quinta-feira, 11 de abril de 2024

O francês de Qays Saeed (2020)


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Após a “revolução de jasmim” de janeiro de 2011, que deu início às outras revoltas no mundo árabe logo sufocadas e, por vezes, descambadas em governos ainda mais repressivos ou, nos piores casos, em guerras civis até hoje intermináveis, a Tunísia voltou a ter um ditador. Em 2019, no quadro de seu novo regime democrático parlamentar, o povo do pequeno país do extremo norte da África e ex-colônia francesa elegeu como presidente o jurista e professor universitário Qays Saeed, que no mais das vezes aparece como “Kaïs Saïed” na mídia francesa. Uma transliteração mais estrita seria “Qays Saʿīd” (قيس سعيد), mas a primeira versão que dei, a meu ver, parece mais próxima do original e palatável pra não falantes de árabe.

Na verdade nem sei exatamente por que durante anos guardei parte deste vídeo em meus backups, pretendendo, claro, o legendar quando ainda tinha o canal Pan-Eslavo Brasil. Talvez o trabalho tivesse mais interesse imediato, mas decidi mesmo assim trazer este raro trecho de Saeed falando francês, língua que ele domina (embora fale com forte sotaque), ao se encontrar com o homólogo francês Emmanuel Macron em Paris, em 2020. Ele disse que sabe francês, gosta do idioma e fez nele boa parte de sua formação acadêmica, mas que como está também se dirigindo ao povo da Tunísia, decidiu falar em árabe (naturalmente, no fus-haa padrão, com ocasionais traços regionais).

Por que Qays Saeed é um ditador? Porque ele logo começou a se desentender com o parlamento igualmente eleito por voto popular, sobretudo com o partido então dominante, o An-Nahda (Renascimento, às vezes romanizado Ennahda), de matriz islâmica. Em 25 de julho de 2021, com o povo protestando contra a crise econômica e a impotência do governo diante da pandemia de covid-19, Saeed “suspendeu” o parlamento, fez o exército bloquear o prédio e se arrogou os principais poderes, até que ele dissolveu a casa em 30 de março de 2022. Em julho de 2022, com participação de apenas 30,5%, uma nova constituição foi submetida e aprovada por referendo popular, abolindo o parlamentarismo de 2014 e restabelecendo o presidencialismo. Em março de 2023, um novo parlamento tomou posse após as eleições nos dois meses anteriores, mas a maioria dos grandes partidos, como o An-Nahda, boicotou a votação e somente 11% dos eleitores aptos foram às urnas.

Nesse ínterim, sob a vista grossa de uma França que perde cada vez mais influência entre os tradicionais parceiros africanos e de uma União Europeia que tenta a todo custo barrar a imigração ilegal através do Mediterrâneo, Saeed manda prender a maior parte dos desafetos políticos, interfere no judiciário e toca o “apito pra cachorro” do racismo contra a população negra. Toda essa deriva autoritária não resolveu a pobreza crescente nem a inflação galopante, a qual tomou vulto nos últimos anos de assombro inflacionário no mundo todo. Mesmo assim, objeto de culto à personalidade e associado à onda “populista” global, Saeed tem o apoio de pelo menos metade da população, pois o antigo parlamento era considerado símbolo de uma classe política corrupta e inepta (pra muitos, encarnada exatamente no An-Nahda) e, portanto, da desilusão com o gatilho da “primavera árabe” em 2011.

Eu mesmo transcrevi e traduzi o texto da parte em francês falada por Saeed, sem ter tempo de legendar o vídeo em si:


Monsieur le Président a parlé en langue française. J’ai fait toutes mes études en langue française. Mais aujourd’hui, parce que les Tunisiens me suivent partout, je vais parler en arabe, ma langue maternelle. Peut-être je corrigerais un certain nombre de concepts ou de traductions, parce que j’ai toujours aimé la sémantique juridique. J’ai étudié pratiquement une vingtaine d’années sur les origines des mots, des concepts, et ça m’a énormément enrichi. As-sayyid ra’iis al-Jumhuriyya al-Faransiyya… [Monsieur le Président de la République française].

O senhor presidente falou em língua francesa. Fiz todos os meus estudos em língua francesa. Mas hoje, como os tunisianos estão me acompanhando em toda parte, vou falar em árabe, minha língua materna. Talvez eu corrigisse um certo número de conceitos ou de traduções, porque sempre amei a semântica jurídica. Estudei por praticamente vinte anos a origem das palavras, dos conceitos, e isso me enriqueceu enormemente. As-sayyid ra’iis al-Jumhuriyya al-Faransiyya… [Senhor presidente da República Francesa].

O jornal tunisiano La Presse também dá as seguintes transcrições: “Pour ma part, j’ai fait toutes mes études…” (De minha parte, fiz todos os meus estudos...), “mais aujourd’hui et parce que les Tunisiens...” (mas hoje e porque os tunisianos...) e “Je rectifierais, peut-être, un certain nombre” (Eu retificaria, talvez, um certo número...).


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