Obras completas.
É interessante que, segundo a Wikipédia, embora o segundo volume tenha se perdido, as mesmas teorias político-econômicas teriam sido expostas por Lenin no texto “Características (ou Caracterização) do romantismo econômico” (1897), também polemizando contra os populistas liberais. Na mesma versão italiana (mas não na russa, curiosamente), lemos que “O que são...” foi publicado anonimamente, o que nos leva à questão da adoção do pseudônimo “Lenin”.
Posso estar “ensinando o Pai-Nosso ao vigário”, mas “Vladimir Ilitch” aparece várias vezes em seu artigo como o nome verdadeiro do russo. De fato, sendo “Ilitch” (ou Ilich, Ilyich), i.e. “Ильич”, seu patronímico, a parte do nome formada com o prenome do pai (neste caso, uma forma irregular derivada de Iliá = Elias), é comum que ele seja mencionado, mesmo ausente, como “Vladimir Ilich” por uma questão de respeito. Essa também é a forma polida com que nos dirigimos a um desconhecido ou pessoa sem intimidade, no lugar de nosso “sr./sra. + sobrenome”.
Até hoje, chamar alguém em russo usando “gospodín” (sr.) ou “gospozhá” (sra.) antes do sobrenome é considerado rude e indicador de distanciamento, exatamente como Lenin faz no original de “O que são...” ao se referir a seus oponentes. Na própria Wikipédia russa, descontando as citações de terceiros, há alternâncias entre “Vladimir Ilich”, “Vladimir Uliánov” (que era seu sobrenome) e “V. I. Ulianov”. Calcula-se que, durante sua vida, ele tenha usado mais de cento e cinquenta pseudônimos, embora ele assinasse, já no poder, os documentos partidários e estatais como “V. I. Ulianov (Lenin)”.
É apenas uma observação à parte, mas tive receio de que, caso não conhecessem mais detalhes sobre a biografia de Lenin, os leitores viessem a pensar que “Ilitch” fosse seu sobrenome, no sentido que damos a isso. (E não por acaso, “sobrenome” em russo se diz “família/фамилия”...)
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