domingo, 13 de outubro de 2019

Arquitetura da destruição: estética nazi


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Estou voltando a publicar trabalhos finais de graduação interessantes, pois foram bem avaliados pelos professores e trazem temáticas ainda prementes pra pensarmos nossa atualidade. Quando cursei História Contemporânea II (o estudo do século 20 no mundo) na Unicamp, com a Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva, pela qual ainda guardo grande estima, ela dividiu o segundo semestre de 2008 em quatro eixos temáticos. Em geral, ela passava um filme relativo ao tema estudado e indicava textos pra lermos, e após um tempo pedia pra fazermos um trabalho relacionando os dois tipos de materiais. Acho ainda muito importante que os jovens de hoje aprendam a LER e a VER filmes, pois é um treino tremendo pra tirar informações de áudio, vídeo, referências subentendidas etc., coisa difícil hoje no mundo disperso das redes sociais. Este texto, datado de 2 de novembro, está centrado no documentário Arquitetura da destruição, produzido e dirigido por Peter Cohen, e no pequeno e impactante livro Nazismo: “O triunfo da vontade”, do falecido historiador Alcir Lenharo, hoje uma raridade bibliográfica. Ambos serviram pra refletir sobre o projeto estético do nazismo, que longe de ser oposto ou separado da ação política, era orgânico a ela, pois via na “purificação” do “corpo do povo” o meio de o tornar “belo” e, assim, regenerar a Alemanha ariana. Como vemos, já passamos da era pré-nazista pro domínio total de Adolf Hitler, cujo arcabouço ideológico, porém, não surgiu do nada, foi gestado durante muitos anos até a chegada do Führer à chancelaria. Igualmente ótimo pra refletirmos sobre combates e mudanças que vivemos atualmente no planeta, sobretudo no tocante à eliminação dos “incômodos” e “impuros”, recomendo fortemente vocês buscarem pelo Arquitetura da destruição. Mantive o conteúdo, mas retoquei e corrigi a redação:

A gestação, o crescimento e o governo do Partido Nazista (NSDAP) sobre a Alemanha foram muito estudados sob vários aspectos, como o cultural e o político, mas ultimamente essas duas facetas têm sido relacionadas pelo resgate do projeto hitlerista de “embelezamento do mundo”. Para alguns autores, o nazismo não foi fruto de insanidade, mas a canalização de aspirações populares, como o nacionalismo, o antissemitismo e a insatisfação econômica. Ele ter-se-ia materializado em uma “política da beleza” que resgatou antigos valores de culto a um corpo forte e belo e buscou a extinção de valores e pessoas considerados “impuros”. A irracionalidade da escolha do que prejudicava o “corpo do povo” alemão levou ao genocídio de inocentes que não exatamente se opunham ao nazismo, mas constituíam seu objeto de repulsa. Nazismo: “O triunfo da vontade”, escrito por Alcir Lenharo, e Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen, mostram líderes nazistas como artistas frustrados que deram vazão a impulsos tornados, junto das mortes em massa, na face estética da política nazista de higiene racial e moral.

Após sua ascensão, Adolf Hitler declarou querer desintoxicar politicamente a vida pública e realizar um “vigoroso saneamento moral do nosso organismo social”, (1) mas já em 1930, sublinha Lenharo, os nazistas já pregavam uma proteção moralista à família, à religião e à propriedade privada. (2) A primeira cena do filme comenta ainda a “pureza” e a “rejeição sexual” comumente associadas ao nazismo, enquanto se esquecia de seu sonho de criar um mundo mais harmonioso eliminando as “ameaças” à humanidade. Com efeito, muitos artistas alemães consideravam a arte e a cultura “judaico-bolcheviques” como signos de “degeneração cultural” e “depravação espiritual e intelectual”, até que em 1933, diz Lenharo, o Terceiro Reich oficializou essa perseguição artística e intelectual. O autor adiciona que, num “exorcismo moral”, as SA também foram extintas em 1934 por sua associação a uma licenciosidade que o NSDAP queria afastar de sua identidade. (3)

Daí a relação, segundo Cohen, da arte moderna com as doenças mentais e a ligação “arte → saúde racial → beleza do corpo do povo”, base da esterilização de doentes hereditários, da proibição do casamento entre judeus e alemães (4) e do extermínio em massa. Hitler já pensara na eliminação dos doentes incuráveis e julgou, ao invadir a URSS, ter acuado o “bacilo” que destruía a Europa: os judeus do Leste, “corruptores” da cultura ocidental. Assim, em 1942, decidiu-se pela “solução final” a doentes mentais, soldados feridos e judeus, embora houvesse poucos dos últimos, geralmente assimilados, na maior parte da Europa, e pelas experiências com câmaras de gás. Filmes de propaganda comparavam os judeus “vagabundos” e “parasitas” a ratos e insetos geralmente mortos com gases venenosos, aludindo a um modo indolor e eficaz de conservar a “pureza germânica”. Lenharo destaca que a eficácia irracional de um cinema nacionalista, xenófobo, racista e anticomunista não ofendia só a judeus, mas também passava a imagem da 2.ª Guerra Mundial como uma luta contra inimigos igualmente “bárbaros”. (5)

