domingo, 27 de dezembro de 2015

Um dia, Stalin elogiou Trotsky (1918)


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Introdução (Erick Fishuk)

As palavras voam, mas os escritos ficam, já dizia Michel Temer. Se o seminário onde estudou o jovem Ioseb Dzhugashvili fosse de confissão romana, talvez ele tivesse aprendido esse ditado latino e jamais se entregado a arroubos elogiosos a colegas revolucionários que no futuro poderiam lhe dar as costas. O agora Iosif Stalin não imaginava que sua aprovação do comando militar de Leon Trotsky na Revolução de Outubro se eternizaria no periódico Pravda e seria desenterrada por futuros historiadores xeretas.

Em novembro de 1918, celebrando o aniversário da vitória bolchevique, o georgiano deixou à posteridade um relato fresco muito interessante sobre o desgaste final do Governo Provisório sucedâneo ao tsarismo e a luta armada que levou os comunistas ao poder. Até aí tudo bem. O texto só se tornaria estranho quase 100 anos depois por conta de seu reconhecimento, certamente sincero e sem dúvida justo, do papel do ex-menchevique ucraniano no êxito da revolta, sendo que ao longo dos anos 1920 os dois protagonistas travariam uma luta encarniçada pelo poder definitivo após a morte de Vladimir Lenin. Essa rixa gerou o primeiro grande racha do mundo comunista e acostumou o mundo a ver Stalin e Trotsky como antípodas desde sempre.

Dialética é enxergar as coisas além de suas aparências, em suas relações internas complexas e quase sempre contraditórias. Um mundo dividido em polos estanques é modelo do empirismo cego, e não por acaso chamado de “dialética” na língua cifrada do marxismo-leninismo triunfante na URSS. A informação que Hélène Carrère D’Encausse oferece nas páginas 123 e 124 de seu livro L’URSS de la Révolution à la mort de Staline, 1917-1953 (Paris, Seuil, 1993), de que em 1918 Stalin teria ressaltado o papel de Trotsky na Revolução de Outubro em artigo do Pravda, me fez parar a leitura e ir logo vasculhar a rede. Bastaram alguns minutos para descobrir que o artigo não somente existia, mas também havia sido adulterado para entrar nas Obras completas do líder. Os escritos ficam, e se ficam, o bicho come.

Em 6 de novembro de 1918, o jornal Pravda publicou em sua edição 241 o artigo de Stalin “Октябрьский переворот” (Oktiabrski perevorot), cujo título já faz pensar: a palavra perevorot, por exemplo, pode ser traduzida como “reviravolta”, “revolução” (na ciência, por exemplo), “golpe” (de Estado ou militar, por exemplo) ou “mudança” (política, por exemplo). Ora, Outubro foi um golpe ou uma revolução? No corpo do texto das duas versões a palavra só aparece uma vez, onde foi cômodo traduzir por “revolução”; mas notavelmente, apenas na segunda versão aparece duas vezes a expressão Oktiabrskoie vosstanie (Insurreição de Outubro), com direito a inicial maiúscula. Parece que no calor dos inícios Stalin ainda não tinha decidido criar a memória da “Grande Revolução Socialista de Outubro”, nem quis fazê-lo tão explicitamente a posteriori nos anos 1940. Assim, eu daria à tradução o título flexível e alusivo de “Revolução em outubro”.

Em essência, julguei que as alterações menores no texto das Obras completas estavam para trazer maior precisão, facilitando o entendimento, e mesmo o parágrafo que mudou de lugar corrige algo que realmente estava errado: o Governo Provisório só capitulou em definitivo entre a madrugada e a manhã de 26 de outubro (8 de novembro), e não na manhã de 25 de novembro. Porém, um novo parágrafo inicial abala o conjunto, provocando a impressão de inevitabilidade da revolta (ou golpe, ou revolução?) ante fatores relacionados à crueza da “reação”, consoante ao relato da Grande Revolução já canonizado. Mais chocante ainda é o último parágrafo dividido em dois: três figuras fundadoras desaparecem, enquanto o soviete e as tropas de Petrogrado sob a liderança de Trotsky perdem sua importância. Agora, é ler para crer.

Coloquei abaixo, completa, apenas a primeira versão, que contém minhas notas explicativas e uma das notas que aparecem nas Obras completas. Em seguida, adicionei os parágrafos modificados, separados do texto, com a outra nota das Obras completas, deixando para explicar as alterações menores nas próprias notas. A primeira versão em russo pode ser lida nesta página publicada pelo site contestador “Skepsis”, mas ela não indica todas as alterações. A segunda versão em russo foi publicada no tomo 4 das Obras completas (Moscou, OGIZ/Gospolitizdat, 1947), pp. 152-154, e também pode ser lida na rede. Na Wikipédia em russo também há um exemplar da primeira versão, com diferenças na paragrafação.

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Já no fim de setembro o Comitê Central (CC) bolchevique decidiu mobilizar todas as forças do partido para organizar uma insurreição vitoriosa. Para isso, o CC resolveu formar um Comitê Militar Revolucionário em Petrogrado, (1) conseguir que a guarnição dessa capital aí ficasse e convocar o Congresso Pan-Russo dos Sovietes. Esse congresso podia ser o único herdeiro do poder. Sem dúvida a conquista prévia dos Sovietes (2) de Moscou e Petrogrado, os mais influentes na retaguarda e no front, estava no plano geral de organização insurrecional.

Via Operária, (3) o órgão central do partido, obedecendo às instruções do CC, começou a conclamar abertamente à insurreição, preparando os operários e camponeses para a batalha decisiva.

A primeira rixa (4) com o Governo Provisório ocorreu por terem fechado o (5) Via Operária. Por ordem desse governo o jornal foi fechado, e por ordem do Comitê Militar Revolucionário ele foi aberto pelo caminho da revolução. (6) Tipografias foram fechadas, comissários do Governo Provisório foram demitidos. Foi em 24 de outubro.

Em 24 de outubro, (7) em toda uma série de repartições públicas centrais, comissários do Comitê Militar Revolucionário expulsaram pela força representantes do Governo Provisório, o que fez essas repartições caírem nas mãos do comitê e todo o aparato do governo se desorganizar. Ao longo do dia (24 de outubro) toda a guarnição, todos os regimentos (8) se aliaram decididos ao Comitê Militar Revolucionário – exceto apenas algumas escolas de cadetes e a divisão blindada. A conduta do Governo Provisório revelava indecisão: somente à noite ele decidiu ocupar as pontes com batalhões de choque, tendo conseguido elevar algumas delas. Em resposta, o Comitê Militar Revolucionário movimentou guardas-vermelhos do bairro Vyborg (9) e marinheiros que, tendo liquidado e dispersado os batalhões de choque, ocuparam as mesmas pontes. Neste momento começou a insurreição aberta: toda uma série de regimentos (10) foi deslocada com a missão de cercar todo o entorno do espaço onde ficam o estado-maior e o Palácio de Inverno. O Governo Provisório estava reunido no palácio. A união da divisão blindada ao Comitê Militar Revolucionário (na alta madrugada de 24 de outubro) acelerou o bom êxito da insurreição.

Em 25 de outubro, de manhã cedo, após o bombardeio do Palácio de Inverno e do estado-maior, após o tiroteio entre tropas dos sovietes e cadetes diante do palácio, o Governo Provisório capitulou.

Em 25 de outubro se abriu o Congresso dos Sovietes, ao qual o Comitê Militar Revolucionário transmitiu o poder conquistado.

Quem animou a revolução do começo ao fim foi o CC do partido, chefiado pelo camarada Lenin. Vladimir Ilich vivia então em Petrogrado, num apartamento secreto no bairro Vyborg. Na noite de 24 de outubro ele foi chamado para o comando geral do movimento no Instituto Smolny. (11) Todo o trabalho prático para organizar a insurreição se deu sob a liderança direta do camarada Trotsky, presidente do Soviete de Petrogrado. Pode-se dizer com segurança que pela rápida união da guarnição ao Soviete e pela hábil realização dos trabalhos do Comitê Militar Revolucionário, o partido deve antes de tudo e principalmente ao camarada Trotsky. Os camaradas Antonov (12) e Podvoiski (13) foram os principais ajudantes do camarada Trotsky.

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A segunda versão tinha ainda o subtítulo “24 e 25 de outubro de 1917 em Petrogrado”, e antes do primeiro parágrafo original foi adicionado este:

Eis os acontecimentos mais importantes que precipitaram a Insurreição de Outubro: a intenção do Governo Provisório, após ceder Riga, de ceder também Petrogrado, a preparação do governo Kerenski para se transferir a Moscou, a decisão dos comandantes do velho exército de enviar toda a guarnição de Petrogrado ao front, deixando a capital indefesa, e finalmente o trabalho febril do congresso negro, (14) chefiado por Rodzianko (15) em Moscou, para organizar a contrarrevolução. Tudo isso, somado à crescente ruína econômica e à indisposição do front a continuar na guerra, determinou a inevitabilidade de uma rápida e áspera insurreição organizada como única saída à situação criada.

Os dois parágrafos que começam com “Em 25 de outubro” tiveram a ordem invertida, e a redação do primeiro (que se tornou segundo) passou a ser esta, poucas alterações:

Em 26 de outubro, de manhã cedo, após o bombardeio do Palácio de Inverno e do estado-maior pelo cruzador Aurora, após o tiroteio entre tropas dos sovietes e cadetes diante do palácio, o Governo Provisório capitulou.

Agora, o fatídico último parágrafo que virou dois:

Quem animou a revolução do começo ao fim foi o CC do partido, chefiado pelo camarada Lenin. Vladimir Ilich vivia então em Petrogrado, num apartamento secreto no bairro Vyborg. Na noite de 24 de outubro ele foi chamado para o comando geral do movimento no Instituto Smolny.

Papel destacado na Insurreição de Outubro tiveram os marinheiros do Báltico e os guardas-vermelhos do bairro Vyborg. Ante a excepcional coragem dessa gente, a guarnição de Petrogrado se limitou principalmente a dar apoio moral e, em parte, militar aos combatentes de vanguarda.

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Notas do tradutor
(Clique no número para voltar ao texto)

(1) Em russo, “Piter”, até hoje um nome informal de São Petersburgo (Petrogrado, de 1914 a 1924).

(2) Na segunda versão: “Sovietes de Deputados”.

(3) [Nota 34 das Obras de Stalin, pp. 421-422] “Via Operária” (Rabochi Put) – Órgão central impresso do partido bolchevique, lançado após o Pravda ter sido fechado pelo Governo Provisório durante as Jornadas de Julho de 1917. Publicado de 3 de setembro a 26 de outubro de 1917, Via Operária tinha como redator-chefe I. V. Stalin.

(4) Na segunda versão: “A primeira rixa aberta”.

(5) Na segunda versão: “fechado o jornal bolchevique”.

(6) A adição de uma pequena partícula na segunda versão ressalta a ideia de reviravolta súbita, e a frase poderia ser assim retraduzida: “Por ordem desse governo o jornal foi fechado, mas por ordem do Comitê Militar Revolucionário logo foi aberto pelo caminho da revolução.”

(7) Lembrar que até 1.º de fevereiro de 1918 a Rússia usava o calendário juliano, que tinha um atraso de 13 dias em relação ao calendário gregoriano usado em todo o Ocidente.

(8) Na segunda versão: “regimentos em Petrogrado”.

(9) Em russo, “Vyborgskaia storona”. Além de várias outras acepções, a palavra storona também designava naquela época algumas regiões de São Petersburgo.

(10) Na segunda versão: “regimentos nossos”.

(11) Em russo, apenas “Smolny”, subentendendo-se que era o instituo de educação de moças nobres transferido em outubro de 1917 para Novocherkassk, cujo prédio vazio serviu de quartel-general para os bolcheviques insurretos e, até a transferência da capital para Moscou, foi estado-maior e residência do governo bolchevique, inclusive de Lenin. Atualmente pertence à administração regional.

(12) Vladimir Aleksandrovich Antonov-Ovseienko (1883-1938), ex-menchevique, um dos organizadores do assalto ao Palácio de Inverno na Revolução de Outubro ao lado dos bolcheviques, ocupou vários cargos na administração e diplomacia soviéticas. Aliado de Trotsky na oposição, foi cônsul-geral em Barcelona durante a Guerra Civil Espanhola e, mais tarde, preso e fuzilado pelo NKVD.

