Por Erick Fishuk
Termino com este texto uma breve série em que espero ter bem abordado várias questões que me fizeram pensar durante a tradução de textos da língua russa para a portuguesa, especialmente canções e discursos da era soviética. Eu havia escrito e salvado esses apontamentos como notas no Facebook e, após algumas revisões, publiquei nessas últimas três semanas. Não deixem de ler também o primeiro texto e o segundo texto da série, para conhecer a ideia por trás das publicações, meus pressupostos em teoria tradutória e algumas informações sobre os autores de livros que cito aqui.
Nesta terceira postagem, um pouco mais longa e também mais minuciosa (o que pode tê-la tornado mais árida), dou exemplos de como lidar com as repetições de palavras e expressões no texto de partida, especialmente se elas tiverem função estilística, e como por vezes a condensação do tamanho do texto na versão de chegada é possível prejudicando ao mínimo a passagem de significados. Para tanto, serão mencionados vários procedimentos técnicos que os teóricos da tradução mais consagrados descrevem em suas obras e cujo esclarecimento pode exigir pesquisa adicional. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.
REPETIÇÃO E CONDENSAÇÃO
Concluí mais uma tradução de um pequeno discurso de Lenin, e me deparei com alguns problemas tradutórios que gostaria de compartilhar. São relativos à manutenção de repetições estilísticas e à condensação de duas expressões numa só, mas carregando o sentido de ambas.
A primeira questão se refere ao seguinte trecho:
“Почему мы победили Юденича, Колчака и Деникина, хотя им помогали капиталисты всего мира? Почему мы уверены, что победим теперь разруху, восстановим промышленность и земледелие?”
Para tornar a exposição mais fácil, vou mostrar a solução à qual cheguei:
“Por que vencemos Iudenich, Kolchak e Denikin, embora eles tenham sido auxiliados pelos capitalistas do mundo inteiro? Por que estamos certos de que agora venceremos o caos e restauraremos a indústria e a agricultura?”
Inicialmente, levando em conta o fato descrito, fiquei tentado a traduzir o início da frase assim: “Como foi que vencemos...” ou “Como foi que conseguimos vencer...”, e queria manter o “Por que estamos certos...” posterior. Contudo, julguei que essa repetição de “Почему мы...” dava um efeito de complementação por meio da repetição, então mantive intacto o “Por que...”, e retirei o “nós/мы” para dar mais dinamismo à frase. Eu também quis traduzir o “победили” inicial (pretérito do verbo “победить”, que pode significar “vencer”, “derrotar” ou “superar”, conforme o contexto) como “derrotamos”, pois se tratava de uma derrota militar imposta aos líderes do Exército Branco. Mas daí ia quebrar a repetição com o “победим” (“venceremos”, futuro do mesmo verbo “победить”), que até poderia ser traduzido como “superaremos”, “ultrapassaremos” etc., mas que cabia muito bem como “venceremos”. Então, o efeito ficaria algo parecido como: “Por que vencemos...? E por que venceremos...?”
Notável é que a tradução inglesa disponível no site Marxists.org, entre outras perdas de sutileza, apresenta o trecho da seguinte forma: “How was it that we conquered Yudenich, Kolchak and Denikin, although they had help from capitalists of the whole world? Why are we sure that we will now overcome the ruin and rebuild our industry and agriculture?” Ou seja, as duas repetições são perdidas para “How was it that we...”/“Why are we...” e “conquered”/“overcome”. O tradutor para o inglês também deixou escapar uma falta de constância ao traduzir, mesmo em ocorrências distantes, a expressão “мы уверены, что...”, que fixei como “estamos certos de que...” (mas que poderia tomar outras formas), numa vez como “we are sure that...” (na verdade, “... are we sure that...”) e na outra, “we are convinced that...”. Não sei, claro, com meu pouco conhecimento técnico de inglês, se as contingências exigiriam essas formas diferentes, mas no russo parecia não haver distinção.
Não estou considerando aqui diversos tipos de repetição que Lenin faz, mais retóricos do que estilísticos, por conta da situação oral em que se encontra, e que geralmente omito, porque minhas traduções, a princípio, se destinam apenas a serem assimiladas na forma escrita (um filme de época com um ator interpretando Lenin, por exemplo, exigiria a reprodução dessas mesmas repetições retóricas). Para ficarmos no mesmo texto: “так же сознательно, с такой же твердостью, с таким же героизмом”, literalmente “tão conscientemente (quanto antes), com a mesma firmeza, com o mesmo heroísmo”, e que reduzi para “com a mesma consciência, firmeza e heroísmo”, incluindo ainda a transposição de um advérbio em substantivo (falarei desse procedimento técnico adiante).
Também achei interessante, sem arrogância, uma solução à qual cheguei traduzindo o seguinte parágrafo:
“Долой шкурников, долой тех, кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы, кто боится необходимых для победы жертв!”
