quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Americanização da França e oposições


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Estou voltando a publicar trabalhos finais de graduação interessantes, pois foram bem avaliados pelos professores e trazem temáticas ainda prementes pra pensarmos nossa atualidade. Quando cursei História Contemporânea II (o estudo do século 20 no mundo) na Unicamp, com a Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva, pela qual ainda guardo grande estima, ela dividiu o segundo semestre de 2008 em quatro eixos temáticos. Em geral, ela passava um filme relativo ao tema estudado e indicava textos pra lermos, e após um tempo pedia pra fazermos um trabalho relacionando os dois tipos de materiais. Acho ainda muito importante que os jovens de hoje aprendam a LER e a VER filmes, pois é um treino tremendo pra tirar informações de áudio, vídeo, referências subentendidas etc., coisa difícil hoje no mundo disperso das redes sociais. Este trabalho, datado de 30 de novembro, não é bem um texto, mas respostas a um conjunto de questões propostas pela Eliane pros eixos 4 e 5, os últimos, as quais não tenho mais, mas cujas respostas também podem ajudar a refletir. Referem-se ao filme francês Meu tio, produzido e dirigido por Jacques Tati em 1958, e ao artigo escrito por Sophie Body-Gendrot pra coletânea francesa História da vida privada, que serviram pra pensar a influência norte-americana sobre a França após a 2.ª Guerra Mundial, por extensão sobre todo o mundo dito “ocidental”. A sociedade francesa, sobretudo, mas também outros países, viveram culturalmente a fissura entre os tempos mais pobres e simples e o período de rápido crescimento e massificação industrial do pós-guerra, gerando situações confusas, mas não menos cômicas. Mantive o conteúdo, mas retoquei e corrigi a redação:


Questão 1

1.1) Meu tio critica a submissão à modernidade tecnológica na família Arpel, que vive abastadamente em um bairro residencial calmo, moderno e sofisticado. Como contraponto ao chefe da família (Jean-Pierre Zola), o filme coloca seu cunhado, o sr. Hulot (Jacques Tati), que protagoniza a história por simbolizar a França tradicional, pouco tecnológica e despreparada para o impacto da americanização. Sempre que ele vai visitar a irmã (Adrienne Servantie), deve atravessar um muro em um terreno baldio, simbolizando a fronteira entre essa França antiga e uma França moderna, avançada e mecanizada. Desempregado e solteiro, além de debater-se com os objetos da casa da irmã, temporariamente desvia Gérard (Alain Bécourt), seu sobrinho, da artificialidade da casa dos Arpel. Assim, o tio alivia-lhe o peso da disciplina paterna e dos estudos, o que ainda hoje ocorre no Brasil às crianças que costumam divertir-se com parentes não responsáveis diretamente por sua educação. Enfastiado com a vida moderna, o menino resiste a ela ativa (brincadeiras inusitadas, como as do para-choque e do poste) e passivamente (absenteísmo na hora de comer e de estudar).

Por outro lado, a modernidade parece resistir ao sr. Hulot, que não consegue mais arranjar um bom emprego sozinho ao exibir sua espontaneidade traduzida em uma série de atitudes caricaturais. Mesmo assim, ou talvez por isso, tio e sobrinho relacionam-se muito bem com a troca de carinhos, rara entre pai e filho, e de brinquedos realmente divertidos, como o boneco articulado e o apito. A diferença entre os dois é que enquanto aquele senhor não consegue lidar com os novos tempos, o menino rebela-se contra a disciplina dos anos 1950, por exemplo, não se portando bem à mesa. Diante das dificuldades, ao sr. Hulot só resta a ironia pela qual lida com a modernidade, como no jantar na casa dos Arpel, em que ele faz uma das convidadas gargalhar por motivo desconhecido. As situações em que o cunhado de Charles se vê envolvido na Plastac também são irônicas para o espectador e resultam do tédio advindo de um trabalho repetitivo que contrasta com a dinâmica vida do bairro onde mora.

1.2) Meu tio, em toda a sua duração, contrasta dois “mundos” entre os quais a França dos anos 1950 estava dividida: a modernidade de uma americanização adaptada na casa dos Arpel e o bairro humilde onde está o cortiço habitado pelo sr. Hulot. O início do filme já opõe o universo da construção de prédios modernos, a qual se mostra muito ruidosa, e o bairro antigo, sujo e feio, mas calmo, no qual transitam até carroças puxadas por cavalos. A música, que oscila entre uma animada melodia influenciada pelo jazz e outra calma, com instrumentos tipicamente europeus, ajuda a marcar a divisão entre os dois espaços. Mas o livre trânsito dos cães entre um lugar cheio de entulhos e o bairro residencial sofisticado, com certo estilo tomado da escola Bauhaus, indica o quão artificiais são essas fronteiras que o homem criou para separar-se de seus semelhantes.

No ambiente moderno, os vizinhos quase não conversam, são separados por muros e até mesmo a vinda de uma vizinha à casa dos Arpel é tida como uma ocasião excepcional. Ao contrário, o bairro do sr. Hulot é alegre, guarda relações maiores entre as pessoas e transborda de um coletivismo notado na leitura compartilhada de um jornal fixado em uma grade e na brincadeira conjunta das crianças. A inclinação comumente feita nos cumprimentos às mulheres deste local, indicativa da típica cordialidade europeia, contrasta com a falta de gentileza sentida pelas mulheres de melhor posição social. A feira de rua, que contrasta com o domínio global desejado pela Plastac (ver mapa-múndi estilizado na sala do chefe), exibe a cada vez mais rara prática da pechincha, em uma sociedade que impõe parcelamentos e descontos pré-fixados. Até na hora do prazer as diferenças aparecem: no jantar junto aos Arpel, o sr. Hulot começa a fumar seu cachimbo na frente de uma das convidadas, que lhe “responde” com um moderno cigarro, mais fino, mas que faz muito mais fumaça.

1.3) O modo de vida influenciado pelos EUA aparece no filme inicialmente na forma física do casal Arpel, o qual se não come tanto quanto os norte-americanos, ao menos se alimenta mais fartamente do que boa parte da população francesa. Os carros compridos também são vindos da América, andam elegantemente lado a lado no trânsito e ostentam acessórios modernos, como a seta, que mereceu até um close da câmera. São eles objeto do desejo dos novos consumidores mais abastados, como Charles, que oferece um à esposa como presente de aniversário de casamento. Mesmo assim, a cena em que o sr. Hulot busca Gérard na escola com a carroça mostra que o menino não liga muito para o que está na moda e que, apesar de caro e bonito, não parece divertido. A fábrica de plásticos é outro símbolo da modernidade do pós-guerra, fabricando objetos com um material novo e sendo gerida nos padrões elaborados por Frederick Taylor e Henry Ford. A sra. Arpel, já um pouco distante da mostra incessante de glamour das europeias, afirma, por exemplo, não gostar de chapéus, fugindo do padrão do continente. Contudo, a gentileza europeia por vezes se mostra em seu meio, como na oferta de um buquê por um convidado ao jantar de sua casa, ainda que com o toque tecnológico que conseguiu produzir flores “eternas”.

Já o chafariz em formato de peixe combina o gosto que a família possui pelas novas tecnologias com a ritualização de ocasiões consideradas especiais, como a visita de uma pessoa importante. Até a locomotiva que Gérard ganha de seu pai mostra não só uma abastança que permite presentes em qualquer época do ano como também o fascínio pelo moderno, inculcado nas pessoas desde a infância. Charles, por sinal, mostra ser um eficaz receptor da filosofia do self-made man ao dizer que foi ele quem conseguiu todas as coisas da família, contrapondo-se ao cunhado supostamente preguiçoso, mau exemplo para seu filho. Já a esposa preenche a ideia da concorrência que lhe é adjacente, dizendo que a casa da vizinha é mais bem administrada, ou seja, o outro sempre é melhor, um ideal a ser alcançado. Todavia, por melhores que sejam as casas modernas, elas não livram de suas armadilhas nem mesmo as pessoas tidas como mais acostumadas, a se notar pelas trapalhadas e tropeções em canteiros durante o jantar dos Arpel. A porta automática da garagem, presente de aniversário de casamento da sra. Arpel para Charles, também se revela constrangedora ao quase trancar o casal naquele lugar pela simples falta de prática do uso do utensílio. Ao final o sr. Hulot termina por ceder ao novo, mas retratando a adaptação que os franceses fizeram daquilo que receberam, como se nota no momento em que, no carro do cunhado, acende seu cachimbo com o isqueiro do veículo. Mas sem aquele que parecia ser seu espírito, o bairro que encarnava o antigo modo de vida torna-se vazio e silencioso, talvez fadado ao desaparecimento.