(13) Nikolai Ilich Podvoiski (1880-1948), bolchevique desde 1903, foi um dos organizadores militares da Revolução de Outubro e primeiro comissário de assuntos militares da Rússia soviética. Proeminente no Partido, presidiu o Sportintern (seção esportiva da Internacional Comunista), atuou em Outubro de Eisenstein no papel de si mesmo e desde 1935 prosseguiu na propaganda do regime.

(14) [Nota 33 das Obras de Stalin, pp. 421-422] Congresso negro – conferência ocorrida em Moscou de 12 a 14 de outubro de 1917 e presidida por Rodzianko. Nela participaram grandes latifundiários, industriais e usineiros, representantes do clero, generais e oficiais. A conferência se deu sob o signo da unificação das forças contrarrevolucionárias no combate ao bolchevismo e à crescente revolução.

(15) Mikhail Vladimirovich Rodzianko (1859-1924), militar e político do Império Russo, um dos fundadores do partido outubrista (grandes proprietários de terra liberais e moderados que pregavam a limitação dos poderes do tsar), tentou defender a manutenção da monarquia e participou do Governo Provisório até outubro de 1917. Após ter estado no Exército Branco, morreu no exílio.



domingo, 20 de dezembro de 2015

Por que se deve aprender russo?


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Por Erick Fishuk

As pessoas aprendem idiomas pelos mais diversos motivos. E por tão diversos motivos certos idiomas se tornam mais úteis ou necessários do que outros. Quem tem vida intelectual ativa sabe o quanto fazem falta até mesmo noções básicas de idiomas menos falados ou conhecidos no Ocidente. E os curiosos, estudiosos e pesquisadores, bem como os fortemente inseridos no mercado de trabalho, por vezes se ressentem da pouca fluência ao falar ou escrever em língua estrangeira. Definitivamente, não é mais o domínio de apenas uma língua estrangeira que garante uma carreira profissional ou acadêmica promissora. E, reconheçamos, na maior parte dos casos não é o domínio do conjunto de quaisquer línguas estrangeiras que nos dá um lugar ao sol no mundo globalizado. O idioma internacional hoje não é inglês ou esperanto, mas o poliglotismo.

Para certos idiomas, ou antes, para certo idioma, a necessidade de seu domínio parece tão óbvia que até parece um contrassenso listar motivos para estudá-lo. Antes, como se tratássemos de casos patológicos, buscamos sanar os bloqueios que levam alguém a não querer estudar inglês ou a ter dificuldades nos estudos. Quanto ao francês, segundo idioma de cultura mais importante no mundo, mas hoje bem menos popular do que há cem anos, razões não faltam para conhecê-lo a fundo, especialmente entre meus colegas historiadores. Porém, os vendedores de livros e donos de escolas, ao menos no Brasil, se esmeram em arrolar os mais variados incentivos para os clientes comprarem seu peixe: ampla literatura, escolas e universidades de prestígio, ponto no currículo, intercâmbio cultural e até mesmo “língua do charme e do glamour”... Também não faltam porquês para dominar espanhol, alemão e italiano, mas para idiomas menos difundidos no mundo ocidental, mesmo os parentes mais ou menos distantes da família indo-europeia comum, o desenrolar e a conclusão das elucubrações em que se lançam escritores e professores chegam a ter uma graça.

Por meio deste texto, que tem caráter muito pessoal e de forma alguma técnico, pretendo listar algumas razões pelas quais acredito que seja importante e interessante a um brasileiro estudar a língua russa atualmente. Não quero causar medo inculcando riscos a correr ou oportunidades a perder na recusa a seu aprendizado, mas quero principalmente estimular quem já tem alguma vontade, mas precisa de um “empurrão”, e se possível apresentar dados novos a quem não está muito por dentro do assunto. Não vou também me preocupar com citação de fontes, pois buscas rápidas confirmam o essencial dos argumentos, mas posso fornecer os textos a quem desejar.

As estatísticas variam, mas em qualquer ranking o russo sempre está entre as dez línguas mais faladas do mundo. Aproximadamente 400 milhões de pessoas têm línguas eslavas como maternas, e mais da metade delas é falante de russo, concentradas na Rússia, Belarus e Cazaquistão, além de comunidades dispersas nos países vizinhos, em outros lugares da Europa e no resto do mundo. Por conta do enorme papel político e econômico desempenhado pela Rússia na Europa Central, Meridional e Oriental durante o século 20, muitas pessoas nos países dessas regiões têm o russo como uma de suas línguas estrangeiras, às vezes mais bem dominado até do que o inglês. Alguns deles são a Ucrânia, Bulgária, República Tcheca, Croácia, Sérvia e Montenegro, onde não raro o russo é ensinado já na escola secundária e cuja língua local tem muita semelhança.

O russo é uma ótima ponte para todas as outras línguas eslavas, ainda que não perfeita. É conhecido o fato de que esses idiomas são bastante parecidos entre si, e a comparação entre palavras básicas, do dia a dia, o revela facilmente. Isso não significa que sejam iguais ou mutuamente compreensíveis à primeira vista, mas o domínio de um deles possibilita uma compreensão razoável, mais do que em outros grupos linguísticos europeus, de um texto escrito em outra língua eslava, por exemplo, apesar das lacunas restantes nas sutilezas e no vocabulário. Porém, não está no entendimento imediato a maior vantagem, mas na facilidade de aprendizado de uma nova língua eslava. Os linguistas discordam que o russo seja um “meio-termo” dentro do grupo, papel que seria mais bem desempenhado pelo eslovaco ou o ucraniano. Mas apesar das diferenças de vocabulário, gramática e influências linguísticas, as terminações de caso, por exemplo, não variam enormemente, e os próprios casos, que indicam a função da palavra na oração, são quase os mesmos, e apenas no russo o “prepositivo” é em geral o “locativo” das outras, as quais costumam ter ainda o caso “vocativo”. O búlgaro e o macedônio são as únicas que não têm declinações de caso, mas o vocabulário búlgaro, pelo menos, é bem parecido com o do russo. Por experiência própria, penso que esta língua sumariza as dificuldades básicas que enfrentará o estudante de qualquer língua eslava, mas sem complicações excessivas na ortografia/pronúncia e na gramática.

O russo é um idioma difícil? Bem, na verdade nenhum idioma é objetivamente difícil, pois diversos fatores influenciam o aprendizado: tempo dedicado aos estudos, qualidade do material disponível (que se amplia quando é escrita na língua materna do iniciado), proximidade com a língua materna daquele que o aprende, dedicação e força de vontade do aluno e do professor, motivações externas à língua em si que levem à procura (gosto pela cultura ou história, frequência a lugares ou pessoas, antepassados, pesquisa acadêmica de um tema relacionado), condições psicofísicas que facilitam ou dificultam a assimilação, entre outros. Nada existe que impeça um brasileiro talentoso de aprender o básico da língua dentro de alguns meses, mesmo que não dedique muitas horas por dia. Isso porque, apesar da primeira impressão, não há enorme abismo entre o russo e o português, já que a escrita é igualmente alfabética (e até com correspondência maior entre grafia e pronúncia), o modo como a língua funciona, com substantivos, adjetivos, verbos, flexões, prefixos, preposições etc., é o mesmo (ao contrário do árabe, por exemplo) e muitas palavras de origem grega, latina, inglesa ou francesa contidas no vocabulário técnico, científico, artístico e cultural encontram cognatos em português. Recursos impressos e digitais hoje à mão também propiciam prática constante e eficaz.

Por suas fronteiras geográficas imensas, a cultura russa é uma das mais ricas do mundo, com influências da Europa Ocidental, Central e Oriental, dos povos do Oriente Médio, do Cáucaso, da Ásia Central e do Extremo Oriente. No século 19 a Rússia produziu literatura, música e ciência que entraram para o panteão da história, e assim continuou no século 20. No caso mais óbvio da literatura, por mais que o tradutor seja profissional e renomado, nada substitui a riqueza e o deleite de ler uma obra na língua “original”, ou “de partida”, como preferem dizer alguns. E a língua russa, em particular, é colorida por ser sintética, flexível e precisa, como atestam os casos, as palavras compostas, o aspecto verbal, a tropa de afixos e o vocabulário múltiplo. Todavia, e eis uma vantagem ao falante não nativo, o russo apresenta relativa uniformidade em toda a área de distribuição, tanto na pronúncia quanto no vocabulário e na gramática, embora os dois primeiros sofram eventuais variações. Atribui-se isso à padronização literária, educacional e midiática promovida pelo regime soviético, cujas reformas linguísticas também visavam a facilitar a alfabetização em massa e o aprendizado por estrangeiros.


O papel da Rússia e da União Soviética na história mundial durante o século 20 é um capítulo à parte, e como estudioso da área, é um terreno em que fico à vontade. Como sabemos, a importância da língua inglesa no mundo contemporâneo se deve à quase total hegemonia econômica, militar, cultural e política dos Estados Unidos após a Segunda Grande Guerra, embora o papel do Reino Unido no funcionamento anterior do mundo em nada fosse desprezível. O único grande contraponto jamais existente a esse poder mundial foi o império soviético, e não foi apenas sua grandeza numérica que para frente projetou a língua russa, mas o significado simbólico de um projeto apoiado na já existente majestade do período tsarista, bem como nas tradições populistas e rebeldes dos camponeses locais, que não pretendeu nada menos do que abolir as desigualdades sociais e libertar os povos coloniais. Nada disso, contudo, teria sido viável se em 1919, logo após a revolução bolchevique, Lenin não tivesse criado a Internacional Comunista, agregação mundial de partidos pró-Moscou que tomou a forma gigante e centralizada sob Stalin, mantida até a extinção em 1943, e forjou a linguagem e subcultura conhecida hoje como comunista, mas compartilhada por grande parte da esquerda revolucionária. Além disso, a Internacional foi uma das primeiras instituições de caráter mundial a fazer vasto emprego de tradutores e intérpretes (inclusive da interpretação simultânea), entre as mais diversas línguas, por conta do amplo tráfego de documentos, valores e pessoas entre Moscou e vários cantos do globo, pela via legal dos congressos e conferências ou pela via ilegal da subversão e espionagem. Assim, a língua russa permite analisar mais de perto o mosaico variado de uma história nacional ainda hoje passiva de polêmicas e aberta a novos números, esperando chegarem novos ratos de arquivo, eterno gatilho de paixões políticas, mas não menos internacional, por ter tentado incendiar a revolução em todo canto e ter legado uma ideologia política cujos frutos continuam a surgir.

A Rússia está ressurgindo com grande força na cena internacional, não importa como avaliemos a atuação de seus protagonistas políticos. Desde Gorbachov e durante toda a era Ieltsin, o produto interno bruto caiu drasticamente, e só voltou a crescer, com fôlego admirável e apesar de turbulências pontuais, sob o mando de Putin. Com Belarus e Cazaquistão, a Rússia forma um amplo bloco econômico, e no país da Ásia Central, também muito rico em recursos minerais, ela lança ainda seus famosos foguetes. Não é algo elogiável o xadrez que as grandes potências jogam nas nações mais pobres, mas a Rússia é o único país que tem sido consequente na oposição aos interesses hegemônicos dos Estados Unidos e da União Europeia, e dois ou mais polos de poder e influência são melhores do que apenas um, ou dois que são um. A Rússia, junto com o Brasil, faz parte dos BRICS, bloco de interesses que inclui ainda Índia, China e África do Sul, todos eles países emergentes com nível de desenvolvimento similar e, portanto, desejosos de unir forças contra as imposições dos mais ricos. A curiosidade da Rússia pelo Brasil, muito além dos laços econômicos e diplomáticos que só têm se reforçado nos últimos anos, remonta aos tempos soviéticos, e muitos acadêmicos de lá descreveram nossa história e cultura em obras de grande valor, quase sempre com alto teor social e militante. E ainda hoje os russos, e não só eles entre os eslavos, especialmente os jovens que usam as redes sociais, têm se interessado em visitar o Brasil, aprender nossa língua e viajar, trabalhar ou estudar aqui, abrindo possibilidades que devemos explorar imediatamente.

