quarta-feira, 9 de março de 2022

Nicolau Cavalcanti – “O antialgoritmo”


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Estou tomando hoje a liberdade de republicar aqui, sem alterações, o artigo de opinião “O antialgoritmo” (disponível apenas pra assinantes), escrito pelo advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti e publicado no site do jornal O Estado de S. Paulo (o “Estadão”) em 23 de fevereiro de 2022. Mesmo não sabendo ainda o que eram ou como funcionavam os algoritmos, eu já pensava exatamente da mesma maneira quando comecei a rever minha relação com as redes sociais, em 2015. O texto é que veio ao encontro de minhas ideias...

Gostaria de destacar este trecho, perto do fim do texto: “[...] as distorções das redes sociais suscitam a necessidade de uma formação pessoal mais ampla e profunda. É preciso fortalecer nossa individualidade, o que significa também expandir a perspectiva pessoal. Neste processo, a leitura, o contato com a arte e a convivência plural são fundamentais.” E o parágrafo seguinte sobre a leitura é de vital importância: embora a pandemia tenha incrementado a venda (o que não é necessariamente a leitura) de livros, o Brasil estava sendo conhecido como um povo que lia cada vez menos e onde as livrarias faliam uma após a outra. Não tenho dúvidas de que o consumo informativo de baixa qualidade nas novas mídias, as quais também mudaram nossa forma de lidar com outras pessoas, tenha sido fatal na destruição do hábito leitor.



Nos últimos anos, ficou evidente que as redes sociais não são um espaço neutro de exposição e debate das ideias presentes numa sociedade. Boa parte dessas distorções é causada pelos algoritmos. Criados com o objetivo de aumentar o tempo de uso das redes sociais, eles intensificam a visibilidade de alguns temas e acentuam a dimensão conflitiva das interações humanas. Dessa forma, aquilo que foi visto, no início, como um instrumento de empoderamento pessoal e coletivo – o que, sob muitos aspectos, continua sendo verdade – recebe hoje uma avaliação menos ingênua. A internet é, também, ocasião de novas vulnerabilidades, de novas e velhas manipulações.

A nova camada de compreensão das redes sociais suscitou, no mundo inteiro, o debate sobre a regulação dessas atividades: sua conveniência, seus riscos e os eventuais critérios a serem adotados. É uma seara nova, ainda sem respostas consolidadas. De todo modo, é cada vez mais consensual que não cabe ao Estado ficar indiferente perante esta nova realidade social, também por seu papel na defesa da livre concorrência.

Tudo isso pode conduzir à sensação de fragilidade e impotência pessoais. Ao contrário da promessa original relativa à internet, o indivíduo vê, agora, seu protagonismo minguar. Enredado em algoritmos sobre os quais não dispõe de nenhum poder, estaria à espera de uma transformação que também depende muito pouco dele: que a regulação estatal possa proporcionar, no futuro, um ambiente virtual mais civilizado.

Neste cenário, convém lembrar que todos dispomos de um recurso capaz de romper a asfixia do ambiente atual: o “antialgoritmo”. Adverte-se, desde logo, que sua existência não substitui a discussão sobre a regulação, tampouco elimina todas as consequências nocivas das redes sociais sobre o debate público. Mesmo que possa ter efeitos mais amplos, o antialgoritmo funciona essencialmente no âmbito pessoal. Vejamos.

O algoritmo das redes sociais baseia-se numa ideia, que não é de todo equivocada: nós, seres humanos, temos um sistema de ação e reação muito parecido. Por mais que haja diferenças culturais ou ideológicas, nosso funcionamento segue padrões psicológicos comuns. Isso faz com que os algoritmos das redes sociais sejam de fato eficientes. Geralmente, eles conseguem nos manter nas redes sociais por mais tempo do que planejávamos.

O antialgoritmo está vinculado a outra ideia, que também não é de todo equivocada: nós, seres humanos, temos sempre a capacidade de oferecer uma resposta pessoal, livre e criativa, que escape dos padrões automáticos de ação e reação. O antialgoritmo não é mera abstração, mas parte do fenômeno humano. Por maiores que sejam as distorções causadas pelos algoritmos – e também por nossos condicionamentos –, sempre é possível buscar um exercício mais qualificado da autonomia individual.