Questão 2

Para Body-Gendrot, a vida cotidiana francesa (os planos da política, da economia, das aparências e do processo de modernização) foi muito influenciada pelos EUA. Porém, na vida secreta, longe de ser integralmente americanizada, há um jogo de reelaborações que não são uma cópia fiel da cultura “ianque”, mas algo alimentado pelo “mito americano”. Este, em detrimento de um retrato fiel da sociedade no outro lado do Atlântico, sempre foi passado, sobretudo, pelo cinema e recebido pelas pessoas que não podiam atravessar o oceano. O peso do passado no lado europeu faz com que franceses e norte-americanos sejam, na verdade, diferentes, enquanto suas relações devem ser explicadas por um viés intercultural. A identidade norte-americana não ameaça a francesa, pois nesta ainda permanecem coisas como a ausência de autodisciplina, a importância dada à culinária e a opacidade da vida privada. Igualmente, embora o francês se enxergue um pouco nos EUA, impressionam-lhe neste país a enorme religiosidade, o desconhecimento sobre o resto do mundo, a violência e a ausência de controle sobre a identidade alheia. A administração científica do próprio tempo, efetuada pelos norte-americanos em prol da busca de eficiência e efetividade em suas tarefas, é outro aspecto que desagrada aos franceses, menos simpáticos à “loucura da velocidade”. Nos EUA, ao contrário da França, além de se condenar o adultério, não se vê o sexo, especialmente os homens, como uma prioridade na vida ou como parte indispensável do casamento. Com relação à pornografia, os norte-americanos são mais discretos do que os franceses, que não aceitam a intervenção do Estado em assuntos tão privados como esse. Na América, até a morte consiste em um grande mercado, com pagamentos generosos por funerais e cemitérios luxuosos, enquanto na França o assunto ainda é tratado com mais discrição. Quanto ao espírito de iniciativa norte-americano, ele não é unanimemente aclamado entre os franceses, que ainda frequentemente recorrem ao Estado para resolver seus problemas. Enfim, a França só recebe dos EUA aquilo que eles consideram “digerível”, pois os franceses dizem que não são ricos como os norte-americanos, mas têm uma história e uma cultura mais refinadas. Já as transformações na sociedade francesa, entre elas o aumento do número de divórcios, são mais frutos de mudanças estruturais do que de cópias do que acontece nos EUA. Body-Gendrot considera que é possível uma modernização que não reproduza fielmente os norte-americanos, mas que é muito mais complexo perscrutar como as coisas dos EUA interiorizam-se nas pessoas. O que complica também é a heterogeneidade da influência norte-americana, porquanto os EUA são um país muito diversificado.

De qualquer forma, pode-se dizer que a transmissão dessa cultura obedece ao mecanismo batizado de “coersedução”, ou seja, um misto de imposição e encantamento que exige certo isomorfismo entre o emissor e o receptor. A literatura norte-americana, por exemplo, não faria sucesso na França se não criticasse um pouco a própria sociedade dos EUA, enquanto os filmes de Charles Chaplin agradaram aos franceses antiamericanos por sua crítica à sociedade industrial que florescia na América. Já a crise de 1929, mostrada pelas atualidades cinematográficas, convencia os franceses de que muita coisa dos norte-americanos não deveria ser imitada. Uma das exceções era a música, como o blues, que, tomado apenas por sua sonoridade, perdeu seu sentido original de canção negra de lamento, esfumaçando-se, assim, o “modelo americano”. A expansão da língua inglesa também não levou à extinção do francês, como muitos temiam, pois na vida íntima o idioma materno continua sendo usado e não é corroído pelo uso de palavras inglesas. Mesmo assim, é inegável a visão positiva que os franceses passaram a ter da cultura norte-americana, em especial após a 2.ª Guerra Mundial, pois após libertar Paris, os “ianques” comportaram-se muito diferentemente de outros vencedores da história. A partir daí, o “mito americano” (ou seja, uma realidade distorcida) difundiu-se pela literatura, pela imprensa e pelo cinema, mas quando mais turistas da França passaram a ir de avião aos EUA, tal visão não foi apagada, mas corroborada. A pesquisa de opinião é outro elemento norte-americano que veio para ficar entre os franceses, assim como o culto ao corpo: esportes, regimes, consultas médicas mais frequentes, abandono do álcool e do tabaco, asseio, cirurgias plásticas e massagens. Contudo, restam algumas semelhanças um pouco mais tristes, como o caso da homoafetividade, que embora não seja mais vista como doença, é popularmente condenada e empurrada para “guetos” urbanos. A situação da mulher no mercado de trabalho também é discriminatória nos dois países: a diferença é que enquanto as norte-americanas costumam consolidar-se profissionalmente antes de ter filhos, as francesas têm menos propensões em “tomar o lugar” do homem.


Bibliografia

BODY-GENDROT, Sophie. Uma vida privada francesa segundo o modelo americano. In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard (orgs.). História da vida privada. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 529-579. (V. 1. “Da Primeira Guerra a nossos dias”.)

MEU TIO (Mon Oncle). Produção e direção de Jacques Tati. França: Alter Films, 1958. 1 DVD (117 min.).




domingo, 13 de outubro de 2019

Arquitetura da destruição: estética nazi


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Estou voltando a publicar trabalhos finais de graduação interessantes, pois foram bem avaliados pelos professores e trazem temáticas ainda prementes pra pensarmos nossa atualidade. Quando cursei História Contemporânea II (o estudo do século 20 no mundo) na Unicamp, com a Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva, pela qual ainda guardo grande estima, ela dividiu o segundo semestre de 2008 em quatro eixos temáticos. Em geral, ela passava um filme relativo ao tema estudado e indicava textos pra lermos, e após um tempo pedia pra fazermos um trabalho relacionando os dois tipos de materiais. Acho ainda muito importante que os jovens de hoje aprendam a LER e a VER filmes, pois é um treino tremendo pra tirar informações de áudio, vídeo, referências subentendidas etc., coisa difícil hoje no mundo disperso das redes sociais. Este texto, datado de 2 de novembro, está centrado no documentário Arquitetura da destruição, produzido e dirigido por Peter Cohen, e no pequeno e impactante livro Nazismo: “O triunfo da vontade”, do falecido historiador Alcir Lenharo, hoje uma raridade bibliográfica. Ambos serviram pra refletir sobre o projeto estético do nazismo, que longe de ser oposto ou separado da ação política, era orgânico a ela, pois via na “purificação” do “corpo do povo” o meio de o tornar “belo” e, assim, regenerar a Alemanha ariana. Como vemos, já passamos da era pré-nazista pro domínio total de Adolf Hitler, cujo arcabouço ideológico, porém, não surgiu do nada, foi gestado durante muitos anos até a chegada do Führer à chancelaria. Igualmente ótimo pra refletirmos sobre combates e mudanças que vivemos atualmente no planeta, sobretudo no tocante à eliminação dos “incômodos” e “impuros”, recomendo fortemente vocês buscarem pelo Arquitetura da destruição. Mantive o conteúdo, mas retoquei e corrigi a redação:

A gestação, o crescimento e o governo do Partido Nazista (NSDAP) sobre a Alemanha foram muito estudados sob vários aspectos, como o cultural e o político, mas ultimamente essas duas facetas têm sido relacionadas pelo resgate do projeto hitlerista de “embelezamento do mundo”. Para alguns autores, o nazismo não foi fruto de insanidade, mas a canalização de aspirações populares, como o nacionalismo, o antissemitismo e a insatisfação econômica. Ele ter-se-ia materializado em uma “política da beleza” que resgatou antigos valores de culto a um corpo forte e belo e buscou a extinção de valores e pessoas considerados “impuros”. A irracionalidade da escolha do que prejudicava o “corpo do povo” alemão levou ao genocídio de inocentes que não exatamente se opunham ao nazismo, mas constituíam seu objeto de repulsa. Nazismo: “O triunfo da vontade”, escrito por Alcir Lenharo, e Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen, mostram líderes nazistas como artistas frustrados que deram vazão a impulsos tornados, junto das mortes em massa, na face estética da política nazista de higiene racial e moral.