Dizer que aprender novos idiomas reforça a inteligência e flexibiliza o raciocínio ao fornecer novas estruturas para entender o mundo é lugar-comum em qualquer caso. Mas se é assim, talvez línguas muito diferentes da nossa exerçam esse trabalho, com efeitos positivos, de forma ainda mais ampla. Ainda hoje muitos eruditos dizem que aprender latim é uma ótima ginástica para o cérebro, do que não discordo. Mas o russo, além de ser um idioma com uma real comunidade de falantes e infindas veredas de uso, possui dificuldades adicionais que tornam bem mais “puxada” essa ginástica. O gênero neutro e os casos são familiares aos latinistas, mas o uso daqueles com preposições, o alfabeto e fonologia diferentes não são coisas com que se acostuma nas primeiras aulas. Mas que pessoa obstinada e inteligente não gosta de desafios? Filé-mignon não é grátis. Entre os benefícios aplicáveis a qualquer outra língua, está o de ir a outro país e saber pelo menos arranhar a língua local, o que gera o prazer nos falantes que se satisfazem com o interesse por sua cultura, bem como no visitante que experimenta novas formas de se expressar, se comunicar, se virar, enfim, se arriscar. E por falar em riscos, têm se tornado mais conhecidos os casos de jovens brasileiros que decidem ir à Rússia cursar uma universidade, mesmo sem saber o idioma ou conhecer a cultura. Atraem-nos as aulas de russo que as instituições oferecem, mas que não suprem as enormes barreiras de encarar um ensino superior em língua complexamente diferente. Uma boa preparação no Brasil, mesmo que de forma autodidata, reduziria muito o sofrimento. E por fim, talvez a razão mais atraente aos brasileiros: em 2018 tem Copa do Mundo na Rússia!

Espero que terminado o texto, eu tenha conseguido convencer a leitora ou leitor com bons pretextos para que se aventure a aprender o idioma russo, caso surja alguma vontade ou interesse, e especialmente tenha feito refletir se essa vontade é verdadeira ou passageira, se valeria a pena embarcar num plano que só pode ser de longo prazo. Claro que as pessoas são diferentes, e escolhas nem sempre são conscientes ou racionais: o que para mim foi uma ferramenta de ascensão acadêmica, abertura do horizonte das línguas eslavas e até conhecimento parcial de meu passado pode ser para outras um desafio motivado por relacionamento amoroso, jogo eletrônico, programa ou série de televisão, mera fascinação estética (pela língua ou outros símbolos histórico-culturais), amizades profundas ou eventos significativos. Acho apenas que nenhuma língua, tal como um tema de pesquisa científica, deve ser procurada por estar “na moda”, como foi há pouco com o chinês e outrora o japonês. Mas de qualquer jeito, desejo que o esforço, como no meu caso, gere forte prazer intelectual e algum senso de dever cumprido.


Bragança Paulista, 17 de outubro de 2015

P.S.: Para aguçar ainda mais a curiosidade intelectual, selecionei alguns sites em inglês e português que dão noções básicas da língua russa ou remetem a outras páginas com manuais, gramáticas, dicionários, cultura/turismo e mídia:


Language Resources for Students of Russian

An On-line Interactive Russian Reference Grammar

Learning Russian Language online

Learn Russian For Free

Master Russian – Beginning to Advanced

100 top resources to learn Russian

Só Russo – Língua Russa Online

Russo para brasileiros

Blog Falando Russo – língua e cultura

Guia Básico de Russo e Norueguês



domingo, 13 de dezembro de 2015

Como fazer projetos de pesquisa


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Por Erick Fishuk

Esta pequena lista se origina de anotações que fiz no início de 2013 para minha própria orientação na escrita do projeto de pesquisa visando ao mestrado. Outras pessoas também buscam um guia assim, mas mesmo sendo rico o material sobre o assunto na internet, são muito diferentes as dicas, geralmente aplicáveis a apenas uma área do saber. Decidi, então, compartilhar as anotações, adaptando-as um pouco e sintetizando o que dizem livros, guias, folhetos, artigos ou anotações de aula. Por ser historiador, escrevi concentrado nas ciências humanas, mas os princípios lógicos valem para qualquer pesquisa. Destaco o que foi produzido ou distribuído pelos professores Antônio Joaquim Severino, Silvio Sánchez Gamboa, Silvia Hunold Lara, José Carlos Köche, Robert Barrass, entre outros. É de se lembrar que cada Programa de Pós-Graduação tem suas próprias normas, portanto meu texto deve ser confrontado com elas.

Para quem é de esquerda e estuda ciências humanas, adicionei uma parte especial tratando da metodologia dialética, escorada nas ideias de Silvio Sánchez Gamboa e acrescida de outros aportes.




Partes de um projeto de pesquisa e como redigi-las

Fases de preparação para a construção do plano/projeto:

• Escolha do tema.
• Delimitação do problema.
• Revisão da literatura e documentação bibliográfica.
• Crítica da documentação.
• Construção de esquemas teóricos.
• Construção das hipóteses.

Para a escolha do projeto, contam acima de tudo a qualidade do texto e a adequação às áreas de concentração do respectivo Programa de Pós-Graduação.


Capa

Deve conter: autor, título, local e data.


Folha de rosto

Deve conter: autor, título, instituição, área, orientação, local e data.


Resumo

Equivale em parte à “Apresentação” ou “Introdução” em alguns guias. Consiste numa explicitação breve e objetiva do tema, do objetivo mais geral, da proposta da pesquisa e da relevância para a área escolhida.


Objeto e objetivos (tema e problema)

Deve abordar os seguintes aspectos:

• Apresentação (gênese do problema, como se chegou a ele, motivos de sua escolha).
• O problema em si, bem delimitado no tempo e no espaço (perguntas e pergunta-síntese), incluindo as fontes priorizadas.
• Justificativas (sobretudo relevâncias social e científica).
• Objetivos (pretensa contribuição) gerais (relativos ao diagnóstico de um problema, fenômeno ou objeto) e específicos (relativos às metas ou processos). Utilizar verbos ativos: caracterizar, descrever, analisar, compreender, diagnosticar, medir, dimensionar, tipificar, classificar, comparar, explicitar, revelar, sistematizar, interpretar, relacionar. Evitar objetivos de intervenção pedagógica, administrativa, extensão (contribuir, propiciar, facilitar, possibilitar, favorecer etc.).

A diferença básica entre “objetivos” e “justificativas” é que estas apresentam as razões, sobretudo teóricas, que legitimam cientificamente o projeto, conforme a relevância do problema, e os interesses pessoais ou de equipe, como “iniciação científica”, “aperfeiçoamento”, “titulação acadêmica” etc., enquanto os “objetivos” tratam dos fins teóricos e práticos a serem alcançados com a pesquisa.

Em alguns modelos, aparece aqui também o estado da questão (contraposição e balanço crítico da bibliografia); em outros modelos, ele está no debate bibliográfico.

O tema é mais genérico que o problema, o qual é uma interrogação bem delimitada diante de uma dificuldade. O problema é uma pergunta perante o mistério, a curiosidade, a indagação, a suspeita, a dúvida, ou perante respostas que já temos, mas que podem ser falsas ou admitem a suspeita da sua veracidade ou apresentam indicadores de serem limitadas ou falhas. A pergunta materializa a necessidade vivenciada por pessoas concretas, sendo localizada num lugar e num tempo.

A primeira fase da formulação da pergunta é localizar a “situação-problema” no espaço e no tempo, com suas formas de manifestação, expressão e ocultamento, aparências, e revelações, e sobre a qual se identificam os indicadores ou “sintomas” do problema (contexto empírico) e se pode fazer uma revisão bibliográfica, recuperando registros e antecedentes (contexto teórico). Em seguida, traduz-se essa problemática num corpo de indagações na forma de frases interrogativas, articuladas em torno de uma pergunta síntese ou de uma questão básica; diga-se, questões que se articulam, e não desconexas entre si.


Hipótese(s)

Deve abordar as seguintes fases:

• Tese (hipótese central).
• Hipóteses particulares (“degraus” para a construção total do raciocínio), que jamais devem ser pressupostos ou evidências prévias do quadro teórico.

“Hipóteses”, grosso modo, são respostas provisórias ao problema, e se ramificam especialmente se houver mais de um problema (problema geral e derivados), cada um com sua hipótese. A hipótese é uma proposição afirmativa ‒ enquanto o problema é uma interrogação ‒ formulada em contraposição à teoria já existente, nunca surgindo do nada.

Explicitam-se as hipóteses (respostas esperadas) ou os possíveis resultados da pesquisa que poderão orientar as diversas estratégias da organização das respostas e a coleta e organização de resultados.

No momento do projeto, a fase da construção da pergunta é enfatizada; já a elaboração da resposta é apenas anunciada ou prevista.


Debate bibliográfico

Contém os principais argumentos do debate sobre o tema e o período abordados, o estado da questão e dos conhecimentos a respeito (contraposição e balanço crítico da bibliografia) e o posicionamento da pesquisa nesse debate. Não é um enfileiramento de obras, mas um diálogo entre e com elas. Uma possibilidade é avaliar certos autores conforme a teoria adotada e manter os que seguem os pressupostos da pesquisa.


Quadro teórico (por vezes não é solicitado)

O processo do conhecimento deve articular-se numa teoria ou numa visão de totalidade que jamais é neutra, mas que implica uma visão de mundo. O quadro de referências teóricas fornece as categorias para formular a pergunta e as hipóteses, analisar as respostas e interpretar os resultados, ajudando a localizar o projeto num campo epistemológico específico ou no contexto de uma área do conhecimento. A teoria deve ser logicamente coerente, consistente, compatível com o raciocínio e o problema, servir como diretriz (e não como molde formatador) e não misturar elementos incompatíveis.

As categorias de análise e os referenciais para a interpretação e discussão dos resultados referem-se a campo disciplinar ou interdisciplinar, palavras-chave, conceitos que identificam o fenômeno e as partes que o constituem, campo conceitual, paradigma epistemológico e visões de ciência e de mundo, que constituem o horizonte interpretativo dos resultados.

No projeto, ao contrário da dissertação ou tese final, a referência teórica aparece apenas esboçada ou em linhas gerais, indicando a orientação e as diretrizes da pesquisa.


Metodologia (e técnica) e fontes

Nessa etapa deve-se dizer se a pesquisa é empírica, histórica, teórica, uma combinação delas etc. Listam-se ainda:

• Fontes (bibliográficas, documentais, vivas, observação direta ou participante, experimentais, modelos iconográficos, ciberespaciais ou metafóricos) onde se podem obter informações para a elaboração das respostas pertinentes ao quadro de questões e à pergunta-síntese.
• Instrumentos, materiais e técnicas para coletar, organizar e sistematizar as informações necessárias à construção das respostas (fichas, questionários, entrevistas, diários de campo, gravador, vídeo, tabelas de registro, materiais e instrumentos, equipamentos, protocolos, quadros de medidas e parâmetros, modelos informatizados).
• Técnicas de tratamento de dados e informações (quantitativas ‒ estatísticas, computacionais ‒ ou qualitativas ‒ análise de conteúdo, interpretação e análise do discurso).
• Organização e sistematização de resultados (esquemas, tabelas, índices, fórmulas, teoremas, proposições, silogismos, argumentações).
• Razões do privilégio de algumas fontes, procedimentos em relação à falta de certos documentos, utilidade de rever fontes já pesquisadas por outros.
• Maneiras de relacionar diferentes campos de especialidade (literatura e história, ciência política e história etc.).

Deve-se fazer uma diferenciação: método é a forma ampla do raciocínio, e técnica é um ato mais restrito que operacionaliza os métodos.

Provavelmente também entra aqui, se não em parte separada, a previsão de condição para a realização do projeto (indicadores da viabilidade técnica do projeto).


Cronograma (distribuição da pesquisa no calendário)

Trata-se da organização por trimestre ou semestre, sendo preferível o maior detalhamento possível, mas sem impor muito poucas tarefas ou tarefas demais.


Bibliografia

No projeto, ela ainda é incompleta, podendo abranger somente o que se usou para redigi-lo ou ainda os títulos que se pretende usar. É, portanto, restrita ao essencial, destinada à ampliação e atualização durante a pesquisa. Deve-se separar obras de referência dos livros e artigos.


Dicas de formatação:

• Fonte tamanho 12.
• Margens esquerda e superior de 3 cm, direita e inferior de 2 cm.
• Espaçamento 1,5 entre linhas.
• Confrontar sempre as normas gerais pesquisadas em diversas fontes com as normas de cada instituto, devendo ser do orientador a última palavra sobre a formatação.


>>> Para formatação e estruturação de trabalhos acadêmicos em geral, além de como fazer referências bibliográficas, este site é muito útil, e também aponta os documentos da ABNT a respeito.

