NOTA: Estas anotações ditadas por Vladimir Ilich Lenin (1870-1924), líder da Rússia socialista e fundador da União Soviética (URSS), para suas secretárias no final de 1922 descrevem a visão que ele tinha dos problemas nacionais e nacionalistas então eclodidos na Geórgia, mas que ele mesmo acreditava poderem iluminar a situação geral no país. Sua tradução direta a partir do russo foi sugerida no início de 2017, por Lúcio Flávio Almeida, professor da PUC de São Paulo, em memória do centenário da Revolução Russa de Outubro, a ser publicada na revista Ponto e Vírgula
, sediada nessa universidade. Em meio às obrigações do início de meu doutorado, assim aceitei, e o texto completo em PDF foi publicado na edição n.º 21 daquele primeiro semestre, às pp. 96-105. O material traduzido contém uma introdução minha, a nota dos editores soviéticos e as três anotações de Lenin. O Lúcio só me pediu que esperasse um tempo se eu quisesse republicar aqui, pra que eles “desfrutassem do ineditismo”, e acho que a hora chegou. Seguem os textos abaixo, sem alterações e com seus respectivos subtítulos.
Observações sobre a tradução do texto (Erick Fishuk)
A presente tradução da carta “Para a questão das nacionalidades ou da ‘autonomização’”, ditada por Vladimir Ilich Lenin às suas secretárias nos dias 30 e 31 de dezembro de 1922, baseia-se no texto publicado no volume 45 de suas Obras completas em russo, 5.ª edição de 1970 (Moscou, Editora Politizdat, pp. 356-362). Consta nesse tomo que a primeira publicação do texto ocorreu em 1956, no número 9 da revista Kommunist, tendo-se seguido um exemplar datilografado das anotações da secretária. A fonte do texto original já coloca por si só alguns problemas tradutórios.
Mesmo assim, decidi traduzir também a nota 210, que contextualiza a carta e cujo conteúdo se encontra às pp. 594-596 do mesmo volume, pois ela traz informações históricas que seriam redundantes se eu as tratasse aqui. 1956, antes de tudo, foi o ano em que o líder soviético Nikita Khruschov pronunciou seu famoso “relatório secreto”, em que condenava os abusos autoritários de Stalin, embora de modo muito parcial. Na mesma época, os próprios jornais comunistas estrangeiros publicaram o texto do chamado “testamento de Lenin”, contendo reprimendas tanto a Trotsky quanto a Stalin, e cuja autenticidade muitos negaram.
De fato, tanto os documentos pessoais de Lenin quanto os de Stalin são ainda hoje praticamente inacessíveis ao pesquisador estrangeiro, e seu conhecimento só foi possível graças a essas aparições esporádicas pelas mãos dos próprios editores e estudiosos soviéticos e russos. Deve-se lembrar que na era de Leonid Brezhnev, não se retornou à canonização pura e simples de Stalin, mas tampouco sua detração continuou tão desenfreada quanto no governo anterior. Nem Stalin nem Khruschov, ao menos no discurso oficial, teriam dado contribuições fundamentais ao desenvolvimento da URSS, e o “culto a Lenin” teria sido a resposta para preencher esse vazio de liderança. É nesse espírito que deve ser lida a introdução dos editores soviéticos.
Outra característica que tornou a tradução particularmente delicada foi o amplo uso, da parte de Lenin, de expressões etnográficas peculiares ao período tsarista e que ainda não haviam sido expurgadas da linguagem oficial; nesse aspecto, a comparação com o texto em russo da nota editorial introdutória é instrutiva. Dois termos se destacam em complexidade: inorodets, várias vezes usado em seu plural inorodtsy, e natsional. O primeiro termo designava originalmente alguém de uma nacionalidade alheia, independentemente do ponto de vista, mas na Rússia imperial passou a nomear o membro de uma das nacionalidades “minoritárias”, não russas de forma geral, em especial as residentes nos limites do império e mais especificamente os povos do Oriente. Já natsional, a despeito de sua enganosa transparência, apresentava antes um problema linguístico, referente a uma realidade que desconhecemos: é o membro de uma das populações nativas de repúblicas e províncias russas e soviéticas que se distingam pelo seu caráter etnolinguístico.