Após sua ascensão, Adolf Hitler declarou querer desintoxicar politicamente a vida pública e realizar um “vigoroso saneamento moral do nosso organismo social”, (1) mas já em 1930, sublinha Lenharo, os nazistas já pregavam uma proteção moralista à família, à religião e à propriedade privada. (2) A primeira cena do filme comenta ainda a “pureza” e a “rejeição sexual” comumente associadas ao nazismo, enquanto se esquecia de seu sonho de criar um mundo mais harmonioso eliminando as “ameaças” à humanidade. Com efeito, muitos artistas alemães consideravam a arte e a cultura “judaico-bolcheviques” como signos de “degeneração cultural” e “depravação espiritual e intelectual”, até que em 1933, diz Lenharo, o Terceiro Reich oficializou essa perseguição artística e intelectual. O autor adiciona que, num “exorcismo moral”, as SA também foram extintas em 1934 por sua associação a uma licenciosidade que o NSDAP queria afastar de sua identidade. (3)

Daí a relação, segundo Cohen, da arte moderna com as doenças mentais e a ligação “arte → saúde racial → beleza do corpo do povo”, base da esterilização de doentes hereditários, da proibição do casamento entre judeus e alemães (4) e do extermínio em massa. Hitler já pensara na eliminação dos doentes incuráveis e julgou, ao invadir a URSS, ter acuado o “bacilo” que destruía a Europa: os judeus do Leste, “corruptores” da cultura ocidental. Assim, em 1942, decidiu-se pela “solução final” a doentes mentais, soldados feridos e judeus, embora houvesse poucos dos últimos, geralmente assimilados, na maior parte da Europa, e pelas experiências com câmaras de gás. Filmes de propaganda comparavam os judeus “vagabundos” e “parasitas” a ratos e insetos geralmente mortos com gases venenosos, aludindo a um modo indolor e eficaz de conservar a “pureza germânica”. Lenharo destaca que a eficácia irracional de um cinema nacionalista, xenófobo, racista e anticomunista não ofendia só a judeus, mas também passava a imagem da 2.ª Guerra Mundial como uma luta contra inimigos igualmente “bárbaros”. (5)

O “novo homem” nazista não era o cosmopolita pacífico da República de Weimar, mas aquele que sacrifica sua vida pela nação e pela raça, (6) em detrimento, como reitera Lenharo, de exigências classistas, o que gerou exploração no trabalho e o fim da liberdade de organização. Heroico, porém anônimo, o cidadão moralmente puro deveria desde jovem proteger a “raça” seguindo o molde, na verdade uma fachada, do “Führer” e seu puritano séquito, e valorizar, como já faziam outros autores antiexpressionistas, um belicismo supostamente inerente aos germânicos. Construiu-se ainda uma imagem romantizada do campo como “reserva moral da Alemanha” e da mulher, reprodutora e submissa, como “guardiã da raça e tradições arianas”. (7)

O filme mostra como a escultura resgataria e superaria um ideal de beleza antigo, com um novo homem ariano resistente a julgamentos milenares e, se necessário, escreve Lenharo, esculpido cientificamente, por meio do controle biológico das crianças. (8) Ao mesmo tempo, assevera Cohen, expandiam-se a eutanásia para deficientes, oficializada no dia do início da guerra, e a exposição das vítimas a experiências científicas que incrementassem a “medicina nazista”. Já a tomada de Atenas em 1941 não seria como as outras, pois que a cidade formava, com Esparta e Roma, o modelo da “nação imperecível” na qual, conforme Lenharo, o expansionismo deveria proporcionar o “espaço vital” dos arianos, dentro de uma história supostamente movida pela desigualdade das raças. (9)

Para Lenharo, a população alemã sabia das atrocidades, mas assistiu passivamente ao processo de extermínio por tacitamente partilhar do antissemitismo e do nacionalismo oficiais, que já apareciam em outras agremiações políticas. O nazismo não teria sido “obra de meia dúzia de endemoninhados”, mas a culminância dos problemas posteriores à 1.ª Guerra Mundial, como o desemprego, incrementados pelo revanchismo e pelo autoritarismo xenófobo da tradição prussiana. Jovens estudantes, desde a guerra, carregavam os ideais de “uma raça vigorosa e pura” inspirada nos ideais humanos da Grécia antiga e cultivadora da virilidade submissa e ligada à natureza. Canalizando tais aspirações, algumas vindas até da esquerda, e oferecendo empregos nas SA, Hitler construiu um atrativo arsenal místico que, por meio da propaganda, prometia à Alemanha a solução de seus problemas. (10)

Hitler quis utilizar todos os meios de comunicação, educativos e culturais para a realização de objetivos como a “manutenção dos valores eternos inerentes à essência de nossa índole étnica”. (11) Lenharo informa que a propaganda mentirosa e a capacidade de organização ajudaram no sucesso eleitoral do NSDAP no início da década de 1930 e, após a escolha de Hitler como chanceler, vieram as coerções para obter mais votos e os expurgos de opositores em potencial. A propaganda, fundamental para o regime, supunha baixo poder de compreensão das massas e por isso era simples, mas repetitiva, e incluía o cinema, com os filmes glorificadores de Leni Riefenstahl. (12) Cohen exibe cenas de comícios gigantescos, nos quais o “Hitler artista” era diretor, cenógrafo e ator principal e que passavam o mito do “corpo do povo”, central na questão da purificação racial.

O filme fala ainda que a arquitetura megalomaníaca idealizada pelo Führer antes da guerra inspirou a mudança em Berlim anunciada em 1938, que simbolizaria uma virada nacional e faria Paris “parecer uma sombra”. Os novos lugares de exibição do Partido Nazista e dos jogos de guerra, inspirados na Roma antiga, tiveram até mesmo suas ruínas previstas por Hitler e pelo arquiteto Albert Speer. De acordo com Lenharo, a grandeza arquitetônica glorificava o regime e a “raça”, dando a sensação da unidade e eternidade de ambos. E embora outros estilos fizessem lembrar o passado medieval e campestre alemão, bases da “raça” e da nação, o neoclássico predominou por simbolizar o antibarbarismo, a pureza física e a beleza cultural prezados pelos gregos. (13) Já Cartago, como se vê no filme, apareceu no objetivo inicial de destruir totalmente Moscou, se possível, e na entrada dos soviéticos em Berlim, comparada pela imprensa às Guerras Púnicas.

Para Hitler, a arte deveria refletir o saudosismo e a realidade de uma época, inspirada no “sangue” e na “raça” arianas, ou seja, na pureza racial e biológica. (14) Cohen, comenta que o NSDAP pensara em um governo antirracionalista que conhecesse os desejos do povo e lhes materializasse pela arte, com a ajuda dos artistas frustrados no comando do Reich, entre eles o próprio Führer, que aos 18 anos tentou sem sucesso entrar para a Academia de Belas-Artes de Viena. (15) Para Lenharo, a atuação acrítica, mas protagonística, das massas nas comemorações espetaculares diante de um líder artístico e político “providencial” baseava a fusão que Hitler tentou promover entre arte e política. Desfiles, cerimônias fúnebres e demonstrações minuciosamente preparadas, ao exaltar o regime, mexiam com os sentimentos, dramatizavam a existência comum e despertavam o sentimento de união e coesão entre as pessoas. (16)

O filme reitera que o contato de Hitler com a obra de Richard Wagner trouxe a fixação pelo trabalho político do compositor, que incluía o antissemitismo, o culto ao legado nórdico, o conceito de “raça pura” e a centralidade do artista na história. Hitler, influenciado pelos livros de Karl May, considerava a imaginação como a base do conhecimento da alma de um povo, o que se refletia na sua pouca argúcia para lidar com estranhos e, portanto, com os judeus. O Führer, que teria esse saber, passou a ser idolatrado com base não no entendimento alheio, mas na fé irracional na Nova Alemanha, no nazismo e no líder salvador. (17) Mesmo com a derrota na guerra, recorda o filme, o futuro retomaria o ideal nazista e agradeceria pela extirpação do “câncer” judaico.

Cohen lembra que a simpatia de Hitler por um “belo” passado destruído pela miscigenação inspirou as exposições montadas pelo próprio líder e as de “arte degenerada”. O saque de tesouros artísticos do resto da Europa acalentou o sonho do Führer de criar um grande museu em Linz, sua cidade natal, que estava em obras e deveria ser a nova capital cultural do mundo. O nazismo também quis suprimir as desigualdades pela limpeza do trabalhador, pela funcionalidade e higiene de seu local de trabalho e, como ajunta Lenharo, pela escultura física e muscular do corpo. (18) Por isso, é difícil definir o nazismo em termos políticos comuns, pois sua ação, acima de tudo estética, exterminou não inimigos do regime, mas inocentes considerados “impuros” à raça ariana. O fim do filme recorda que Hitler praticou uma “estranha noção de política” característica da cultura europeia, transformando “uma ideologia absurda em uma realidade infernal”.

De fato, Hitler não foi o único governante na história a julgar ter descoberto uma noção universal do bom e do belo e por isso ter rejeitado o livre-pensamento e o debate sobre os problemas de seu país. Todavia, sua particularidade foi a eliminação em massa de ideias, pessoas e obras que não combatiam o regime, mas apenas eram por ele tidos como “sujos”, “degenerados” e “prejudiciais” ao mundo. Os critérios irracionais que elegeram os obstáculos ao “embelezamento do mundo” eram mais um artigo de fé do que uma ameaça real. A dupla moral nazista, que projetava nos inimigos sua própria perversidade, converteu milhões de alemães a uma “religião” que guardava todos os anseios que seus “fiéis” possuíam devido à crise. Por isso, o regime do Führer não surgiu da vontade poderosa de um grupo de maléficos artistas frustrados, mas da energia popular canalizada para reconstruir e fortalecer a Alemanha. O povo queria a solução de seus problemas, e o NSDAP foi o único que soube apresentar propostas palatáveis, ao mesmo tempo, para a recuperação econômica e para a condenação das pessoas “odiosas”. Os “políticos-artistas” agora satisfaziam o povo, iludido pela própria atuação central nos eventos de massa que teatralizavam o cotidiano. Contudo, por trás da beleza de discursos, desfiles e edifícios escondia-se (ou revelava-se) a degradação de seres humanos inocentes que apenas buscavam a paz e a vida em um mundo atribulado por problemas bélicos e econômicos.