O “novo homem” nazista não era o cosmopolita pacífico da República de Weimar, mas aquele que sacrifica sua vida pela nação e pela raça, (6) em detrimento, como reitera Lenharo, de exigências classistas, o que gerou exploração no trabalho e o fim da liberdade de organização. Heroico, porém anônimo, o cidadão moralmente puro deveria desde jovem proteger a “raça” seguindo o molde, na verdade uma fachada, do “Führer” e seu puritano séquito, e valorizar, como já faziam outros autores antiexpressionistas, um belicismo supostamente inerente aos germânicos. Construiu-se ainda uma imagem romantizada do campo como “reserva moral da Alemanha” e da mulher, reprodutora e submissa, como “guardiã da raça e tradições arianas”. (7)

O filme mostra como a escultura resgataria e superaria um ideal de beleza antigo, com um novo homem ariano resistente a julgamentos milenares e, se necessário, escreve Lenharo, esculpido cientificamente, por meio do controle biológico das crianças. (8) Ao mesmo tempo, assevera Cohen, expandiam-se a eutanásia para deficientes, oficializada no dia do início da guerra, e a exposição das vítimas a experiências científicas que incrementassem a “medicina nazista”. Já a tomada de Atenas em 1941 não seria como as outras, pois que a cidade formava, com Esparta e Roma, o modelo da “nação imperecível” na qual, conforme Lenharo, o expansionismo deveria proporcionar o “espaço vital” dos arianos, dentro de uma história supostamente movida pela desigualdade das raças. (9)

Para Lenharo, a população alemã sabia das atrocidades, mas assistiu passivamente ao processo de extermínio por tacitamente partilhar do antissemitismo e do nacionalismo oficiais, que já apareciam em outras agremiações políticas. O nazismo não teria sido “obra de meia dúzia de endemoninhados”, mas a culminância dos problemas posteriores à 1.ª Guerra Mundial, como o desemprego, incrementados pelo revanchismo e pelo autoritarismo xenófobo da tradição prussiana. Jovens estudantes, desde a guerra, carregavam os ideais de “uma raça vigorosa e pura” inspirada nos ideais humanos da Grécia antiga e cultivadora da virilidade submissa e ligada à natureza. Canalizando tais aspirações, algumas vindas até da esquerda, e oferecendo empregos nas SA, Hitler construiu um atrativo arsenal místico que, por meio da propaganda, prometia à Alemanha a solução de seus problemas. (10)

Hitler quis utilizar todos os meios de comunicação, educativos e culturais para a realização de objetivos como a “manutenção dos valores eternos inerentes à essência de nossa índole étnica”. (11) Lenharo informa que a propaganda mentirosa e a capacidade de organização ajudaram no sucesso eleitoral do NSDAP no início da década de 1930 e, após a escolha de Hitler como chanceler, vieram as coerções para obter mais votos e os expurgos de opositores em potencial. A propaganda, fundamental para o regime, supunha baixo poder de compreensão das massas e por isso era simples, mas repetitiva, e incluía o cinema, com os filmes glorificadores de Leni Riefenstahl. (12) Cohen exibe cenas de comícios gigantescos, nos quais o “Hitler artista” era diretor, cenógrafo e ator principal e que passavam o mito do “corpo do povo”, central na questão da purificação racial.

O filme fala ainda que a arquitetura megalomaníaca idealizada pelo Führer antes da guerra inspirou a mudança em Berlim anunciada em 1938, que simbolizaria uma virada nacional e faria Paris “parecer uma sombra”. Os novos lugares de exibição do Partido Nazista e dos jogos de guerra, inspirados na Roma antiga, tiveram até mesmo suas ruínas previstas por Hitler e pelo arquiteto Albert Speer. De acordo com Lenharo, a grandeza arquitetônica glorificava o regime e a “raça”, dando a sensação da unidade e eternidade de ambos. E embora outros estilos fizessem lembrar o passado medieval e campestre alemão, bases da “raça” e da nação, o neoclássico predominou por simbolizar o antibarbarismo, a pureza física e a beleza cultural prezados pelos gregos. (13) Já Cartago, como se vê no filme, apareceu no objetivo inicial de destruir totalmente Moscou, se possível, e na entrada dos soviéticos em Berlim, comparada pela imprensa às Guerras Púnicas.

Para Hitler, a arte deveria refletir o saudosismo e a realidade de uma época, inspirada no “sangue” e na “raça” arianas, ou seja, na pureza racial e biológica. (14) Cohen, comenta que o NSDAP pensara em um governo antirracionalista que conhecesse os desejos do povo e lhes materializasse pela arte, com a ajuda dos artistas frustrados no comando do Reich, entre eles o próprio Führer, que aos 18 anos tentou sem sucesso entrar para a Academia de Belas-Artes de Viena. (15) Para Lenharo, a atuação acrítica, mas protagonística, das massas nas comemorações espetaculares diante de um líder artístico e político “providencial” baseava a fusão que Hitler tentou promover entre arte e política. Desfiles, cerimônias fúnebres e demonstrações minuciosamente preparadas, ao exaltar o regime, mexiam com os sentimentos, dramatizavam a existência comum e despertavam o sentimento de união e coesão entre as pessoas. (16)

