No último dia 10 de agosto, escutei no programa “Journal d’Haïti et des Amériques” (Jornal do Haiti e das Américas) da rádio francesa RFI o alerta de que um novo tipo de anaplasmose tinha sido descoberto na Guiana Francesa, território francês que faz fronteira com o estado brasileiro do Amapá. A anaplasmose é uma infecção que, nesse caso, foi transmitida por um carrapato e pela primeira vez era detectada num ser humano. O novo tipo foi batizado pela localização geográfica da descoberta, justamente um garimpo ilegal, igual a vários que temos espalhados pela Amazônia brasileira.
Parece que a nova doença não oferece muito perigo no momento, mas fiquei alarmado, porque em 2014 eu já escutava na RFI sobre o surto de febre chicungunha (chikungunya) na mesma Guiana, e pra meu espanto também começou um surto no Brasil entre 2015 e 2016. A doença também circula pela África e pela Ásia, e aparentemente o surto brasileiro não começou com gente que veio da Guiana, mas ainda assim resolvi alertar pro que ainda não sabemos no que pode se transformar. Primeiro, porque como podemos ver, garimpos ilegais também são um ninho de doenças. E segundo, parece que o sujeito infectado pela nova anaplasmose mora ou morava no Brasil.
Após uma busca no Google, traduzi esta reportagem publicada no site de notícias France-Guyane no mesmo 10 de agosto, que parecia ser então a única a falar mais a respeito. O título é “Anaplasmose : une nouvelle maladie transmise par les tiques découverte chez un orpailleur illégal” (Anaplasmose: uma nova doença transmitida por carrapatos e detectada num garimpeiro ilegal), cuja fonte indicada é uma newsletter da Agência Regional de Saúde (ARS) da Guiana, lançada no dia anterior. Todos os possíveis problemas de tradução são meus, e estou disponível pra ouvir críticas, correções e sugestões.
Uma nova bactéria transmitida por carrapatos foi descoberta na Guiana Francesa
Pesquisadores do Hospital de Caiena e do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) em Montpellier descreveram uma nova doença transmitida por carrapatos: a anaplasmose de Sparouine. Ela foi descoberta em paralelo ao projeto Malakit num garimpeiro clandestino que tinha passado por uma remoção do baço. Ele teve de permanecer hospitalizado por várias semanas por estar sofrendo de febre, dores musculares, dores de cabeça, sangramentos nasais e anemia severa. Até então, a bactéria era desconhecida. Batizada de Anaplasma sparouinense, foi descoberta nos glóbulos de um garimpeiro clandestino doente. Ele teve de permanecer hospitalizado por várias semanas em Caiena.
Num artigo publicado este mês na revista Emerging Infectious Diseases (Doenças Infecciosas Emergentes) e resumido pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) [clique aqui, em breve também vou traduzir], as equipes do Hospital de Caiena e do CNRS em Montpellier comunicaram sua descoberta.
Como os anaplasmas foram identificados – Tudo começou com o Malakit. Esse projeto de pesquisa visava determinar a eficácia da distribuição de kits de autodiagnóstico e automedicação dados a garimpeiros ilegais. “Enquanto realizávamos nossos estudos, que concernem principalmente à malária, aproveitamos pra observar o estado de saúde geral das pessoas. Existe um interesse individual pela pessoa e um interesse de saúde pública”, recorda a dra. Maylis Douine, do Centro Hospitalar de Caiena (CHC). Desde o primeiro estudo Orpal, em 2015, os pesquisadores estudam as infecções sexualmente transmissíveis dos garimpeiros clandestinos. Durante a avaliação Orpal 2, em 2019, eles adicionaram as zoonoses: febre Q, hanseníase, leptospirose...
O CNRS em Montpellier, que trabalha com as doenças transmitidas por carrapatos, entrou em contato com eles. Ele desejava estudar as amostras recolhidas juntos aos garimpeiros clandestinos. Ele recuperou o DNA de bactérias, o amplificou pela técnica PCR e o comparou com as bases de dados do mundo inteiro. Foi assim que ele chegou a um anaplasma nunca antes descrito. Isso ocorreu há um ano. Alertados, os pesquisadores do Hospital de Caiena e do Instituto Pasteur da Guiana Francesa, onde estava armazenada uma parte das amostras, retomaram o material do paciente e os estudaram no microscópio pra tentar identificar os anaplasmas que penetram nos glóbulos vermelhos. “Efetivamente, visualizamos essas bactérias nos glóbulos vermelhos”, relembra a dra. Douine.
