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Na mídia minimamente séria, especialmente na internet, tem curso um rico debate sobre a funcionalidade do caráter laico do Estado brasileiro, ou seja, sua independência das religiões e de outras associações ideológicas privadas. As pessoas com um senso crítico mais apurado têm percebido, enfim, que nossas instituições públicas ainda se submetem ao arbítrio de bispos, pastores e pessoas com interesses similares. E essa tomada de consciência está atemorizando os velhos condutores de ovelhas.
Um voo rasante pela história universal das relações entre o poder temporal e o poder espiritual nos ensina que tal separação, além de muito recente, não está dada desde o início da humanidade. Em povos ditos primitivos, quase sempre o curandeiro também exercia funções de liderança, quando os dois papéis não cabiam a pessoas ou grupos muito próximos, que controlavam juntos as pequenas comunidades. Nas primeiras grandes civilizações, os sacerdotes eram meros funcionários dos reis ou imperadores, e assim continuou até o estabelecimento do direito divino dos monarcas nos primeiros Estados nacionais da Europa, passando por gregos e romanos, judeus, persas, árabes e outras culturas da Idade Média, em que a fuga da crença oficial era tratada como uma questão criminosa.
A ascensão gradual da burguesia entre os séculos 16 e 18 e sua adesão ao protestantismo ou a doutrinas mais radicais lançaram luz sobre os obstáculos eclesiásticos, especialmente da Igreja Católica, à expansão do Estado e da economia, e assim foi colocada em pauta a separação ideal entre religiões e poder secular. O processo de sua concretização não foi livre de obstáculos, inércias ou mesmo retrocessos, tanto que o Brasil foi oficialmente católico até o lançamento da primeira Constituição republicana, em 1891.
O Estado brasileiro, enfim, tornava-se laico no papel, ou seja, não apoiaria nem perseguiria nenhuma religião, mantendo uma postura de neutralidade nesse campo a ser deixado à livre concorrência. Mas será que nossas instituições públicas são realmente laicas na prática, não favorecendo nenhuma crença em especial?
Culturalmente, somos um país cristão com uma predominância católica em lento decréscimo. Para muitos, isso justifica que prédios públicos, tribunais e até os plenários do Congresso Nacional tenham crucifixos em suas paredes; que o erário financie Marchas para Jesus, monumentos à Bíblia e portais como o que está escrito “Sorocaba é do Senhor Jesus”; que as escolas públicas ofereçam um ensino religioso frequentemente refém da confissão cristã de seus professores, como se o fato de uma matéria ser completamente facultativa fosse mesmo saudável à democracia e ao aprendizado; que o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 se refira a uma “proteção de DEUS” sobre os legisladores; que os canais de televisão estatais reservem partes de suas grades a cultos católicos e evangélicos; e que, finalmente, instituições religiosas não paguem impostos, enquanto as empresas brasileiras estão entre as mais oneradas do mundo.
O fato de a maioria de uma população professar esta ou aquela crença não implica que ela seja superior às demais, ou que as esferas públicas ou estatais, teoricamente um abrigo neutro e impessoal para todas as pessoas, independentemente de suas escolhas privadas, possam portar símbolos, subvencionar práticas ou abrir espaço para a propaganda de dogmas exclusivos de grupos iniciáticos que não são menos iniciáticos nem se tornam automaticamente um apêndice estatal simplesmente por contarem com adesão massiva. A situação muda de figura quando se narram as perseguições a cristãos em ditaduras muçulmanas ou antirreligiosas: aí se fala de uma errônea influência desses Estados por doutrinas e credos particulares e do nulo espaço à diversidade. É claro que estamos entre as nações com maior liberdade civil, mas não duvido que a obrigação de que as bibliotecas públicas de várias cidades tenham ao menos uma Bíblia em seu acervo, por exemplo, seja apenas o começo da escalada de uma reação conservadora à crescente secularização da sociedade. Em outras palavras, laicidade nos olhos dos outros não arde.
Os crentes mais fiéis respondem que a questão do Estado laico e da retirada de símbolos religiosos do espaço público seria uma simples picuinha de ateus raivosos que desejariam impor à população suas convicções supostamente minoritárias. Na verdade, não se trata apenas de frescura de ateus, agnósticos, céticos e não religiosos avessos aos cultos tradicionais, mas de um assunto concernente a todos os que professam alguma fé estranha à nossa matriz cultural. Ninguém deseja ver um campo tão ligado a sentimentos subjetivos tornar-se objeto compulsório, numa espécie de autoritarismo teológico que há séculos não se vê no Ocidente.
Tempos de transformações radicais são muito contraditórios, e em meio à contestação de paradigmas consolidados, como o livre curso dos dogmas religiosos em nosso Estado laico, do qual finalmente a maioria das pessoas esclarecidas se dá conta, os detentores da situação buscam fazer-se passar por revolucionários perseguidos, e estigmatizar os inconformados como uma minoria autoritária. Mas as aparências não devem enganar: quando menos se esperar, provavelmente a história se repetirá e estaremos vivendo uma era de obscurantismo em que seitas fechadas usurparão o poder e suprimirão as liberdades individuais em prol de ideias ultrapassadas.
Comentário: Quando se retiram todos os símbolos religiosos de qualquer repartição pública ou privada, que antes já existiam, se configura aí uma ditadura. Entendo por Estado laico o que você descreve, mas também compreendo por Estado materialista quando é retirado todo e qualquer vestígio sobre religião.
Resposta: Discordo de sua posição. Nós temos os símbolos religiosos por mera conveniência cultural, algo que praticamos naturalmente. Contudo, o Estado serve justamente para refrear nossos “impulsos naturais”, uma vez que não podemos fazer o que quisermos na frente de quem bem entendemos, como, por exemplo, andar de cueca na rua. Isso porque a laicidade estatal é uma esfera onde todos momentaneamente deixam suas paixões religiosas para que se resolvam os problemas por meio daquilo que todos têm em comum, isto é, cidadania brasileira, inteligência, razão, uso da língua portuguesa etc.
Da mesma forma, se uma repartição é pública, ou seja, estatal, ela não deve portar sinais da crença pessoal de cada um, já que isso concerne apenas à sua vida privada. Mesmo ao se dizer que “o Brasil é uma nação cristã”, isso é apenas uma meia-verdade: nossa origem cultural é cristã, mas boa parte da população professa outras crenças ou não professa nenhuma. É uma tendência natural: ao superarmos nosso impulso em externar crenças pessoais da maioria, ocorre que tiramos esses símbolos. Nem é algo mais discutido nos países laicos desenvolvidos.
Retirar símbolos não é atitude de um “Estado materialista”; um Estado ateu professaria abertamente a inexistência de deuses, ao invés de se manter neutro na questão. Um Estado ateu poderia, suponhamos, colocar retratos de ateus famosos nas repartições públicas, ou faixas com os dizeres “Deus não existe”. Assim, se não colocamos nada, não temos Estado ateu, e sim laico. Nem ateu, nem religioso.