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Já postei este texto em outras mídias sociais minhas, com bastante sucesso, mas estou dando aqui sua forma final pra consulta. Trata-se de “Zumbi dos Palmares e de todos nós: a propósito de publicações recentes no site da Fundação Cultural Palmares”, escrito pela Prof.ª Dr.ª Silvia Hunold Lara, que já deu aula pra mim no Departamento de História da Unicamp e ainda mantém o vínculo com o instituto. Ele data de 13 de maio de 2020, aniversário da abolição da escravatura no Brasil, quando ainda reinava a polêmica sobre os militantes pró-Bolsonaro que tiravam da Fundação Palmares sua função original. Mas o espírito continua vivo pro vindouro 20 de Novembro e pra todos os que criticam a zona que se tornou a administração federal.
O site da Fundação Palmares tornou-se um difusor de textos com “propósitos políticos, ideológicos, racialistas e identitários”. As palavras são retiradas de uma das publicações, de autoria de Mayalu Felix. Evidentemente, emprego os termos em sentido inverso ‒ para chamar a atenção que, hoje, uma instituição que nasceu para desenvolver políticas públicas para acabar com o racismo e a discriminação racial no Brasil foi tomada de assalto por um grupo que se pode chamar de bolso-olavista.
M. Felix emprega aquelas palavras para acusar todos os que discordam de sua opinião. Sim, atrás de uma frágil capa acadêmica, o que ela defende é uma simples opinião. Sem ser pesquisadora na área e esgrimindo referências enganosamente cultas, nega a existência de documentos sobre Palmares e sobre Zumbi para centrar fogo na crítica ao que chama de “mito”. Essa afirmação chega a ser risível para qualquer historiador.
O imenso desconhecimento lhe serve de base para ignorar a diferença entre o Zumbi que se tornou a grande liderança dos Palmares a partir dos anos 1680 e foi morto em 20 de novembro de 1695, e o Zumbi que serve de símbolo para os que lutam contra a desigualdade e o racismo no Brasil. Estudo essa história há décadas e já escrevi livros e artigos sobre o tema. Há milhares de documentos que permitem concluir que o personagem histórico e o símbolo político são faces indissociáveis do modo como o passado se faz presente ao longo do tempo. Foi assim que Palmares e Zumbi foram lembrados pelos movimentos abolicionistas no século XIX e movimentos negros desde então. Movimentos ‒ no plural, pois houve muitos e várias foram as formas de protestar contra a escravidão e a escravização, ao longo do tempo. E também hoje, 13 de maio ‒ efeméride que atualiza o fato de que a luta contra a escravidão ainda não terminou: ela está presente a cada dia, a cada momento em que jovens negros são mortos nas periferias das nossas cidades, em que mulheres negras são aviltadas, em que direitos básicos são negados à maior parcela da população brasileira por discriminação de cor, raça e classe. A incompletude da lei assinada há 132 anos está na raiz da exploração de milhares de homens e mulheres que trabalham como escravos contemporâneos nas fábricas, construções e fazendas desse país.
Só a arrogância ignorante permite a construção de um castelo de cartas que pode ser chamado de “mito negro afro-brasileiro” (sic). O texto de Felix afronta uma verdade simples, que nem é preciso ser historiadora para constatar: os heróis da pátria, hoje, são justamente esses jovens negros, essas mulheres negras, esses homens negros. Eles sofrem na pele e na carne o resultado de negações políticas, ideologizadas, racistas e identitárias como as acalentadas pela autora. Sim ‒ eles todos (e também eu) temos Zumbi como referência: o que viveu no século XVII, como líder de um dos maiores movimentos de rebeldia da história brasileira, ilumina hoje a urgente necessidade de agir contra as desigualdades e o racismo que ainda governam o Brasil ‒ e de uma maneira cada vez mais insana e violenta.