A primeira solução à qual eu havia chegado era esta:
“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em lucrar, especular, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”
Quero concentrar a atenção no seguinte trecho: “кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы”. Literalmente, temos a seguinte interpretação: “que pensam em seu (próprio) proveito (ou “lucro”, dependendo do contexto), em especulação, no esquivo do trabalho”. Claro que no caso de “esquivo do trabalho” já ficaria muito melhor de cara “em esquivar-se do trabalho”, levando-se em conta que em russo usam-se substantivos em muitos casos em que usamos verbos. Essa é a primeira ocorrência do procedimento técnico de tradução que Vinay e Darbelnet, além de outros autores que os continuaram, chamaram de “transposição”, ou seja, a mudança do material léxico para expressar a mesma ideia (no caso, a transposição de um substantivo em verbo reflexivo). Porém, como vimos, a dinâmica da frase exigiu também a transposição dos substantivos “выгода” e “спекуляция” (ambos, no texto, na forma do caso prepositivo singular) para os verbos “lucrar” e “especular”, havendo ainda o acréscimo da palavra “só” por questão de ênfase e a omissão (que também seria um procedimento técnico, segundo Vázquez-Ayora) do pronome possessivo “своя” (“sua”, “sua própria”, sempre se referindo ao sujeito da frase, no texto também na forma do prepositivo singular “своей”).
Contudo, dois dias após fazer a primeira tradução desse parágrafo, numa das várias revisões do texto, dei-me conta de que Lenin, ao falar em “lucro/proveito” e “especulação”, não estava falando dos capitalistas que imperavam antes na Rússia, e sim dos arrivistas e aproveitadores que grassavam no Exército Vermelho. Portanto, as alusões a termos de economia e mercado não eram aí plenamente cabíveis, nem mesmo como metáfora, pois prejudicavam a compreensão. No caso de “выгода/lucrar”, pensei primeiramente em substituir por “aproveitar-se” (poderia ser também “dar-se bem”) ou “aproveitar”, este, porém, sendo muito incompleto. Contudo, ainda restava decidir o que fazer com “спекуляция/especular”. Claro que o Aurélio oferecia vários significados para “especular” e “especulação”, como “Investigação teórica, esp. de natureza exploratória, sem apoio de evidência sólida”, “Compra e venda de mercadorias ou títulos, esp. de forma arriscada e visando lucros altos e rápidos”, “Negócio em que uma das partes abusa da boa-fé da outra”, “Examinar com atenção; averiguar minuciosamente; observar; indagar; pesquisar”, “Transacionar, esp. de forma arriscada”, “Valer-se de certa posição, de circunstância, de qualquer coisa, para auferir vantagens; explorar”, “Comprar e vender (mercadorias, títulos, etc.) buscando ganhos a partir da oscilação dos preços, e correndo o risco de perdas”, entre outros. Da mesma forma, os dicionários russos online transitavam entre os significados desde “operação financeira” até “busca de lucros ou vantagens fáceis”, passando por “pensamento ou raciocínio vão, sem apoio na prática”. Mas eu achava que “especular” ainda era muito ligado, para os brasileiros, às práticas do mercado financeiro.
Como se pode notar, até mesmo pela não repetição da preposição “о” (sobre, em, a respeito de) em “о своей выгоде, спекуляции” e pela sua retomada em “об отлынивании от работы” (об = forma usada antes de som vocálico), tem-se a impressão de que “выгода” e “спекуляция” são usadas como sinônimos ou palavras complementares para uma mesma ideia, e que de alguma forma a ideia de “lucrar” já está em “especular”, consistindo, portanto, numa espécie de repetição ou ênfase. A diferença é que “especular” continha ainda a ideia de “jogar com a ocasião”, “fazer apostas arriscadas”. Assim, decidi trocar as palavras “lucrar, especular” por “tirar proveito das situações”, pois a ideia de “lucrar” estaria contida em “tirar proveito”, e a de “especular”, em “das situações”. Diga-se “das situações”, e não “da situação”, pois se faz uma generalização, e não a especificação de um caso. Assim, mais uma tentativa:
“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em tirar proveito das situações, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”
Alguns dias depois de deixar a tradução “descansando”, reli-a novamente e pensei melhor na conveniência da inserção do advérbio “só”, pensando se Lenin queria dizer mesmo “só pensam” apenas com o verbo “думает” (pensam). Olhei melhor o verbete “думать” (forma infinitiva) no meu dicionário e vi que, além da possibilidade de deixar simplesmente como “pensar em”, poderia usar outros sinônimos da ideia, como “tencionar”, “cuidar de”, “preocupar-se com”, entre outros. Mas julguei que “pensar em” ficaria muito localizado, válido apenas para aquele momento, sem refletir possíveis características interesseiras intrínsecas a esses arrivistas. Então, procurando sinônimos, achei mais adequado e sonoro o verbo “buscar”, além do que decidi fazer novas modificações gramaticais para tornar a frase mais natural. A versão definitiva foi, afinal, esta:
“Abaixo os arrivistas, abaixo os que buscam tirar proveito das situações e esquivar-se ao trabalho, temendo os sacrifícios indispensáveis à vitória!”
E, para terminar, mais uma piadinha relacionada à minha tradução. O adjetivo “вечная”, feminino de “вечный”, presta-se a inúmeras traduções: “perpétua”, “eterna”, “incessante”, “imortal”... Pois bem, eu deveria traduzir a expressão “Вечная слава...”, que instintivamente transformei em “Glória eterna (a)...”. Para tirar a dúvida, inseri “вечная слава” no tradutor do Google, e ele me deu “glória imortal”. Contudo, vejam só: ao inserir o ponto de exclamação em “вечная слава!”, a tradução se transformou em “glória eterna!”. Vai entender...
P.S.: Link para o texto em russo e em inglês: clique aqui. Reparei que nesta versão, na frase “о своей выгоде, о спекуляции”, a preposição “о” é, sim, repetida.