A bactéria foi então batizada de Anaplasma sparouinense, do nome do esteiro [crique] de Sparouine, onde o paciente dizia estar procurando ouro. “Esse novo agente patogênico pertence ao gênero bacteriano Anaplasma, cuja bactéria mais conhecida é a Anaplasma phagocytophilum, responsável pela anaplasmose granulocitária humana”, recorda o CNRS. “Essa zoonose emergente é responsável todos os anos por muitas centenas de casos, por vezes letais. Os estudos genéticos revelaram que o Anaplasma sparouinense é um novo agente infeccioso, diferente de todas as espécies conhecidas de Anaplasma.”
O Anaplasma sparouinense detectado num intervalo de 18 meses junto ao paciente – Os pesquisadores do Hospital de Caiena tentaram então saber que fim levou o garimpeiro clandestino. No momento da coleta, em 2019, ele não apresentava sintomas. Mas a dra. Douine e seus colegas descobriram que em abril de 2021, 18 meses depois das coletas efetuadas num ponto de apoio do garimpo clandestino e cerca de três meses antes da descoberta do anaplasma nas amostras, ele foi internado na Unidade de Doenças Infecciosas e Tropicais (Umit) pela equipe do Centro Deslocalizado de Prevenção e Cuidados (CDPS) de Grand Santi, devido a febre, dores musculares, dores de cabeça, sangramentos nasais e anemia severa. A bateria de exames realizada não revelou a origem de seus sintomas. Ele recebeu um tratamento antibiótico durante três semanas e retomou seu caminho.
Seu prontuário médico informa que ele tinha passado por uma esplenectomia (remoção cirúrgica do baço). O fato de não ter mais o baço pra exercer suas diferentes funções imunológicas de fato aumentou o risco de certas infecções. Seu prontuário permitiu igualmente retomar seu contato. Por telefone, ele indicou ter voltado a viver em casa, no Brasil. Ele autorizou igualmente o Hospital de Caiena a continuar com as pesquisas sobre seu caso. O anaplasma foi encontrado, sobretudo, nas amostras coletadas enquanto ele estava internado no hospital. O paciente, portanto, foi portador da bactéria por pelo menos 18 meses.
De sua parte, o CNRS ressalta que “na realidade existe todo um grupo sul-americano de anaplasmas emergentes, do qual o Anaplasma sparouinense é o primeiro membro descrito como infeccioso pro ser humano. A vida no garimpo, em contato direto com a fauna selvagem, sem dúvida foi um fator determinante pra passagem do agente infeccioso ao ser humano. Ainda é cedo demais pra afirmar a importância que a anaplasmose de Sparouine vai ter no futuro e qual risco sanitário a doença vai então poder apresentar pras populações sul-americanas. Porém, sua mera existência nos relembra que nosso conhecimento da diversidade dos agentes patogênicos que circulam nas zonas naturais isoladas continua sendo muito parcial. A expansão das atividades humanas nessas regiões vai inevitavelmente levar as populações a se exporem ao risco de emergência de zoonoses similares.”
Não há doença de Lyme na Guiana Francesa – Geralmente, quando alguém chega à Guiana vindo da França, a pessoa ouve que não há “problemas com os carrapatos da Guiana, porque eles não transmitem a doença de Lyme”. Isso é confirmado pela dra. Maylis Douine, do CHC: “O CNRS em Montpellier procurou a doença de Lyme em milhares de carrapatos da Guiana e nunca a encontrou. Ela também nunca foi diagnosticada por um clínico.” O prof. Loïc Epelboin (CHC) acrescenta: “Certas pessoas se convencem de que pegaram a doença de Lyme na Guiana, mas não se tem certeza de que realmente a tiveram, e no caso das que tiveram, não se tem certeza de que realmente a pegaram na Guiana.”
A descoberta de um caso de anaplasmose presumivelmente transmitida por um carrapato também não deve gerar preocupação: “Esse caso isolado apareceu num contexto particular, com um paciente que já não tinha o baço e, portanto, sem dúvida mais exposto. Não é preciso ter pânico dos carrapatos.”
No ano passado, o prof. Epelboin tinha aludido a 11 casos de alfa-gal, uma alergia à carne vermelha que poderia ser provocada por uma mordida de carrapatos. Porém, ele matizava: “Nossos resultados não permitem afirmar com clareza que as mordidas de carrapatos são a causa dessa alergia, mas todos os pacientes declararam estar regularmente expostos a esses artrópodes”. Pra ele, o principal problema que a população pode ter com os carrapatos é “o incômodo causado por suas mordidas”.
Visão parcial do esteiro (crique em francês) de Sparouine.