Embora a compreensão global os dispense perfeitamente, não raro recorri a colchetes no interior do texto para assinalar a expressão em russo equivalente ao que se precede imediatamente, dado que a frequente não equivalência literal me levou a empregar diversas tournures em português. Trata-se dos casos mencionados acima, além de outros em que julguei por bem explicitar escolhas não literais, bem como idiomatismos que mereceriam explicação mais detalhada. Entre os últimos estão as duas palavras usualmente traduzidas por “russo” – russki, referente à etnia, e rossiiski, referente ao Estado multinacional – e o nome Derzhimorda, retirado de uma peça de Gogol e que evoca, ao mesmo tempo, propensões militaristas e semblante amedrontador.
Por fim, mas não menos importante, a linguagem frequentemente irônica de Lenin é um dos desafios daquele que se propõe a traduzi-lo. Seus textos públicos e oficiosos são caracterizados por uma linguagem padronizada e previsível, o que facilita para quem domina os temas históricos concernentes. Contudo, seus escritos pessoais e seus panfletos polêmicos recorrem com frequência não apenas a personagens consagrados da literatura russa,* como também a evocações de situações conjeturais e a ataques espirituosos contra seus contendores. Ao tradutor brasileiro cabe uma sensibilidade apurada para discernir esse traço característico do agudo intelecto de Lenin, que não deixou de se manifestar nem na redação, nem no modo como abordou a delicada “questão nacional” da Rússia soviética no texto “Para a questão das nacionalidades ou da ‘autonomização’”, que segue traduzido abaixo.
* Um exemplo pouco conhecido no Brasil é o de seu manuscrito nomeado nas Obras completas (t. 20, 5. ed. de 1973, p. 96) como “O kraske styda u iudushki Trotskogo” (em tradução livre, “Sobre o enrubescimento do iudushka Trotsky”). Iudushka, traduzido como “pequeno Judas” ou somente “Judas”, era o epíteto dado, em polêmicas na virada do século 19 ao 20, a pessoas reputadas mesquinhas, egoístas e traiçoeiras, em menção ao personagem Porfiri Golovliov, ou “Iudushka Golovliov”, do romance A família Golovliov (1880), do escritor Mikhail Saltykov-Schedrin. É claro que a contenda tem localização histórica bem definida.
Nota introdutória dos editores soviéticos
A carta Para a questão das nacionalidades ou da “autonomização” foi escrita por V. I. Lenin, por ocasião da formação da URSS, e dedicada ao problema das relações mútuas entre os povos da União Soviética.
O motivo imediato para que Lenin escrevesse essa carta foi o conflito, dentro do Partido Comunista da Geórgia, entre o Comitê Regional Transcaucásico do PCR(b), chefiado por G. K. Ordzhonikidze, e o grupo de P. G. Mdivani.
Aquele comitê, e anteriormente o Birô Caucásico do CC do PCR(b), haviam conduzido uma linha fundamentalmente correta, alcançando a coligação das repúblicas da Transcaucásia e combatendo a posição radicalmente errônea do grupo de Mdivani, a qual havia freado na prática a unificação econômica e política das repúblicas transcaucásicas, favorecido na realidade a conservação do isolamento da Geórgia e, desse modo, entrado no jogo do nacionalismo burguês, dos mencheviques georgianos. Nos congressos, conferências e reuniões da militância partidária, os comunistas da Geórgia consideraram com justeza essa posição de Mdivani e seus adeptos como um desvio nacionalista. Lenin criticava as errôneas visões de princípio desse grupo, e exatamente se contrapondo a Mdivani e seus apoiadores, Lenin sublinhou, em resolução do Birô Político do CC do partido escrita por ele em novembro de 1921, sobre a questão da criação da Federação Transcaucásica: “Reconhecer a federação das repúblicas transcaucásicas como absolutamente acorde a nossos princípios e indiscutivelmente passível de realização” (Obras completas, 5.ª ed., tomo 44, p. 255, em russo). Havendo os aliados de Mdivani insistido, mesmo após o pleno do CC do PCR(b) de outubro de 1922, que a Geórgia devia entrar na URSS diretamente, e não por intermédio da Federação Transcaucásica, Lenin revelou-se descontente, em telegrama ao Comitê Regional Transcaucásico e ao CC do PC da Geórgia, com as atitudes daquele grupo e censurou resolutamente sua “injúria contra Ordzhonikidze”. “Estou convencido – escreve Lenin – de que todas as discordâncias estão resolvidas com as resoluções do pleno do CC pela minha participação indireta e pela participação direta de Mdivani” (Obras completas, 5.ª ed., tomo 54, p. 300, em russo).
