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Ao longo da história, a produção intelectual e a atividade política sempre foram atividades igualmente necessárias nos movimentos de esquerda, mas jamais houve um consenso sobre o peso de cada uma e a relação entre elas, pois era muito difícil que um militante, envolvido nas lutas cotidianas e na jornada de trabalho, tivesse refinamento e tempo suficientes para abstrair suas experiências. Mesmo Karl Marx, o mais influente pensador socialista da história, nunca teve verdadeiramente um emprego fixo, mas a estreita conexão com o operariado de sua época, aliada a uma alta educação e espírito de pesquisa, permitiu-lhe pensar a teoria e a prática como momentos simultâneos de uma metodologia dialética, a qual julgou a única adequada para entender e transformar a contraditória sociedade burguesa em que vivia. Os continuadores de Marx, com suas diversas vicissitudes políticas, recaíram ora em abstrações herméticas pouco ligadas à vida real das pessoas simples, ora num empirismo grosseiro indócil a sistematizações para proveito futuro, e foi contra isso que o historiador britânico Edward Palmer Thompson se insurgiu em seu trabalho de professor e ativista social. Seu livro A formação da classe operária inglesa (doravante Formação), dividido em três volumes na edição brasileira, é um exemplo de como buscou analisar e relacionar a vida profissional, pessoal e ideológica dos trabalhadores ingleses no final do século 18 e no início do 19 recorrendo a causações múltiplas e perscrutando a lógica própria dos agentes. Neste texto pretendo descrever o método dialético inerente a esse procedimento com base nos principais argumentos da obra e em algumas categorias caras a Marx e à tradição que o reivindicou.
Em Marx a dialética aparece basicamente como um método científico que tenta explicar as leis da realidade social, ou de parte dela, e o movimento da história, tendo por princípios a transformação e o trabalho material humano, e especificando não um fenômeno unitário, mas vários tópicos e figuras diferentes, dentre os quais a filosofia, a ciência, a história e as relações entre sociedade e natureza. Esse método não consiste tanto em como o define o próprio Marx, mas em como ele o usa para explicar forças ou conceitos por motivos causais comuns de existência e para criticar teorias e fenômenos historicamente condicionados de modo a superá-los, e não simplesmente refutá-los. Dentre os objetos comuns de reflexão, alguns deles absorvidos de outras tendências dialéticas, a variada tradição posterior que desenvolveu a dialética de Marx escolheu: as oposições e conflitos como motores da história inerentes às sociedades, especialmente à capitalista, considerada “última forma antagônica de sociedade”; as relações entre pensamento e realidade, e entre partes e totalidades; a realidade como um conjunto não de coisas imediatamente captáveis pelos sentidos, mas de relações socialmente determinadas e as quais caberia à ciência social desvendar; a simultaneidade, na marcha da história, das semelhanças e diferenças, das permanências e transformações; e a visão de uma sociedade ideal futura como utopia que relaciona toda essa reflexão a um projeto político de emancipação humana, superação do capitalismo e transformação crítica da realidade.
Conforme ao programa político imbricado à dialética de Marx, Thompson busca desde o volume 1 da Formação desnaturalizar o que a ideologia dominante fez parecer natural e mostra a propriedade, por exemplo, sendo fortemente contestada por muitos como condição de participação política e a economia de mercado impessoal tardando a quebrar a “economia moral” inglesa, defendida com resistência entre os séculos 18 e 19. Desconstruir visões consolidadas também exige explicar a história pela lógica de seus próprios agentes, mas sem desatentar aos silêncios deles. Assim, ampliar o escopo de fontes permitiu a Thompson entender os milenarismos e outras manifestações simbólicas aparentemente “paranoicas” como expressões subjetivas diferentes da mera patologia e tão influentes quanto se fossem objetivas. No volume 2, a recusa dos antigos tecelões ingleses em reconhecer seu modo de vida como “pobre” ou “atrasado” diante da industrialização e a luta contra novas tecnologias e “leis dos pobres” revelam relações socioeconômicas contraditórias, em que o “progresso” não se impôs naturalmente e em que as expropriações dos camponeses não foram “inevitáveis”. O metodismo, longe de ser único, aparece contraditoriamente com o revivalismo fanático, adaptável à contrarrevolução, e o potencial de contestação à religião oficial, portanto também ao Estado. E a disciplina de trabalho, pensada inicialmente para controlar os operários, também foi apropriada por eles para racionalizar o funcionamento de sua organização nascente e torná-la mais “apresentável” aos patrões, apesar das ocasionais desordens nas reuniões e das festas populares buscando resistir ao ritmo da fábrica.
