Com esta linda imagem de uma estátua do assassino Lenin com os miolos estourados pelos soldados ucranianos que entraram na província russa de Kursk (print de vídeo da internet), introduzo um tema praticamente ignorado nesta fazenda de nosso planeta. A ativista russa Olga Tsukánova, que se intitula comicamente “Mãe de Toda a Rússia” (em alusão ao título do padre de festa junina Kirill), publicou este vídeo em seu canal no YouTube, parodiando as propagandas do governo que visam atrair novos voluntários pra invadir, pilhar e destruir a Ucrânia. Ela e outras mulheres fingem que estão “convocando” os deputados da Duma Estatal e os filhos deles pra irem pessoalmente lutar na “operação militar especial” que eles tanto apoiam. A fina e clássica ironia típica dos russos quando têm sua palavra sufocada, um verdadeiro samizdat metodológico!
Há várias questões subjacentes aqui. Primeira, boa parte dos russos “apoia” (ou apoiava) a “operação especial”, mas sob a condição de que ela fosse rápida, incruenta, localizada (ou seja, sem impactos em território russo) e limitada às forças armadas regulares. E isso, claro, implicando que fosse engolida a mentira putinista da “junta neonazista” de Kyiv e do “genocídio de russos” no Donbás. Visto o que tenho falado e publicado aqui, ambos os aspectos são completamente ilusórios, e essa gente tá totalmente fechada numa bolha mental, por vontade própria ou superior. Segunda, não são apenas “as mães russas” que formam uma instituição à parte há séculos no país, capaz de pressionar os governos em algum grau, mas sem com isso lançar a base de uma sociedade matriarcal (muito pelo contrário). A reclamação é totalmente egoísta, pois quem está em polvorosa neste momento são as mães dos conscritos no serviço militar, mal saídos da escola, que Putin prometeu não usar na “operação especial”, mas que agora são chamados de toda a Rússia pra defender Kursk. Ou seja, enquanto crimes contra a humanidade ocorriam “ali do lado”, a mulherada ficou de bico calado.
E terceira, mas talvez a mais importante: os ex-querdistas ou protofachos idiotas que ainda pensam que Putin é apenas um “nacionalista” antiocidental e que a Rússia “não é uma ditadura”, mas que lá apenas “as coisas são complicadas” (o que “complicadas” quer dizer, diabos???), não conhecem o clima sufocante que vive a população média, não só proibida de se expressar livremente, como também primeira vítima dos desvarios políticos e econômicos do ditador. Dois anos e meio depois da invasão criminosa, a maior parte dos russos já abandonou os canais estatais como fonte de informação principal (exceto entre certas faixas etárias) e as redes sociais cumprem um papel organizativo e informativo cada vez maior. Não por menos, o Kremlin tenta a todo custo acossar esses meios, e além do YouTube quase não estar funcionando mais, WhatsApp e Telegram, terrores de ditaduras ao redor do mundo, têm apresentado instabilidade (pasme, a Meta do Tio Zuck foi declarada “organização terrorista” por Moscou!).
Portanto, a citada bolha ainda existe, mas vem sendo gradualmente furada pelos smartphones, pelos relatos de “veteranos” que começam a correr à boca pequena e, sobretudo, pelo descumprimento do mar de promessas, feito inicialmente, sobre a “operação rápida, incruenta e pontual”. Muitos russos, em particular russas de meia-idade, já não acreditam mais nas autoridades, sejam regionais, nacionais ou militares, e por vezes a insatisfação é expressa de forma velada, irônica ou até cômica, sem menção explícita a nomes. Putin sequer aparece pessoalmente nos lugares onde ocorrem catástrofes e tragédias (o teatro Crocus em Moscou é o exemplo mais recente), padrão que se repete desde 2000, quando afundou no mar polar o submarino... Kursk. Quando o exército ucraniano entrou na cidade de Sudzha, uma velha disse abertamente pras câmeras que “eles mentem, mentem, mentem”, se referindo ao poder central sem o nomear. Na verdade, a ideia “original” da “operação” foi inicialmente engolida e seu apoio é hoje condicionado ao conforto de “só ver a guerra pela TV”, sem tocar “em nossos bebês”. Certamente, devido aos longos laços e relações mútuos, toda a negação da existência de um povo ucraniano à parte ou pretensão de anexar regiões ou mesmo a Ucrânia inteira (aspectos mais visíveis pro observador estrangeiro) tem uma impopularidade subterrânea muito forte em toda a Rússia.