Ao mesmo tempo, Ordzhonikidze também cometeu graves erros. Ele não demonstrou a devida transigência e precaução ao realizar a política nacional do partido na Geórgia, incorreu em burocratismo e precipitação ao executar algumas medidas e nem sempre considerou a opinião e os direitos do CC do PC da Geórgia. Ordzhonikidze também não manteve uma postura digna nas inter-relações com o grupo de Mdivani. Ordzhonikidze chegou ao ponto de, tendo sido ofendido por um dos adeptos desse grupo, agredi-lo fisicamente.
Demonstrando discordar da posição do Comitê Regional Transcaucásico, os apoiadores de Mdivani, constituindo maioria no CC do PC da Geórgia, saíram do CC e apresentaram queixa ao CC do PCR(b). Em 25 de novembro de 1922, o Birô Político adotou a resolução de enviar à Geórgia uma comissão chefiada por F. E. Dzerzhinski para examinar imediatamente o requerimento dos membros do CC do PC local.
A “questão georgiana” muito incomodava Lenin, o qual, como se lê no diário de suas secretárias, esperou com impaciência o retorno de Dzerzhinski. Em 12 de dezembro ele chegou a Moscou, e no mesmo dia Vladimir Ilich teve com ele uma prolongada conversa. Mais tarde, em janeiro de 1923, Lenin diria para L. A. Fotieva: “Às vésperas de minha doença, Dzerzhinski falou-me sobre o trabalho da comissão e sobre o ‘incidente’, e isso me atingiu com muita força”. Lenin relacionava a “questão georgiana” com a questão geral da formação da URSS, mostrando-se inquieto sobre o quão consequentemente os princípios do internacionalismo proletário seriam realizados ao unirem-se as repúblicas. Em 14 de dezembro de 1922, Vladimir Ilich tencionou ditar uma carta sobre a questão nacional, ou seja, a formação da URSS, mas não pôde então executar seu plano. Numa listagem ditada por Lenin em 27 ou 28 de dezembro com os temas das próximas cartas e artigos, figura o tópico “Sobre a questão nacional e o internacionalismo (em vista do mais recente conflito no partido georgiano)”.
Na carta “Para a questão das nacionalidades ou da ‘autonomização’”, Lenin reprovou a conduta de Ordzhonikidze e julgou que a comissão de Dzerzhinski não teria demonstrado a devida imparcialidade ao investigar o “conflito georgiano”. Lenin atribuiu a responsabilidade política por todo esse caso, em primeiro lugar, a Stalin, visto que como secretário-geral do CC ele cometeu sérios erros durante a união das repúblicas. Lenin não apoiava a errônea posição de princípio de Mdivani sobre as questões da Federação Transcaucásica e da formação da URSS. Mas, percebendo naquele instante o chauvinismo de grande potência como perigo principal e considerando que a tarefa de combatê-lo repousava antes de tudo sobre os ombros dos comunistas da nacionalidade antes dominante, Lenin concentrou a atenção precisamente nos erros de Stalin, Dzerzhinski e Ordzhonikidze quanto à “questão georgiana”.
Na carta “Para a questão das nacionalidades ou da ‘autonomização’”, Lenin lançou luz sobre os mais importantes problemas da política nacional do partido. Ele considerava essa carta como norteadora, atribuiu-lhe um grande significado e tencionava que mais tarde a publicassem na qualidade de artigo. Contudo, por causa do agravamento inesperadamente forte da doença após 6 de março de 1923, Vladimir Ilich não teve tempo de tomar a decisão final com relação à carta “Para a questão das nacionalidades ou da ‘autonomização’”. Em 16 de abril de 1923, L. A. Fotieva encaminhou a carta de V. I. Lenin ao Birô Político. No 12.º Congresso do PCR(b) essa carta foi revelada a cada delegação em separado, e em conformidade com as indicações de Lenin, no projeto de resolução então aprovado sobre a questão nacional, foi incluída uma série de importantes mudanças e acréscimos.
Anotações de 30 de dezembro de 1922, tomadas por M. V.