Se as redes sociais estimulam uma abordagem superficial – por exemplo, ler apenas os títulos ou reagir logo após a primeira impressão –, o antialgoritmo desperta outras atitudes, como impor-nos um tempo entre a ação e a nossa reação, assegurar condições mínimas para a reflexão pessoal e buscar conhecer seriamente o raciocínio contrário, seu contexto e suas motivações. Leva-nos, também, a fugir do moralismo que enxerga má-fé em todo argumento dissonante.

Esta empreitada de liberdade e compreensão não é mero exercício de uma hercúlea (e talvez inatingível para a maioria de nós) boa vontade com os outros. É fruto da compreensão de que a nossa melhor resposta, a nossa reação mais humana, nunca é resultado de simples automatismo. Quando reagimos no piloto automático, a ação do outro – muitas vezes aquilo que equivocadamente pensamos ser a ação do outro – acaba por definir nossa reação e, em último termo, nossa identidade. Perdemos, assim, esta fundamental dimensão da liberdade, que é a de agirmos como somos, e não como os outros ou as circunstâncias ditam.

Além do debate sobre possíveis caminhos de uma adequada regulação – capaz de preservar e promover a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias –, as distorções das redes sociais suscitam a necessidade de uma formação pessoal mais ampla e profunda. É preciso fortalecer nossa individualidade, o que significa também expandir a perspectiva pessoal. Neste processo, a leitura, o contato com a arte e a convivência plural são fundamentais.

Entre outros recursos, a leitura habitual de jornais e de livros – incluindo literatura, história e filosofia – contribui para o bom funcionamento do antialgoritmo. Além do conteúdo em si, a leitura proporciona contato com outras perspectivas e experiências de vida. Os livros nos conectam com ideias, pessoas e culturas de variadas épocas – e isso num contexto não de conflito, mas de diálogo, o que favorece o exercício da individualidade.

O antialgoritmo é a antítese da fórmula pronta. Mais do que algo externo ou artificial, ele é esta chama interior que todos levamos dentro de nós e que nos impulsiona à vida e à liberdade. Não está obsoleto, nunca foi tão necessário. É tempo de usá-lo.




segunda-feira, 7 de março de 2022

Mamãe Falei e as mulheres da Ucrânia


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Nesta primeira semana de março de 2022, ganhou repercussão nacional muito negativa uma sequência de áudios gravados no WhatsApp pra um grupo de amigos por Arthur do Val, deputado estadual de São Paulo e militante do MBL, grupo suprapartidário de jovens militantes liberais de direita. Junto com o amigo Renan Santos, coordenador do MBL, o político, empresário e youtuber tinha ido à Ucrânia alegadamente pra ajudar os ucranianos na resistência contra a invasão militar russa, e inclusive postou uma foto no Instagram posando ao lado de garrafas de vidro destinadas à produção de coquetéis Molotov. O propósito da aventura, dado o fato de Arthur ser servidor público e supostamente ter de trabalhar pelo povo paulista, já tinha sofrido amplo questionamento.

Porém, durante o retorno dos rapazes, acabou surgindo um escândalo talvez maior do que o protagonizado por Bruno “Monark” Ayub a respeito do apoio à legalização de um partido nazista no Brasil e que quase levou ao fim de seu programa, o Flow Podcast. Arthur enviou num grupo privado de amigos áudios elogiando calorosamente a beleza das refugiadas ucranianas, cujas filas pra fugir do país ele achou “superiores” às das “melhores baladas brasileiras”. Também afirmou que poderia namorar fácil qualquer uma delas, já que “são fáceis por serem pobres”. Além disso, usou palavras chulas ao se referir a como seria servil a qualquer uma delas e acabou fazendo alusão a turismos sexuais europeus “especializados” em loiras.

Pela vulgaridade do conteúdo, pelo cargo que ocupa e pela ofensa à dignidade das ucranianas, Arthur atraiu a repulsa geral da opinião pública brasileira e praticamente acabou com sua carreira política. Aliados começaram a se afastar, e seu Instagram está perdendo cada vez mais seguidores. Minha opinião pessoal: o MBL nunca deu qualquer contribuição positiva ao Brasil, e apenas serviu pra intoxicar e tumultuar o debate público com base num conceito elitista e enviesado de “liberdades”. Além disso, não consigo eu mesmo me dirigir a um “garoto de 35 anos” (na verdade um “cavalão”, como diria minha mãe) com o estrambólico apelido de “Mamãe, Falei”.

