Link curto para esta postagem: fishuk.cc/laico2
Como prometi no domingo passado [6/5/2012], estou publicando uma versão editada da conversa por mensagens que tive com meu amigo Thiago Leme há um tempo atrás a respeito da diferença entre um Estado laico e um Estado ateu, e que originou o texto que publiquei naquele dia, “Estado laico ou Estado ateu?”, também encontrado na Revista Verdade de abril deste ano.
A reprodução quase integral da conversa tem a vantagem de exibir mais detalhadamente o fio do raciocínio que me levou àquele texto, e pode até ser mais esclarecedora do que o resultado final. Sem mais delongas, segue abaixo a conversa, lembrando que as ideias não foram modificadas, mas se excluíram alguns traços de linguagem oral, de assuntos paralelos e de tratamento pessoal ou de gentileza. Além disso, sou o único responsável por informações errôneas ou imprecisas que possam existir na minha fala.
Thiago Leme: Erick! Desculpe incomodar seu domingo de Páscoa, mas me surgiu uma dúvida bem básica na cabeça que eu acho que você pode solucionar... Qual a real diferença entre um Estado laico e um Estado ateu? Um Estado ateu necessariamente reprimiria as religiões? Não sei, acho que fico um pouco confuso com as definições de laicidade (se é que esse é o termo correto).
Erick Fishuk: Bem, vamos lá, no pouco que eu posso chegar, recordando que necessariamente tive que ser longo... Primeiramente, uma palavra sobre “ateísmo”. É difícil defini-lo estritamente como uma “irreligião” ou como uma simples “ausência de religião”, como faz a maioria, porque estas duas posições constituem uma indiferença com relação à religião (ou, em última instância, ao teísmo), ou ainda porque conceitos como “religião” e “Deus” podem ser estranhos à linguagem delas. Exemplo: o budismo, dessa forma, não seria uma “religião ateia”, mas simplesmente um sistema “não teísta”.
O ateísmo, pois, não é uma indiferença, e sim uma contraposição, uma negação do teísmo e das religiões, uma atitude positiva nesse sentido. Assim, se o ateísmo, para ser mais exato, não é uma religião, mas também não é apenas uma “irreligião” ou uma simples “ausência de religião”, ele seria, digamos, uma postura para com a religião e o teísmo, porque ele só é concebível tendo como referência a religião e o teísmo originais que ele nega.
(É claro que, de alguma forma, tudo o que não é teísmo e religião se encaixa nas categorias “irreligião” e “não teísmo”, e assim, da mesma forma, o ateísmo e a antirreligião. Mas aquele esclarecimento tem mais o fim didático de lembrar que nem todo “não teísta” ou “irreligioso” é ateu ou antirreligioso, e que dizer que “ateísmo” é simplesmente “não acreditar em Deus” ou “ausência de crença” é uma definição muito pobre.)
Agora, relacionando isso com sua pergunta. É claro que um Estado ateu não seria um Estado laico, porque o ateísmo, não sendo uma simples “ausência de crença”, mas uma “postura para com a crença”, também terminaria por se tornar uma visão de mundo favorecida. Laicidade é neutralidade, ou seja, o Estado não favorece a propaganda de nenhuma crença em especial, seja teísta, antiteísta ou mesmo não teísta. Todos têm direitos iguais, na medida em que não são nem mais nem menos favorecidos ou, da mesma forma, nem são favorecidos. O Estado não oferece subsídios a nenhuma dessas organizações privadas, e todas, assim, encontram as mesmas condições e obstáculos para sua propagação. A escola, por exemplo, limita-se a ensinar ciência, ou seja, o conhecimento do mundo objetivo, deixando que a questão subjetiva/religiosa/moral seja restrita à família ou ao círculo de criação.
Como você bem sabe, não é isso exatamente que acontece no Brasil, e não preciso citar exemplos. E pessoalmente não penso que seja possível que os Estados nacionais, na forma que existem hoje tanto no Ocidente quanto no Oriente, possam ser realmente laicos, pois religião e Estado nasceram juntos no início da civilização, e certamente só a superação deste modelo de Estado é que vai gerar a superação da instituição religiosa tradicional e, além disso, uma mudança na relação entre governo das coisas objetivas e espiritualidade pessoal. Tratei disso em textos antigos, que pretendo socializar em breve no blog [a maioria já publicada aqui], mas se quiser já os envio a você por e-mail.
