terça-feira, 18 de abril de 2023

Lavrov não deveria estar no Brasil


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Resolvi republicar este artigo de opinião que saiu na Folha de S. Paulo de ontem, dia 17, e que meu amigo Cláudio, defensor dos ucranianos, me recomendou pelo WhatsApp. Seu título é “Chanceler russo não deveria ser recebido pelo Brasil” e foi escrito pela socióloga Svetlana Ruseishvili, que tem origens russas, ucranianas e georgianas, é professora de pós-graduação na UFSCar e com quem já mantive contato em redes socias. Ele resume exemplarmente minha própria visão sobre a guerra em curso e sobre as falas inconsequentes de Lula (embora eu prefira suas besteiras às crises diplomáticas que Bolsonaro causava...), e por isso também estou enriquecendo com outros vídeos que o Cláudio mandou depois. A caricatura abaixo é igualmente parte de uma das imagens que ele postou em seu story no aplicativo! Apenas retoquei as transliterações e parte da redação, mas não mexi no estilo.



Sergei Lavrov é o porta-voz da política externa russa desde 2004 e, assim como o presidente russo, Vladimir Putin, está sob sanções individuais por parte de União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e outros países. Lavrov é um dos ministros mais duradouros e importantes no governo Putin: comandava a pasta quando a Rússia anexou a Crimeia em 2014; quando bombardeou a população civil com as armas proibidas na Síria, em 2015; quando iniciou a guerra criminosa contra a Ucrânia, em 2022.

A sua visita ao Brasil é desnecessária e será taticamente usada pelo regime de Putin para fortalecer o seu argumento antiocidental, que tem se tornado uma armadilha ideológica para os países do “Sul Global”.

No dia 13 de abril, a Folha publicou uma carta de Lavrov (“Cooperação da Rússia com América Latina baseia-se em abordagem desideologizada e não ameaça ninguém”) endereçada aos latino-americanos às vésperas de sua visita à região. Além de mentiras costumeiras, o texto retoma o raciocínio adotado no discurso de Putin em 30 de setembro de 2022, quando o presidente russo lançou mão da retórica anticolonial para culpar o Ocidente de ter explorado, escravizado e expropriado povos não ocidentais.

Ele também usou os princípios do relativismo cultural para defender os “valores tradicionais” russos (fundamentalismo religioso, família heteronormativa, autoritarismo político) contra a “degradação moral” do Ocidente representada pelos direitos humanos, feminismo, movimento LGBTQIA+, liberdade de expressão e outros direitos sociais. Tudo aquilo para, enfim, legitimar o seu direito soberano de invadir, interferir e restringir os direitos da população nos países que se encontram em sua “zona de influência”. Putin nunca quis combater o imperialismo, mas sim ter direito de exercer o seu próprio imperialismo de forma legitimada pela “nova” ordem internacional.

Assim mesmo, lemos na carta de Lavrov que “hoje, a questão em jogo é o caráter da ordem mundial: seria ela justa, democrática e policêntrica de verdade, como exige a Carta da ONU, que consagra a igualdade soberana de todos os Estados?”. Pois bem, que “igualdade soberana de todos os Estados” tem em mente Lavrov quando ele se refere à Carta da ONU? Não é a Rússia que interfere desde 2014 na política interna de um país soberano vizinho até iniciar a invasão em larga escala? O que exatamente significa a ordem “democrática” para o chanceler de um país, que encarcera a oposição, estigmatiza os ativistas de movimentos sociais como “agentes estrangeiros”, censura a imprensa livre, descriminaliza a violência doméstica, persegue as minorias religiosas, étnicas e sexuais?

Perguntem para os ativistas tártaros da Crimeia, o povo muçulmano originário da península, o que de fato significa a ordem “democrática” para o Kremlin. Eles têm sistematicamente denunciado as perseguições, acusações de terrorismo, deslocamentos forçados de suas casas e suas aldeias e encarceramento em massa de ativistas perpetrados pelo regime russo após a ocupação da península.