Tenho meus próprios conceitos, mas não posso julgar ninguém moralmente pelas encrencas que arranja. A quem se interessa, deixo a tradução desta reportagem do canal de notícias France 24, num quadro ocasional chamado Actuelles, literalmente a palavra “Atuais” no gênero feminino, que faz um trocadilho com elles (elas). Por uma feliz coincidência, ela foi ao ar no 4 de março anterior, assim ainda pude dar uma humilde contribuição àquela “treta” quando ela ainda está quentinha. Sob a apresentação de Natacha Vesnitch, minha tradução do francês vem mostrar como as mulheres ucranianas (curiosamente, três delas chamadas “Olena”...) não são nem “fáceis” nem “pobres”. Na medida do possível, indiquei os emissores das falas e padronizei a transliteração dos nomes eslavos.

Abaixo seguem também sem legendas os vídeos com a reportagem original contida no canal da France 24 e um upload próprio tendo em vista qualquer emergência. Título original do vídeo: “Prendre les armes ou fuir pour protéger sa famille, le dilemme des Ukrainiennes” (Pegar em armas ou fugir pra proteger sua família, o dilema das ucranianas):





Natacha Vesnitch: Boa tarde e boas-vindas a mais esta edição de Actuelles, edição especial dedicada à guerra na Ucrânia e a seu impacto sobre as mulheres. Desde o início da ofensiva russa, centenas de milhares de pessoas deixaram suas casas, um exílio que expõe as mulheres a todo tipo de violência. Certas ucranianas decidiram ficar em seu país e às vezes decidiram mesmo pegar em armas. Outras decidiram fugir e desde então assistem com impotência à guerra que está destruindo seu país.

Olena Starodubtseva nos acompanha online: bom dia, muito obrigada por estar com a gente. Você fugiu de Kyiv e agora se encontra com sua filha e sua mãe num vilarejo a uns 60 km da capital. E também, comigo nesta bancada, Anastasia Mikova, boa tarde! Obrigada por estar com a gente, você é franco-ucraniana e notavelmente foi co-realizadora do filme Woman [disponível no Globoplay], sobre a condição das mulheres no mundo.

Olena, gostaria de lhe perguntar primeiramente: desde o começo da guerra, centenas de milhares de ucranianos, em sua maioria mulheres e crianças, fugiram do país, mas você decidiu ficar. Por quê?

Olena Starodubtseva: Porque Kyiv é minha cidade, aqui está toda minha vida, meu trabalho, meus filhos, não sei, meus pais, minha mãe. Mas mesmo assim decidimos mudar um pouco de lugar, porque vivemos num bairro residencial, e quando as explosões começaram, os aviões militares e tudo mais, dava muito medo em minha filha. Mudamos de lugar com quatro famílias, sempre as mulheres, as crianças, os idosos, e estamos num pequeno vilarejo. Felizmente aqui é calmo, escutamos apenas o barulho dos aviões, às vezes das explosões, mas não é onde estamos. Não precisamos correr pra um abrigo a cada duas horas, quando as sirenes tocam em Kyiv. Ou seja, é assim.

Natacha Vesnitch: Você, Anastasia, se encontrava na França quando a guerra começou, e por sorte sua mãe também. Mas obviamente você tem amigos e parentes lá na Ucrânia, o que eles estão lhe dizendo?

Anastasia Mikova: O que Olena está dizendo coincide exatamente com o que estou escutando há muitos e muitos dias. Minha irmã está lá com sua filhinha de nove anos e minha avó, que morava perto do centro da cidade. No primeiro dia elas estavam assim, dizendo: “Não, não vá embora! É nossa cidade, é nossa vida! Você quer que vamos pra onde?” E eu de fato via do exterior: vemos com mais distanciamento o que está acontecendo, e eu via que isso ia piorar ainda mais, e eu lhes dizia: “Não, vocês não podem ficar aí!” E foi realmente muito difícil, pois aqui precisamos imaginar: quando você construiu tudo lá, quando você tem tudo que lhe é próximo, tudo o que é seu, e deixa tudo desabar pra ir aonde, de fato, construir o quê? E finalmente consegui convencer minha irmã a partir com sua filhinha, mas minha avó, por exemplo, se recusou firmemente a partir e decidiu ficar lá, pois ela nos disse que sua vida estava ali, e se tivesse que morrer, preferia morrer ali.

