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1. Obrigado pela resposta, pensei que nem responderia, ótimo texto também.
Mas prosseguindo, estou fazendo algumas reformas radicais na minha vida. Há alguns anos estou procurando ouvir músicas de todo o mundo, estou por dentro dos memes da Rússia, vejo as notícias todos os dias de vários países. Meu irmão é doutor em Sociologia na USP, isso tem me ajudado com o acesso a certas coisas. Parei de assistir futebol, comecei a me interessar por outros esportes e estou começando a fazer receitas da Eurásia em casa e tentando influenciar a família a seguir as antigas tradições. Uso botas, e não tênis, e calças de lã, estilo caçador. Adoro a caça também, por ser da cultura de lá, mas não a apoio no aspecto político por ser uma política de direita.
Acho, caro confrade Erick, se me permite te chamar assim, que esse encontro com o destino já aconteceu com outras pessoas da minha família e imigrantes: certos parentes nunca se adaptaram à realidade do Brasil. Estou também à procura de um alfaiate para fazer algumas recriações de roupas típicas, que possam ser usadas frequentemente. Minha irmã sabe algumas coisas de moda, tenho também as réguas de alfaiate, quero reproduzir um sobretudo da infantaria soviética.
Foi um grande impacto quando tive contato com alguns russos. Percebi algo perdido, uma pureza que nunca fora atribuída a eles, não dá para não se envolver. Estou trocando mensagens com uma jovem de Moscou e é outro nível: o Brasil foi destruído, nossa cultura não favorece laços e vivemos esse inferno político. Estamos aqui falando quase em um subterrâneo, duvido que muitas outras pessoas gostem de diálogos assim.
Liguei esses dias para vários antiquários, para procurar peças da Eurásia. Liguei até para o Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas nenhuma peça dessa região. No interior de São Paulo há uma loja de antiguidades militares, mas só tem peças do Brasil e USA, e não me atrai muito. Andei pesquisando sobre rádio amador e outros, pensei assim de repente que possa haver uma possibilidade de usar esse meio, mas estou estudando essa hipótese.
Sinto que os orgãos de segurança também não “curtem” muito nosso interesse, uma observação. Te procurei quando percebi que não tinha nenhuma organização com informações na internet, lojas de roupa, músicas de lá em alta aqui, o que me deixou de sobreaviso, exatamente com relação ao que disse. Outra coisa que quero fazer é comprar um samovar, e tomar bebidas de lá, comer doces de lá, os fazer.
Claro que vemos aí um grande esforço da sua parte para propagar essas informações, e como moro em São Paulo, tenho certa facilidade em cooperar de alguma forma. Imagine como seria interessante organizar alguma coisa aqui, quero fazer algo na prática, ao menos te ajudar em alguma coisa do canal que me for possível. Não sei se está a organizar algo nesse sentido, mas podemos fazer isso, ao menos unir interessados em contato com a Eurásia.
2. No último e-mail contei um pouco das minhas experiências e o que venho fazendo e adotando. Neste e-mail quero explicar um pouco melhor minha visão sobre tudo isso.
Creio que a elite brasileira é muitas vezes alienada e usada para seguir pessoas como Bolsonaro. Existe um movimento novo que chama “macho alfa”, um tipo de neoestoicismo que promove uma heterossexualidade baseada apenas em temas americanos, como beber cerveja, ter uma caminhonete, uma “arma”, se achar o machão por aí, ser monogâmico [?] e antissocial.
Não há uma criação cultural ou artística no Brasil que tenha um caráter europeu ou russo atualmente. Vemos também valores em queda, um futuro estranho com muitos jovens depressivos e problemas nos debates de gênero, que mais criam problemas do que resolvem algo, com a própria sexualidade em si desestruturada por vários motivos.
[...] Tenho 23 anos e não vejo um futuro aqui em nenhum estilo ou ideologia, mesmo religião. Gosto da CCCP [URSS] e da Igreja Ortodoxa, mas vejo coesão apenas na Rússia. Portanto não tenho nada a perder, estou aberto para planejar e fazer algo que possa ser de nosso interesse. Por enquanto venho mudando hábitos, roupas, quero mudar meus móveis, quero aprender o russo, vou me matricular em uma escola aqui.