Penso que sou fortemente culpado, perante o operariado da Rússia, por não ter intervindo com a energia e a acuidade suficientes no famigerado debate sobre a autonomização, oficialmente chamado, ao que parece, questão da união das repúblicas socialistas soviéticas.
No verão, quando essa questão emergiu, eu estava doente, e em seguida, no outono, depositei excessivas esperanças em minha recuperação, e em que os plenos de outubro e dezembro me dessem a possibilidade de intervir nesse debate. Mas, pelo contrário, eu não tive tempo de estar nem no pleno de outubro (sobre essa questão) nem no de dezembro, e dessa forma a questão me passou quase completamente ao largo.
Tive tempo apenas de conversar um pouco com o cam. Dzerzhinski, que havia chegado do Cáucaso e me contou qual era o estado dessa questão na Geórgia. Também tive tempo de trocar uma palavra com o cam. Zinoviev e expressar-lhe meus receios no tocante a esse problema. Daquilo que comunicou o cam. Dzerzhinski, que esteve à frente da comissão enviada pelo Comitê Central para “investigar” o incidente georgiano, eu só pude extrair os mais fortes temores. Se as coisas chegaram ao ponto de Ordzhonikidze irromper em empregar a força física, como me foi relatado pelo cam. Dzerzhinski, pode-se então imaginar em que pântano nos precipitamos. Pelo visto, todo esse capricho de “autonomização” era radicalmente inverídico e infundado.
Dizem que era exigida a unidade do aparelho. Mas de onde saíram essas assertivas? Não seria do velho aparelho da Rússia, o qual, como eu já apontei num dos números anteriores de meu diário, nós emprestamos ao tsarismo e o mundo soviético mal começou a engraxar?
Sem dúvida seria necessário adiar essa medida até que pudéssemos dizer que garantimos o nosso aparelho como nosso. E agora podemos dizer sinceramente o contrário, que chamamos de nosso um aparelho que na realidade ainda é inteiramente estranho a nós e constitui um imbróglio burguês e tsarista, cuja modificação em cinco anos, ante a ausência da ajuda de outros países e o predomínio dos “trabalhos” bélicos e do combate à fome, era completamente impossível.
Em tais condições, é muito natural que a “liberdade de sair da união”, com a qual nos legitimamos, se revelará um documento vazio, incapaz de defender as outras nacionalidades da Rússia [rossiiskie inorodtsy] da invasão daquele homem genuinamente russo [russki], do chauvinista grão-russo, enfim, do patife e opressor que constitui o típico burocrata russo. Não há dúvidas de que o ínfimo percentual de operários soviéticos e sovietizados afundará nesse mar de canalhas grão-russos e chauvinistas, como a mosca no leite.
Em defesa dessas medidas, dizem que se dividiram os comissariados do povo diretamente concernentes à psicologia e à educação das nacionalidades. Mas aí existe a questão sobre se é possível dividir plenamente esses comissariados, e a questão sobre se nós tomamos, com o cuidado suficiente, medidas para realmente defender as outras nacionalidades [inorodtsy] do leão-de-chácara [derzhimorda] genuinamente russo. Julgo que não tomamos essas medidas, embora pudéssemos e devêssemos tomá-las.
Penso que desempenharam aí um funesto papel a precipitação e o fervor burocratista de Stalin, bem como sua exasperação contra o tão falado “social-nacionalismo” [sotsial-natsionalizm]. Via de regra, a exasperação costuma desempenhar na política o mesmo papel danoso.
Temo ainda que o cam. Dzerzhinski, que viajou ao Cáucaso para investigar o caso dos “crimes” desses “sociais-nacionalistas”, tenha lá se distinguido também somente pelo seu humor genuinamente russo (é sabido que as nacionalidades russificadas [obrusevshie inorodtsy] sempre se desmesuram quanto ao humor genuinamente russo) e que a imparcialidade de toda a sua comissão tenha se caracterizado pela “pancadaria” de Ordzhonikidze. Eu penso que nenhuma provocação e nem mesmo qualquer ofensa possam justificar essa pancadaria russa, e que o cam. Dzerzhinski é irreparavelmente culpado por haver levianamente lidado com essa pancadaria.