Natacha Vesnitch: Olena e Anastasia, fiquem com a gente pra ver esta reportagem produzida por Alison Sargent e Florence Gaillard sobre as ucranianas que decidiram participar do esforço de guerra. Apenas os homens de 18 a 55 foram mobilizados, mas há mulheres que também querem defender sua pátria fabricando coquetéis Molotov e às vezes inclusive pegando em armas. Vamos ver!

Florence Gaillard (voz): Aos sete anos, Uliana está entre as ucranianas mais jovens a apoiar o esforço de guerra.

Uliana: Aqui, recuperamos os tecidos pra fazer mechas de coquetéis Molotov.

Florence Gaillard: Um pouco mais longe, as pessoas ralam o isopor usado pra rechear os coquetéis Molotov. É aqui que eles são fabricados por estas mulheres que trabalham sem descanso. Esta pensa especialmente em seu marido.

Mulher: Estando aqui, eu o ajudo, mesmo querendo mais estar com ele na linha de frente pra jogar esse inimigo fora de nosso país!

Florence Gaillard: E é assim que os civis ucranianos jogam essas bombas caseiras sobre os blindados russos. [Pausa.] Neste ateliê de costura, as estilistas não fabricam mais roupas ou acessórios de moda, mas apenas uniformes camuflados e coletes à prova de balas.

Costureira: A placa de metal é enviada por um outro grupo de resistência e é testada com balas de verdade por um terceiro grupo.

Florence Gaillard: Proteções tanto mais úteis quanto mais as barricadas são levantadas em Dnipró. Mulheres entre os operários, mas também entre os soldados, como Anna, médica e alistada.

Anna: Estou aqui, não tenho medo, e meu filho de 21 anos também se alistou!

Florence Gaillard: Desde 2018, as mulheres são equiparadas aos homens no exército ucraniano e representam hoje 15% dos efetivos militares.

Natacha Vesnitch: Olena Bilozerska integra esses 15% de mulheres que compõem o exército ucraniano. Ela é tenente e está esperando pra saber onde vai lutar. Conseguimos contatá-la apenas por telefone em razão de sua segurança. Vamos escutá-la.

Olena Bilozerska: Penso que daqui a alguns dias vou combater no front. Assim espero, pois é meu país, minha terra, quero defendê-la. E é meu dever fazer isso. Tenho bastante experiência de combate. Penso que todo cidadão capaz de pegar em armas deve fazê-lo e ir combater.

Natacha Vesnitch: Olena, você fugiu de Kyiv com sua mãe e sua filha de 14 anos. Como vocês estão vivendo esse conflito, como estão se sentindo num perigo especial pelo fato de serem mulheres?

Olena Starodubtseva: Não penso que posso sentir um perigo especial por ser pessoalmente mulher, sinto simplesmente a responsabilidade por minha filha de 14 anos e por minha mãe idosa. Então pra mim esse é o combate. Sim, eu devo protegê-las e nós devemos sobreviver a tudo isso, a todos esses eventos. E mesmo assim, enquanto meu marido todo dia faz alguma coisa pra ajudar nossas forças militares, tento fazer as coisas simples, talvez. Com minhas companheiras, tentamos coordenar as pessoas necessitadas que ficaram em Kyiv, que precisam de comida, de remédios ou simplesmente mudar de lugar, e nós coordenamos tudo isso online. É o que em todo caso posso fazer.

Natacha Vesnitch: Anastasia, você pôde constatar inúmeras vezes, sobretudo produzindo seu documentário, que as mulheres são as mais afetadas nos conflitos.

Anastasia Mikova: Sempre. As mulheres sempre são as mais afetadas nos conflitos. As mulheres e as crianças. E é impressionante dizer, pois, que a gente luta há anos e anos pra tentar avançar, e basta um conflito pra nos devolver a anos-luz antes de tudo o que conseguimos obter. E eu trabalhei em países muito complicados: Síria, República Democrática do Congo... E em todo lugar vimos, por exemplo, estupros de guerra. Em todo lugar, os corpos das mulheres também foram utilizados como um campo de batalha. Em todo lugar os corpos das mulheres eram atacados pra destruir uma nação. E eu estou muito orgulhosa das mulheres ucranianas, pois hoje elas justamente não se deixam abater. Escutando Olena, vemos que ela mesma sofre dificuldades perto de Kyiv, e mesmo assim tenta ser útil. Eu tenho metade das amigas que são arquitetas, jornalistas, professoras etc. que eu jamais teria imaginado que decidiriam pegar em armas e, não sei como, ir defender seu país. E eis que essas também são as mulheres hoje, não são mais pequenos seres que ainda devem ser considerados frágeis. E eu estou muito orgulhosa das mulheres ucranianas.