Quanto à ordem “policêntrica” de verdade, à qual se refere Lavrov, está claro que ela diz respeito não à ordem sem imperialismos, mas sim a uma divisão do mundo interimperialista na qual a Rússia possa reinar em sua área de controle de forma ilimitada. Quando Lavrov pergunta se “seria permitido que EUA e a coligação por eles liderada prossigam sua agenda em detrimento de outros, drenando recursos alheios a seu favor?”, ele só esquece de complementar: “sem que a mesma conduta seja permitida também para outros países?”. Que a sociedade democrática brasileira não se engane, pois essa é a verdadeira reivindicação de Putin!

Assim, a abertura que o governo Lula dá ao Kremlin deveria preocupar os movimentos sociais e a parcela da população para qual a democracia representa mais que mera representatividade eleitoral. Não é por coincidência que Lavrov irá visitar na mesma viagem, além da Cuba, parceira histórica da Rússia, a Venezuela de Maduro que tem gerado a crise migratória sem precedentes no continente, com mais de 5 milhões de deslocados no mundo; e a Nicarágua, onde o regime de Daniel Ortega tem perseguido e assassinado ativistas dos movimentos sociais e da oposição.

Os malabarismos retóricos usados pelo Kremlin para disfarçar suas atitudes autoritárias e agressivas não deveriam enganar a sociedade brasileira que preza pela democracia. Assim como a extrema-direita mundial instrumentalizou o discurso feminista para legitimar as políticas anti-imigratórias e islamofóbicas na Europa, o putinismo se vale da retórica e dos sentimentos antiestadunidenses na América Latina para legitimar a expansão territorial de seu regime conservador e autoritário.

Ávido por retomar o seu papel reconciliador na arena internacional, o Brasil deveria primeiramente condenar qualquer pretensão imperialista e defender a segurança e o direito das nações pequenas à autodeterminação, em vez de apertar a mão ensanguentada do representante de um país agressor neoimperialista criticado pela comunidade internacional pelos crimes de guerra.




Também ontem, Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira e de quem eu já publiquei alguns textos aqui, fez um tour de mídias pra explicar ao máximo possível de pessoas sua visão sobre o assunto, a mesma de Ruseishvili, e denunciar o supremacismo de Putin. O primeiro vídeo, de mais de 15 minutos, foi gravado na Band News, que eu acho que faz o melhor jornalismo do Brasil (mil vezes melhor que o Grupo Globo!), e o segundo, de apenas pouco mais de 5 minutos, na Jovem Pan, cuja triste fama nem preciso apresentar...


Esta foto também está dando muito o que falar. O mesmo Sorotiuk escreveu o seguinte nas mídias sociais:

“Um chanceler de um país que vem em visita oficial a outro país e desce do avião, em recepção oficial, vestido como quem vai ao boteco, não respeita o anfitrião. Como já afirmei, a visita mais parece uma ida à Penitenciária de Brasília, visitar o seu xará Sergei Cherkasov – espião russo, preso por infiltração no Tribunal Penal Internacional por falsificação de documentos brasileiros, com os quais se passava por Viktor Müller Ferreira –, do que visita respeitosa a outro país.”

A revista Crusoé, por meio da página O Antagonista, também comentou:

“A vestimenta casual não pode ser encarada como algo corriqueiro. Se turistas têm todo o direito de usar roupas mais à vontade em voos longos, o ministro de Relações Exteriores de um país é o representante de um Estado e deve se comportar como tal. Na diplomacia, afinal, gestos, roupas e frases são de extrema importância, porque carregam mensagens poderosas. Sendo assim, a imagem de Lavrov descendo do avião como se estivesse em um shopping center já está sendo vista como sinal do desprestígio da diplomacia petista.”


E pra encerrar, este vídeo mandado pelo amigo Raphael, do Rio de Janeiro, que infelizmente não tem fontes nem créditos pela produção. Ele mostra como alguns russos comuns regaem espontaneamente contra a afirmação do Kremlin de que a Ucrânia está “cheia de nazistas” e como não acreditam nas propagandas do próprio governo, mas também são críticos quanto à do Ocidente. Como também disse o Cláudio, essa pode não ser uma amostra representativa dos russos, mas a meu ver, tirando os que realmente são racistas ou se deixam enganar por Putin, a maioria que não concorda simplesmente se aprisiona no silêncio, e também a Rússia como federação é muito mais diversa, com dezenas de outros povos além dos russos propriamente étnicos.