É difícil dizer se um Estado ateu necessariamente persegue as religiões, pois temos muitas variantes nesse tipo de pergunta. Na prática, os únicos Estados ateus que existiram até hoje foram os países do chamado “socialismo real”, ou seja, eles deliberadamente perseguiam religiões e religiosos e faziam propaganda do ateísmo (e não apenas da visão científica do mundo), especialmente a URSS em seu início. Na teoria, porém, podiam adotar ou o princípio da laicidade, como a própria URSS em todas as suas Constituições, ou mesmo o explícito “ateísmo de Estado”, como a Albânia comunista de Enver Hoxha por uma lei de 1967 (além do que, na Constituição de 1976, se afirmaria que “a religião foi varrida do país” e que “é proibido manter organizações religiosas”).
Por outro lado, Estados ocidentais que hoje, por um ou outro motivo, têm uma religião oficial, não necessariamente perseguem as outras. As monarquias nórdicas, por exemplo (como a Suécia dos míticos “85% de ateus”...), têm as Igrejas luteranas nacionais como religião de Estado, cujo líder, como no Reino Unido, é o monarca, cuja família deve ser necessariamente filiada a essa religião. A Argentina também tem o catolicismo como religião oficial, e nem por isso deixa de ter indicadores sociais mais avançados do que o Brasil. (Como você sabe, muita coisa no Brasil só existe no papel, e nossa própria laicidade estatal não deixa de ser um adorno positivista sem paralelo na realidade...)
Agora, quanto à ideia do “Estado ateu”, não creio ser ela defendida por nenhum “ateu ocidental” (uma redundância) das principais democracias: parece-me que todo ateu, em geral, é um laicista, ou seja, defende a laicidade do Estado, até porque quase todo ateu é um liberal e não quer impor suas crenças aos outros, como os cristãos fundamentalistas; ele sabe que o favorecimento de sua própria crença pelo Estado desfavoreceria as outras religiões, o que justamente acontece com ele hoje. Por isso, toda luta contra perseguições religiosas a cristãos, muçulmanos etc. em todos os países também é uma luta dos ateus enquanto laicistas/secularistas.
Daí a necessidade de se desfazer uma confusão. Geralmente certos intelectuais católicos arbitram uma diferença falsa entre “laicidade” e “laicismo”, dizendo que a primeira seria a “qualidade do Estado laico que não favoreceria nenhuma crença”, enquanto o segundo seria a “doutrina daqueles, especialmente ateus, que querem afastar a religião da vida pública”. Nada mais errôneo! Na minha opinião (outros podem discordar), “laicidade” é, de fato, a “condição do Estado laico, ou de qualquer outra esfera pública ou privada”, enquanto o “laicismo” nada mais é do que a “doutrina que prega a laicidade dessas esferas” para que nenhum credo se favoreça. Simples desfazer esse jogo de palavras, não?
Thiago Leme: Acho que discordo de você na questão da definição de ateísmo, e isso influencia minha leitura de todo o resto. Minha definição é mais próxima da definição “pobre” que você citou: a meu ver, ateísmo é a ausência de crença em uma divindade. Falo isso porque nem todo ateu é antirreligioso, e porque a maioria de nós é ateu porque percebe a falta de evidências da existência de um poder divino. É praticamente uma questão de sermos indiferentes...
Eu não só sou “a-teísta” como sou “a-crente em unicórnios” ou “a-crente na homeopatia”. Não é uma questão de termos uma posição contra essas crenças. Apenas não participamos delas.
Não sei se faz sentido o que acabei de escrever. Ou se no fundo pensamos da mesma maneira. Só acho que da maneira que você colocou, deu uma importância grande demais para a “superstição Deus”.
A meu ver, o Estado não deve incentivar nem dar apoio a nenhuma crença infundada. Nisso eu incluo a religião, a homeopatia, a astrologia, a crença em duendes etc.
Dessa forma, a meu ver, o Estado deve ser “a-teísta”, “a-crente em duendes”, etc.