Bibliografia

ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO (Undergångens arkitektur/Architektur des Untergangs). Produção e direção de Peter Cohen. Suécia: Poj Filmproduktion AB, 1989. 1 DVD (121 min.).

HITLER, Adolf. A Jovem Alemanha quer trabalho e paz: Discursos do Chanceler Adolf Hitler, Guia da Nova Alemanha. Berlim: Imprensa e Casa Editora Liebheit & Thiesen, 1933.

LENHARO, Alcir. Nazismo: “O triunfo da vontade”. São Paulo: Ática, 1986.


Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Adolf Hitler, A Jovem Alemanha quer trabalho e paz: Discursos do Chanceler Adolf Hitler, Guia da Nova Alemanha, Berlim, Imprensa e Cada Editora Liebheit & Thiesen, 1933, p. 19.

(2) Alcir Lenharo, Nazismo: “O triunfo da vontade”, São Paulo, Ática, 1986, p. 25.

(3) Ibidem, p. 29-30 e 42.

(4) Ibidem, p. 29 e 31, também comenta as leis que impuseram essas medidas.

(5) Ibidem, p. 52-58.

(6) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(7) Alcir Lenharo, op. cit., p. 32-33, 62-70 e 76-77.

(8) Ibidem, p. 70-71.

(9) Ibidem, p. 31 e 73.

(10) Ibidem, p. 7-12, 14-17, 19 e 25.

(11) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(12) Alcir Lenharo, op. cit., p. 26-29, 47-48 e 59-61.

(13) Ibidem, p. 48-52.

(14) Adolf Hitler, op. cit., p. 19.

(15) Alcir Lenharo, op. cit., p. 19, também cita o fracasso artístico de Hitler.

(16) Ibidem, p. 36-41 e 43-44.

(17) Ibidem, p. 45-46.

(18) Ibidem, p. 34.




quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Verdades e mentiras (por Renato Ortiz)


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Este texto foi escrito por Renato Ortiz, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ou seja, minha casa, embora eu seja da História. Vários veículos da esquerda ou pró-PT na internet o reproduziram no final de julho, e a própria Folha de S. Paulo o publicou na coluna Opinião em meados de agosto. Eu, porém, o recebi diretamente do autor numa das listas de e-mails institucionais da Unicamp, no próprio arquivo Word. Esperei ter mais tempo pra ler, e tendo o feito ontem, decidi o reproduzir aqui também, porque acho seu argumento de uma pertinência aguda. É importante pra estes tempos em que só queremos acreditar no que gostamos, e mais ainda agora nesta semana, em que se intensificaram os ataques do presidente Jair Bolsonaro à imprensa. Em comparação com outros sites, só mudei um pouquinho a redação e fiz minha própria divisão de parágrafos, pra leitura ficar mais agradável.

“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”; “Os dados da economia estão maravilhosos”; “Suicídio acontece, pessoal pratica” (com relação à morte do jornalista Herzog); “É uma coisa que não mede a realidade” (com relação ao IBGE); “Estou convencido que os dados de desmatamento são falsos”. As afirmações são daquele que ocupa o mais alto cargo político do país: presidência da República.

A lista poderia ser alongada, mas seria inútil ampliá-la, importa entender: elas são recorrentes. Uma forma de se interpretar este comportamento bizarro é dizer que simplesmente nos encontramos diante de um conjunto de mentiras (diz-se muitas vezes fake News). Esta é a explicação corrente entre jornalistas e políticos. Basta lermos os jornais, blogs e sites de notícias para nos convencermos disso.

Cada afirmação pode ser desmentida pela apresentação dos dados de realidade: há fome no Brasil; a economia anda mal; Herzog foi assassinado; o IBGE é uma instituição confiável; o desmatamento é um fato. O equívoco seria desconsiderar o mundo real de maneira assim tão evidente; as afirmações seriam uma espécie de aberração.

Entretanto, outra interpretação, que não anula inteiramente a anterior, é possível. Há primeiro um elemento que não se pode descartar: se elas são recorrentes devem significar algo mais. A repetição não pode ser considerada apenas expressão de mentira. Mas para entendê-las é preciso circunscrever sua falsidade dentro de um contexto mais amplo: o governo Bolsonaro nada tem de “normal”, ele é uma ruptura em relação à vida política brasileira.

Sem considerar este aspecto anterior, um conjunto de falas, gestos e ações da presidência tornam-se ininteligíveis. Não se pode esquecer que nos encontramos diante de uma situação na qual o autoritarismo (manifesta-se em diversas áreas: educação, cultura, meio-ambiente, direitos humanos, etc.) tornou-se moeda corrente, quero dizer, banal.

Dito de outra forma: os mecanismos institucionais intrínsecos à democracia são sistematicamente destruídos pela eleição institucionalmente democrática de um oligarca. Trata-se, portanto, de uma realização perversa da democracia, pois seus valores são atingidos na sua essência.

Uma maneira de se compreender alguns traços deste mandonismo recente (lembra o fascismo de início e meados do século XX) é considerá-lo através da noção de populismo (não tenho a intenção de fazer uma discussão conceitual a respeito). Mas faço antes uma ressalva: o termo, neste caso, não se confunde com a ideia de tradição populista existente no Brasil ou na América Latina (Vargas ou Perón), ele adquire um novo significado. O populismo atual é resultado de uma falha estrutural das democracias contemporâneas, por isso manifesta-se em diferentes lugares do planeta: Trump nos Estados Unidos, extrema-direita nos países da Europa Oriental e Ocidental.

Pode-se dizer que existem duas dimensões que o conceito nos ajuda a apreender da vida política nacional. Primeira, que a ideia de povo pode ser simplificada como uma simples oposição entre “nós” e “eles”, “virtuosos” e “corruptos”. Neste sentido, ele coincidiria com a parte sã da sociedade, àquela que os políticos conservadores preferem privilegiar.

Segunda, a suspeita de que o sistema representativo seria estruturalmente corrompido. Esta é uma reivindicação explícita dos bolsonaristas: o fim do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal; toda mediação entre governo e povo seria abolida em nome de uma representação mítica do governante, ele traduziria, sem intermediários, a vontade popular. Entre nós isso ficou conhecido como substituição da “velha” pela “nova” política.

Para efeito de argumentação neste artigo, deixarei de lado o aspecto no qual o oligarca se vê como alguém acima das instituições democráticas. Considerar a ideia de que ele exprime a vontade de um povo significa aceitar uma premissa anterior: existe uma entidade idealizada, denominada “povo”, que coincide com a própria dimensão sociológica na qual os indivíduos que dele fazem parte estão inseridos.

Não existiria assim uma defasagem entre a concepção ideal e a vida real das pessoas. O populismo imagina que existe uma superposição entre essas duas esferas. O representante do povo seria uma expressão do real.

Colocadas dentro desta perspectiva, as afirmações acima podem ser lidas dentro de uma linha distinta de interpretação. Não é difícil demonstrar que existe fome no Brasil, ou que o desmatamento da Amazônia seja um fato verídico. Os dados acumulados são suficientes para contradizer sua denegação.

Porém, isso é pouco relevante, pois a afirmação não toma a realidade como seu referente. O oligarca que a enuncia não está interessado na vida concreta das pessoas, mas na delimitação de um “nós” do qual ela seria a expressão autêntica.

É este “nós”, que se manifesta, sobretudo, nas redes sociais, que confere materialidade à sua falácia. Os apoiadores de Bolsonaro reforçam sua própria ilusão, ela planta raiz na concretude do terreno das disputas políticas. Mas para se acreditar na veracidade do que está sendo dito, é preciso aceitar que tal operação discursiva repousa numa ideologia (no sentido de falsa consciência) que exige uma clara separação entre “nós” e “eles”. A mentira é evidente para os que se situam fora do discurso populista, “verdadeira” para os que nele estão incluídos.

Mais importante ainda, o “nós” estabelece o vínculo, sem mediação, entre o povo e o oligarca. Isso tem uma implicação: os que se encontram fora das fronteiras desta definição restritiva e discriminatória de povo deveriam ser considerados como estrangeiros, isto é, a fração mínima a ser apagada da nação. Os insultos, as agressões e a força tornam-se assim elementos legítimos na luta contra a parte malsã da sociedade, o “eles” que ameaça a idealização de um “nós”.