O filme reitera que o contato de Hitler com a obra de Richard Wagner trouxe a fixação pelo trabalho político do compositor, que incluía o antissemitismo, o culto ao legado nórdico, o conceito de “raça pura” e a centralidade do artista na história. Hitler, influenciado pelos livros de Karl May, considerava a imaginação como a base do conhecimento da alma de um povo, o que se refletia na sua pouca argúcia para lidar com estranhos e, portanto, com os judeus. O Führer, que teria esse saber, passou a ser idolatrado com base não no entendimento alheio, mas na fé irracional na Nova Alemanha, no nazismo e no líder salvador. (17) Mesmo com a derrota na guerra, recorda o filme, o futuro retomaria o ideal nazista e agradeceria pela extirpação do “câncer” judaico.

Cohen lembra que a simpatia de Hitler por um “belo” passado destruído pela miscigenação inspirou as exposições montadas pelo próprio líder e as de “arte degenerada”. O saque de tesouros artísticos do resto da Europa acalentou o sonho do Führer de criar um grande museu em Linz, sua cidade natal, que estava em obras e deveria ser a nova capital cultural do mundo. O nazismo também quis suprimir as desigualdades pela limpeza do trabalhador, pela funcionalidade e higiene de seu local de trabalho e, como ajunta Lenharo, pela escultura física e muscular do corpo. (18) Por isso, é difícil definir o nazismo em termos políticos comuns, pois sua ação, acima de tudo estética, exterminou não inimigos do regime, mas inocentes considerados “impuros” à raça ariana. O fim do filme recorda que Hitler praticou uma “estranha noção de política” característica da cultura europeia, transformando “uma ideologia absurda em uma realidade infernal”.

De fato, Hitler não foi o único governante na história a julgar ter descoberto uma noção universal do bom e do belo e por isso ter rejeitado o livre-pensamento e o debate sobre os problemas de seu país. Todavia, sua particularidade foi a eliminação em massa de ideias, pessoas e obras que não combatiam o regime, mas apenas eram por ele tidos como “sujos”, “degenerados” e “prejudiciais” ao mundo. Os critérios irracionais que elegeram os obstáculos ao “embelezamento do mundo” eram mais um artigo de fé do que uma ameaça real. A dupla moral nazista, que projetava nos inimigos sua própria perversidade, converteu milhões de alemães a uma “religião” que guardava todos os anseios que seus “fiéis” possuíam devido à crise. Por isso, o regime do Führer não surgiu da vontade poderosa de um grupo de maléficos artistas frustrados, mas da energia popular canalizada para reconstruir e fortalecer a Alemanha. O povo queria a solução de seus problemas, e o NSDAP foi o único que soube apresentar propostas palatáveis, ao mesmo tempo, para a recuperação econômica e para a condenação das pessoas “odiosas”. Os “políticos-artistas” agora satisfaziam o povo, iludido pela própria atuação central nos eventos de massa que teatralizavam o cotidiano. Contudo, por trás da beleza de discursos, desfiles e edifícios escondia-se (ou revelava-se) a degradação de seres humanos inocentes que apenas buscavam a paz e a vida em um mundo atribulado por problemas bélicos e econômicos.


Bibliografia

ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO (Undergångens arkitektur/Architektur des Untergangs). Produção e direção de Peter Cohen. Suécia: Poj Filmproduktion AB, 1989. 1 DVD (121 min.).

HITLER, Adolf. A Jovem Alemanha quer trabalho e paz: Discursos do Chanceler Adolf Hitler, Guia da Nova Alemanha. Berlim: Imprensa e Casa Editora Liebheit & Thiesen, 1933.

LENHARO, Alcir. Nazismo: “O triunfo da vontade”. São Paulo: Ática, 1986.


Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Adolf Hitler, A Jovem Alemanha quer trabalho e paz: Discursos do Chanceler Adolf Hitler, Guia da Nova Alemanha, Berlim, Imprensa e Cada Editora Liebheit & Thiesen, 1933, p. 19.

(2) Alcir Lenharo, Nazismo: “O triunfo da vontade”, São Paulo, Ática, 1986, p. 25.

(3) Ibidem, p. 29-30 e 42.

(4) Ibidem, p. 29 e 31, também comenta as leis que impuseram essas medidas.

(5) Ibidem, p. 52-58.

(6) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(7) Alcir Lenharo, op. cit., p. 32-33, 62-70 e 76-77.

(8) Ibidem, p. 70-71.

(9) Ibidem, p. 31 e 73.

(10) Ibidem, p. 7-12, 14-17, 19 e 25.

(11) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(12) Alcir Lenharo, op. cit., p. 26-29, 47-48 e 59-61.

(13) Ibidem, p. 48-52.

(14) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(15) Alcir Lenharo, op. cit., p. 19, também cita o fracasso artístico de Hitler.

(16) Ibidem, p. 36-41 e 43-44.

(17) Ibidem, p. 45-46.

(18) Ibidem, p. 34.