Claro que não acho que devemos ir na casa das pessoas e impedi-las de fazer cultos aos duendes, mas o Estado deve agir como se não existissem duendes, e agir como se não existisse Deus. E por isso deve ser ateu.
É provável que o meu Estado perfeito, que eu chamo de Estado ateu, você considere Estado laico, e eu esteja confundindo as definições.
Erick Fishuk: Quando falo “indiferente”, talvez não esteja querendo dizer a mesma coisa que você: penso-a como a não correspondência da noção de deuses no vocabulário conceitual de determinada crença, como no budismo e em outras crenças orientais ou ditas “primitivas”. (Por isso dou atenção à “superstição Deus”, mais precisamente ao conceito filosófico do Deus onipotente, onisciente etc.) O ateu, justamente por negar o monoteísmo (e mesmo involuntariamente, já que a negação implica que o conceito negado faça parte de seu vocabulário conceitual), não pode ser indiferente.
E negar não é necessariamente combater militantemente: por isso, como você bem disse, nem todo ateu é antirreligioso (na prática, o conceito de deuses protagoniza uma querela filosófica intelectual, enquanto a religião é uma instituição material, política, que tem implicações mais sérias). Além disso, apenas ser indiferente (o que pode advir também do conceito de deuses ter-se tornado estranho à filosofia pessoal do indivíduo) não é ateísmo: é, no máximo, “não teísmo”, categoria na qual o ateísmo também se encaixa. Assim, todo ateu é um não teísta, mas nem todo não teísta é ateu.
Na verdade, é disfuncional a gente fazer uma lista do que a gente não crê, colocando “a-” em tudo. Acontece que o termo “ateísmo”, tendo sido originariamente cunhado para designar quem não acreditava na religião oficial, passou a designar, só a partir do século 18, uma doutrina bem claramente definida de negação da religião, do conceito de deuses e da metafísica tradicional. Assim, ele não é, na prática, uma mera ausência ou indiferença, mas uma doutrina positiva.
O “Estado laico” deve ser indiferente a doutrinas particulares positivas, até porque, em todo caso, embora o ateísmo não seja uma religião no sentido estrito, é uma postura para com ela. O “Estado laico”, assim, é indiferente, nem ajuda nem atrapalha, e como eu disse, isso não é ateísmo. Portanto, por exemplo, a escola deve apenas se limitar a ensinar ciências objetivas: se elas levam ou não ao ateísmo, isso é decisão pessoal do estudante ou da família/comunidade em que ele vive. Por isso, mesmo propaganda do ateísmo o Estado ou a escola não devem fazer.
Comentário de Lucas Moreira Jorge: Filosoficamente, o ateísmo pode ser compreendido de duas formas: o ateísmo agnóstico seria a negação da divindade em qualquer manifestação, mesmo que absolutamente incompreensível; o ateísmo gnóstico seria a negação da divindade enquanto não há explicação racional para o incompreensível.
Assim, enquanto o ateu agnóstico está vitaliciamente [sic] convicto de que nenhum evento é nem será resultado da intervenção divina, o ateu gnóstico se mantém aberto em mudar seu posicionamento, passando a ser crente no irracional, desde que algum evento divino ocorra diante de seus olhos.
Introdução de 2012 a “Estado laico ou Estado ateu?”: Este título tem uma breve história. Tudo começou quando meu amigo ateu daqui de Bragança Paulista, Thiago Leme, professor de Matemática formado, assim como eu, pela Unicamp, me escreveu privadamente indagando se o Estado laico não seria idêntico a um “Estado ateu”, já que não apoiaria nenhuma religião em especial.
Respondi argumentando, basicamente, que a diferença básica entre um “Estado laico” e um “Estado ateu” é que o primeiro não apoia nenhuma crença, nem mesmo o ateísmo, ou seja, mantém-se neutro no quesito teísmo e religião. Já o segundo faria propaganda explícita do ateísmo como negação da divindade e, mesmo que não proibisse outras crenças religiosas, não deveria manter-se neutro quanto a opiniões sobre o teísmo e as religiões, atacando-as frontalmente como política oficial.
A confusão básica que o Thiago fez foi pensar que “ateísmo” é simplesmente “não crer em deuses”. Ora, “não crer em deuses” é a atitude de qualquer pessoa cuja religião ou filosofia de vida não opera com o conceito de “deus” e que, portanto, não pode negá-lo explicitamente.