Natacha Vesnitch: Desde o começo da invasão russa, centenas de milhares de pessoas fugiram de suas casas. Como você, Olena, poderia haver, segundo a ONU, sete milhões de deslocados dentro da Ucrânia, mas também cinco milhões de refugiados fora do país, obviamente em sua maioria mulheres e crianças. Vamos ver!

David Gilberg: Mulheres e crianças: desde a mobilização decretada em 24 de fevereiro, a porcentagem de homens é muito baixa entre os grupos de refugiados que deixam a Ucrânia, como aqui na fronteira moldova. E na hora de pôr o pé num novo país, os pensamentos se voltam àqueles que ficaram pra trás.

Natasha (refugiada): O pai deles é militar. Ele está alistado e vai lutar a serviço do país. Ele não vai deixar a Ucrânia. Ele vai ficar e lutar, porque é isso que ele deve fazer.

David Gilberg: Estas mães de família se viram sozinhas com seus filhos do dia pra noite. Agora elas são centenas de milhares nos países vizinhos à Ucrânia. Olena, que já tinha fugido do Donbass em 2014, chegou à Polônia com seu filho autista.

Olena (refugiada): Meu marido ficou pra fazer a guerra. Está protegendo o país, na cidade de Mykolaiiv.

David Gilberg: No centro de acolhimento provisório instalado na Polônia, a solidariedade se organiza. A maioria desses ucranianos perseguiram o mesmo objetivo: colocar suas crianças em lugar seguro.

Maria Lisicka: Pra mim o importante não é como elas vivem, mas que sejam felizes. A coisa mais importante são as crianças e que elas sejam felizes.

David Gilberg: Famílias separadas e desenraizadas que continuarão sendo cada vez mais numerosas. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados estima que cinco milhões de ucranianos vão fugir da guerra em seu país.

Natacha Vesnitch: Olena, é muito difícil pensar no futuro neste momento, posso imaginar muito bem. Mesmo assim eu gostaria de lhe perguntar como você vê o futuro. Você ainda tem esperança?

Olena Starodubtseva: Mas é claro! Pois eu não tenho outra saída. Acredito em nossas forças militares, a cada dia vejo que é verdade, nossas forças militares são muito fortes, se assim posso dizer. Sim, acreditamos nisso, e eu queria muito que chegasse o dia de podermos reconstruir meu país, porque agora minha cidade natal, Kharkiv, está totalmente destruída. Precisamos de muito tempo e esforços pra reconstruir tudo, mas mesmo assim acredito em tudo isso.

Natacha Vesnitch: Muito obrigado, Anastasia. Uma última pergunta bem rápida, se puder: quem quiser ajudar a Ucrânia, suas mulheres e crianças, o que pode fazer de concreto?

Anastasia Mikova: Há muitas associações que já são muitíssimo ativas na Ucrânia, associações francesas internacionais, como a Cruz Vermelha, o Socorro Popular, os Médicos sem Fronteiras. Eles precisam de doações e estão se organizando pra levar ajuda aos ucranianos. Há também muitas associações locais ucranianas às quais agora é muito fácil doar pela internet. E penso que hoje as mulheres e as crianças precisam muitíssimo de nossa ajuda.

Natacha Vesnitch: Muitíssimo obrigada, Anastasia Mikova! Obrigada, Olena Starodubtseva, por estar com a gente descrevendo essa guerra na Ucrânia. Terminamos esta edição especial de Actuelles dedicada às mulheres ucranianas. Obrigada pela audiência e não deixe de reagir em nossas redes sociais. Até mais!




sábado, 5 de março de 2022

Buchanan, presidente solteiro dos EUA


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Há algum tempo fiquei curioso sobre se os EUA ou o Brasil já tiveram algum presidente que não era casado durante seu mandato, ou que só se casaria depois pela primeira vez. Após uma busca rápida, descobri no site “Guia dos curiosos” que nenhum presidente brasileiro tinha sido solteiro. Segundo o breve texto, apenas Castello Branco tomou posse viúvo, e Hermes da Fonseca se tornou viúvo e casou de novo dentro do mandato. Já Itamar Franco e Dilma Rousseff eram divorciados, tendo sido casados e tido filhas no passado. (Eu acrescentaria que na época havia boatos sobre namoradas de Itamar, mas enfim, rs.)