>>> Leia também um documento sucinto redigido pelo célebre historiador Ciro Flamarion Cardoso com algumas instruções gerais para a elaboração de projetos de pesquisa, focadas na área de humanidades (formato PDF).


A metodologia/abordagem dialética

Na abordagem dialética de uma visão materialista de mundo, o conhecimento é construído por uma relação dialética entre sujeito e objeto, dentro de um contexto de realidade histórica (cultura) com certas condições materiais históricas, quando se vai primeiramente do todo para as partes e depois das partes para o todo, ora com predomínio do subjetivo, ora do objetivo.

O interesse da pesquisa, dentro da dimensão humana do poder, é o crítico e emancipador, usado para transformar e emancipar, e então a atividade intelectual reflexiva desenvolve a crítica e alimenta a práxis (reflexão-ação) que transforma o real e libera o sujeito dos diferentes condicionantes. O enfoque crítico dialético apreende o fenômeno em seu trajeto histórico e em suas inter-relações com outros fenômenos, compreendendo os processos de transformação, suas contradições e suas potencialidades.

O homem conhece e compreende para suprimir as alienações, as opressões e as misérias e propiciar ações (práxis) emancipadoras. A práxis ‒ reflexão e ação sobre uma realidade buscando sua elevação a maiores níveis de liberdade do indivíduo e da humanidade ‒ se transforma em critério de verdade e de validade científica.

A necessidade de superação das atuais condições da reprodução da vida e da superação das formas de exploração e exclusão social exige uma constante análise epistemológica dos instrumentos, das técnicas, dos métodos, das teorias e das visões de mundo que estão sendo utilizadas ou praticadas nos diversos processos da produção do conhecimento.



domingo, 6 de dezembro de 2015

Гей, соколи! (Ei, falcões!) – Ucrânia


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/sokoly


Linda canção nacional-popular com que travei conhecimento ao conversar com um amigo polonês, é corrente tanto entre poloneses quanto entre ucranianos e se chama Ei, falcões! (Hej, Sokoły! em polonês, Гей, соколи! em ucraniano). Tem várias versões, e trata de um cossaco que deixa para sempre sua amada e sua terra natal.

A origem da canção é incerta, e tem fontes que a consideram uma obra só polonesa, e outras, só ucraniana. Alguns também dizem ser uma canção popular bielo-russa. Mas sua composição é geralmente localizada na primeira metade do século 19, por obra do poeta e compositor ucraíno-polonês Tymko (Tomasz) Padura (1801-1871).

A canção ficou muito popular na Polônia durante a guerra contra os bolcheviques russos e ucranianos em 1920, e foi muito cantada por alguns guerrilheiros poloneses antinazistas na 2.ª Guerra Mundial. A partir dos anos 1990, ela ganhou novo impulso ao entrar no repertório de cantores e na trilha de um filme.

Retirei essas informações da Wikipédia em inglês e ucraniano, bem como a letra de uma das versões em ucraniano que traduzi. O ucraniano Anatoliy Oveka, explicando a terceira estrofe, disse que nas pomynky, um banquete ou reunião em memória de um falecido (em russo, pominki), é comum se beberem os alcoólicos vinho e hidromel. Era um dos desejos do cossaco, que também pediu, ao morrer na guerra, para ser enterrado ao lado de sua amada na Ucrânia.

Um comentário sobre tempos verbais. Sempre que havia imperativo, optei por colocar o plural na terceira pessoa (“vocês”): “Voem por montes...”, “Sirvam hidromel...”, “... me enterrem”. Mas no singular (ver refrão), usei a segunda pessoa (“tu”), porque ela é mais corrente na nossa linguagem falada e porque a forma “toca” ocupa menos espaço na legendagem do que a forma “toque” (“você”, terceira pessoa).

O vídeo sem legendas do qual tirei o áudio para fazer minha própria montagem está nesta página. O vídeo legendado abaixo está no meu canal O Eslavo no YouTube, e depois estão a letra em ucraniano e em português. As legendas são uma versão simplificada da tradução que postei aqui, mas não houve alteração de sentido [NOTA - 3/10/2020: Muitos anos depois, descobri que essa gravação é do cantor ucraniano Volodymyr Verminsky, feita em 2005 e cujo áudio oficial só foi lançado automaticamente no YouTube em outubro de 2019]:



1. Гей, десь там, де чорні води,
Сів на коня козак молодий.
Плаче молода дівчина,
Їде козак з України.

Приспів:
Гей! Гей! Гей, соколи!
Оминайте гори, ліси, доли.
Дзвін, дзвін, дзвін, дзвіночку,
Степовий жайвороночку.
Гей! Гей! Гей, соколи!
Оминайте гори, ліси, доли.
Дзвін, дзвін, дзвін, дзвіночку,
Мій степовий дзвін, дзвін, дзвін.

2. Жаль, жаль за милою,
За рідною стороною.
Жаль, жаль серце плаче,
Більше її не побачу.

(Приспів)

3. Меду, вина наливайте
Як загину, поховайте
На далекій Україні
Коло милої дівчини.

(Приспів)

____________________


1. Ei, num lugar onde as águas são negras
Um jovem cossaco partiu a cavalo.
Uma jovem moça está chorando,
O cossaco está partindo da Ucrânia.

Refrão:
Ei! Ei! Ei, falcões!
Voem por montes, matas e vales.
Toca, toca, toca, sinetinha,
Toca, cotovia das estepes.
Ei! Ei! Ei, falcões!
Voem por montes, matas e vales.
Toca, toca, toca, sinetinha,
Minha, das estepes, toca, toca, toca.

2. Saudade, que saudade
Da querida terra natal.
O coração chora de saudade,
Não vou mais vê-la.

(Refrão)

3. Sirvam hidromel e vinho
Quando eu morrer, e me enterrem
Na distante Ucrânia
Ao lado da moça amada.

(Refrão)




domingo, 29 de novembro de 2015

“Azul” (Edson & Hudson) em esperanto


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Dentre as várias músicas brasileiras que verti poeticamente para o esperanto nos anos 2000, hoje escolhi publicar este sucesso sertanejo, Azul, composto por Flávio Santander e Gustavo Santander, cantado por várias duplas, dentre as quais Guilherme & Santiago e Edson & Hudson, e que verti em 14 de junho de 2003. Em português, Azul está como adjetivo, e em esperanto transformei num substantivo, La blu’, ou seja, “a cor azul”. Como se pode notar, abusei das elisões de vogais finais de substantivos e do artigo, e me desviei um pouco da estrita regra da sílaba tônica em esperanto. Nesta página você pode ler a letra em português, e abaixo a letra em esperanto e um vídeo com a música cantada por Edson & Hudson ao vivo em estúdio.

El inter la pluraj brazilaj kanzonoj, kiujn mi poezie tradukis al Esperanto en la 2000-aj jaroj, hodiaŭ mi publikigas ĉi tiun sukceson de la stilo “sertanejo”, Azul, komponita de Flávio Santander kaj Gustavo Santander, kantata de pluraj duopoj, el inter kiuj Guilherme & Santiago kaj Edson & Hudson, kaj tradukita de mi la 14-an de Junio 2003. En la kanzono, la portugala vorto Azul estas la adjektivo “blua”, kaj en Esperanto mi uzis por la titolo La blu’, substantivon, ankaŭ “azul” en la portugala. Mi rimarkeble uzegis eliziojn de finaj vokaloj de substantivoj kaj de la artikolo, kaj ne ĉiam respektis la striktan regulon de la streĉa silabo en Esperanto. Ĉi-paĝe vi povas legi la tekston en la portugala, kaj ĉi-sube vi legos la tekston en Esperanto kaj rigardos videon kun la kanzono kantata de Edson & Hudson realtempe en studio.


La blu’

1. En la maten’, kiam mi trovis vin,
Venteto tuŝadis vian dolĉegan haŭton.
Trist’ estis, en viaj okuloj, ĉarm’.
Do mi vin faris virin’.
Kisante, tostante per blanka vin’,
Mi naskis amon kolor’ kies estas blu’.
En la ĉiel’ mi vin vidas, la stel’:
El la sonĝoj venu al mi!

Rekantaĵo:
Kaj blua estas la am’ kiel mara blu’,
Kiel dolĉa iluzio en mia kor’,
El kiu serĉas mi bluon por la konsol’
Se faras afektaĵojn la malbona plor’.
Kaj blua estas estas la am’ kiel mara blu’,
Kiel ĉiela blu’, de l’ pasio la lum’.
Ĝi ŝajnas brilo, kiu venante el sun’
Min ĉirkaŭprenas kaj min plenigas je am’.

2. Kiel mirakl’ atendita de mi,
Sonĝinda estas vi, mia knabin’ kun blu’.
Vian simplecon komprenas mi ne.
Mi estos via blua princ’.
Kun vi mi faros frenezaĵojn mil.
Por mi, koloro de l’ luno nur estas blu’,
Kaj kiel pluvo pentrita per blu’
Ĉiam nur estos ja vi!

(Rekantaĵo)



domingo, 22 de novembro de 2015

Ah ! ça ira (canção revolucionária)


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Esta é uma das mais famosas canções que simbolizam a Revolução Francesa, Ah ! ça ira, cujo título se tornou um lema dos revoltosos. Eu soube de sua existência ao ler o livro A formação da classe operária inglesa, do historiador britânico Edward Palmer Thompson, que aborda o período de 1780 a 1830 e conta que os trabalhadores em luta a cantavam frequentemente junto com A Marselhesa. É uma prova de que a cultura francesa, bem como suas tradições rebeldes, eram muito influentes do outro lado do Canal da Mancha.

A expressão “Ça ira” remonta ao tempo (1776-1785) em que Benjamin Franklin estava na França como representante (embaixador) do Congresso Continental, órgão legislativo que governava as 13 colônias (futuros EUA) durante a guerra de independência contra o Reino Unido. Muito popular entre os franceses, sempre que questionado sobre o andamento da guerra, Franklin invariavelmente respondia em seu francês ruim: “Ça ira, ça ira”, literalmente “Isso irá, isso irá”, ou “Isso dará certo”, “Terá um bom desfecho”.

Aparentemente “Ça ira” pegou, e um antigo soldado que cantava nas ruas, de sobrenome Ladré, fez uma canção com essas palavras, baseada na melodia do Carillon national, uma popular ária de contradança atribuída ao violinista Bécourt e que ironicamente a rainha Maria Antonieta gostava de tocar em seu cravo. A canção foi ouvida pela primeira vez em maio de 1790, mas se popularizou na Festa da Federação do 14 de julho seguinte, com a primeira letra apresentada no vídeo. Com a difusão da canção, ela tomou várias letras, sendo uma delas a versão vingativa que “sans-culottes” compuseram nos anos posteriores da revolução, apresentada depois no vídeo.

Esta segunda versão cantada por Édith Piaf omite no refrão os dois últimos versos originais: “Et quand on les aura tous pendus,/On leur fichera la pelle au cul !”. Uma tradução possível seria “E depois de enforcá-los,/Vamos empalá-los todos!”, especialmente porque a expressão “ficher la pelle au cul” admite várias interpretações relacionadas a uma situação ruim, além da mera empalação.

Eu fiz uma tradução direta das duas versões, mas também cotejei a primeira com as traduções da Wikipédia em inglês e italiano, e a segunda, com uma tradução italiana do site Canções Contra a Guerra. Esta versão está completa, mas a primeira é mais comprida, e traduzi apenas as estrofes gravadas em fita cassete em 1988. As legendas estão simplificadas em relação à letra das traduções escritas, para facilitar a leitura rápida sem prejuízo do sentido, mas fiz aqui também notas explicativas. O áudio da primeira versão eu tirei do canal YouTube “ccffpa”, e o da segunda versão, do canal “valestap”. O vídeo legendado está no meu canal O Eslavo, e depois estão as letras das duas versões em francês e em português:



Versão de 1790:

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Le peuple en ce jour sans cesse répète,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Malgré les mutins tout réussira.
Nos ennemis confus en restent là
Et nous allons chanter alléluia !
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Quand Boileau jadis du clergé parla
Comme un prophète il a prédit cela.
En chantant ma chansonnette
Avec plaisir on dira :
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Malgré les mutins tout réussira.

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Pierette et Margot chantent à la guinguette
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Réjouissons-nous, le bon temps viendra !
Le peuple français jadis à quia,
L’aristocrate dit : Mea culpa!
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le clergé regrette le bien qu’il a,
Par justice, la nation l’aura.
Par le prudent Lafayette,
Tout le monde s’apaisera.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Réjouissons-nous, le bon temps viendra !