Este é certamente um aspecto que diferencia o populismo no Brasil de outros países como os Estados Unidos, França ou Alemanha. Ali o “eles” é representado pelo que se encontra fora de suas fronteiras: os imigrantes. Tudo deve ser feito para impedir sua entrada para evitar a poluição dos valores originais da cultura nacional.

Por isso a metáfora do muro retornou com toda sua força. Antes ela se aplicava à cidade de Berlim, cindida em duas partes incomunicáveis, representando a divisão entre capitalismo e comunismo. Agora volta a ser utilizada com relação aos limites territoriais de cada país ou conjunto de países (Comunidade Europeia), separando a identidade de uns em detrimento de outros.

No caso brasileiro a questão é outra: o tema da imigração não faz parte da agenda política atual (embora o fenômeno exista), ele não conquistou (pelo menos ainda) as mentes e os corações. Neste sentido o “eles” manifesta-se no interior do espaço da nação. O ideal seria que ele desaparecesse, deixasse de existir, dando lugar apenas ao “nós” autoritário que se quer afirmar. Surge assim uma estranha figura política de nossos tempos: ser exilado em nosso próprio país.




domingo, 6 de outubro de 2019

Gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene)


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ATENÇÃO: Devido a exigências da vida acadêmica e pessoal, voltarei a postar no blog apenas às quartas-feiras e domingos, e não a cada dois dias, como já ocorria há alguns anos. Assim, ao mesmo tempo em que não preciso o abandonar totalmente pra adiantar outras coisas, sigo desfrutando um pouco dessa atividade que me dá muito prazer!

Estou voltando a publicar trabalhos finais de graduação interessantes, pois foram bem avaliados pelos professores e trazem temáticas ainda prementes pra pensarmos nossa atualidade. Quando cursei História Contemporânea II (o estudo do século 20 no mundo) na Unicamp, com a Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva, pela qual ainda guardo grande estima, ela dividiu o segundo semestre de 2008 em quatro eixos temáticos. Em geral, ela passava um filme relativo ao tema estudado e indicava textos pra lermos, e após um tempo pedia pra fazermos um trabalho relacionando os dois tipos de materiais. Acho ainda muito importante que os jovens de hoje aprendam a LER e a VER filmes, pois é um treino tremendo pra tirar informações de áudio, vídeo, referências subentendidas etc., coisa difícil hoje no mundo disperso das redes sociais. Este texto, datado de 19 de outubro, fala do filme O gabinete do Dr. Caligari, produzido por Rudolf Meinert e Erich Pommer e dirigido por Robert Wiene em 1920, fazendo alusões culturais ao combate entre racionalismo e messianismo na Alemanha dita “de Weimar” antes da ascensão de Hitler. Também considero ótimo pra refletirmos sobre combates e mudanças que vivemos atualmente no planeta. Mantive o conteúdo, mas retoquei a redação:

Na história contemporânea, as crises inspiram projetos alternativos de sociedade, geralmente antagônicos entre si, historicamente contingenciados e que ressaltam aspectos diferentes ao pregar a renovação social. Os conflitos políticos e econômicos são mais visíveis e estudados, mas a cultura, em especial na forma de arte, tem sido objeto de estudo privilegiado para a compreensão de certos períodos. Ela é de suma importância no estudo da Alemanha posterior à 1.ª Guerra Mundial, que oscilava entre um projeto humanístico, pacifista e ligado às vanguardas artísticas, e outro militarista, ligado às direitas e ressentido pela derrota na guerra. O gabinete do Dr. Caligari, um dos pioneiros do cinema expressionista alemão, dirigido por Robert Wiene em 1920, metaforiza o conflito pós-1918 entre a razão criativa e a irracionalidade controladora, a emoção delirante e a rígida disciplina corporal. Sua trama esclarece bem sobre a luta cultural e política travada entre progressismo e conservadorismo na Alemanha de então.

No início do enredo, Francis (Friedrich Fehér) narra a um velho a história do sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt), trazido a uma feira de variedades pelo Dr. Caligari (Werner Krauss). Aparecem então Alan (Hans Heinrich von Twardowski) e Francis na tenda de Caligari, cujo sonâmbulo supostamente previa o futuro. Alan, após ser informado por Cesare que viveria até a madrugada, é assassinado por ele enquanto dormia. Jane (Lil Dagover) e Francis decidem investigar o caso com a ajuda de policiais um pouco descrentes. Certa noite, Cesare invade a casa de Jane para matá-la, mas ela acorda e foge do zumbi, que a alcança e a carrega. Os dois são seguidos, mas Cesare larga Jane e morre ao cair em um poço, enquanto Caligari, em fuga, é perseguido por Francis, que chega a um manicômio chefiado pelo charlatão. Francis aí descobre que Caligari imitou, com um paciente, a história de um homônimo do século 11 que hipnotizava um sonâmbulo, ordenando-lhe os assassinatos. Ao receber o cadáver de Cesare, Caligari entra em fúria, é posto em uma camisa de força e levado a uma cela. Ao final, volta-se à cena inicial, que na verdade se passa no pátio do asilo. O diretor do hospital aparece e Francis, após chamá-lo de “Caligari” e tentar atacá-lo, é preso ao mesmo modo da cena anterior.

O filme analisa a situação contemporânea por meio do diálogo entre cultura e sociedade, a começar pela maquiagem pálida na maioria das personagens, que representavam as pessoas de aparência desgastada pela fome e pelas doenças dos tempos de crise. A escolha do gênero de terror e as muitas cenas noturnas, por influência do romantismo inglês e seus contos sobrenaturais, também molda um ambiente sombrio, grotesco e próximo à morte, embora também entre, na personalidade de Francis, o romantismo revolucionário francês. Outras influências românticas são as emoções, o individualismo, o pesadelo e a liberdade de criação, que abrem espaço para a perspectiva freudiana de estudar o coletivo a partir do indivíduo (1) e se refletem em um Francis criativo, emotivo e com forte iniciativa própria para investigar e perseguir Caligari.

As expressões faciais dos atores e a música passam dinamismo e susto ao espectador, e são exemplos de diálogo com o impressionismo francês, que privilegia, entre outras coisas, as fortes impressões dadas por uma obra de arte. Os ângulos distorcidos e o fato de a tenda de Caligari parecer maior por dentro do que por fora, frutos da “loucura” de Francis, são recursos expressionistas que alteram a realidade para que se passe uma visão subjetiva sobre ela, ou se gere uma nova, flutuante e não nítida. (2) A busca expressionista pela essência do que é retratado mostra-se na falta de verossimilhança da película, pois não se quis fazer um retrato fiel da jovem república, mas apenas captar as sensações pessimistas e tensas que ela causava.

As personagens mais centrais do filme alegorizam os principais protagonistas políticos e artísticos da jovem República de Weimar, como Francis, encarnação dos artistas de vanguarda que lutavam por uma arte popular e engajada e contra as tradições, o mundo burguês e as mazelas da modernidade. (3) O jovem apaixonado pela poesia distorce a realidade, sonhava e inventava em prol de uma visão de mundo subjetiva e escapista, assim como os expressionistas, que eram saudosos de uma Alemanha cosmopolita e humanista, e muitos dos quais eram comunistas. O pensamento de Weimar caracterizava-se pelo laicismo, pela ausência de Deus e pela busca de uma espiritualidade livre de dogmas religiosos, (4) o que se reflete na falta de qualquer menção a religiões no filme.

O velhaco arrogante e de postura curvada ilustra bem os monarquistas e a extrema-direita antidemocrática, contrários à arte moderna “degenerada”, “bolchevique” e “judaica” e ao seu cosmopolitismo. (5) A arte desses grupos, contrária à “imaginação estudiosa de Warburg”, é apolínea e arraigada nas instituições, (6) daí a oposição entre um Caligari anti-intelectual, cujo romantismo é alemão por ser conservador e antirrevolucionário, e um Francis amante dos estudos. Baseada nas liberdades constitucionais, a direita radical perseguia pacifistas, judeus, comunistas, modernistas e outros, e Caligari, por trás da democrática feira de variedades, age com Cesare para fins maléficos. A ultradireita admirava um passado medieval de guerras e impetuosidade e rejeitava a igualdade humana e os “imaturos políticos”, (7) e também Caligari imita o nome e o ímpeto destrutivo do místico do século 11 e tenta submeter ou eliminar os “inconvenientes”.

O Estado que regia Weimar mediava a disputa, e embora de início o republicanismo e o rompimento com parte do passado imperial atraíssem as vanguardas, desiludiu a muitos pela repressão à esquerda e pela desmobilização social-democrata, tornando-se, como a feira, um espetáculo de aberrações. (8) A difusão de associações e de grandes lugares públicos na república deu base para as organizações de extrema-direita e seus “espetáculos”, (9) e igualmente a feira é uma grande instituição gregária que acolhe Caligari e permite o “espetáculo” de Cesare. E o povo alemão, identificado com a propaganda da ultradireita, foi ocupado pelo militarismo, pela disciplina e pela ordem, em especial os desempregados, (10) e da mesma forma Cesare, desocupado por sua loucura, pôde ser transformado em um “soldado-boneco” obediente e de movimentos lentos.

