domingo, 14 de janeiro de 2024

O desserviço do Big Brother Brasil


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/djamila-bbb

No dia 12 de janeiro, foi publicado de madrugada no site da Folha de S. Paulo um artigo de opinião da filósofa brasileira Djamila Ribeiro, grande pensadora do movimento negro e teórica do antirracismo (com o perdão da gíria machista, o Silvio Almeida de saia!), com o mesmo título que indiquei acima. Ela não cita nomes, mas quem lembra notou que se trata do Babu Santana, que participou do BBB 20 (talvez o primeiro a abordar amplamente questões societárias, como a masculinidade tóxica) e soltou numa conversa com uma colega que a palavra “negro” tinha origem grega e significava “inimigo”, portanto, o correto seria dizer que pessoas como ele eram “pretas”. O absurdo da conclusão é tamanho (quem estudou o mínimo de latim conhece a palavra níger, -gra, -grum), e ficamos tão “perplectos” sobre a origem dela, que o próprio Henry Bugalho fez um vídeo falando a respeito, cujo link indiquei no meio do texto.

Spoiler: a meu ver, a ocasional rejeição à palavra “negro” pode ser um decalque do debate norte-americano, do qual quase tudo é copiado aqui em matéria de movimento antirracista. Em inglês, “black” pode ser simplesmente a cor preta ou a pessoa negra (de “pele preta”), enquanto a palavra “Negro”, de origem hispano-portuguesa e tristemente ligada ao tráfico escravocrata moderno, assim como seu derivado fortemente ofensivo “nigga”, caíram em desuso. Djamila não cita os EUA, mas desfaz a confusão.

Nada pessoalmente contra o Babu (minha vó adora as novelas em que ele atua!), mas o texto da Djamila me impressionou tanto – e olha que nem tenho aberto muito a Folha nos últimos tempos – que resolvi o roubar e republicar aqui, sem alterações textuais ou de estilo, mas apenas inserindo uns itálicos quando achei pertinente. Djamila é uma das ativistas que, dada sua estatura intelectual, não cedeu à vaidade e à egolatria da “lacração”, por isso muito do que ela fala quase sempre desagrada aos radicais de Twitter. E quando falo “lacração”, não falo de bandeiras identitárias, antiopressão ou mesmo de esquerda em geral, e sim do que uma vez Marcelo Tas, no Jornal da Cultura, já tinha atribuído ao próprio Bolsonaro logo que ele tomou posse, ou seja, o estilo lacrador.

Atualizando mais um pouco, eu diria que os “militantes” passaram a privilegiar a escala industrial cada vez mais imposta pelos algoritmos do que a lisura do conteúdo em si, e é exatamente nessa ferida que Djamila põe o dedo. As bandeiras progressistas foram cooptadas pelo que eu chamaria “ciberativismo” e que muitos já chamavam de “militância de sofá”, isto é, apenas a produção de conteúdo importa, e não mais a participação presencial ou o próprio aperfeiçoamento intelectual. E, sobretudo, eu diria, a autocrítica, pois a autocrítica é o pecado mortal daqueles que se arrogam donos da razão e buscam a impor a seus adversários, se valendo pra isso de um séquito cego chamado de “seguidores”. Tretas de Twitter ficam e só têm impacto no próprio Twitter, ou, como diria Sérgio Sacani, ele é o próprio “metaverso”, pois o que tá lá fica lá e acaba lá.

Bugalho, assim como PC Siqueira e, digamos, Sabrina Fernandes, fazem parte de uma geração que sempre usou o YouTube como vloggers, e não “influenciadores”: eles busc(av)am quem concordasse com eles, e não que concordassem com eles. Eu fiz parte de uma geração que “traduzia conteúdo” pra postar na plataforma, e quando a seleção natural me botou pra fora, não desejei seguir a lógica dominante. Toda essa gente simplesmente foi varrida da internet, que dirá outras redes sociais nascidas exatamente dentro dessa “lógica”!

Resumindo, o engajamento, a repercussão e a imagem se tornaram mais importantes do que o convencimento, a divulgação e o respeito. Indiretamente, Djamila recorda que outros grupos ou bandeiras também foram cooptados pela lógica de mercado e perderam seu caráter de contestação, o que, claro, não implica que suas causas tenham perdido valor. Assim como ela, acho simplesmente que devemos rever, repensar o modo como queremos realizar transformações substanciais sem sermos usados pelas tecnologias mais avançadas de que dispomos, mas as usando. Como diz o brasão de São Paulo capital, “Non ducor, duco”.