Considerando a realidade um conjunto de relações a serem reveladas, é possível supor que os objetos têm existência real fora do pensamento, mas não se reduzem à mera aparência externa, que se não pudesse ser ultrapassada, tornaria a ciência inútil. Marx diferenciava, pois, o processo transitivo do conhecimento e a realidade intransitiva de seus objetos, sendo o primeiro o conjunto de leis por trás dos eventos, ainda que elas não os reflitam totalmente, e cujo conhecimento se produz ativamente como um produto social e histórico por meio da pesquisa aberta, historicamente desenvolvida e orientada para a prática. Por isso, muitos de seus continuadores criticaram a redução dos métodos das ciências sociais aos das naturais, como se estas exemplificassem o conhecimento “objetivo” e “imparcial”, e as pretensões de tornar a ciência social uma “engenharia social”. De forma geral, Marx tentava não identificar seu método com o das ciências naturais, julgando que a história é feita de escolhas, mas dentro de possibilidades objetivas previamente dadas, e que ela tem regularidades que podem ser apreendidas, mas não dão certeza sobre o futuro, ainda que em alguns momentos seus escritos pareçam mais “deterministas” ao apontar inevitabilidades.
Por estar trabalhando com um recorte temporal e espacial restrito a 50 anos, Thompson prefere, no volume 2 da Formação, falar em “padrões” no lugar de “estruturas” ou, principalmente, de “leis”, ainda assim difíceis de se discernir das “evidências”, mesmo quando estas não são poucas, pois o problema não está no que elas nos dizem prontamente, mas na interpretação que devemos fazer delas, variável conforme o recorte feito ou o aspecto priorizado. A redução ou anulação do papel da ação humana menospreza o impacto social de determinadas ações ou fatos, especialmente em períodos de crescimento turbulento, como a industrialização inglesa, por isso Thompson analisa o impacto e a recepção humanos em cada esfera social, critica a tentação dos modelos “médios” baseados em estatísticas e prefere falar em crescimentos irregulares, tortuosos ou mesmo retrocessos no lugar de “progressos” unilineares. Daí concluir, no capítulo 5, pela piora brutal na qualidade de vida da classe operária inglesa, especialmente os tecelões, na primeira metade do século 19, apesar dos poucos adendos materiais, e pela tentativa de bloquear alívios em suas condições de vida por parte de industriais e proprietários, em conluio com Estado e igrejas.
Preocupado em ater-se às “evidências” deixadas pelas ações humanas, Thompson dá voz à própria Sociedade Londrina de Correspondência no início do volume 1 da Formação, não sem cotejá-la com outros dados e fatos, e então fazer classificações, mas quebrando o clichê da “falsa consciência” ao citar o mote da “reforma parlamentar” caro à organização. Até mesmo a ideia do “inglês nascido livre”, diante da interpretação crítica das atas de julgamentos e outros escritos populares e de autoridades, surge como uma defesa generalizada do “império da lei”, em que até os abusos tinham um limite e havia certas brechas legais aproveitadas por radicais e populares para fazer o sistema “funcionar como sistema”. Não aceitando cegamente as impressões de época como verdade histórica definitiva e propondo recuperar “o contexto político e social global do período”, Thompson também relativiza no volume 2 a rapidez das mudanças com o nascimento da produção fabril e julga que a consciência operária não se formou de imediato, mas que o operariado não era um grupo meramente passivo. O esquema dialético dessas análises envolve o balanço crítico da historiografia e outros relatos sobre cada tema, o levantamento empírico de estatísticas e de narrativas de acontecimentos e as conclusões interpretativas que também incluem a reconstituição de detalhes ausentes, mas dedutíveis. Contudo, Thompson não considera “teoria” e “prática”, “abstração” e “empiria”, como pontos iniciais ou finais do trabalho, mas como dois momentos indistinguíveis na pesquisa e que podem se revezar como partida ou chegada, sem prejuízo do argumento. É sob esse roteiro que o volume 1 percorre as práticas “sediciosas” do fim do século 18, a agitação intelectual jacobina e a perseguição conservadora em defesa da “propriedade” e da “Constituição”; o volume 2 delineia as discussões sobre a industrialização e a destruição de antigos modos de vida no início do 19, o cotidiano de trabalhadores rurais, artesãos urbanos e tecelões industriais e a vida ideológica e comunitária da classe operária; e o volume 3 analisa o surgimento das ideias radicais das décadas de 1800 e 1810, os combates pacíficos e violentos contra as opressões e a influência desse contexto na reforma do Parlamento. E a própria obra no todo começa sumarizando as grandes ideias populares e operárias para passar às práticas e problemas materiais e daí às agitações que uniram esclarecimento intelectual e consciência das opressões industriais.