Em 1914, a opção pela guerra e pela perseguição aos “traidores” pacifistas era um consenso na Alemanha, e no filme Caligari ilustra os belicistas que pretendiam resolver os problemas por meio da força, inclusive eliminando seus oponentes. Após a 1.ª Guerra Mundial, havia um vazio político reforçado pela crise de 1918 e pelos conflitos com os republicanos, mas a violência continuou em Weimar com tentativas de golpe e atentados contra opositores políticos ou membros do governo. (11) O entretenimento da feira também esvazia as discussões e dá lugar à violência, que já podia ser notada com o assassinato do escrivão, funcionário público que representa as instituições atingidas.

A crítica à hipnose mostra o sucesso da psicanálise, que trata os pacientes pela conversa e pela liberdade de expressão, e não pela submissão que Caligari impõe a Francis no final. Mas antes, o velho ao qual Francis conta a história parece ser um psicanalista oculto ao representar uma possibilidade, embora sufocada, de cura ao jovem por meio da liberação de seus desejos inconscientes. Francis e Caligari, representantes de atividades emblemáticas da civilização da qual não podem sair (a arte e a ciência), sofrem com a repressão coletiva à efetivação de suas vontades, que lhes dá as neuróticas obsessões pelo sonho ou pelo assassinato. (12) A feira (arte) e a profissão de diretor manicomial (ciência) poderiam sublimar o instinto de agressividade de Caligari, contudo, incapaz de anulá-lo, o médico dirige sua violência a seus “competidores” jovens e, por ser uma ameaça à sociedade, chega a ser preso no manicômio. (13) Esta prisão, vitória da reunião coletiva sobre a força bruta, também alude à substituição do poder do indivíduo pelo de uma comunidade, passo decisivo da construção e da manutenção da civilização. (14)

A mobilização de massas pela extrema-direita contra a esquerda e os artistas “degenerados” foi, como diria Francis, “algo terrível em nosso meio”, mas os guardas do filme omitem-se, tal como a república que não impediu a violência da direita radical. A tradição autoritária de submissão e passividade diante de ordens vindas “de cima” (15) quase nunca permitiu a punição a criminosos de direita, e da mesma forma as investigações a Caligari ficam na promessa, pois não impedem o ataque a Jane. A branda repressão à direita radical, comparada às agressões contra a extrema-esquerda e pessoas de “aspecto suspeito”, explica ainda a prisão violenta do primeiro suspeito dos assassinatos, por um lado, e a entrada consentida da polícia na casa de Caligari, por outro. Os clubes de tiro da ultradireita (16) eram “bonecos” de disfarce para ações criminosas, e suas lideranças, assim como Caligari com seu sonâmbulo e o governo de Weimar com o recrutamento de “corpos voluntários” contra a revolução espartaquista, (17) nunca sujavam as mãos de sangue.

Certa força de Jane aparece na “disputa” que Francis e Alan travam por sua companhia e no receio de Cesare em matá-la no meio da noite, reflexo da importância que a mulher obteve durante a guerra pelos movimentos feministas e pela ocupação dos postos antes pertencentes aos combatentes. O pouco espaço dos que acreditavam que “compreender tudo era criticar tudo” (18) é lembrado com a demora em se ouvir o crítico Francis, que terminou por ser considerado louco quando parecia ter triunfado. Mas nem tudo está perdido: a revolução espartaquista fora um momento de glória para a esquerda, que desejava a “morte” do povo para os planos da direita radical e a condenação dos líderes inimigos, como se vê na morte de Cesare e no momento em que Caligari foi “acorrentado em sua cela”. Contudo, não se ouvem os alertas comunistas sobre a violência da extrema-direita nem o alerta de Francis sobre os perigos do “diretor Caligari”, sendo ao fim os inconformados tidos por “obsessivos”. A pouca popularidade do comunismo e das vanguardas artísticas traçou seu insucesso, (19) da mesma forma que Francis, não representando as expectativas daqueles a quem pedia ajuda, sucumbiu no esquecimento.

O gabinete do Dr. Caligari mostra que é quase inviável extinguir as “utopias” do pensamento humano e que sempre haverá espaços na história para teorias que ultrapassem o horizonte do possível. E a relação entre arte, política e sociedade é importante para a elaboração de alternativas que englobem as muitas esferas da sociedade e as várias capacidades humanas. O artista, treinado em sua sensibilidade, capta a essência das coisas por meio das diversas possibilidades de expressão que possui em seu cabedal, o que pode incluir uma saudável abstração. O político, informado sobre as maiores mazelas de seus compatriotas, deve lutar sem descanso pela transformação do mundo e pelo intercâmbio enriquecedor entre os povos. E o povo, protagonista da história e termômetro da situação de seu país, sabe o que é melhor para si mesmo e deve nortear aqueles que pretendem tornar-se líderes, porquanto, assim como Cesare, ele “conhece todos os segredos”. A Alemanha de Weimar tentou viver uma alternativa às antigas tradições nacionais bélicas e autoritárias, e embora tenha sucumbido ao conservadorismo e à intolerância, semeou para seus herdeiros uma inovadora concepção ética e estética do mundo.


Bibliografia

FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”. In: ______. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Seleção de textos de Jayme Salomão. Traduções de Durval Marcondes et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção “Os Pensadores”.)

GABINETE DO DR. CALIGARI, O (Das Cabinet des Dr. Caligari). Produção de Rudolf Meinert e Erich Pommer. Direção de Robert Wiene. Alemanha: Decla-Bioscop AG, 1920. 1 DVD (51 min.).

GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Sigmund FREUD, O mal-estar na civilização. In: ______. Cinco lições de psicanálise; A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 190.

(2) Peter GAY, A Cultura de Weimar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 124-125.

(3) Ibidem, p. 121-126; Lionel Richard, A República de Weimar (1919-1933), São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 141.

(4) Peter GAY, op. cit., p. 21. Sobre a religião em Weimar, cf. Lionel RICHARD, op. cit., p. 145-149.

(5) Peter GAY, op. cit., p. 17 e 104-113.

(6) Ibidem, p. 37-41 e 46-47.

(7) Ibidem, p. 37, 55-57, 97 e 105-106.

(8) Ibidem, p. 19-23, 41-43 e 50-55; Lionel RICHARD, op. cit., p. 131-134.

(9) Lionel RICHARD, op. cit., p. 119-120 e 125-126.

(10) Ibidem, p. 121-124.

(11) Ibidem, p. 57-60; Peter GAY, op. cit., p. 23-26.

(12) Sigmund FREUD, op. cit., p. 154.

(13) Ibidem, p. 157, 167 e 169.

(14) Ibidem, p. 155-156.

(15) Peter GAY, op. cit., p. 87.

(16) Lionel RICHARD, op. cit., p. 122-126.

(17) Ibidem, p. 41.

(18) Peter GAY, op. cit., p. 43.

(19) Lionel RICHARD, op. cit., p. 134-138.




sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Canções comunistas da China maoista


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Esta semana, pra lembrar o 70.º aniversário da Revolução Chinesa comunista, comandada por Mao Zedong (cujo nome era escrito antigamente Mao Tsé-tung, que pra nós reflete melhor a pronúncia original), traduzi e legendei vários vídeos com canções patrióticas ou comunistas compostas na China no século 20. Pessoalmente não sou comunista, mas considero importante, como historiador, recordarmos os fatos pacíficos ou violentos que marcaram nosso passado recente e, de alguma forma, moldaram a geopolítica moderna. Além do hino nacional que já postei aqui, traduzi e expliquei mais três canções muito animadas, marciais ou mais folclóricas. Como você lerá, eu não conheço o mandarim (variedade dominante da língua chinesa) a fundo, então às vezes me vali do texto original jogado no Google Tradutor, mas também traduzindo de versões em outras línguas. Aproveite!





Uma brincadeirinha que fiz no auge da pandemia, hehehe:

Esta é Sem o Partido Comunista, a Nova China não existiria (没有共产党就没有新中国; pinyin: Méiyǒu Gòngchǎndǎng jiù méiyǒu xīn Zhōngguó), que teve a letra escrita em outubro de 1943 por Cao Huoxing, um comunista de apenas 19 anos. Nenhuma versão da Wikipédia menciona a autoria da melodia, nem mesmo a chinesa. Durante a 2.ª Guerra Mundial, quando os chineses estavam combatendo a invasão japonesa, o líder do Guomindang (Partido Nacional Popular), Jiang Jieshi (antes escrito Chiang Kai-shek) publicou um livro chamado O destino da China (1943), com o slogan “Sem o Guomindang, a China não existiria”. Pouco depois, o Partido Comunista da China publicou num de seus diários um editorial crítico ao livro, chamado “Sem o Partido Comunista, a China não existiria”, o qual inspirou o jovem Cao, membro do Grupo de Propaganda Antijaponesa, a escrever uma canção com o mesmo nome. (Lembrem-se que na transliteração pinyin, a letra “c” se pronuncia como um “ts” bem forte e ligado, como em russo.)