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Par les flambeaux de l’auguste assemblée,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.
Le vrai d’avec le faux l’on connaîtra,
Le citoyen pour le bien soutiendra.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Quand l’aristocrate protestera,
Le bon citoyen au nez lui rira,
Sans avoir l’âme troublée,
Toujours le plus fort sera.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Par les flambeaux de l’auguste assemblée,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.

___________________


Ah, vamos vencer, vamos vencer,
É o que o povo não para de dizer,
Ah, vamos vencer, vamos vencer,
Vai dar certo apesar dos baderneiros.
Nossos inimigos confusos param
E vamos cantar Aleluia!
Ah, vamos vencer, vamos vencer,
Falando do clero, Boileau (1) outrora
Previu tudo isso como um profeta.
Cantando minha cançoneta
Vamos dizer com gosto:
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Vai dar certo apesar dos baderneiros.

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Pierette e Margot cantam na guinguette (2)
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Alegremo-nos, bons tempos virão!
O povo francês outrora silenciava,
E agora o aristocrata se culpa!
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
E o clero lamenta sua riqueza,
Que será da nação por justiça.
O moderado Lafayette (3) fará
Todo mundo (4) se acalmar.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Alegremo-nos, bons tempos virão!

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Com as tochas da augusta assembleia
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.
O joio será separado do trigo
E o cidadão apoiará o bem.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Quando o aristocrata protestar,
O bom cidadão rirá da sua cara
Sem se incomodar com isso
E será sempre o mais forte.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Com as tochas da augusta assembleia
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.




Acréscimos “sans-culottes” posteriores:

Refrain :
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira
Les aristocrates à la lanterne
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira
Les aristocrates on les pendra
(Et quand on les aura tous pendus,
On leur fichera la pelle au cul !)

1. V’la trois cents ans qu'ils nous promettent
Qu’on va nous accorder du pain
V’la trois cents ans qu’ils donnent des fêtes
Et qu’ils entretiennent des catins
V’la trois cents ans qu’on nous écrase
Assez de mensonges et de phrases
On ne veut plus mourir de faim

(Refrain)

2. V’la trois cents ans qu’ils font la guerre
Au son des fifres et des tambours
En nous laissant crever d’misère
Ça n’pouvait pas durer toujours
V’la trois cents ans qu’ils prennent nos hommes
Qu’ils nous traitent comme des bêtes de somme
Ça n’pouvait pas durer toujours

(Refrain)

3. Le châtiment pour vous s’apprête
Car le peuple reprend ses droits
Vous vous êtes bien payé nos têtes
C’en est fini Messieurs les rois
Il n’faut plus compter sur les nôtres
On va s’offrir maint’nant les vôtres
Car c’est nous qui faisons la loi

(Refrain)

___________________


Refrão:
Ah, vamos vencer, vamos vencer
Vamos enforcar os aristocratas (5)
Ah, vamos vencer, vamos vencer
Vamos enforcar nos lampiões
(E depois de enforcá-los,
Vamos empalá-los todos!)

1. Há trezentos anos eles nos prometem
Que vão nos conceder pão
Há trezentos anos eles dão festas
E entretêm prostitutas
Há trezentos anos somos esmagados
Chega de mentiras e falatórios
Estamos fartos de morrer de fome

(Refrão)

2. Há trezentos anos eles fazem a guerra
Ao som dos pífaros e tambores
Deixando-nos arrebentar de miséria
Isso não podia ser para sempre
Há trezentos anos eles pegam nossos homens
E nos tratam como animais de carga
Isso não podia ser para sempre

(Refrão)

3. O castigo de vocês está próximo
Pois o povo retoma seus direitos
Vocês já nos ferraram muito
Isso já era, Senhores Reis
Não vão mais ferrar com a gente
Agora vocês é que serão ferrados
Pois somos nós que fazemos a lei

(Refrão)

__________________


Notas do tradutor
(Clique no número para voltar ao texto)

(1) Nicolas Boileau (1636-1711), escritor, crítico e poeta cujas sátiras sobre os costumes da época atraíram a ira até mesmo do clero.

(2) “Guinguette”, antigo tipo de cabaré originado nos subúrbios parisienses que também funcionava como restaurante e, por vezes, lugar de dança. Nas legendas, usei “cabaré” por razões de espaço.

(3) Gilbert du Motier, Marquês de La Fayette, ou apenas Lafayette (1757-1834), aristocrata, oficial e político liberal francês que lutou ao lado dos americanos na guerra de independência e teve um papel proeminente na Revolução Francesa de 1789, bem como na de 1830.

(4) Em todas as fontes escritas, o verso em francês que conta é “Tout le monde s’apaisera” (Todo mundo se acalmar), mas o intérprete de 1988 canta “Tout trouble s’apaisera” (Toda desordem se acalmar).

(5) A expressão em francês “Les aristocrates à la lanterne” (literalmente “Os aristocratas ao lampião”) deriva dos primeiros atos impulsivos da Revolução Francesa, em que o povo enforcava clérigos, nobres, cobradores de impostos e outros funcionários públicos em lampiões, após mandá-los “À la lanterne !” (Ao lampião!). “La lanterne” ou “À la lanterne” terminou se tornando um jargão muito usado na cultura, em títulos de revistas etc.




domingo, 15 de novembro de 2015

Hollande repudia ataques em Paris


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François Hollande, presidente da França, fez um discurso no dia seguinte aos atentados que atingiram Paris em 13 de novembro de 2015. À noite, atiradores islâmicos em vários pontos da capital haviam assassinado dezenas de pessoas, a maior parte delas na casa de shows Bataclan, onde se apresentava uma banda musical norte-americana, e outras próximo ao Stade de France, onde ocorria um jogo entre França e Alemanha.

O presidente Hollande repudiou com força os ataques jihadistas, atribuindo-os ao grupo Daesh e prometendo desbaratá-lo onde quer que fosse. Até o momento, diz, haviam sido contadas 127 vítimas fatais e muitíssimos feridos, a França estava em estado de choque e as famílias dos mortos, transtornadas. Como na ocasião do atentado ao Charlie Hebdo em janeiro, Hollande pediu que toda a população se unisse, afirmou terem sido tomadas todas as medidas de segurança e anunciou uma coalizão internacional para combater a onda terrorista em ascensão naqueles dias.

O Estado Islâmico, também conhecido como ISIS, estava ultimamente intensificando seus atentados ao redor do mundo, e a França havia se engajado ainda mais no combate armado ao grupo. Logo após o tiroteio, Hollande também decretou o fechamento das fronteiras do país (o primeiro desde 1944), num momento em que centenas de milhares de imigrantes fugiam do Oriente Médio e do Norte da África para a Europa justamente por conta da intensa guerra entre os terroristas e os exércitos ocidentais e locais.

Qual será o próximo capítulo dessa novela? A xenofobia vai aumentar no Velho Continente e o fluxo imigratório será bloqueado? A Rússia, que já vinha bombardeando alvos do Estado Islâmico na Síria, vai finalmente começar a colaborar com os Estados Unidos e a União Europeia? Ou a França, como os EUA durante o governo George W. Bush, vai se tornar novo destino de atentados e instalar um Estado de paranoia e cerceamento?

Eu legendei o vídeo em português pouco após ele ter sido posto no ar em francês, tendo baixado sem legendas do canal francês BFMTV. Este discurso não tinha uma versão escrita nem mesmo no site do Élysée, e ao contrário de outras legendagens, fiz os trabalhos de escuta, tradução e inserção ao mesmo tempo na manhã mesma do pronunciamento, e carreguei o resultado no meu canal O Eslavo no YouTube à tarde. Abaixo do vídeo, uma transcrição adaptada em francês e uma tradução mais bem elaborada:



Mes chers compatriotes,

Ce qui s’est produit hier à Paris et à Saint-Denis, près du Stade de France, c’est un acte de guerre. Et face à la guerre, le pays doit prendre les décisions appropriées. C’est un acte de guerre qui a été commis par une armée terroriste, Daesh, une armée jihadiste, contre la France, contre les valeurs que nous défendons partout dans le monde, contre ce que nous sommes : un pays libre qui parle à l’ensemble de la planète.

C’est un acte de guerre qui a été preparé, organisé, planifié de l’extérieur et avec des complicités intérieures que l’enquête permettra d’établir. C’est un acte d’une barbarie absolue : à cet instant, 127 morts et de nombreux blessés. Les familles sont dans le chagrin, la détresse. Le pays est dans la peine, et j’ai pris un décret pour proclamer le deuil national pour trois jours.

Toutes les mesures pour protéger nos concitoyens et notre territoire sont prises dans le cadre de l’état d’urgence. Les forces de sécurité intérieure et l’Armée, auxquelles je rends hommage, notamment pour l’action qui s’est produite hier et qui a permis de neutraliser les terroristes, elles sont donc mobilisées au plus haut niveau de leurs possibilités. Et j’ai veillé à ce que tous les dispositifs soient renforcés à l’échelle maximale. Des militaires patrouilleront en plein Paris tout au long de ces prochains jours.

La France, parce qu’elle a été agressée lâchement, honteusement, violamment, elle sera impitoyable à l’égard des barbares de Daesh. Elle agira avec tous les moyens dans le cadre du droit, et tous les moyens qui conviennent, et sur tous les terrains, intérieurs comme extérieurs, en concertation avec nos alliés qui eux-mêmes sont visés par cette menace terroriste. Dans cette période si douloureuse, si grave, si décisive pour notre pays, je l’appelle à l’unité, au rassemblement, au sang-froid, et je m’adresserai au Parlement réuni en Congrès à Versailles lundi pour rassembler la nation dans cette épreuve.

La France est forte, et même si elle peut être blessée, elle se lève toujours, et rien ne pourra l’atteindre, même si le chagrin nous assaille. La France, elle est solide, elle est active, elle est vaillante, et elle triomphera de la barbarie : l’histoire nous le rappelle, et la force que nous sommes capables aujourd’hui de mobiliser nous en convainc.

Mes chers compatriotes,

Ce que nous défendons, c’est notre patrie, mais c’est bien plus que cela : ce sont les valeurs d’humanité, et la France saura prendre ses responsabilités, et je vous appelle à cette unité indispensable.

Vive la République et vive la France !

____________________


Meus caros compatriotas,

O que ocorreu ontem em Paris e em Saint-Denis, perto do Stade de France, foi um ato de guerra. E diante da guerra, o país deve tomar as decisões apropriadas. Foi um ato de guerra cometido por um exército terrorista, o Daesh, (1) um exército jihadista, contra a França, contra os valores que defendemos no mundo inteiro e contra o que somos: um país livre que fala ao planeta em conjunto.

Foi um ato de guerra preparado, organizado e planejado a partir do exterior, com cúmplices internos que a investigação nos permitirá descobrir. Foi um ato absolutamente bárbaro: neste momento, 127 mortos e inúmeros feridos. As famílias estão tristes, angustiadas. O país está sofrendo, e sancionei um decreto para instituir três dias de luto nacional.

Todas as medidas para proteger nossos concidadãos e nosso território foram tomadas no quadro do estado de emergência. As forças de segurança interna e o Exército, os quais homenageio especialmente pela ação que ocorreu ontem e permitiu neutralizar os terroristas, estão, pois, mobilizados ao nível mais alto de suas possibilidades. E cuidei para que todos os dispositivos fossem reforçados à escala máxima. Militares patrulharão no meio de Paris por todos esses próximos dias.

A França, por ter sido agredida covardemente, vergonhosamente, violentamente, será impiedosa para com os bárbaros do Daesh. Agirá com todos os meios nos limites do direito, os meios que convierem, e em todo território interior e exterior, em acordo com nossos aliados que também são visados por essa ameaça terrorista. Nesse período tão doloroso, tão grave e tão decisivo para nosso país, eu o chamo à unidade, à união e ao sangue-frio, e falarei ao Parlamento, reunido em Congresso em Versalhes (2) na segunda-feira para congregar a nação em provação.

A França é forte, e mesmo podendo ser ferida, sempre se reergue, e nada poderá atingi-la, mesmo se a tristeza nos atormenta. A França é sólida, é ativa, é valente, e triunfará sobre a barbárie: a história o relembra para nós, e a força que hoje somos capazes de mobilizar nos convence disso.

Meus caros compatriotas,

O que defendemos é nossa pátria, mas muito além disso, são os valores de humanidade. A França saberá arcar com suas responsabilidades, e eu chamo vocês a essa unidade indispensável.