Longe de ser um determinista, Thompson não dá explicações únicas aos fenômenos, que também têm influências e atores múltiplos, e se desenrolam simultaneamente em várias esferas da vida social, além do que cada influência ou ator também pode agir em mais de um fenômeno. Caberia à historiografia dialética dissecar esses cruzamentos e depois, ao final, remontá-los na reconstituição da história global, novamente evitando recair em explicações monocausais. O “fazer-se” da classe operária inglesa no início do século 19, por exemplo, incluiu tanto o papel cultural e econômico das experiências próprias de organização vividas e consolidadas no final do 18, descritas no volume 1 da Formação, quanto a ação objetiva do sistema fabril e de outras ações patronais e estatais, presentes no volume 2. O metodismo também não foi um fator cultural ou “religioso” separado de outras instâncias da vida cotidiana e institucional, e ao mesmo tempo legitimou a disciplina do trabalho industrial no plano econômico, forneceu parte da linguagem contestatória no plano político e deu um sentido comunitário a grupos desenraizados pela industrialização. No volume 3, Thompson transita entre espaços geográficos e mostra como Inglaterra e França se relacionavam na circulação de ideias e produtos: o jacobinismo se tornaria popular entre muitos ingleses, e foi com a decepção napoleônica que eles buscaram dar-lhe um substrato autenticamente inglês. Até mesmo na compreensão do luddismo, que não era homogêneo, entrecruzam-se fatores e determinantes políticos, econômico-industriais, organizativos, históricos (crítica das fontes históricas) e mesmo culturais (histórias populares, canções, funerais dos rebeldes mortos, a relação difícil com os pregadores que se recusavam a ministrar ofícios nos enterros).
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a vida social é um conjunto multifacetado em cuja formação predomina a produção material, contudo a metáfora “base e superestrutura”, pela qual eles tentaram traduzir essa ideia, foi alvo de interpretações equívocas, geralmente associadas a uma sobrevalorização da esfera econômica na análise política e social. Os próprios autores, bem como seus continuadores não economicistas, tentaram retificar esse viés, afirmando, entre outras coisas, que: primeiro, a “produção material” não são apenas coisas, produtos e lugares, mas também relações, como se nota no conceito de “relações de produção” incluído no de “base econômica”; segundo, a produção material não é a-histórica, mas tem formas históricas definidas, o que gera a variedade de superestruturas ao longo do tempo; terceiro, a “base econômica” teria antes uma determinação “em última instância” sobre a “superestrutura ideológica”, pois a existência independente desta lhe permitiria influenciar a primeira, além de outros domínios da vida social; e quarto, a determinação da “base” sobre a “estrutura” não é mecânica, pois numa sociedade podem conviver, por exemplo, formas culturais complexas com uma economia pouco desenvolvida, ou formas jurídicas antigas com uma economia moderna. Leitores de Marx no século 20 minoraram o papel das forças produtivas no movimento da história e ressaltaram a ação independente das pessoas e das identidades de classe, e o próprio Thompson, entre os que contestaram a existência de uma esfera “econômica” autônoma em certos períodos históricos e a correlação exata entre o desenvolvimento de um modo de produção e o das ideologias, riscou de sua agenda política a mudança na produção como condição necessária à revolução social.