Ordzhonikidze era a autoridade perante os demais cidadãos do Cáucaso, não tinha o direito a tal irritabilidade, à qual ele e Dzerzhinski se referiram. Ordzhonikidze, ao contrário, estava obrigado a controlar-se de um jeito que não era obrigatório a nenhum cidadão comum, e ainda mais inculpado por um crime “político”. Pois para falar a verdade, os sociais-nacionalistas eram cidadãos inculpados por um crime político, e apenas assim todas as circunstâncias desse crime podiam qualificá-lo.
Daí se levanta já uma importante questão de princípio: como compreender o internacionalismo?*
* O seguinte texto está riscado adiante nas notas estenográficas: “Penso que nossos camaradas não se orientaram o suficiente nessa importante questão de princípio”. (Nota dos redatores soviéticos)
Anotações de 31 de dezembro de 1922, tomadas por M. V.
Eu já havia escrito em minhas obras sobre a questão nacional que não serve para nada avançar a questão do nacionalismo de forma genérica e abstrata. É necessário distinguir entre nacionalismo de nação opressora e nacionalismo de nação oprimida, entre nacionalismo de nação grande e nacionalismo de nação pequena.
No que concerne ao segundo nacionalismo, quase sempre nós, naturais [natsionaly] de uma nação grande, revelamo-nos culpados na prática histórica por uma quantidade infinita de violações, e inclusive mais do que isso – sem perceber estamos perpetrando uma série enorme de violências e ultrajes –, basta apenas se lembrar de minhas memórias do Volga sobre como nós maltratamos os não russos [inorodtsy], chamando os poloneses apenas de “polacozinhos” [poliachishka], zombando dos tártaros apenas como “príncipes” [kniaz], dos ucranianos apenas como “topetudos” [khokhol], e dos georgianos e outros povos do Cáucaso como “carcaças” [kapkazski chelovek].
Por isso, por parte da nação opressora, também chamada nação “grande” (embora seja grande apenas em suas violações, grande apenas como é grande um leão-de-chácara [derzhimorda]), o internacionalismo deve consistir não apenas na observância da igualdade formal entre as nações, mas também numa desigualdade que compense, por parte da nação opressora, da nação grande, aquela desigualdade que se produz na vida real. Quem não entende isso, não entende realmente a posição proletária diante da questão nacional, permanece essencialmente no ponto de vista pequeno-burguês, e por isso não deixa de descambar a todo instante no ponto de vista burguês.
O que importa para o proletário? Ao proletário não é apenas importante, mas também vitalmente necessário, garantir o máximo de confiança por parte dos povos subjugados [inorodtsy] na luta proletária de classes. O que é preciso para tanto? Para tanto é necessária não somente a igualdade formal, mas também compensar de uma forma ou outra, em suas declarações e concessões relacionadas às outras nacionalidades [inorodets], a desconfiança, a suspeita e os ressentimentos infligidos no passado histórico por quem governava o povo [natsia] da “grande potência”.
Penso que não preciso continuar elucidando isso em detalhes aos bolcheviques, aos comunistas. E penso que no referido caso, com relação ao povo georgiano, temos um exemplo típico de quando se exigem uma prudência, civilidade e transigência especiais de nossa parte para abordamos o assunto de forma realmente proletária. O georgiano que reserva desdém para com esse lado da questão usa e abusa da acusação de “social-nacionalismo” (quando ele mesmo, nos fatos e na essência, não é apenas um “social-nacionalista”, mas também um grosseiro leão-de-chácara [derzhimorda] grão-russo), esse georgiano, na verdade, transgride os interesses da solidariedade classista proletária, pois nada bloqueia tanto a evolução e o reforço dessa solidariedade quanto a opressão nacional [natsionalnaia nespravedlivost], e nada sensibiliza tanto os nativos [natsionaly] “ofendidos” quanto o sentimento de igualdade e a violação dessa igualdade, mesmo que apenas por descuido ou até em forma de gracejo, por parte de seus camaradas proletários. É por isso que, em tal situação, é melhor pecar pelo excesso de transigência e brandura para com as minorias nacionais do que pela falta delas. É por isso que, nesse caso, o interesse fundamental da solidariedade proletária e, por conseguinte, da luta proletária de classes exige que nunca incorramos em formalismo ante a questão nacional e que sempre levemos em conta a impreterível diferença de abordagem entre o proletário de nação oprimida (ou pequena) e o de nação opressora (ou grande).