Em 1950, pouco após tomar o poder, Mao Zedong sugeriu que o título fosse mudado pra Sem o Partido Comunista, a Nova China não existiria, com o acréscimo do adjetivo “nova”. A iniciativa teria o objetivo, segundo a imprensa oficial, de “apontar os sucessos do PC chinês de modo mais preciso”. A canção foi inserida no filme épico de dança e música O Oriente é vermelho (1965), criado pra dramatizar a história da Revolução Chinesa na esteira da chamada “Revolução Cultural”. Até mesmo o ex-presidente Jiang Zemin reconheceu em 2001 a importância do poema, ao dedicar-lhe uma mensagem no dia do aniversário dela. Em 2006, foi inaugurado no distrito pequinês de Fangshan, onde a canção foi composta, um memorial em homenagem a ela, com 6000 m².

Na letra, Cao Huoxing tornou o Partido Comunista um sujeito masculino ao usar o caractere 他 (tā), que significa literalmente “ele” (mas com a mesma pronúncia do que indica “ela”), embora normalmente seja considerado de gênero neutro. Curiosamente, o verso sobre guerrilhas significa literalmente “Ele formou bases por trás das linhas inimigas”, mas a tradução moderna é realmente a citada. Todas essas informações históricas vêm das Wikipédias inglesa e espanhola. Eu mesmo montei e legendei o vídeo, usando um áudio que pode ser encontrado neste vídeo. Traduzi a partir das versões em inglês, alemão e espanhol, comparando também com o resultado de quando eu jogava o texto original no Google Tradutor.

Pinyin:
Méiyǒu Gòngchǎndǎng
Jiù méiyǒu xīn Zhōngguó
Méiyǒu Gòngchǎndǎng
Jiù méiyǒu xīn Zhōngguó
Gòngchǎndǎng xīnláo wèi mínzú
Gòngchǎndǎng tā yīxīn jiù Zhōngguó
Tā zhǐgěi le rénmín jiěfàng de dàolù
Tā lǐngdǎo Zhōngguó zǒuxiàng guāngmíng
Tā jiānchí le kàngzhàn bā nián duō
Tā gǎishàn le rénmín shēnghuó
Tā jiànshè le díhòu gēnjùdì
Tā shíxíng le mínzhǔ hǎochù duō
Méiyǒu Gòngchǎndǎng
Jiù méiyǒu xīn Zhōngguó
Méiyǒu Gòngchǎndǎng
Jiù méiyǒu xīn Zhōngguó

Chinês simplificado:
没有共产党
就没有新中国
没有共产党
就没有新中国
共产党辛劳为民族
共产党他一心救中国
他指给了人民解放的道路
他领导中国走向光明
他坚持了抗战八年多
他改善了人民生活
他建设了敌后根据地
他实行了民主好处多
没有共产党
就没有新中国
没有共产党
就没有新中国

Tradução:
Sem o Partido Comunista,
A Nova China não existiria.
Sem o Partido Comunista,
A Nova China não existiria.
O Partido Comunista trabalha duro pela nação.
O Partido Comunista só pensa em salvar a China.
Ele indicou o caminho pra libertação do povo.
Ele está conduzindo a China rumo às luzes.
Ele aguentou a Guerra de Resistência por mais de 8 anos.
Ele está melhorando a vida das pessoas.
Ele construiu as bases da guerrilha.
Ele efetivou a democracia, trazendo muitos benefícios.
Sem o Partido Comunista,
A Nova China não existiria.
Sem o Partido Comunista,
A Nova China não existiria.


Esta é a canção Cruzar os mares depende do timoneiro (大海航行靠舵手; pinyin: Dàhǎi hángxíng kào duòshǒu), composta em 1964 por Wang Shuangyin (melodia) e Li Yuwen (letra), com pequenas alterações propostas por Zhou Enlai, primeiro-ministro durante todo o mando de Mao Zedong. Por ter um tom muito laudatório e personalista, era cantada frequentemente durante a chamada “Revolução Cultural”, que devastou a China de 1966 a 1976. Fiocu popular também em outros países do então chamado “terceiro mundo”, em que havia fortes partidos comunistas ou movimentos libertadores antieuropeus. Seu nome original era A revolução depende do pensamento de Mao Zedong.

No começo dos anos 60, a China vivia muitos altos e baixos, o que inspirou a crescente leitura dos textos teóricos e políticos de Mao. Por isso, Wang Shuangyin e Li Yuwen se inspiraram a compor uma canção que falasse do pensamento maoista como uma bússola ou liderança que guiava os operários, camponeses e soldados de então. A música causou um imediato impacto positivo nas autoridades políticas, e Wang com isso conseguiu se tornar deputado e liderar as maiores associações culturais. Isso porque na “Revolução Cultural”, a música também teve um papel muito importante pra mobilização artística e política. Wang, contudo, sofreu a perseguição dos sucessores de Mao, com consequências durando até 1987.

A letra é muito poética, e só quero destacar: a gente quase sempre lembra de “parreiras” pra uvas, mas os melões também dão numa espécie de planta trepadeira, que é o sentido genérico da palavra. Eu mesmo legendei a partir deste vídeo e traduzi a partir das versões inglesa e espanhola da Wikipédia, bem como do resultado que saía direto da letra no Google Tradutor. Por precaução, também joguei no Google as traduções em estoniano e coreano da Wikipédia, e deram algo muito parecido.

Pinyin:
Dàhǎi hángxíng kào duòshǒu,
Wànwùshēng zhǎng kào tàiyáng.
Yǔlù zīrùn hémiáo zhuàng,
Gàn gémìng kào de
Shì máozédōng sīxiǎng.
Yú’ér lí bùkāi shuǐyā,
Guā’ér lí bùkāi yāng.
Gémìng qúnzhòng lí
Bùkāi gòngchǎndǎng.
Máozédōng sīxiǎng
Shì bùluò de tàiyáng.

Chinês simplificado:
大海航行靠舵手,
万物生长靠太阳。
雨露滋润禾苗壮,
干革命靠的
是毛泽东思想。
鱼儿离不开水呀,
瓜儿离不开秧。
革命群众离
不开共产党。
毛泽东思想
是不落的太阳。

Tradução:
Cruzar os mares depende do timoneiro,
A vida e o crescimento dependem do sol,
A chuva e o orvalho nutrem as lavouras,
Fazer a revolução depende
Do pensamento de Mao Zedong.
O peixe não pode deixar a água,
Nem os melões deixar as parreiras.
As massas revolucionárias
Não agem sem o Partido Comunista.
O pensamento de Mao Zedong
É o Sol de brilho eterno.


Este é o chamado Hino Militar do Exército de Libertação Popular da China (中国人民解放军军歌; pinyin: Zhōngguó Rénmín Jiěfàngjūn Jūngē), que são as forças armadas do país comunista. Ele foi composto na cidade de Yan’an em 1939 por Gong Mu (letra) e Zheng Lücheng (melodia), chamando-se inicialmente Marcha do 8.º Exército de Rota, ainda durante a guerra de resistência contra a invasão japonesa.

Durante a segunda fase da guerra civil na China, entre os nacionalistas do Guomindang e os comunistas sob Mao Zedong, a canção também era chamada Marcha do Exército de Libertação, e após a vitória comunista a letra foi reeditada em 1951 e o título atual foi dado em 1965. Porém, apenas em 1988 ela se tornou o hino oficial das Forças Armadas da China, e entre as várias letras estou postando apenas a que constitui a forma final. A melodia tocada pelas bandas militares também é muito usada nas paradas comemorativas.

Eu traduzi direto da versão em alemão que se encontra na Wikipédia, e depois comparei com a versão da Wikipédia macedônia, que eram as que tinham tradução, além da japonesa e coreana. Também joguei o original no Google Tradutor pra fazer a comparação (em português e inglês não houve diferenças), e fiz apenas uma pequena correção. Eu legendei a videomontagem que já estava pronta no ótimo canal “Socialist East”.

Pinyin:
Xiàng qián! Xiàng qián! Xiàng qián!

Wǒmen de duìwǔ xiàng tàiyáng,
Jiǎo tàzhe zǔguó de dàdì,
Bēifùzhe mínzú de xīwàng,
Wǒmen shì yī zhī bùkě zhànshèng de lìliang!

Wǒmen shì gōngnóng de zǐdì,
Wǒmen shì rénmín de wǔzhuāng.
Cóng wú wèijù, juébù qūfú, yīngyǒng zhàndòu,
Zhídào bǎ fǎndòngpài xiāomiè gānjìng,
Máo Zédōng de qízhì gāogāo piāoyáng!