Viva a República e viva a França!


Notas do tradutor
(Clique no número para voltar ao texto)

(1) “Daesh” em inglês, ou “Daech” em francês, é um acrônimo de origem árabe que designa o Estado Islâmico. É o termo preferido por seus inimigos, escondendo as palavras “Estado” e “islâmico”, pois o grupo não seria nem um Estado constituído, nem seguidor do “verdadeiro” islã. Alguns estadistas ocidentais e agências de notícias, porém, o evitam por considerarem-no “ideológico” e parecido com palavras árabes que denotam “esmagadores” e “desestabilizadores”, associação considerada favorável aos terroristas. Quem evita “Daesh” prefere usar “organização/grupo Estado Islâmico” ou “o assim chamado Estado Islâmico”.

(2) Trata-se do Congresso do Parlamento Francês (Congrès du Parlement français), ocasião em que se reúnem as duas câmaras parlamentares (Assembleia Nacional e Senado) na Sala do Congresso do Palácio de Versalhes para votar uma revisão constitucional, ouvir uma declaração do Presidente da República ou autorizar a adesão de um Estado à União Europeia. O Congresso de 16 de novembro de 2015 seria o segundo destinado a uma declaração presidencial, tendo sido o primeiro em 22 de junho de 2009 sob Nicolas Sarkozy.



domingo, 8 de novembro de 2015

Duas cartas sobre Octavio Brandão (2)


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Estou postando hoje a segunda carta em russo relacionada a Octavio Brandão, que encontrei em seu fundo documental no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/IFCH/Unicamp), traduzi e tornei pública com autorização da instituição. Eu já tinha publicado na semana passada a primeira carta, escrita por uma de suas filhas a outras duas, suas irmãs, e aí estão também mais informações sobre minha relação com o AEL e sobre o Fundo Octavio Brandão (ver ainda o volume 1 e o volume 2 de seu catálogo).

Vale relembrar que Brandão (1896-1980) foi membro do PCB desde 1922 e seu principal teórico até 1929-30. Começou anarquista, se converteu ao bolchevismo com o impacto da Revolução de Outubro no Brasil e em 1925 publicou Agrarismo e industrialismo, aplicação do marxismo esquemático soviético à análise da realidade brasileira e, supõe-se, um dos pioneiros no uso do termo “marxista-leninista”. Exilou-se na URSS entre 1931 e 1946, onde trabalhou para a Comintern e sofreu com a família o peso da guerra, e ao voltar tentou se reintegrar à vida partidária, mas foi marginalizado e morreu no ostracismo. O fundo no AEL é rico em detalhes sobre sua vida pública e privada, bem como de sua família, incluindo material em russo, especialmente cartas, pelas quais me interessei, decidi copiar, traduzir e publicar aqui. A direção técnica incentivou meu trabalho e até já tinha publicado no site da instituição essas duas cartas do blog.

Esta segunda carta foi escrita da URSS a Octavio Brandão (que devia estar no Brasil) por seu genro, o físico Zarem Chernov, marido de sua filha Sattva. A carta não está datada, mas há uma anotação feita posteriormente, que a indica como recebida em 4 de dezembro de 1957. Os dois assuntos principais são o nascimento da filha do casal, neta de Octavio, e as dificuldades que Chernov aponta para que os livros do sogro sejam traduzidos para o russo e publicados na URSS. Incluem-se ainda outros temas familiares e a instigante indicação de que as obras do comunista alagoano eram muito lidas por estudiosos soviéticos do Brasil e que ele poderia escrever sobre certos temas que lá teriam público mais amplo. Abaixo vai a tradução em português, e em seguida o inicial em russo. Localização física: OB Cp.485, P.26.



Octavio Brandão (esq.) e Minervino de Oliveira em comício comunista nos anos 1920.


Caro O.B!

Desejo saúde e coragem a você.

Mesmo não o conhecendo pessoalmente, sempre acompanhei com profundo respeito sua vida cheia de lutas e duras provações. Sattva e eu tivemos agora um filho, e você lhe será um luminoso exemplo de vida. Sattva e eu vivemos bem, em harmonia. Ela está trabalhando no mesmo lugar, e eu faço pesquisas no campo da física na Academia de Ciências. Em tempo oportuno, Sattva me ajudou a dominar a língua portuguesa em algum grau, e conheci muitos livros de história, etnografia e geografia do Brasil. Caro O., suas cartas fazem notar que você está muito preocupado com seus livros, com a possibilidade de publicá-los na União Soviética. Me parece que a principal dificuldade em traduzi-los está no fato de nossos leitores conhecerem muito pouco o Brasil como um todo. Como seus livros analisam a fundo uma série de fenômenos importantes, eles exigem conhecer o país. Canais e lagoas, por exemplo, é uma pesquisa modelar sobre o Nordeste, mas não temos uma descrição fundamentada do Brasil inteiro. Por isso, aos editores parece prematuro publicar uma pesquisa detalhada apenas sobre o Nordeste. Além disso, seus livros ocupam uma posição intermediária entre literatura artística pura e propaganda política, ou antes, combinam as duas coisas. Como as editoras são altamente especializadas, isso dificulta em escolher uma delas.

É mais razoável começar publicando em revistas uma seleção dos trechos mais claros. Isso também põe dificuldades, pois a maioria das revistas (Inostrannaia literatura [Literatura Estrangeira], Ogoniok [Pequena Chama], Iunost [Juventude] etc.) publica exclusivamente literatura artística ou ensaios sobre temas do momento. A publicação mais plausível seria a revista Vokrug Sveta [Ao Redor do Mundo] (Zé Curau foi publicado aí). Aliás, qual sua opinião sobre a correspondência entre tradução e original?

Devo destacar que seus livros desfrutam de sucesso entre nossos camaradas que estudam mais profundamente o Brasil. Seu último livro, por exemplo, ajudou a esclarecer sobre questões muito complexas. Não sei o que você está planejando escrever, mas me parece que se você fizesse um livro sobre os movimentos nacional-libertadores no Brasil, dando um quadro perspectivo e consequente, ele despertaria um grande interesse entre os leitores soviéticos.

Vólia está com a gente agora. Nós todos achamos que é melhor para ela ficar aqui. Seu problema está se resolvendo. De nossa parte, vamos ajudá-la em tudo.

Quanto aos assuntos familiares, o mais importante é o nascimento de nosso filho. Ele e Sattva passam bem e logo sairão da maternidade para casa.

Aproveito a ocasião para lhe transmitir calorosas saudações comunistas de meu pai e minha mãe, que ingressaram nas fileiras de nosso Partido nos tempos da revolução e da guerra civil.

Com profundo respeito
Zarem.

P.S. Estou enviando cópias de alguns
trabalhos meus, incluindo uma conferência
no Congresso Internacional de Eletrônica,
em Paris.

___________________


Дорогой О. Б!

Желаю Вам здоровья и мужества.

Хотя мне и не пришлось видеть Вас лично, но я всегда с глубоким уважением следил за Вашей жизнью, полной борьбы и тяжёлых испытаний. Сейчас у нас с Сатвой родился сын, и ваша жизнь будет служить ему светлым примером. Мы с Сатвой живём хорошо и дружно. Она работает на старом месте. Я занимаюсь исследованиями в области физики в Академии Наук. В своё время Сатва помогла мне в какой-то степени овладеть португальским языком, и я познакомился со многими книгами по истории, этнографии и географии Бразилии. Дорогой О., по Вашим письмам чувствуется, что Вас глубоко волнует вопрос о Ваших книгах, о возможности их издания в Сов. Союзе. Мне кажется, что основная трудность перевода этих книг заключается в том, что наш читатель очень мало знает о Бразилии в целом. Ваши книги глубоко анализируя ряд важных явлений требуют знания страны. Например: Каналес и лагунас являются образцом по исследованию Северо-Востока. Но у нас нет солидного описания всей Бразилии, поэтому издание подробного исследования по одному Северо-Востоку представляется издателям преждевременным. Далее, Ваши книги занимают среднее положение между чисто художественной литературой и политической публицистикой; вернее в них сочетается и то и другое. Это затрудняет нахождение издательства; они сильно специализированы.

Наиболее целесообразно начинать с публикации отдельных, наиболее ярких, отрывков в журналах. Здесь тоже встретятся затруднения, так как большинство журналов (Иностранная литература, Огонёк, Юность и др.) печатают исключительно художественную литературу, или очерки на злобу дня. Наиболее вероятным местом является журнал „Вокруг Света‟ (Зе Курау был напечатан в нём). Кстати, что Вы думаете о соответствии перевода оригиналу[?].

Следует отметить, что Ваши книги пользуются успехом у наших товарищей, занимающихся глубоким изучением Бразилии. Например, последняя Ваша книга помогла разобраться в очень сложных вопросах. Я не знаю Ваших творческих планов, но мне представляется, что если бы Вы написали книгу о народно-освободительных движениях в Бразилии, дав перспективную и последовательную картину, то такая книга вызвала бы большой интерес у советских читателей.

Сейчас у нас находится Волка. Нам всем кажется, что ей лучше остаться здесь. Её вопрос решается. Мы со своей стороны ей во всём поможем.

Что касается семейных дел, то главное событие – рождение сына. Он и Сатва здоровы и скоро переберутся из родильного дома домой.

Пользуюсь случаем передать Вам горячий к-ий [коммунистический] привет от моего отца и матери, которые вступили в ряды нашей п-и [партии] со времён революции и гражданской войны.

С глубоким уважением
Зарем.

P.S. Посылаю Вам оттиски некоторых
своих работ, в том числе доклад на
Международном конгрессе по электроники
в Париже.



Octavio Brandão filmado em documentário, perto do fim de sua vida.

domingo, 1 de novembro de 2015

Duas cartas sobre Octavio Brandão (1)


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O Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, foi criado em 1974 e hoje constitui um dos maiores acervos documentais sobre movimentos sociais, políticos e de minorias, e sobre pessoas ligadas a eles, auxiliando pesquisas brasileiras e estrangeiras de alto nível. A ele devo minha pesquisa sobre o impacto da “desestalinização” soviética no Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre 1956 e 1961, desembocada na iniciação científica e na monografia de graduação, e sou ainda grato a seu pessoal pelo carinho e atenção com que me recebem sempre que utilizo seus serviços.

Há alguns meses o AEL editou o volume 1 e o volume 2 do catálogo do Fundo Octavio Brandão (1896-1980), membro do PCB desde 1922 e seu principal teórico até 1929-30. Sua evolução é típica dos primeiros comunistas brasileiros: começou anarquista e se converteu ao bolchevismo com o impacto da Revolução de Outubro no Brasil; em 1925, publicou Agrarismo e industrialismo, aplicação do marxismo esquemático soviético à análise da realidade brasileira e, supõe-se, um dos pioneiros no uso do termo “marxista-leninista”; exilou-se na URSS entre 1931 e 1946, onde trabalhou para a Comintern e sofreu com a família o peso da guerra; regressado, tentou se reintegrar à vida partidária, mas como grande parte de sua geração (Astrojildo Pereira é o mais célebre), foi marginalizado e morreu no ostracismo.

O fundo no AEL é rico em detalhes sobre sua vida pública e privada, e o poliglotismo dos documentos inclui o russo, que Brandão, sua esposa (a poetisa Laura Brandão) e filhas dominavam bem. O material em russo, especialmente cartas, não se limita a produções dele, e guarda também da esposa, filhas e outras pessoas a ele ligadas. Aos poucos, decidi copiar, com autorização do AEL, alguns dos textos em russo, traduzi-los e publicá-los aqui, a que tem me incentivado a direção técnica, inclusive publicando no site da instituição duas cartas traduzidas por mim, que lanço aqui nas duas próximas semanas.

A primeira foi escrita da URSS em 1950 por Sattva, filha de Octavio, às irmãs Valná e Dionysa, então no Brasil. Além de assuntos pessoais, Sattva informa sobre a participação de Vólia, a quarta irmã, na redação do artigo sobre o comunista Graciliano Ramos para a Grande Enciclopédia Soviética, e pede a elas dados e livros do escritor, sobre o qual ela admite conhecer pouco. Abaixo vai a tradução em português, e em seguida o inicial em russo, língua em que se pode pensar por que elas se comunicavam entre si, sendo filhas de brasileiros. A localização física no fundo é OB Cp.503, P.26.



Octavio Brandão e a esposa Laura, no casamento em 1921.



7 de setembro de 1950

Caras Valnazinha e Dionysinha!