Quanto aos EUA, também não foi difícil de obter uma resposta, mas achei conteúdo bem mais rico. Encontrei o nome do único presidente que nunca se casou, no século 19, mas algumas histórias sobre os outros mandatários também são muito interessantes. Além disso, a trajetória de James Buchanan tem passagens intrigantes quanto à sua vida sentimental, inspirando zombaria e especulações sobre sua sexualidade, igual ocorre hoje. Os exemplos mais recentes de que me recordo no Brasil são Gilberto Kassab, ex-prefeito de São Paulo e ex-deputado federal que nunca se casou, e Eduardo Leite, governador gaúcho que recentemente assumiu ser gay.

Seguem abaixo uma pergunta no Quora, site coletivo especializado em repsonder dúvidas pontuais, e trechos relevantes da Wikipédia em inglês que contam o principal da carreira pública e da vida sentimental do presidente Buchanan. No primeiro caso, conforme respondeu Angela Stockton à pergunta “Quais presidentes dos EUA não eram casados durante seus mandatos?”, há uma grande diversidade de casos, e só omiti algumas frases irrelevantes. No segundo caso, omiti e não traduzi as muitas notas de rodapé na página original. Nos dois casos, eu mesmo traduzi ambos os textos diretamente do inglês.




Thomas Jefferson, Andrew Jackson, Martin Van Buren e Chester Arthur eram viúvos. É claro que Jefferson tinha Sally Hemings como “companheira”, mas sua filha Martha servia como sua primeira-dama.

John Tyler foi presidente de 4 de abril de 1841 a 4 de março de 1845. Sua primeira esposa, Letitia, morreu em 1842. Ele se casou com sua segunda esposa, Julia, em 1844. [...]

James Buchanan nunca se casou.

Grover Cleveland estava solteiro quando foi eleito presidente, mas um ano depois se casou com Frances Folsom, de 22 anos, a quem ele chamava de “Frank”. Ela era filha de sua antiga companheira legal, e ele explicou que esperou pra se casar até completar 48 anos, porque estava “esperando que Frank crescesse”.

Woodrow Wilson se mudou pra Casa Branca em 1913. Sua primeira esposa, Ellen, morreu em 1914. No ano seguinte, ele se casou com uma viúva, Edith Bolling Galt. [...]


James Buchanan Jr. (23 de abril de 1791 – 1.º de junho de 1868), advogado e político estadunidense, foi o 15.º presidente dos Estados Unidos de 1857 a 1861. Anteriormente, tinha sido Secretário de Estado (de 1845 a 1849) e representado a Pensilvânia em ambas as casas do Congresso dos EUA. Ele foi um defensor dos direitos dos Estados [states’ rights] e reduziu ao mínimo o papel do governo federal nos anos finais da escravidão no país. Historiadores e críticos modernos condenam Buchanan por não ter resolvido o problema da escravidão nem ter prevenido a relacionada secessão dos estados do Sul. Historiadores e acadêmicos o classificam firmemente como um dos piores presidentes do país.

Após ter sido eleito em 1832, o presidente Andrew Jackson ofereceu a Buchanan o posto de Embaixador dos Estados Unidos na Rússia. Buchanan relutou em deixar o país, mas no final aceitou. Ele serviu como embaixador por 18 meses, período em que aprendeu francês, a língua de trabalho da diplomacia no século 19. Ele ajudou a negociar tratados comerciais e marítimos com o Império Russo.

James Buchanan teve uma formação clássica tradicional, que incluía latim e grego, na Old Stone Academy (privada), antes de se transferir pro Dickinson College. Ele era excelente nas duas matérias.