Tīng! Fēng zài hūxiào jūnháo xiǎng,
Tīng! Gémìng gēshēng duō liáoliàng!

Tóngzhìmen zhěngqí bùfá
Bēnxiàng jiěfàng de zhànchǎng,
Tóngzhìmen zhěngqí bùfá
Bēnfù zǔguó de biānjiāng.
Xiàng qián! Xiàng qián!
Wǒmen de duìwǔ xiàng tàiyáng,
Xiàng zuìhòu de shènglì,
Xiàng quánguó de jiěfàng!

Chinês simplificado:
向前! 向前! 向前!

我们的队伍向太阳,
脚踏着祖国的大地,
背负着民族的希望;
我们是一支不可战胜的力量!

我们是工农的子弟;
我们是人民的武装!
从无畏惧,绝不屈服,英勇战斗
直到把反动派消灭干净。
毛泽东的旗帜高高飘扬!

听! 风在呼啸军号响;
听! 革命歌声多嘹亮!

同志们整齐步伐奔
向解放的战场;
同志们整齐步伐奔
赴祖国的边疆。
向前! 向前!
我们的队伍向太阳;
向最后的胜利,
向全国的解放!

Tradução:
Avante! Avante! Avante!

Nossas tropas estão voltadas na direção do Sol,
Elas estão a postos no solo da Pátria,
Elas carregam a esperança do povo,
Nós somos um poder invencível!

Somos filhos e irmãos de operários e camponeses,
Somos as Forças Armadas do povo!
Lutando destemidos, implacáveis e corajosos
Até destruir todos os bandos reacionários.
O estandarte de Mao Zedong tremula no alto!

Ouçam o vento rugir e o clarim ressoar;
Ouçam ecoar alto a canção revolucionária!

Os camaradas marcham em ordem
Ao campo de batalha da libertação;
Os camaradas marcham em ordem
Às fronteiras da Pátria.
Avante! Avante!
Nossas tropas estão voltadas na direção do Sol
Marchando rumo à vitória final,
Rumo à libertação do país inteiro!



quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Qual minha interpretação sobre Jesus?


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/jesus




Desde criança estudo ocasionalmente a história de Jesus Cristo e do cristianismo, e quando tenho tempo leio a Bíblia Sagrada. Vendo um pouco nosso cenário político e as apropriações que se fazem das religiões, escrevi estas ideias na aba Comunidade da TV Eslavo: Jesus não foi o maior comunista que existiu coisíssima nenhuma. Jesus foi o maior conservador (ou um dos maiores), quiçá até um milenarista (jura???) retrógrado, porque a mensagem dele não foi emancipar ninguém socialmente, mas retornar a religião judaica a uma suposta pureza que ela teria perdido com o farisaísmo e o conluio com os romanos.

O judaísmo da época de Jesus era que nem o televangelismo de hoje: os líderes religiosos só pensavam em dinheiro, que extorquiam enganando e intimidando o populacho, e aceitavam de bom grado a interferência romana (ou seja, das autoridades políticas) em assuntos de fé e no funcionamento do Templo e coisas parecidas. Jesus queria tanto livrar o judaísmo da praga materialista quanto fazer com que religiosos não cuidassem de assuntos políticos, e que os romanos não interferissem em temas de fé, sobretudo a liberdade de crença.

As duas maiores provas disso são quando ele diz: “O meu reino não é deste mundo”, ou seja, quando ele diz que o importante pra religião é conseguir a salvação no reino dos céus, e não na Terra. Por isso, tanto fazia se o infeliz continuasse oprimido e miserável no mundo, desde que seguisse certo a religião e obtivesse a salvação “nos céus”. E quando ele diz “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, ou seja, política e religião não deviam se misturar nem legislar no campo um do outro, o que faz de Jesus um precursor do Estado laico. Da mesma forma, é uma reiteração de que a religião não devia ser usada com fins de emancipação político-social, muito menos como base pra lutar contra a dominação romana.

Resumindo, o inimigo maior de Jesus não era Roma, como interpretam os comunistas, mas o farisaísmo, ou o que seria um deturpação do “verdadeiro” judaísmo. Ele não queria criar uma nova religião “universal”, baseada na caridade e no internacionalismo, mas falar ao povo judeu pra que despertasse contra essa deturpação, voltar o judaísmo pro seu estado “puro” ou “mais puro”. Por isso mesmo, pra ele tanto fazia se a Palestina estava nas mãos dos romanos ou de outra potência, desde que os religiosos cuidassem de seus próprios assuntos e que os dominadores não se metessem na religião alheia. Por isso também que Jesus não era nenhum “fascista” ou “reaça”, porque no primeiro caso, há no mínimo uma manipulação do clero pra legitimar o poder temporal, e no segundo, ele pensa que sua própria religião deve ser critério pro Estado legislar sobre todo e qualquer cidadão.

Enfim, não sou especialista nem teólogo, mas é o que penso. Em breve, mais informações!

Algumas primeiras reações:

Coisa ridícula ficar rotulando Jesus desse jeito. Ficar se inserindo nesses grupos só faz sentido pra vocês. A grande pegada é que “conservador”, “progressista” ou “revolucionário” não faz sentido naquela época, então as pessoas tentam “puxar” Jesus pro seu grupo, de forma a manipular a história.

Que tara esse povo tem por conservadorismo. Conservadorismo na política é manter as castas e seus privilégios. É obvio que ele não era conservador. Na sua interpretação, seria sim: ele não queria fazer a revolução social, então ficava tudo na mesma. Só ia haver “igualdade” no reino dos céus... mas infelizmente, insistem em interpretar Jesus do ponto de vista econômico e materialista. (E eu adicionaria: “ser contra as castas” faz menos sentido ainda, já que, como apontaram vários críticos do cristianismo, não há, inclusive, nenhuma contestação do escravismo, hoje tão esperada. As cartas de Paulo dizem até que os escravos deviam servir com mais zelo ainda a seus senhores cristãos, pois é como se estivessem servindo ao próprio Deus.)

Partindo desse ponto, a criação do Vaticano seria contraditória? Obviamente. Mas devemos analisar a Igreja posterior pela sua criação e contexto históricos (século 4), e não por uma essência etérea e atemporal.

Tanto que o mesmo concorda com filosofias de grupos rivais do judaísmo, saduceus, fariseus, essênios... Ele reforma algumas leis até. Muita gente, por desconhecer esse fato, ataca os judeus de forma errada, o próprio Jesus de forma errada e posteriormente os cristãos de forma errada. Dizer que “os judeus assassinaram Jesus” é uma falácia. Quem assassinou justamente foi o poder romano, justamente porque ele abalava o domínio religioso dos fariseus, que eram delegados dos romanos, e não temporal, que não lhe interessava. Isso se aceitamos o tal “Jesus histórico”, mas a história que pode ser “real” é muitíssimo mais complicada e não restrita à Bíblia.

Infelizmente muitos judeus o viram como uma espécie de libertador de Israel, mas logo se decepcionaram ao ver que a proposta de Jesus era outra. Anos mais tarde houve a grande rebelião judaica, que em 70 d.C. foi brutalmente esmagada pelo general Tito. Resultado: o templo foi destruído e a partir daí houve uma legião romana permanente na Judeia.

Jesus era: simplesmente Jesus. Não adianta tentar encaixar Jesus num ou noutro rótulo, porque ele pode se encaixar em todos, bem como em nenhum. Jesus pregava simplesmente o amor e nada além disso. Jesus nunca pregou religião alguma (como muita gente pensa), nem nunca defendeu uma religião em detrimento de outra, a mesma coisa com povos. Nunca defendeu que um povo era melhor que o outro. Sempre tratou todos como iguais. Simples assim. Acho que tentar procurar pelo em ovo nessa questão é inventar delírios e devaneios sobre a imagem do mesmo, a fim de satisfazer vantagens ou pensamentos/ideologias pessoais, assim como outros vêm fazendo nos últimos 2019 anos. É incrível, e uma pena, que as pessoas até hoje, dois milênios depois, ainda não conseguem entender a mensagem que aquele homem simples quis nos passar. Isso mostra como a humanidade é ainda muito atrasada moralmente. Acredite, o “Jesus de amor” é uma invenção muito a posteriori. Se a gente ver a letra dos textos (eles mesmos muito parciais, porque se contradizem e não foram os únicos deixados), quem tivesse fora do judaísmo (no caso, o “reformado” por ele) ia mais era se lascar no inferno... O “amor” dele se restringia apenas a quem o aceitava como salvador, e isso fica claro em passagens como “Ninguém vem ao pai senão a mim”. (Mas lembro, claro, que esse “fogo” era reservado à vida celeste, como já falei várias vezes aqui, então o “amor” no plano terrestre é uma interpretação plenamente viável.)