sábado, 15 de agosto de 2020

Revolução burguesa e revolução alemã


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Adaptação de umas notas que fiz a amigos no WhatsApp, explicando primeiro a noção marxista de “revolução burguesa” (que pode parecer um oximoro), depois os motivos que podem ter levado aos fracassos revolucionários comunistas na Alemanha da década de 1920.

O conceito de “revolução burguesa” nasceu com Marx, porque as revoluções até então conhecidas (inglesa, americana, francesa e as europeias de 1848) tinham sido comandadas pela burguesia (isto é, a detentora dos meios de produção) pra derrubar o poder absolutista monárquico (já não era mais feudal), que tentava controlar sozinho a economia. Sem o monarca (ou com o poder dele reduzido), a burguesia poderia passar não apenas a controlar a economia, mas também a política, ou seja, criar leis que favorecessem o máximo aumento de seu lucro (no século 19, favorecendo portanto o livre mercado).

Na opinião de Marx (tô só descrevendo, não criticando ou apoiando!), embora a burguesia comandasse as revoluções, quem as fazia era o povo, como você bem disse. “Ser massa de manobra”, aí vai depender do ponto de vista: as grandes massas sofriam com problemas econômicos, e a burguesia manipulava esses sentimentos pra usá-las de “carne de canhão” nas suas guerras. No fim, a burguesia ficava com o poder político, e alijava o povo do poder, que continuava pobre e ferrado. O “modo de produção capitalista burguês” (industrial), como Marx chama, teve a propriedade de aumentar muito a riqueza, mas ao custo de tornar o trabalhador uma simples manivela de máquina, trabalhando o máximo pra produzir o máximo e ganhar o mínimo (é a “teoria da mais valia”, que explica como se gera esse lucro, mas é outra discussão). Por isso, na visão dele, como o trabalhador é que dava o duro, e era maioria da população, e a burguesia só gerenciava e era minoria, ele achava que: 1) os trabalhadores deviam também ocupar a gerência das fábricas, pra ficar com a riqueza que eles mesmos produziam; 2) e deviam, portanto, também ocupar o poder de Estado, já que em última instância ele seria um auxílio do econômico (hoje já se abandonaram as leituras mais mecânicas dessa tese).

Por isso, Marx consagra o conceito de “revolução proletária”, ou seja, que devia ser feita pelos trabalhadores industriais urbanos, maioria do povo na Inglaterra, França e Alemanha do século 19. Assim, “revolução” não deve ser vista em abstrato, mas de acordo com a classe que a promove ou lidera. O próprio Marx disse que a seu tempo, pelas razões que citei acima, a burguesia tinha sido uma classe “revolucionária”, mas depois se tornou “reacionária” porque queria conservar seu poder contra a contestação operária. Pra uma minoria conservar seu poder diante de uma maioria descontente, na maioria do tempo é óbvio que devia ser usada a força bruta (exército, polícia), mas Marx e Engels não excluíam que em alguns países essa conquista do poder podia se dar por meio de eleições, portanto não identificavam “revolução” como uma mudança violenta, embora fosse sempre brusca. Era o que já pensavam sobre a Alemanha nos anos 1890 (Engels).

Lenin veio adicionar dados novos, com a evolução do capitalismo na virada do século, e justamente por isso a Revolução de Outubro até hoje é a maior fonte de confusão. Lenin queria fazer essa revolução na Rússia, mas o país mal tinha classe operária, nem sequer parlamento e partidos políticos como entendia o Ocidente. Ocorria também que, sendo a burguesia a classe dominante no Ocidente, ela não deixou de usar o Estado pra seu benefício (capitalismo monopolista de Estado): colonialismo, monopólios/trustes, limitação da livre concorrência... Lenin então usou o conceito de “revolução democrático-burguesa” pra nomear uma fase que devia dotar a Rússia de instituições providas pela burguesia em outros lugares: parlamento, liberdades, partidos, constituição etc. Ou seja, o que a burguesia fez em outros países Lenin queria que os próprios trabalhadores (tanto operários quanto camponeses) fizessem na Rússia.

As condições em que ocorreram a Revolução de Outubro foram bem particulares: 1) como as antecessoras “burguesas”, acabou sendo violenta; 2) apesar da narrativa comunista, a massa popular não teve tanta participação na derrubada do Governo Provisório quanto teve em fevereiro na derrubada do tsar; 3) esse levante promovido pelas massas do próprio partido de Lenin acabou trazendo à frente do processo (e depois do Estado que apareceu) a vanguarda insurrecional, que no caso se confundia com esse partido, terminando por se tornar uma elite fechada separada do povo, na época de Stalin.

Por isso, e dado que outras “revoluções” do século 20 muitas vezes terminaram por tentar copiar acriticamente o modelo russo, geralmente se acha que revolução tenha que ser: 1) violenta; 2) de esquerda; 3) só pra tirar o governo da hora, sem nem sempre tocar nas estruturas do país. Por isso mesmo, muitos golpes militares por generais que simplesmente tinham algum carisma popular foram chamados “revoluções”. Bem como esse caráter brusco de tomada do poder também permitiu que se chamasse o golpe militar no Brasil de “Revolução de 1964”!


Fiquei devendo algo sobre a Revolução Alemã. O historiador Pierre Broué tem um livro só sobre isso (Révolution en Allemagne), mas também fala muito no compêndio sobre a Comintern (A Internacional Comunista, Editora Sundermann). É um processo complexo, que indica tanto a política da URSS pra com a Alemanha quanto os problemas internos deste país.

O país foi um dos que mais ficou ferrado por causa da guerra, e óbvio que tinha insurreição operária, popular, saques etc. E vários grupos querendo tomar o poder. O partido social-democrata (SPD), que era pró-ordem, proclamou a República por conta própria e deixou o Kaiser sair tranquilamente. Os comunistas (espartaquistas e KPD), que detestavam o SPD, queriam o fim do sistema inteiro e também fizeram a insurreição. O SPD acabou dando bandeira branca pra que os Freikorps (paramilitares de extrema-direita, protonazistas) ajudassem a reprimir (ou seja, matar) os comunistas, e daí que Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados.

Rosa e Karl eram dos líderes mais populares e habilidosos. Os outros eram mais confusos ou perdidos em rixas pessoais. A grande diferença comparando à Rússia era que o poder era bem mais forte, não tava num vácuo, então reagiu com mais força. E de fato, os operários ficaram em maioria a favor do SPD, o que dificultou bem pros comunistas. Mas a tensão social na Alemanha ia continuar praticamente até o nazismo. Esses fatores ajudaram o KPD a ficar fraco, mas houve também o saque literal dos Aliados contra a Alemanha, intervenções militares nesta e a crise de 29, que afundou de vez o país. Num discurso que conhecemos bem, toda a classe empresarial, com o silêncio do SPD, deixou o caminho aberto pro Hitler, preferindo ordem e lucro a todo custo. O SPD simplesmente saiu de cena, e o alvo primeiro dos nazis foi o KPD.

Mas até os anos de 1921 e 1923, estes fatores foram determinantes pro KPD não tomar o poder: brigas e rachas internos; a própria fraqueza numérica; a indecisão de Moscou ora estimulando, ora freando as tentativas de levante; e o próprio lançamento de ações suicidas, seja por iniciativa de Moscou, seja dos alemães mesmos, que já estavam fadadas ao fracasso e deixavam a repressão ainda mais forte. Enfim, os fatores objetivos estavam lá, mas os fatores subjetivos foram bem embaralhados.