Tenho muita pressa, mas decidi lhes escrever algumas linhas. Uns dias atrás Svetlana recebeu a carta de Valná. Ela já entrou na universidade, decidiu se tornar engenheira agrônoma. Zina ligou faz pouco e prometeu vir nos ver.

Queridas meninas, vocês receberam minhas cartas de 14, 24 e 29 de agosto, e três embrulhos postais enviados em 14 de agosto de 1950?

Como está o Papai? Como vão as coisas com seu livro?

Com a gente está tudo bem. Vólia está na Crimeia, e eu comecei a descansar (setembro inteiro folgo do trabalho), mas por enquanto estou em Moscou.

Queremos muito lhes pedir o seguinte: precisamos muito de informações, ou melhor, breves dados biográficos, materiais sobre a atividade literária e política de dois escritores: Monteiro Lobato e Graciliano Ramos. Seria muito bom se vocês pudessem nos enviar uma brochura ou um pequeno livro de cada um deles. Precisamos desse material para a Enciclopédia Soviética. Interessa também a opinião do Papai sobre Ramos. Sobre ele, só sei que é um escritor comunista brasileiro. Não sei sequer quais obras ele escreveu e se elas são relevantes. Porém, ouvi algumas vezes que ele é um grande escritor. Claro que seria muito bom se vocês pudessem nos enviar algum de seus livros mais importantes e significativos, mas receio que isso lhes seja financeiramente difícil. Estou certa que se talvez vocês pudessem falar pessoalmente com Ramos, ele nos enviaria seus livros com prazer, arcando com as despesas postais. Como eu disse, esse material é para a Enciclopédia Soviética, na qual Vólia está escrevendo sobre alguns escritores brasileiros.

Temos uma pequena, mas agradável surpresa para o Papai. Porém, é melhor ser “Cabocla”, como ele mesmo diz, esperar até tudo ficar pronto e então já lhes comunicar. Por isso, vou prender a língua e me calar.

Beijos!
Sattva

___________________


7 сентября 1950

Дорогие Волночка и Дионизок!

Очень спешу, но решила написать вам несколько строчек. На днях Светлана получила письмо от Волны. Она уже поступила в университет. Решила стать агрономом. Недавно звонила Зина и обещала к нам зайти.

Милые девочки, получили ли вы мои письма от 14/VIII, 24/VIII, 29/VIII, а также три пакета (бандероли), посланные 14/VIII–50 г.?

Как поживает Папа? Как идут дела с его книгой?

У нас всё благополучно. Воля в Крыму, я начала отдыхать (буду в отпуску весь сентября), но пока сижу в Москве.

Мы очень хотели попросить у вас следующее: нам очень нужны сведения, точнее – краткие биографические данные, материалы о литературном творчестве и политической деятельности двух писателей, а именно Монтейро Лобато и Грасилиано Рамос. Если бы вы смогли нам послать брошюрку или небольшую книжку о каждом из них, было бы очень хорошо. Эти материалы нужны для Советской Энциклопедии. Интересно, какого мнения Папа о Рамосе. О нём я знаю только, что он бразильский писатель, коммунист. Даже не знаю какие произведения он написал и являются ли они стоящими. Однако несколько раз слышала, что он крупный писатель. Конечно, если бы вы могли бы [sic] нам послать какую-нибудь из наиболее значительных, важных книг, то было бы очень хорошо, но боюсь, что в денежном отношении это для вас трудно. Может быть, вы бы сумели к нему лично обратиться и я уверена, что он с удовольствием послал бы нам свои книги, взял почтовые расходы на себя. Как я писала, эти материалы нужны для Сов. Энциклопедии. Точнее, Воля пишет для них о некоторых бразильских писателях.

У нас есть небольшой, но приятный сюрприз для Папы. Однако, лучше быть „Кабоклой‟, как говорит сам Папа, подождать пока будет всё готово и тогда уже вам сообщать. Поэтому держу язык за зубами и молчу.

Целую Вас!
Сатва



Octavio, Sattva, Dionysa e Vólia no exílio soviético.

domingo, 25 de outubro de 2015

Trotsky antevê hegemonia dos EUA


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Leon Trotsky foi desde 1917 um notável líder bolchevique, fundou o Exército Vermelho e ocupou cargos importantes no Estado soviético e na Comintern, mas na luta de poder contra Iosif Stalin, que controlava de fato o país após a morte de Vladimir Lenin, terminou afastado de todos os seus cargos e exilado primeiro em Alma Ata, depois no estrangeiro, onde pulou de país em país até se fixar no México.

No desterro, Trotsky fez algumas declarações em inglês e francês, gravadas em áudio e vídeo, tendo sido esta, segundo o site Dangerous Minds, dada em Copenhague, capital da Dinamarca, em 1932, no período de quatro anos em que ele estava vivendo na ilha Büyükada, na costa da Turquia. A tomada, originalmente intitulada “Trotzky Makes Debut before Microphone”, é produção da Fox Movietone News, que em quadro inicial descreve o texto como “uma revelação exclusiva de sua visão dos assuntos europeus gravada em Copenhague”.

Dispensa explicações: a própria ocasião de ver Trotsky ao vivo legendado, e falando em inglês, já vale a pena. As breves informações sobre o vídeo e uma transcrição que completei e retifiquei (e que segue mais abaixo com a tradução em português, após a peça legendada) estão nesta página, e o vídeo sem legendas pode ser assistido nesta página.


“The war and the post-war developments, including the Russian Revolution, have totally changed the economic, political, military and diplomatic face of our planet. The present crisis will mean a new era in history. The new face is not a stable one. The equilibrium of Europe has become a bitter reminiscence or a formless hint. Europe, in general, has ceased to be the centre of the world. It is foolish to hope that Europe as it is will again occupy that position. The present terrific crisis, in spite of its devastating effects on the United States, will change the relation of forces still further not in favour of Europe, but in favour of the United States and the colonial countries. To see far it is best to stand on the roof of a skyscraper. The most suitable point for observing the world panorama in every respect I consider to be New York.”

“As consequências da guerra e do pós-guerra, incluindo a Revolução Russa, mudaram toda a face econômica, política, militar e diplomática de nosso planeta. A crise atual abrirá uma nova era na história. Essa nova face não é estável. O equilíbrio da Europa se tornou amarga lembrança ou alusão disforme. A Europa, no geral, deixou de ser o centro do mundo. É leviano esperar que no atual estado ela volte a ocupar essa posição. A terrível crise atual, mesmo tendo efeitos devastadores sobre os Estados Unidos, mudará ainda mais a relação de forças a favor não da Europa, mas dos EUA e dos países coloniais. A vista mais ampla se tem no topo de um arranha-céu. Julgo ser Nova York o ponto mais adequado para observar todos os aspectos do panorama mundial.”



domingo, 18 de outubro de 2015

Baixe grátis muito material de idiomas


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Reforma final concluída em 12 de janeiro de 2023!



Após reelaborar o acervo compartilhado por um antigo conhecido, completado por longa pesquisa, criei meu próprio acervo organizado e centralizado de livros, documentos e áudios pro aprendizado de dezenas de idiomas, que guardo em disco externo e também no Google Drive, pra disponibilizar ao público interessado.

Em sua primeira versão (no dia original da postagem), o acervo estava basicamente dividido entre os idiomas mais procurados, com material escrito principalmente em línguas ocidentais (no Google Drive), e idiomas mais “exóticos”, com material por vezes também escrito em línguas pouco faladas, e que por isso poucos brasileiros saberiam usar (no 4shared). Mas em 28 de novembro, após ter transferido boa parte do material do 4shared pro Google Drive e ter adicionado mais alguns idiomas, modifiquei bastante a lista, e uma das vantagens é que o material de um mesmo idioma, mesmo redigido em diversas línguas, em geral está agora reunido num mesmo lugar.

Em 21 de setembro de 2018, nova reforma: excluí as contas do 4shared, e todos os arquivos com livros de idiomas ficaram em duas das minhas contas do Google Drive. Desta forma, todos os 70 itens linguísticos podiam ser baixados clicando-se no respectivo link, e o arquivo podia ser aberto por qualquer internauta, sem necessidade de cadastro prévio.

Em 12 de janeiro de 2023, após alguns meses de trabalho, finalmente fiz a reforma definitiva com que sempre sonhei! Com muito mais espaço pago num único Drive e com uma internet decente, aboli a organização dentro dos incômodos e antiquados arquivos ZIP e criei pastas pra que qualquer pessoa pudesse entrar e baixar apenas o que lhe conviesse. Também adicionei mais arquivos aos que já estavam online e padronizei todos os nomes, iniciando-os com o sobrenome do autor ou organizador e depois com suas outras iniciais, além de apagar versões duplicadas e adicionar os arquivos de áudio quando localizáveis. Basta clicar no link, e a pasta pública abre! Quase todos os livros em línguas “raras”, sobretudo russo, belarusso e ucraniano, estão com os títulos traduzidos, exceto uma ínfima minoria.

Incluem-se arquivos poliglotas, tratando de certos ramos geográficos (como línguas nórdicas, línguas eslavas e línguas bálticas) ou de idiomas sem relação direta entre si. Alguns dos livros (vocabulários, guias de conversação) fazem comparações entre diversos idiomas próximos entre si (como as línguas românicas) ou totalmente distintos (como russo, persa e cazaque). Como alguns idiomas tinham bem pouco material, unifiquei-os em pastas temáticas de acordo com a genealogia, a geografia ou alguma outra analogia histórico-política ou lógica. Por isso, onde fosse o caso, substituí as antigas descrições de conteúdo e de tamanho por observações adicionais ou explicações sobre as línguas incluídas e sobre ocasionais critérios de junção.

Como vários idiomas conhecidos estão junto com outros, recomendo que passe os olhos por toda a lista. Muitos arquivos estão no formato DJVU, cujo leitor mais usado hoje é o WinDjView, disponível em qualquer bom site de softwares, mas se você não gosta desse formato, pode encontrar qualquer conversor de arquivos facilmente pelo Google. E por fim, o mais importante: se você tem alguma sugestão de material pra me indicar a fim de o adicionar, escreva-me sem falta pelo e-mail mandando o arquivo ou o link pra eu acessá-lo ou indicando seu título pra eu localizá-lo em outra plataforma.

Atenção: Pra quem achar mais prático e atrativo, sobretudo na hora de compartilhar, pode também acessar as mesmas pastas indicadas abaixo por meio de qualquer um dos seguintes links que oferecem idêntica lista:

ln.ki/linguas
ln.ki/idiomas

Nota (28/5/2020): Um amigo me indicou esta enorme pasta coletiva, além de tudo classificada de acordo com as famílias e subgrupos linguísticos. Eu não pude comparar quais livros daí eu já tenho ou não, mas vale a pena você também visitar e baixar o que quiser.
Nota (10/6/2023): A leitora Letícia, a quem agradeço muito, me indicou também esta pasta coletiva, que também tem subpastas com livros de outras áreas, quase todos em inglês. Também não procurei comparar o que eu já tinha ou não: fica como um adicional pra você.


Alemão (Hochdeutsch e Schwyzerdütsch)
Hochdeutsch significa literalmente “alto alemão”, mas é o nome dado ao alemão padronizado na Alemanha, com grande influência nos países germanófonos vizinhos (“alto alemão” mais propriamente são os dialetos falados mais ao sul, nas regiões montanhosas), e Schwyzerdütsch (ou com outras grafias) é o conjunto de dialetos falados oralmente na Suíça e que se distinguem amplamente tanto do alemão padronizado na Suíça quanto na Alemanha.

Árabe dialetal

Árabe padrão

Armênio (clássico, oriental e ocidental)
– O armênio clássico, também chamado grabar, foi a variante baseada na tradução da Bíblia feita pelo bispo Mesrop Mashtots, que também inventou o peculiar alfabeto. O grabar foi o padrão literário único até o século 19, mas como já não era mais compreendido por ninguém, foram codificados então dois novos padrões literários que pudessem conciliar os inúmeros dialetos: o ocidental, baseado no dialeto de Istambul e que seria a língua da diáspora em fuga do genocídio promovido pelos turcos em 1915; e o oriental, baseado no dialeto de Tbilisi (então o principal viveiro da cultura armênia do Cáucaso) e que, protegido pelo governo soviético, é hoje falado na República da Armênia e na diáspora russa e iraniana.