Em 1818, Buchanan conheceu Anne Caroline Coleman num baile de gala em Lancaster, e os dois começaram a flertar. Anne era filha de Robert Coleman, um rico fabricante de ferro. Ela também era cunhada de Joseph Hemphill, um juiz da Filadélfia e um dos colegas de Buchanan. Por volta de 1819, os dois estavam noivos, mas passavam pouco tempo juntos. Buchanan estava ocupado com sua firma de advocacia e projetos políticos durante o Pânico de 1819, os quais o mantinham longe de Anne às vezes por semanas seguidas. Entre os muitos rumores, estava o de que ele só tinha se casado com ela por dinheiro; outro rezava que ele tinha se envolvido com outra mulher (não identificada). Cartas de Anne revelavam que ela estava a par de vários desses rumores. Ela rompeu o noivado, e pouco tempo depois, em 9 de dezembro de 1819, morreu repentinamente. Buchanan escreveu pro pai dela pedindo permissão pra participar do funeral, mas recebeu um não.

Após a morte de Anne, Buchanan nunca se envolveu com outra mulher. Ele dizia, na época do funeral dela: “Sinto que a felicidade fugiu de mim para sempre”. Durante sua presidência, uma sobrinha órfã, Harriet Lane, a quem ele tinha adotado, serviu como anfitriã oficial da Casa Branca. Havia um rumor infundado de que ele tinha um caso com Sarah Childress Polk, viúva do presidente James Polk.

O fato de Buchanan ter sempre ficado solteiro após a morte de Anne Coleman foi alvo de curiosidade e especulação. Alguns supõem que a morte de Anne serviu apenas pra desviar questionamentos sobre a sexualidade ou o celibato de Buchanan. Vários escritores asseveraram que ele seria homossexual, entre eles James W. Loewen, Robert P. Watson e Shelley Ross. Uma de suas biógrafas, Jean Baker, sugere que Buchanan seria celibatário, ou mesmo assexual.

Buchanan tinha uma estreita proximidade com William Rufus King, o que se tornou um alvo da fofoca popular. King era um político do Alabama que serviu brevemente como vice-presidente sob Franklin Pierce. De 1834 a 1844, Buchanan e King viveram juntos numa pensão em Washington e compareciam juntos a eventos sociais. Na época, tal arranjo de vida era comum, embora King certa vez tenha se referido à relação como uma “comunhão”. Andrew Jackson chamava King de “Miss Nancy”, e o proeminente democrata Aaron V. Brown se referia a King como a “cara-metade”, “esposa” e “Aunt Fancy” [gíria: “homem gay”] de Buchanan. Loewen indicou que Buchanan, perto do fim da vida, escreveu uma carta admitindo que poderia ter se casado com uma mulher que pudesse aceitar sua “falta de afeto ardente ou romântico”. Catherine Thompson, esposa de Jacob Thompson, ministro de Buchanan, notou tempos depois que “havia algo de doentio na postura do presidente”. King morreu de tuberculose pouco após a posse de Pierce, quatro anos antes de Buchanan se tornar presidente. Buchanan o descreveu como “um dos melhores, mais puros e mais consistentes que eu conheci”. A biógrafa Jean Baker opina que as sobrinhas dos dois homens podem ter destruído a correspondência entre eles. Porém, ela acredita que as cartas intactas ilustram apenas “o afeto de uma amizade especial”.



“Sai daqui! Levem ele embora! Vagabundo!”

quinta-feira, 3 de março de 2022

“De Guarulhos pra cima é tudo Bahia”


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Por muitos anos, tive esta cena na cabeça, só sabendo que tinha sido no primeiro ou num dos primeiros capítulos da novela Belíssima, exibida no horário “das oito” pela TV Globo em 2005 e 2006. Porém, após conseguir achar alguns uploads marotos dos primeiros capítulos num ótimo canal, encontrei o trecho em que Lima Duarte aparece como o personagem turco Murat Güney chamando a empregada de “baiana” (capítulo 2; infelizmente, o vídeo não está mais disponível). Na verdade, a frase que fez minha família toda rir à época foi “De Guarulhos pra cima é tudo Bahia”, porque até 1994 morávamos em Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, eu nasci lá, e sabemos como a migração nordestina foi forte!