Tenho raiva de alguns brasileiros que ainda vivem lá, mais ou menos simpáticos à mafiocracia e não raro pouco fluentes em russo, que ao se comunicarem “com quem estamos aqui”, passam todos esses problemas por alto, não pelo medo óbvio de serem processados e/ou presos, mas porque justamente racionalizam em maior ou menor grau o pesadelo imposto aos nativos. Afinal das contas, se conhecessem a verdadeira história da luta da Ucrânia por sua independência e de como Putin transformou seu governo numa organização criminosa, sem essa desinformação que é inoculada entre pretensos “nerds” bananeiros desde 2014, sobretudo por veículos do Kremlin em português, será que ousariam viajar e mesmo estudar no país, inclusive depois de 24 de fevereiro de 2022?... Não deveriam. Por mera questão de moral e decência. E se caírem nas malhas do FSB pelos motivos mais esdrúxulos, vou é dar risada das peripécias que precisarem enfrentar!
Pra terminar este texto já mais longo que o próprio vídeo, uma palavra sobre o vocábulo “sróchnik”, aplicado aos moleques que estão sendo chamados pra Kursk e Bélgorod. A princípio, não foram enviados pra dentro da Ucrânia, mas em se tratando de território original da Rússia, estão sendo convocados, mesmo sem preparo militar ou psicológico, e são os primeiros a morrer ou se entregar em massa pros ucranianos. Srochnik vem da palavra srok, ou seja, “prazo”, “intervalo de tempo”, e designa os homens que são convocados a prestar o serviço militar obrigatório. A melhor tradução nesse contexto é “conscrito”, embora no Brasil se use pouco essa palavra (há ainda “recrutado”, mas cujo sentido de obrigatoriedade não é explícito). No contexto russo, há também o “kontráktnik”, que assina um contrato enquanto voluntário (portanto, o oposto do anterior), e o “naiómnik”, ou seja, o mercenário quase desprotegido pelas convenções internacionais.
Seguem o vídeo do canal de Tsukanova (original e com meu corte) e minha tradução direta do russo, sem transcrição do texto original. Na descrição, ela também diz o seguinte: “Chega de faladeira, vão defender a Pátria! Todos que concordam comigo, entrem em meu canal do Telegram.” E recomendo mesmo que entrem, pois lá tem muito mais material com mães protestando contra os abusos de Putin!
Enquanto mãe e patriota, dou minha bênção e consentimento. Deputados, vocês vão triunfar! [Letreiros: “Não largamos os nossos!”, “Chegou sua hora!”, “Apoiemos nosso Exército e nosso Presidente!”] Burocratas e seus filhos, chegou sua vez de defender a Pátria. Acreditamos em vocês, vocês vão conseguir! Pois vocês são verdadeiros varões [“mujiques”]. Chegou a hora de não somente apertar botões, mas pegar armas de verdade em mãos para defender o povo. [Legenda: “Afinal, você é um varão/mujique. Seja como ele.”] Enquanto sua eleitora e fonte do poder no país, envio-os ao front! [Legenda: “Junte-se aos seus!” A palavra seus, svoím, faz uma alusão a SVO, sigla em russo pra operação militar especial]. Confiamos-lhes a defesa das fronteiras de nosso país. Nossos filhos estão se esforçando, mas vocês vão se dar melhor! O país vai os esperar. Acreditamos que vocês vão voltar com a vitória. O importante é vocês rezarem, como mostram as propagandas da operação especial. [“Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino...”] E vamos guardar vocês na lembrança... ou nas orações. E tragam nossos filhos de volta para casa sãos e salvos: excessivo é o número dos que tombaram, sobraram poucos homens no país. Então, deputados, toda a esperança agora repousa em vocês! [“Sirva ao chamado de seu coração: junte-se aos seus!”] Vão para o front, deputados, burocratas e seus filhos!
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