Enquanto isso, no volume 1 da sua Formação, Thompson diferencia “experiência” de classe, em grande parte determinada pelas relações de produção em que os trabalhadores nasceram ou se inseriram, e “consciência” de classe, a forma cultural como se manifesta essa experiência, que não é, porém, determinada, surge em qualquer momento histórico, mas de formas diferentes, e pode ser descrita por lógicas, e não por leis. A “classe”, como relação definida enquanto praticada e construída não seria uma abstração independente das pessoas que a ela pertencem, muito menos dedutível diretamente da análise dos meios de produção, mas as relações humanas não seriam tão fluidas que proibissem falar de classe, pois as pessoas, dentro de um modo de produção e de certo período de transformações sociais, comportam-se conforme certos padrões válidos apenas para aquele contexto. A história do jacobinismo inglês e a influência do metodismo nas relações sociais, econômicas e de trabalho mostram como as ideias podem surgir à parte da esfera material e entrar em relação dialética com ela ou mesmo influenciá-la unilateralmente. Porém, nos volumes 1 e 2, Thompson não se nega a relacionar a adesão a uma ou outra tradição dissidente ou associação reformadora com a origem social, geográfica ou profissional de um indivíduo ou grupo, ainda que não faça disso uma ligação absoluta e aceite outros pertencimentos simultâneos, trocas e fluxos. No volume 3 economia e política se entrecruzam várias vezes, como nas guerras entre Inglaterra e França no início do século 19, cujos efeitos econômicos (desemprego, escassez) geraram novos fatos políticos (radicalização, expansão jacobina, eleição de políticos populares), ou nos motins e movimentos relacionados, quando a fome e a falta de alimentos foram antes o eixo em torno do qual giravam os protestos do que a origem de todos eles.
Repensadas as relações entre produção material e pensamento social, os modelos estanques, setorizados ou bipolares de classe, alguns baseados em escritos do próprio Marx, foram substituídos ao longo do século 20 por outros mais abrangentes e complexos, atentos mais à análise empírica do que à adoção apriorística de Marx ou outras abstrações. A correlação entre poder econômico, poder político e hegemonia ideológica e cultural também deixou de ser vista como automática, porque se entendeu que o Estado podia não apenas ser um instrumento das classes dominantes, mas também instrumentalizá-las, e porque estas, além da força bruta ou da coerção econômica, buscam se legitimar ainda compartilhando certos códigos com as classes dominadas e concedendo liberdades materiais e civis dosadas. Outra novidade foi perceber camadas intermediárias entre exploradores e explorados em várias épocas históricas e a possibilidade de seus membros caírem num dos polos, ou de ricos e pobres adentrarem nesse meio, formando, assim, uma autêntica “classe média”.
No volume 1 da Formação, ao falar do caráter de classe das manifestações de massa na Inglaterra entre os séculos 18 e 19, Thompson não usa “classe” no sentido de “faixa de renda” ou de “ofício”, mas, de forma abrangente, como grupo de pessoas com interesses antagônicos aos de outros grupos ou “classes”, neste caso os que sofriam os desmandos da nova economia de mercado e contestavam os que lucravam com ela. O fato de haver não “classes operárias”, mas “classe operária” no singular, por sua cultura política e sua consciência serem coerentes o suficiente para uni-la num só grupo de interesses a despeito dos múltiplos ofícios e origens, faz a “consciência de classe” ser no volume 2 um fenômeno mais cultural do que econômico, posto ainda que a cultura não surge mecanicamente da produção material e que ambas convivem ou se fundem em certas expressões de massa ou literárias. As breves vitórias radicais seguidas de intensa repressão, novamente no volume 1, mostram como as classes dominantes, conforme sua situação ou a correlação econômica de forças, conjugavam consenso e algumas concessões com força bruta. Por vezes um código paralelo de justiça popular orientava as autoridades, e os próprios contestadores não saltavam certos limites da lei oficial, mas o Estado tinha poder desproporcional para mudar leis, impor interesses econômicos e conter protestos, numa dialética contraditória, como todas as outras. Mesmo assim, como se lê no volume 3, os poucos e instáveis direitos foram essenciais no início do 19 para a difusão de ideias radicais, seu relativo sucesso eleitoral e o aparecimento das primeiras formas de organização eleitoral pelas bases e com poucos recursos, que inspirariam formações posteriores. Esse tomo também data da mesma época a manipulação da classe média por industriais e governo para legitimar e difundir seus interesses e ideologia, tendo sido ganha para o utilitarismo e cooptada pela abrangência na reforma do voto de 1831.