Não sei se no Rio de Janeiro o termo “paraíba” é mais usado pra designar pejorativamente o migrante do Nordeste, mas em São Paulo “baiano” é muito mais comum, talvez por causa da origem da maioria. Foi uma migração que, por causa de problemas climáticos e econômicos, foi forte especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Meu próprio pai nasceu na comunidade Sítio Taboquinha, município de Assaré, sul do Ceará, e veio criança pra Guarulhos com meus avós hoje falecidos e irmãos dele. Rolava até uma piada que “em Guarulhos tem mais nordestinos que no próprio Nordeste”, rs. O objetivo de Belíssima era mostrar a imensa diversidade cultural e humana que São Paulo e região sempre tiveram, sem esconder os preconceitos advindos das desigualdades sociais que entrecortam essa diversidade.



terça-feira, 1 de março de 2022

Rússia, Ucrânia e o conflito linguístico


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O Gabriel, universitário que administra a página Linguisticando, fez uma postagem mostrando como o conflito entre a Rússia e a Ucrânia também é linguístico (pelo menos dentro da Ucrânia). Ele me mandou seu texto e eu o corrigi, adicionando ainda outras informações relevantes. Como observação geral sobre o teor, eu também lhe disse: “Tá faltando todo o background histórico aí, mas não sei como isso podia ser inserido.” Depois enviei ao Gabriel as seguintes notas, que com algumas adaptações, puderam se tornar a presente postagem.

A questão linguística não é só política, é cultural também. A Ucrânia fazia parte do Império Russo até 1918, quando teve um breve período de independência. Antes, a língua ucraniana era bastante desfavorecida, e o russo era a língua oficial imposta. A verdadeira literatura em ucraniano só surgiu no século 19, e nessa época o russo e o ucraniano falados eram muito próximos, sobretudo nos campos (que eram, basicamente, quase toda a população). Já o russo, à medida em que foi se formando como língua literária, sofreu muita influência do eslavônio, que era essencialmente uma língua eslava meridional, mas se usava oficialmente na Rússia até o início do século 18. O eslavônio até hoje é usado na liturgia da Igreja Ortodoxa Russa e de outras igrejas ortodoxas. E esse russo literário acabou se tornando a língua difundida na URSS durante a erradicação do analfabetismo, de forma que virtualmente todos os dialetos desapareceram.

Da dominação russa no conjunto da URSS é que derivam as questões políticas, mas ao contrário do que muitos falam, o ucraniano não chegou a ser “proibido”. Embora em vários momentos seu uso fosse desencorajado, a literatura continuou florescendo, mas a essa altura o padrão literário já tinha sofrido grande influência do russo. Tanto que o ucraniano falado pela imigração brasileira, que chegou ao Sul no fim do século 19, quase não é entendido pelos ucranianos de hoje, alfabetizados no ucraniano literário moderno. Tem um caso curioso, que na época da URSS a letra Ґ ґ, que representa nosso som “gué”, foi excluída do alfabeto, substituída pela letra Г г, que também soa “gué” em russo, mas soa parecido com o “h” aspirado do inglês em ucraniano. Com a independência da Ucrânia, a letra Ґ ґ voltou ao alfabeto...

No fim das contas, o russo era a língua franca e científica de toda a URSS, e quando houve a independência, colocou-se obviamente todo o problema da língua, tanto no modo como o ucraniano seria oficializado e usado em domínios como ciência e tecnologia quanto no tratamento a ser dado à língua russa. Afinal, a URSS funcionava na prática como um território único, e russos se mudavam pras antigas repúblicas soviéticas a todo momento. Além disso, quando os bolcheviques desenharam as fronteiras da Ucrânia, não levaram em conta critérios muito claros, coisa que Putin ressaltou quando anexou a Crimeia em 2014. Daí resultou que o Donbass, que de fato é historicamente uma região de maioria russa, ficou na composição da Ucrânia, o que pra Moscou não fazia grande diferença, já que virtualmente a independência era inimaginável.

Acredito que esse seja o principal problema, pois quanto mais radical é o nacionalismo ucraniano (que, de fato, tem vários matizes), maiores são o sentimento antirrusso e a tendência a ver o ucraniano como a única língua nacional de direito. Putin usa justamente essas tendências mais radicais pra alegar que os russos são “perseguidos” ou sofrem “genocídio” na Ucrânia, sendo que na própria Rússia os trabalhadores ucranianos pobres (imigração econômica) são muito discriminados. Ianukovych, o presidente deposto em 2014 e muito alinhado a Putin, era acusado pelos nacionalistas de falar/saber mais russo que ucraniano, enquanto no mesmo ano o novo governo quase passou uma lei que basicamente impunha o ucraniano como única língua nacional e obrigatória nos serviços públicos.