Os dicionários filosóficos, em oposição aos comuns da língua portuguesa, ressaltam bem que “ateísmo” é a “negação de Deus”, e geralmente usam “Deus”, e não “deuses”, porque o ateísmo, um conceito ocidental, nasceu justamente da negação do Deus único cristão. (É claro que o Giuliano não concordaria comigo sobre a “origem histórica” do ateísmo, mas isso não afeta a definição filosófica com a qual concordamos.)
Depois de minha resposta, o Thiago ainda escreveu algumas novas indagações, e também as respondi prontamente. Talvez por falta de tempo, ocupado com seu ótimo trabalho, ele não me retornou a nova resposta, mas creio que o ciclo já é suficiente para criar uma postagem sobre o assunto, com o material editado de nossa conversa.
Por enquanto, me limito a publicar um artigo que escrevi para a Revista Verdade, daqui da região, de abril deste ano [2012], inspirado nessa conversa, mas de modo bem mais resumido e, no bom sentido, vulgar. O título do artigo é mesmo “Estado laico ou Estado ateu?”, e o acréscimo da “parte” nesta postagem [que tinha o subtítulo “parte 1”] deveu-se à continuidade do assunto, que vou proceder na quarta-feira publicando a conversa.
Comentário de Fabio Machado, dono do blog “Haeckeliano”: Tenho algumas questões sobre esse tema. Apesar de entender o argumento, eu consigo ver como um religioso veria que um estado laico é, de fato, um Estado ateu.
Muitos religiosos (neopentecostais e até muçulmanos) veem a cultura ocidental como algo desvinculado de Deus, e não meramente imparcial. Algo que avança, com sua “democracia” e “iPads”, uma agenda ideológica que busca cortar a influência religiosa da sociedade, o que tornaria, na prática, o secularismo em uma postura ativa de antirreligião.
Essa postura é muito visível no caso norte-americano do neocriacionismo, onde a estratégia desenvolvida para inserir religião nas salas de aula foi feita a partir da proposição de que o “Darwinismo” era a fonte de todos os males modernos. O secularismo, nesse caso, defende o ensino de evolução, que é maléfico e impositivo [segundo os religiosos], enquanto o “design inteligente”, mesmo que sob uma roupagem secular, balanceia a equação.
Esse é um caso específico, mas poderia ser estendido para outros aspectos da vida moderna, onde advogar por “ciência e razão” é, efetivamente, ir contra preceitos religiosos de uma parcela considerável da população. Como, então, convencer alguém que tem crenças religiosas que são diretamente contrárias à laicidade do Estado de que o Estado laico não é contrario à sua religião (sendo que nesse caso [da visão religiosa extremada] ele é)? Ou ainda, nesse caso, por que o Estado não passa a ser efetivamente ateu, se ele está sendo contrário a um tipo específico de religião que fere a laicidade?
Minha resposta: Caro Fabio, obrigado pela leitura e pelo seu comentário. O ônus de não distinguir entre Estado laico (que não interfere em questões religiosas) e Estado ateu (que interfere, no sentido de suprimi-las ou contrariá-las) é dos próprios religiosos.
Na verdade, esses dois conceitos (Estados laico e ateu), próprios das sociedades ocidentais, são inseparáveis do próprio desenvolvimento histórico delas: é claro que o Estado laico, das sociedades democráticas, e o Estado ateu, dos Estados socialistas ditatoriais.
Assim, no caso específico do Estado laico, ele foi condição para que todas as religiões pudessem ter igual oportunidade de manifestação, o que deu muito certo nas sociedades ocidentalizadas desenvolvidas.
No Brasil, é claro, onde todas as ideias que importamos da Europa não passam de fachada, Estado constitucionalmente laico não implica Estado efetivamente laico: vemos isso pelo favorecimento oficial dos cristianismos, especialmente o católico.
Portanto, disso inferimos que laicidade e democracia representativa são totalmente estranhos a certas sociedades, como a islâmica. Não é à toa que o líbio Gaddafi dizia que os parlamentos eram uma farsa, e criou um regime no qual o islã era a religião oficial.