A complexidade dos conflitos grupais da segunda metade do século 20, nem sempre envolvendo “classes”, transformou as definições das relações entre mandantes e subordinados na vida econômica e social, mas enquanto muitos diminuíam o papel da classe operária nos movimentos revolucionários, outros, entre os quais Thompson, julgavam-na a única ainda capaz de mudanças radicais. Por isso, permanecia um desafio reler os registros sobre os operários ingleses entre os séculos 18 e 19, tingidos de preconceitos e da incompreensão da lógica subjacente a essas pessoas e deixados pelas classes dominantes ou grupos emergentes. No volume 1 da Formação, Thompson compara esses relatos com várias “evidências”, mostra a discrepância entre a reação do povo e o comportamento que dele esperavam ou desejavam pregadores, moralistas, assistentes sociais e agentes do Estado, e chega à “lógica dos dominados”, pouco articulada, mas apreensível. Os próprios reformadores das décadas de 1810 e 1820, como revela o volume 3, tinham uma relação contraditória com os sindicatos nascentes, pois condenavam a repressão menos por zelo aos trabalhadores do que à calma social e à crença no trabalho e no capital livres da mão estatal, e não entendiam claramente a cultura própria dos operários, incomodando-os com um paternalismo ainda assim preferível à proteção nula. Mas as formas de contestação política do período eram bem diversas, conviviam e também se intersecionavam, entre elas a petição parlamentar, protestos de rua, a imprensa e a agitação radicais, manifestações populares de apoio a presos políticos executados, motins por demandas trabalhistas ou contra os preços altos e ataques ao patrimônio. O projeto político desse estudo de Thompson se explicita no volume 2, ao se ler como as mudanças causadas pela indústria, entre elas a expropriação dos commons, sofreram uma grande resistência popular que questiona nossa noção de progresso e bem-estar, mas que não deve permitir a confecção de “eras de ouro”, mesmo como forma de resistência.
Entre os cuidados que Marx e seus continuadores cogitaram ao escrever história militante estão atentar a padrões duradouros, não dividir a realidade em setores estanques, ser objetivo sem pretender ser neutro, respeitar as evidências empíricas e impedir sua deturpação por poderes dominantes, não descartar a adoção de teorias que orientem a prática e evitar o relativismo moral. É possível analisar a ideologia como um elemento à parte, pois em Marx ela aparece como o reflexo invertido das contradições de uma sociedade igualmente “de cabeça para baixo”, e por isso não se trata de “falsa consciência” nem abrange todo tipo de erro ou distorção, devendo ruir não pela mera crítica, mas pela mudança na referida sociedade. E o papel da ação humana na transformação social, junto com a causação central do modo de produção e da reprodução dos seres humanos no desenvolvimento histórico e com a dependência do ser social em relação ao ser biológico e sua emergência a partir dele, é justamente um dos aspectos centrais da visão materialista de Marx. Thompson via o pensador como o iniciador de uma tradição que aplicou a lógica dialética a uma realidade contraditória, e não como o criador de um grande sistema “marxista” que explicasse tudo, uma “ciência natural” da sociedade conforme à lógica formal exigente da não contradição.