Anotações de 31 de dezembro de 1922, tomadas por M. V. (continuação)
Quais as medidas práticas que devem ser tomadas diante da situação que se criou?
Primeira, deve-se conservar e reforçar a união das repúblicas socialistas; dessa medida ninguém pode duvidar. Ela é necessária a nós, bem como ao proletariado comunista internacional para combater a burguesia mundial e defender-se de suas maquinações.
Segunda, precisamos manter a união das repúblicas socialistas no tocante ao aparelho diplomático. A propósito, esse aparelho é formado exclusivamente por quadros de nosso Estado. Nele não foi admitida nenhuma pessoa minimamente influente do velho aparelho tsarista, e todos os cargos, desde os menos autorizados, foram ocupados por comunistas. Por isso, esse aparelho já granjeou para si (pode-se dizer corajosamente) o título de provadamente comunista, purificado dos resquícios tsaristas, burgueses e pequeno-burgueses num grau incomparável e incomensuravelmente maior do que aquele com o qual somos forçados a contentarmo-nos nos demais comissariados do povo.
Terceira, deve-se punir exemplarmente o cam. Ordzhonikidze (falo isso com tanto mais pesar quanto sou um de seus amigos pessoais e trabalhei com ele durante o exílio no exterior), bem como fazer uma investigação adicional ou nova de todo o material da comissão de Dzerzhinski, com o propósito de corrigir a imensa massa de falhas e apreciações tendenciosas que sem dúvida ele contém. A responsabilidade política por toda essa verdadeira campanha nacionalista grã-russa deve ser atribuída, claro, a Stalin e Dzerzhinski.
Quarta, precisamos estabelecer as mais rígidas regras quanto ao emprego das línguas nacionais nas repúblicas não russas [inonatsionalnye] que entrarem em nossa união e aplicar essas regras com especial diligência. Não há dúvidas de que sob o pretexto de unificar em nosso país o serviço ferroviário, a arrecadação tributária etc., com o aparelho que temos atualmente, se infiltrarão inúmeros abusos de caráter genuinamente russo. Para combater esses desmandos, é necessária uma destreza especial, sem falar na particular sinceridade dos que aceitarem entrar nessa luta. Será exigido aí um código detalhado, o qual apenas os naturais [natsionaly] de cada república poderão redigir com um grau mínimo de êxito. Além disso, deve-se garantir de antemão por todos os meios que, ao fim de todo esse trabalho, retorne-se novamente ao próximo Congresso dos Sovietes, ou seja, que se conserve a união das repúblicas socialistas soviéticas apenas nos quesitos militar e diplomático, e que se restaure em todos os outros âmbitos a plena autonomia de cada comissariado do povo.
Deve-se ter em vista que o fracionamento dos comissariados do povo e o desarranjo do trabalho deles com Moscou e com outros centros podem ser refreados por uma autoridade afinada o bastante com a linha do partido, se ela for empregada com o mínimo suficiente de precaução e imparcialidade; o dano que a ausência de aparelhos para cada nacionalidade [apparaty natsionalnye] unidos ao aparelho russo pode causar a nosso Estado é infinitamente, incomensuravelmente menor do que o dano que causará não somente a nós, mas também a toda a Comintern, a centenas de milhões de habitantes da Ásia que esperamos atuarem no futuro imediato como vanguarda histórica depois de nós. Seria um oportunismo imperdoável se desfizéssemos, às vésperas desse protagonismo do Oriente e no início de seu despertar, nossa autoridade nessa região cometendo a menor grosseria ou injustiça para com os próprios não russos [k nashim sobstvennym inorodtsam]. Uma coisa é a necessidade de coligarmo-nos contra os imperialistas do Ocidente, que defendem o mundo capitalista; dela não se pode duvidar, e não preciso repetir como eu apoio irrestritamente essas medidas. Outra coisa é quando nós mesmos recaímos, ainda que em detalhes mínimos, na abordagem imperialista para com as nacionalidades oprimidas, assim quebrando completamente toda nossa franqueza de princípios, toda nossa defesa ideológica do combate ao imperialismo. E o dia de amanhã na história mundial será exatamente o dia em que os povos oprimidos pelo imperialismo finalmente começarão a despertar e em que começará a longa e penosa luta decisiva por sua libertação.