Aproveitando a onda do jogo entre Brasil e Coreia do Sul democrática que teremos hoje na copa, apresento mais um artigo de opinião que resolvi hackear da Folha, mas agora com a inserção de comentários próprios meus, já que estou estudando o árabe padrão moderno (também conhecido pela sigla em inglês MSA). Diogo Bercito, jornalista especializado no Oriente Médio, escreveu o texto “Qatar ou Catar? Leia mais sobre a grafia do país que sedia a Copa do Mundo”, publicado em 16 de novembro. Spoiler: por já considerar uma palavra incorporada ao português, ao contrário do que manda o manual de redação da Folha, eu opto pela ortografia “Catar”, e sem sinais diacríticos. Recomendo que vejam as redes sociais dele e as colunas que ele escreveu em outros sites!
Placa com propaganda da Copa do Qatar, fincada na região oeste do país
Não tem certo ou errado; o desafio é transliterar a palavra árabe
Começa neste domingo [20/11] a Copa do Mundo do... Qatar? Catar? Gatar?
À espera do início das partidas, torcedores e comentaristas estão tentando decidir como escrever e pronunciar o nome do país que sedia o evento, realizado de 20 de novembro a 18 de dezembro. Alguns, como é o caso desta Folha, optam pela grafia Qatar com Q de “quibe”. Outros preferem Catar com C de “coalhada”. Há também quem diga a palavra em voz alta com um G de “grão-de-bico”. Mas quem é que está certo?
De certa maneira, todos estão certos e errados. Essas grafias são tentativas de transliteração – ou seja, de adaptar letras de um alfabeto a um outro. Como há um bocado de letras e sons em árabe que não têm nenhum equivalente no português, esse processo é bem árduo.
No caso do país que sedia a Copa, o grande problema está na primeira letra. O nome começa com um som que os linguistas chamam de “oclusiva uvular surda”. É como se fosse um Q de “queijo”, só que produzido mais atrás na garganta, com mais força. No alfabeto fonético, esse som é representado pelo Q mesmo. Por isso a grafia mais técnica é essa: Qatar. É inclusive o que recomenda o Manual de Redação da Folha, na página 251. O Q tem essa vantagem de diferenciar um som mais gutural do C que a gente usa em português em palavras como “cabelo” e “carro”. Mas isso não quer dizer que Catar está errado. É apenas uma outra solução para um problema que é sempre insolúvel.
[Nota do Erick: som gutural que, obviamente, nenhum falante do português vai distinguir na fala ou na audição, até porque nenhuma língua das Américas, salvo engano exceto alguma língua nativa perdida, entre esse som Q e nosso C, QU ou K normal. Ou seja, assimila ao nosso C de “carro”, portanto essa distinção na ortografia, a não ser que você seja estudante de árabe, é totalmente inútil.]
Quem está interessado em aprender a pronúncia do nome em árabe vai precisar se esforçar um pouquinho mais. O Q não é o único desafio. O T da segunda sílaba de Qatar é também mais enfático do que o do português. De novo, o som sai mais do fundo da garganta, com mais esforço. Já o R é mais fácil, porque parece o da palavra em português “cantar”. A sílaba tônica é a primeira. Ou seja: QAtar e não qaTAR.
[Nota do Erick: não é “mais enfático”, pois tecnicamente o referido T é chamado de “enfático” mesmo. É típico das línguas semíticas. De certa forma aquele Q também pode ser chamado de “enfático”, e vou até dar uma dica de como pronunciar as “enfáticas”: mantenha a parte da frente da língua do mesmo jeito que você pronunciasse a consoante normal, mas tente ao mesmo tempo recuar a parte de trás... sem dar uma cãibra, claro, rs. Um arabista inglês certa vez escreveu que é como se você tivesse com sua boca “cheia de algodão” ou com uma “batata quente dentro dela”. Em resumo, a cavidade bucal é ampliada. O mais aproximado que podemos chegar, no caso do T e do D, é como se pronunciássemos de forma bem enfática (né???) as expressões “Tó” e “dó” (em “Que dó!”, sobretudo com acepção irônica).]
[Nota 2: a sílaba tônica é de fato a primeira, pronúncia que se reflete em inglês. Mas se é pra manter a tonicidade correta, deveríamos escrever “Qátar” ou “Cátar”, com acento agudo – paroxítona terminada em R: lembra da escola ou matou aula?... Nunca li a forma acentuada, e na fonética a forma que se fixou e que circula mais de 90% das vezes no Brasil é “Catar” oxítona, ou seja, ganhou pela consagração e praticidade.]
Só isso? Não. Até agora, este Orientalíssimo blog estava tratando da pronúncia da palavra Qatar no árabe padrão. Só que, no dialeto do próprio Qatar, o nome é dito de outro jeito. O Q vira G e o A pende ao I. Ou seja, fica parecido com Gátar ou Guítar. É complicado mesmo. Quem estiver curioso pode dar uma olhada no vídeo abaixo, que explica – infelizmente, só em inglês – essas variações de pronúncia.
[Nota final: na versão hackeada, infelizmente não achei o vídeo, mas talvez seja fácil de encontrar algo parecido no YouTube, no Forvo.com ou até na Wikipédia ou Wikcionário em inglês. No final das contas, discordo duplamente do Diogo tanto na ortografia – prefiro C, e não Q – quanto na pronúncia – ele mantém a paroxítona original, eu adoto a oxítona consagrada, embora ele seja incoerente quanto à acentuação gráfica. Se bem que nesse caso ficaria como uma palavra não assimilada ao português, enquanto eu postulo que essa assimilação já ocorreu faz tempo.]
Por fim, fiquem com esta piada da pergunta de um telespectador do programa diário francês C Dans L’Air, disponível no YouTube: “Por que não organizar a próxima Copa do Mundo na Coreia do Norte, já que isso favoriza o progresso social?” Pior que a próxima copa já tá definida pra ser conjunta no México, EUA e Canadá, e que esses dias, Gianni “Today I Feel Gay” Infantino aludiu sem brincadeira a essa possibilidade...