Thompson declarou já ao introduzir o volume 1 da Formação ter optado por privilegiar não a cronologia dos fatos, mas sua conexão por assuntos e interesses correlatos, pois segundo sua orientação historiográfica a narrativa em sequência cronológica, embora não deva estar de todo ausente, é de valor metodológico menor do que a compreensão orgânica de um período recortado conforme critérios lógicos e a articulação entre as diversas esferas da vida social nesse período. E essa orientação permanece desde a análise dos milenarismos em tempos de explosão revolucionária, que são uma constante histórica com inúmeras faces, passando pelo comentário às obras de Thomas Paine e seguidores, de alcance e impacto criticamente avaliados sem recorrência a critérios externos ou preocupações alheias a elas, até a descrição da história e do funcionamento dos grupos reformistas ingleses do final do século 18, associados aos contextos políticos locais e à inserção de seus membros na produção material. No volume 2, a variação dos recortes temporais põe em xeque a certeza na melhoria do padrão de vida operário durante o século 19, pois em cada recorte ela se torna lenta, nula ou até negativa, apesar de certas melhoras quantitativas, por exemplo, em salários e tecnologias, ou pode ter havido progresso nesses aspectos e retrocesso nos direitos políticos. E além de semelhanças, o volume 3, retomando elementos do primeiro, também ressalta diferenças, como entre o radicalismo dos anos 1790 e o dos anos 1810, sobretudo depois de 1815, quando uma antiga atividade de minorias esclarecidas teria obtido o apoio de um povo mais experiente e consciente, já imbuído das ideias radicais. Thompson transfere ainda, no volume 2, sua rejeição a moldar o presente conforme teorias irreais à imposição de novas “leis dos pobres” baseadas nos escritos de Malthus, Bentham e outros, alheios aos sentimentos dos trabalhadores, e no volume 3 lembra a mudança da imagem da França na mentalidade popular, entre os séculos 18 e 19, de libertadora a invasora, ao sabor de uma conjuntura política interna e externa que possibilitava ao Estado um jogo ideológico com as noções de “tirania”, “liberdade”, “opressão” e “democracia” para controlar certos grupos políticos.
O “fazer-se” da classe operária, como escreve Thompson no volume 1 da Formação, é um processo ativo em que entram ação humana e condicionamentos objetivos, por isso as “ortodoxias” historiográficas a respeito do assunto errariam ao subestimar o papel dessa classe na decisão do próprio destino, julgar o passado segundo preocupações posteriores e valorizar apenas os exemplos “vencedores”, como se seu triunfo fosse inevitável. De fato, as aspirações dos atores eram válidas nos termos de sua própria experiência, e iniciativas derrotadas num dado momento podiam rebrotar sob outras formas ou lançar sementes para ações mais adequadas ao novo contexto, sem implicar “restaurações”. É o caso, ainda no primeiro tomo, dos velhos ativistas que retornavam à vida pública com novas estratégias, das antigas causas reelaboradas e com consequências levadas mais a fundo e, no volume 3, do jacobinismo e do radicalismo do fim do século 18, que no início do 19 deram origem ao sindicalismo ilegal. Ademais, contrariando a ideologia do laissez-faire, o volume 2 ensina que fenômenos reputados autossuficientes, especialmente no plano econômico, podem ter por trás a mão e a mente de indivíduos ou grupos humanos com motivações filantrópicas, morais, ideológicas ou pragmáticas, todas inseparáveis na análise prática, e que definições de “crime”, “infração”, “contravenção” ou a validade de certas formas de expropriação não são naturais, mas fruto de escolhas deliberadas, geralmente opostas no tocante a “patrícios” e “plebeus”. Muitas ações pró-democracia, escreve ainda Thompson no volume 1, surgiram das ações de indivíduos ou grupos isolados de pensamento avançado, e não apenas dos grandes líderes tradicionais, mas a história das ideias não deve se resumir a esses elementos, pois a ação das massas no curso da história mostra que ideias podem ser absorvidas de formas aparentemente contraditórias pelo povo, cujo ânimo político varia sem relação com adesões ou simpatias, mas com fatores imediatos ou emocionais. Por isso, na Inglaterra entre os séculos 18 e 19, o jacobinismo floresceu entre os que odiavam o autoritarismo, mas logo cedeu ao belicismo antifrancês, enquanto a influência de Paine afluiu facilmente em milenarismos.
A metodologia dialética, privilegiando o coletivo e desnaturalizando a realidade, é a contrapartida teórica de um projeto político voltado para o ser humano alienado dos meios de produção, da natureza e do fruto de seu trabalho, e que está impedido, num determinado período histórico, de realizar seus potenciais e construir a si mesmo. A alienação em Marx descreve a produção do ser humano escapando de seu controle e até passando a controlá-lo, e a definição de economia, cultura, arte, política, Estado, religião, educação e outros domínios como se existissem separadamente no organismo social. Já a reificação, um dos momentos da alienação, assinala a transformação das relações e propriedades humanas, a princípio pessoais e transigíveis, em relações e propriedades coisificadas, separadas do ser humano, abstratas, calculáveis e inegociáveis. A obra de Marx é inseparável do projeto político de sua vida, o de romper as cadeias da alienação e permitir a cada pessoa realizar todas as suas possibilidades, abrindo uma nova etapa na história, que seria finalmente humana, e por isso as ideias que elaborou junto a Engels não deveriam compor um sistema fechado, imune a revisões ou aplicável a tudo o que se pense, muito menos limitado a uma causalidade “econômica”. A separação de obra e atuação política em Marx foi uma das críticas que o militante Thompson fez a Louis Althusser e sua interpretação daquele pensador como um mero “cientista social”.