Búlgaro e macedônio
– Línguas eslavas meridionais, são as únicas eslavas que conservaram artigos definidos e que perderam os casos gramaticais nos substantivos e adjetivos. Até 1945, o macedônio era considerado um dialeto mais ocidental do búlgaro, mas com a integração da Macedônia à Iugoslávia, o idioma foi codificado, e apesar das várias diferenças (sobretudo a influência do servo-croata estatal), a Bulgária ainda o considera um dialeto.

Checo e eslovaco

Chinês (mandarim)
– Aborda-se apenas o padrão oficial codificado, baseado no dialeto de Pequim, e não outros dialetos do chinês nem outras línguas aparentadas faladas na China moderna.

Espanhol, galego e basco
– Algumas das principais línguas faladas na Espanha. O galego é o idioma mais próximo do português, enquanto até hoje não se definiu exatamente a origem e a genética do basco, apesar das semelhanças com vários outros idiomas geograficamente mais distantes. O catalão se encontra junto com o romeno.

Esperanto, interlíngua, mondial e “neolatino”
– Os idiomas auxiliares planejados, nome mais preciso do que “língua artificial/inventada” ou “língua internacional”, ainda são um objeto pouco estudado pela linguística científica. O mais conhecido de todos, embrenhado da ideologia universalizante do século 19, é o esperanto, mas muitos outros projetos surgiram depois. (E também antes, como o volapuque/volapük de Johann Martin Schleyer, que realmente fracassou e, portanto, nem considero aqui.) A interlíngua foi elaborada entre 1928 e 1951 por linguistas reunidos na International Auxiliary Language Association pra apresentar uma alternativa, considerada mais natural, ao esperanto, e o mondial, de concepção parecida, mas menos conhecido, foi concebido por um sueco. Pode-se baixar aqui o famoso e raro artigo de Alexander Gode, A Case for Interlingua. Por fim, o “neolatino” é um projeto de língua inter-românica em desenvolvimento, da subcategoria das “auxiliares zonais”, que vai muito além da interlíngua em encontrar um ponto comum entre os idiomas neolatinos (site oficial).

Estoniano, letão e lituano
– São as línguas faladas nos três países bálticos, que no passado pertenceram ao Império Russo e chegaram a ser anexados pela URSS. Porém, o estoniano é mais próximo do finlandês, enquanto o letão e o lituano são consideradas as línguas mais próximas do que seria o antigo indo-europeu.

Finlandês e húngaro
– Ambos pertencem ao mesmo ramo fino-úgrico da família urálica, mas a grupos diferentes (fino-permiano pro finlandês e úgrico pro húngaro).

Francês (padrão e Québec)

Georgiano, checheno e ossetiano
– São línguas faladas no Cáucaso (sul da Rússia e norte da Geórgia), mas enquanto o ossetiano é uma língua indo-europeia, georgiano e checheno pertencem cada um a famílias diferentes.

Gótico e eslavônio
– O gótico foi a única língua germânica oriental que deixou traços, por causa da tradução da Bíblia num alfabeto bem peculiar feita pelo bispo godo Wulfila (Úlfilas), mas que teve de ser toda reconstituída pelos pesquisadores modernos. O eslavônio é uma língua essencialmente escrita, portanto há apenas bibliografias, manuais, gramáticas, léxicos, dicionários e seletas textuais; há ainda um breve manual sobre a letra cirílica iat (Ѣ ѣ), abolida da ortografia russa em 1918. Suas variantes também são chamadas eslavo antigo (a língua codificada pelos santos Cirilo e Metódio) e eslavo eclesiástico (a evolução posterior dessa língua, já com influências do russo). Também se encontram aqui a Bíblia em eslavo eclesiástico, o Codex Zographensis, o Evangelho de Asseman (nos alfabetos cirílico e glagolítico), o Evangelho de Ostromir e um álbum de letras iniciais artísticas. Bônus: Um artigo em português (de Lucas Simone) sobre o eslavo oriental antigo (pai do russo, ucraniano e belarusso), e outro artigo em inglês (de Morris Halle) sobre conjugação verbal no eslavo antigo e no russo antigo!

Grego (clássico, koiné, katharévousa e moderno)
– Em geral, ensina-se como “grego clássico” nas faculdades de Letras uma variante cultivada do dialeto ático usado pelos grandes autores dos séculos 6 a 4 AEC, enquanto a koiné (isto é, “comum, popular”) é sua forma simplificada, difundida como língua franca pelo Mediterrâneo durante o período helênico (pós-clássico). Popularizada pelo Império Romano, a koiné era a língua do Novo Testamento (com forte influência hebraica) e ainda hoje é usada pelos cristãos ortodoxos gregos. A katharévousa (isto é, “limpa, pura”) foi uma variante cultivada no século 19 pelos intelectuais com forte afluxo clássico, na tentativa de impô-la oficialmente ao novo Estado nacional. Porém, era muito distante da língua popular, chamada dimotikí (isto é, “popular”), que só foi alçada ao nível de língua oficial, já com grande influência da katharévousa, no início da década de 1980. Esse compromisso gerou o grego literário moderno, mas apesar de não ter mais nenhum papel cultural nem ser hoje entendida pela maioria dos gregos, incluí algumas gramáticas de katharévousa (nem sempre traduzidas) como curiosidade histórica.

Haitiano e cabo-verdiano
– Pertencem à categoria das chamadas “línguas crioulas”, que se desenvolveram a partir de idiomas europeus (francês no Haiti e português em Cabo Verde), mas receberam várias outras influências e simplificaram brutalmente sua fonética, morfologia e sintaxe, de forma a não serem mais reconhecíveis pelos falantes das línguas europeias. Em geral são consideradas como variantes “degeneradas” das línguas europeias, mas são idiomas de pleno direito, sendo o haitiano a língua crioula mais falada no mundo e a mais falada do Haiti (onde poucos de fato falam francês, a não ser na elite), tendo recebido um tratamento cada vez mais profissional e valorativo a partir do século 21.

Hebraico, aramaico (antigo e moderno) e iídiche
– Hebraico e aramaico são as principais línguas do grupo semítico setentrional da família afro-asiática, enquanto árabe, amárico e tigrínia (nativos da Etiópia e da Eritreia) são semíticas meridionais, ambos os grupos vindos do ramo semítico. O aramaico ainda é usado por várias igrejas cristãs orientais (não ortodoxas) como língua litúrgica, enquanto evoluções simplificadas e chamadas em geral “neo-aramaico” ainda se encontram no Oriente Médio e, sobretudo, na diáspora, como a caldeia, na qual predomina o chamado suret(h). O iídiche, predominante entre os judeus da Europa até o Holocausto, é aparentado aos dialetos alemães meridionais, mas tem forte influência hebraica (a começar pela escrita), russa e outras.

Hindi, sânscrito e romani

Inglês, holandês, africâner e luxemburguês
– Assim como o alemão, todas são consideradas línguas germânicas ocidentais, mas o inglês pertence ao subgrupo anglo-frísio, e as outras três, ao subgrupo “weser-renano”.

Italiano, línguas regionais e talian
– O talian é uma língua falada principalmente no Rio Grande do Sul, no Espírito Santo e em partes de São Paulo, que mistura a língua vêneta (e um pouco de outras do norte da Itália) dos italianos que imigraram no século 19 com o português brasileiro. Brasil Talian, de Jaciano Eccher, é o blog mais conhecido que trata da língua.

Japonês, coreano e mongol
– Colocadas juntas por mera proximidade geográfica, pois pertencem a famílias distintas.

Latim (clássico e eclesiástico)
– O latim está longe de ser ou ter sido uma língua única. O que estudamos hoje, sobretudo nas faculdades de Letras, como “latim clássico” é uma língua muito cultivada e artificial, cuja expressão literária se limita ao século 1 AEC e que pouco tem a ver com a língua falada, mesmo entre as elites, chamada “latim vulgar”. Antes, mesmo o latim literário era um tanto diferente, e depois começou a sofrer crescente influência do grego, distanciando-se da variante “clássica” ao longo dos séculos mesmo na literatura. O latim levado aos confins do império pelos soldados era o vulgar, e foi dele, e não do clássico, que nasceram as línguas românicas, misturadas a substratos locais e que só a partir do Renascimento seriam influenciadas a posteriori pelo latim clássico revivido. Altamente simplificado pra fins de evangelização, o latim eclesiástico é mais próximo da antiga língua vulgar (por isso, mais fácil de lermos hoje), e a tradução da Bíblia por são Jerônimo tem forte influência da sintaxe hebraica (como o uso constante de “e... e...” no lugar de orações subordinadas). Porém, em formas muito distintas, o latim continuou como língua burocrática e científica da Europa até o século 18.

Pashto
– Língua indo-europeia majoritária no Afeganistão, grafada com uma variante da escrita perso-arábica e também conhecida como “pachtó”, “pastó” (aportuguesado) ou simplesmente “afegão”. Em todo caso, na própria língua o “o” final é tônico.

Persa, tajique, albanês e curdo kurmancî
– Persa (iraniano) e tajique, assim como o dari no Afeganistão, são três padrões literários da mesma língua persa, chamada de formas diferentes em cada país. O curdo, mais ou menos aparentado ao persa, tem vários dialetos, e o kurmancî, que usa o alfabeto latino, é o mais falado. O albanês, como os anteriores, faz parte da grande família indo-europeia, mas é considerado um ramo à parte.

Polonês

Romeno e catalão
– Colocados juntos por mera profusão de semelhanças: em geral, quem estuda um se interessa muito rapidamente pelo outro, devido a várias palavras e traços fonológicos e gramaticais compartilhados.

Russo
– Contém também os quatro volumes, dentro das Obras completas, que compõem o romance Guerra e paz de Lev Tolstoi, editados de 1937 a 1940 em Moscou pela Gosizdat.

Sérvio-croata-bósnio e esloveno
– Sérvio, croata e bósnio (às vezes também “montenegrino”) recebem esses nomes de acordo com o país, mas são variantes de uma mesma língua policêntrica (como o persa e o português) que na Iugoslávia comunista se tentou sintetizar sob o nome “servo-croata”. A variante bósnia, na verdade, é muito próxima da croata, embora algumas regiões se identifiquem etnicamente com a Sérvia. Pra evitar alusões diretas a etnias, usa-se muito no meio científico a sigla “BCS” (referente aos três citados acima).

Suaíle, somali, malgaxe, iorubá e umbundu
– Idiomas nativos de e falados em lugares diferentes da África, mas alguns deles pertencentes a diferentes famílias. O iorubá ainda hoje é muito importante pro candomblé e pra cultura afro-brasileira em geral.

Sueco, norueguês, dinamarquês e islandês
– As línguas germânicas setentrionais (ou “nórdicas”), exceto por algumas muito pouco faladas ou quase extintas.

Turco, azerbaijano, cazaque e tártaro
– Todas elas línguas da família túrquica, mas o turco e o azerbaijano (impropriamente chamado “azeri” e muito parecido com o turco antes da reforma ordenada por Atatürk) são do ramo oghuz, e o tártaro e o cazaque, do ramo kipchak.

Ucraniano e belarusso
– Assim como o russo (e o russino, antes chamado ruteno, se considerado uma língua à parte do ucraniano), fazem parte do grupo oriental do ramo eslavo das línguas indo-europeias, mas elas são mais próximas entre si do que do russo, e compartilham muito léxico com o polonês. De fato, o russo literário moderno tem influência de muitas línguas orientais, como o turco e o tártaro, e ocidentais, como o francês, bem como do eslavônio, que era a língua escrita da burocracia antes da formação do Império Russo (1721).

Outras eslavas e abordagens contrastivas
– Conheça também a língua intereslava (Interslavic language), um projeto quase completamente desenvolvido de idioma auxiliar planejado que seria um verdadeiro “ponto médio” entre todos os idiomas eslavos modernos. Ela seria, portanto, inteligível a qualquer eslavo à primeira vista, como seria a interlíngua (em algum grau) ou o neolatino a qualquer falante românico. Atenção: existe um antigo projeto chamado Slovio, que ocupa o domínio “interslavic.org” e não deve ser levado em conta, pela falta de profissionalismo e tentativa de sabotar projetos similares!

Outras românicas e abordagens contrastivas

Outras, ameríndias e poliglotas
– Esta pasta guarda material sobre algumas línguas que não se encaixam nas outras acima, algumas muito pouco faladas ou pouco conhecidas, ou que envolve várias línguas ao mesmo tempo. Encontram-se também línguas dos povos nativos da América (“indígenas”), sobretudo Central e do Sul.