O que puder me ensinar sobre a cultura, pode mandar quantos e-mails quiser. Se tiver contatos também agradeço. Para maior cooperação, se puder me passar o contato de alguém que venda comidas típicas, roupas, móveis ou qualquer coisa assim, ou se você tiver algo que queira vender posso comprar, e também tenho uma lojinha que tem algumas recriações históricas...
Resposta: Entendo perfeitamente sua preocupação, acho que muitos pensam como você, tentando fugir um pouco do modo de vida imposto pela mídia e pelo mercado. Como eu te disse, também fui assim na adolescência, mas na falta da infinita informação que temos hoje disponível, não segui uma linha ou estilo definido, mas apenas meu próprio gosto.
Porém, minha opinião pessoal é que esse tipo de “recriação” que você faz, assim como outros grupos tentam recriar culturas de épocas passadas, é um pouco exagerado. Naturalmente você pode viver do modo que mais te agrada, mas penso que o “Brasil de raiz” já tem muitas coisas que podemos aproveitar pra poder fugir da massificação. Por exemplo, desde muito pequeno escuto música sertaneja, por influência dos pais, e desde os 6 anos moro no interior de SP, um jeito de vida muito diferente da capital. Além disso, me interesso também pelas culturas regionais do Brasil como um todo, o que amplia muito meu vocabulário linguístico e cultural dentro do “português” mais geral, pra além das variantes cultas. E isso me ajuda muito a traduzir certas expressões idiomáticas de outras línguas eslavas, que ficam inoperantes se dominamos apenas o português padrão culto, pois trata-se antes de traduzir situações, e não palavras.
Isso é só um exemplo, mas como eu disse, não é uma crítica às suas escolhas. Pelo contrário, esse seu empenho em pesquisar, recriar e localizar revelam sua capacidade de ótimo pesquisador. Apenas digo que nem sempre precisamos fugir muito do que está a nosso alcance, pois até mesmo nos outros países o povo real raramente vive com esse padrão “folk” codificado por alguns grupos. Inclusive, acho mesmo que quanto mais temos um pé firme ou um conhecimento de nossa cultura de origem, mais conseguimos lidar com culturas estrangeiras, já que muita coisa passa a não ser mais tão imprevisível.
Obviamente, a desagregação dos valores e dos propósitos entre a juventude ocidental é um fato. E há vários caminhos pra lidar com isso, pois o mundo não é binariamente dividido em “oriente e ocidente”, “capitalismo e comunismo”, “estatismo e liberalismo”, “Rússia/China e EUA”. Aliás, o próprio conceito de “Eurásia” é bastante problemático, pois reivindica uma unidade que jamais houve em nenhum momento da história humana. Tenho poucas leituras a respeito, mas ele me parece mais uma criação artificial de certos grupos intelectuais ligados a Putin do que uma abstração científica da dinâmica humana. Porém, essa discussão me parece bem útil dos pontos de vista: 1) cultural, já que tomamos consciência da barreira midiática que nos separa dos países eslavos e da Ásia Central; 2) geopolítico, já que nos deixa mais clara a política tendenciosa de contenção praticada pela OTAN e a importância do bloco russo-chinês como ator emergente do cenário global.
No momento era o que eu tinha pra dizer. Todas as minhas respostas às suas preocupações decorrem daí. Mesmo assim, ressalto que seria interessante ocuparmos o quanto pudermos de meios de comunicação (incluindo mídias sociais) pra colocarmos essa questão, bem como reunirmos outros interessados, se não em formar um bloco de apoio a essa tal “Eurásia”, pelo menos em reunir o máximo de informação sobre a região (com ênfase, sobretudo, nas culturas túrquicas, persa, chinesa e eslavas, mas sem deixar a árabe, caucasianas e índicas) e criar uma “massa crítica” pra consulta, discussão, fruição e tudo mais que interessar.