Thompson retrata no volume 2 da Formação como no século 19 o operário comum, privado de seu meio de produção, seus lucros, seu conhecimento técnico e do controle de seu próprio tempo, foi deixando de aprender e praticar a leitura e a escrita e sofreu um embrutecimento e alienação que não impediu, porém, seu contato com as ideias dos publicistas descritos no volume 1, agora difundidas por outros meios. O segundo tomo sugere ainda que a população abastada estava “alienada” das precárias condições de vida dos trabalhadores pobres, cujos bolsões de miséria ou empregos degradantes permaneciam fisicamente ocultos até que as próprias vítimas se rebelassem e a explosão social ocorresse diante de todos ou atingisse interesses dominantes. Num outro âmbito, como se lê no volume 3, os intelectuais sensíveis aos operários podiam ser, como dito acima, não apenas “alienados” com relação à cultura própria deles como também pregar coisas totalmente contrárias a ela, tal como ocorreu com Robert Owen, acusado de querer “aprisionar” os pobres em seus projetos confusos. Todavia, provando que o mundo das ideias não conhece absolutos, autores menos irrealistas que Owen inspiravam indiretamente certas práticas operárias, tiravam delas o material de suas reflexões ou tinham até mesmo opiniões opostas a elas, mas eram absorvidos de várias formas pelos trabalhadores, gerando novas práticas e reflexões, e por seguidores dedicados que, no caso de Owen, criaram um “owenismo” distinto da própria obra dele. Mas nenhum grande escrito conseguiu deter no início do século 19 o processo narrado por Thompson no volume 2: a destruição de antigas relações produtivas baseadas na pessoalidade, no “preço justo” e na deferência, a instauração da impessoalidade e transparência na exploração e a transformação do operário num simples instrumento e fator de cálculo.
A importância da reflexão intelectual teórica para a transformação política da sociedade, desde que seus pensadores não deixem de se nutrir do influxo empírico e de conviver lado a lado com as pessoas mais necessitadas, não está mais para ser contestada. Ação e pensamento são momentos concomitantes no projeto de superar a sociedade capitalista burguesa e não devem se tornar polos distantes e em conflito quanto à importância de sua função. Tendo vivido as experiências de resistente antifascista, professor no ensino popular e militante pacifista de esquerda, E. P. Thompson transferiu para sua obra a preocupação em conjugar teoria e prática na problematização da realidade, transitando entre a observação documental e a abstração crítica ao estudar a classe operária inglesa e apontando a preocupação com os problemas do presente como motivo de seu trabalho. A formação da classe operária inglesa, livro que melhor sintetiza esse roteiro, não foi destinado a se tornar um cânone irretocável – atitude que Thompson também reservava a Marx, a quem considerava apenas como iniciador de uma tradição –, mas ainda inspira os historiadores, numa perspectiva de classe, a balancear ação humana e condicionamentos objetivos nos fatos cotidianos, descobrir na vida social relações complexas e interações orgânicas por trás do que, imediatamente observável, aparece compartimentado e centrar-se na produção material como causação principal da história, mas jamais única, entre outros procedimentos. Espero que o texto agora findo tenha explicitado todas essas ideias e que sirva em futuras reflexões pessoais sobre os desafios do cientista social ante os sofrimentos inerentes ao mundo industrializado.
Bibliografia
BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do pensamento marxista. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 3 v. Tradução de Cláudia Rocha de Almeida, Denise Bottmann e Renato Busatto Neto. 3., 4. e 6. eds. Rio de Janeiro: São Paulo: Paz e Terra, 1987 e 2011.
Observação do Sidney após correção:
Erick,
Texto excelente, irretocável tanto no conteúdo quando na redação. Parabéns e obrigado por sua participação na disciplina.
Conceito: A