Pensemos também sobre como o recurso quase exclusivo aos reacts, que o canal Meteoro Brasil via como “o futuro das propagandas eleitorais”, na verdade – a meu ver – envenenou os debates sobre política e ideologia. Mas como minha intenção não era ter feito um segundo texto, e me desculpando pelo desabafo, segue o precioso material:


É preciso regular as redes sociais e as empresas de marketing digital

Seguindo as reflexões das duas últimas colunas, quero falar sobre os perigos do aproveitamento de pautas sociais a partir de um caso concreto.

Numa edição do Big Brother Brasil, um participante disse que era incorreto se referir à população negra como “negro” ou “negra”, que o correto seria dizer “preto” ou “preta”. Esse participante, hoje influenciador, passou essa informação sem a mínima responsabilidade, e centenas de outros passaram a replicar nas redes sociais levando uma série de pessoas a erro.

Isso é irresponsável por vários motivos: há toda uma tradição de estudos a respeito do tema e, além disso, o movimento negro brasileiro definiu a categoria negro como a soma de pardos (negros claros) e pretos (negros retintos). Assim também está definido no Estatuto da Igualdade Racial.

Por causa disso, muitas pessoas pardas passaram a se declarar pretas, o que pode ter ocasionado uma apuração equivocada pelo censo do IBGE, algo alertado diversas vezes pela intelectual Carla Akotirene, que, por sua vez, sofreu vários ataques por pautar o que era correto.

Desde essa edição do programa, páginas de conteúdo voltado à população negra passaram a postar sobre BBB todos os dias sem informar seus seguidores do porquê dessa mudança radical. De repente, em vez de se postar sobre temas relevantes para a população negra, essas páginas viraram uma espécie de relações públicas do programa, sem publicizar qual acordo foi feito, se estavam recebendo por isso.

O mesmo aconteceu com algumas figuras negras com algum alcance: pessoas que criticavam o programa com veemência se tornaram comentaristas diárias sem o cuidado de comunicar a quem os segue o porquê disso. O que, mais uma vez, nos leva a crer que há acordos não ditos. Pessoas ligadas a organizações sociais também passaram a comentar e a usar a palavra “preto” sem o mínimo respeito à história do movimento negro. O silêncio e a omissão de ativistas foram gritantes.

Um verdadeiro acinte, pois não faz sentido permitir que uma grande corporação paute as demandas da população negra brasileira, em vez de se respeitar os acordos coletivos construídos com muita luta.

Pessoas com mandatos e ligadas à política institucional também fazem as vezes de relações públicas do programa e eu pergunto: onde fica a impessoalidade da administração pública? Em vez de pautarem a democratização da mídia, estão legitimando o monopólio midiático? Isso seria do interesse da população brasileira, a quem eles representam?

É grave que um programa na maior emissora do país paute temas referentes à população negra com a conivência de influenciadores, muitos agenciados por empresas de marketing digital. São desserviços como esse que facilitam a vida de pessoas desonestas intelectualmente para argumentar que raça é fraude no país – último das Américas a abolir a escravidão e que tem obrigação de reparar desigualdades históricas baseadas em raça.

O Brasil não é os Estados Unidos e aqui ainda é importante que falemos sobre colorismo, e como há diferença de tratamentos entre pessoas negras claras e negras escuras. Não se trata de dividir a população negra, nem de dizer que pardos não sofrem racismo. Sofrem, claro, são negros, mas é importante, a partir de dados objetivos – pois é assim que se cria demandas de políticas públicas – que tenhamos informações sobre a realidade concreta de pessoas pardas e pretas para que consigamos formular saídas emancipatórias e pensar as relações de desigualdade intragrupo.

Há muita literatura sobre o tema, mas pessoas que se intitulam ativistas acreditam que gravar um vídeo ou fazer um textão, sem a mínima responsabilidade histórica, dá conta de pensar um assunto tão complexo.

São diversas pautas sociais esvaziadas, desde confundir objetificação do corpo feminino e consumo de mulheres com empoderamento a se acreditar que debater sobre um relacionamento no BBB é discutir os efeitos do patriarcado. E não se enganem, cada vez mais as táticas se sofisticam.

Provavelmente vocês verão psicanalistas, pessoas com alguma formação acadêmica debatendo sobre o BBB utilizando Lacan, Beauvoir ou algum autor conceituado dando ares de importância a temas absolutamente irrelevantes. E quem ousar criticar apontando erros na análise ou no próprio programa será chamado de elitista, mesmo que a arrecadação do BBB passe de R$ 1 bilhão.

É necessário estar atenta a diversas formas de desinformação transmitidas por esse programa e replicadas aos tubos por influenciadores agenciados por empresas de marketing digital.

Dito isso, é preciso regular as plataformas de redes sociais e as empresas de marketing digital. O povo não pode seguir sendo feito de bobo [provável referência a um velho bordão esquerdista que também caberia na boca de um bolsominion, “O povo não é bobo! Abaixo a Rede Globo!”].