domingo, 31 de agosto de 2014

Último discurso público de Stalin


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Stalin pronunciando seu discurso ao 19.º Congresso do PCUS.


Introdução (Erick Fishuk)

Durante as décadas de 1940 e 1950, quando Iosif Stalin, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), estava no auge de seu poder, suas obras e concepções teóricas eram assimiladas por todos os outros Partidos Comunistas do mundo e tomadas como orientação infalível pra ação política e a produção intelectual. A Editorial Vitória, pertencente ao Partido Comunista Brasileiro (PCB, que ainda se chamava “do Brasil”), editou vários desses escritos em português, mas infelizmente traduzidos em geral das versões espanholas ou em outras grandes línguas ocidentais.

O 20.º Congresso do Partido soviético, em 1956, mudou completamente esse panorama, quando Nikita Khruschov, por meio de seu famoso “relatório secreto”, demonizou Stalin, seu antecessor falecido três anos antes, por ter cometido terríveis abusos quando governava. As obras do até então “guia genial dos povos” sofreram um grave declínio em sua publicação no mundo inteiro e hoje são geralmente encontradas apenas velhas edições em sebos ou em bibliotecas universitárias. A presente tradução abre uma pequena brecha nesse silêncio, apresentando, provavelmente pela primeira vez em língua portuguesa, o breve discurso que Stalin pronunciou a 14 de outubro de 1952 na sessão de encerramento do 19.º Congresso do Partido, o último que o líder faria em sua vida.

Nesta alocução, Stalin reafirma a mais recente orientação do movimento comunista internacional pró-soviético de liderar os movimentos que lutavam pela paz mundial e de defender as chamadas “liberdades democrático-burguesas”, que estariam sendo esmagadas pela própria burguesia pra manter sua dominação de classe.

Essa linha relativamente moderada é resultado direto da política de distensão mundial (também chamada de détente) protagonizada pelos EUA e pela URSS durante a segunda metade da década de 1950 e durante boa parte dos anos 1960, a qual tinha por objetivo estratégico uma convivência minimamente pacífica entre as duas superpotências da época pra prevenir um confronto militar direto, cujo resultado poderia ser catastrófico pra humanidade, dado o enorme poder de destruição do arsenal bélico dos dois lados.

O momento também era de otimismo pra o comunismo mundial, como se nota bem no documento, pois estava ocorrendo o primeiro congresso do PCUS após a Segunda Guerra Mundial e após a constituição inédita de um bloco mundial de países socialistas, reavivando-se, assim, a esperança de que o socialismo pudesse triunfar na maior parte do planeta, tanto nos países industrializados quanto nas novas nações recém-saídas do domínio colonial europeu.

O discurso, pronunciado a 14 de outubro de 1952 e reproduzido, de forma editada, na edição do jornal Pravda do dia seguinte, também aparece no tomo 16 das Sochinenia (Obras) de Stalin, cuja edição mais nova, até onde eu saiba, é da Pisatel (Moscou), 1997, pp. 227-229, e está reproduzido nesta página. Assista também à versão legendada desse discurso:


Camaradas!

Em nome de nosso congresso, permitam-me agradecer, pelos amistosos cumprimentos, (2) pelos votos de sucesso e pela confiança, a todas as agremiações e partidos irmãos que enviaram moções de saudação ou cujos representantes honraram-no com sua presença.

Para nós, é especialmente valiosa essa confiança, indicativa do empenho em apoiar nosso partido nas lutas por um futuro radiante para os povos, contra a guerra e pela manutenção da paz.

Seria um erro pensar que nosso partido, tendo adquirido enorme força, não mais precisasse de apoio. Isso é falso. Nosso partido e nosso país sempre precisaram e precisarão da confiança, da simpatia e do apoio dos povos irmãos estrangeiros.

A peculiaridade desse apoio consiste em que cada partido irmão, ao apoiar as aspirações pacifistas de nosso partido, demonstra também estar apoiando a luta de seu próprio povo pela manutenção da paz. Em 1918-1919, durante a agressão armada da burguesia inglesa à União Soviética, (3) o operariado inglês, ao organizar a luta contra a guerra sob o slogan “Tirem as mãos da Rússia”, apoiou, antes de tudo, a luta de seu povo pela paz, e só depois a União Soviética. O camarada Thorez ou o camarada Togliatti, (4) ao declararem que seus povos não guerrearão contra os povos da União Soviética, (5) estão apoiando, antes de tudo, os operários e camponeses da França e da Itália que lutam pela paz, e só depois as aspirações pacifistas soviéticas. A peculiaridade desse apoio mútuo explica-se pelo fato de os interesses de nosso partido não contradizerem, mas, pelo contrário, confundirem-se com os dos povos amantes da paz. No que concerne, pois, à União Soviética, seus interesses são totalmente inseparáveis da causa da paz mundial.

Naturalmente, nosso partido não pode permanecer em dívida com os partidos irmãos e deve também, por sua vez, apoiar a eles e a seus respectivos povos na luta por sua libertação e pela manutenção da paz. Como se sabe, é assim mesmo que ele procede. Após nosso partido ter conquistado o poder em 1917 e ter tomado medidas efetivas para liquidar o jugo capitalista e latifundiário, os representantes dos partidos irmãos, admirados pela bravura e pelos êxitos de nosso partido, conferiram-lhe o título de “Brigada de Choque” do movimento revolucionário e operário mundial. Com isso, eles manifestaram a expectativa de que os êxitos dessa “Brigada de Choque” aliviassem a situação dos povos afligidos pelo jugo do capitalismo. Penso que nosso partido correspondeu a essas expectativas, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética, destroçando a tirania fascista alemã e japonesa, libertou os povos da Europa e da Ásia do perigo da escravidão fascista.

Obviamente, era muito difícil desempenhar essa honrosa função enquanto havia uma única “Brigada de Choque”, obrigada a exercer seu vanguardismo quase na solidão. Mas isso é passado. Hoje a situação é completamente outra: tendo surgido, da China e da Coreia até a Checoslováquia e a Hungria, novas “brigadas de choque” na forma de países democrático-populares, a luta tornou-se mais fácil para nosso partido, e até mesmo o trabalho seguiu mais alegre.

Merecem atenção especial os partidos comunistas, democráticos ou operário-camponeses que ainda não chegaram ao poder e continuam atuando sob o tacão das leis draconianas burguesas. Obviamente, para eles é mais difícil atuar. Entretanto, para eles não é tão difícil atuar quanto era para nós, comunistas russos, nos tempos do tsarismo, quando os mínimos progressos eram fortemente criminalizados. Todavia, os comunistas russos resistiram, não temeram as dificuldades e alcançaram a vitória. A mesma coisa ocorrerá a esses partidos.

Por que, em todo caso, para esses partidos não será tão difícil atuar, em comparação com os comunistas russos do período tsarista?

Em primeiro lugar, porque eles têm diante dos olhos os exemplos da luta e dos êxitos da União Soviética e dos países democrático-populares. Eles podem, portanto, aprender com os erros e acertos desses países e, assim, facilitar sua atuação.

Em segundo lugar, porque a própria burguesia, principal inimiga do movimento emancipador, mudou drasticamente, tornou-se mais reacionária, perdeu seus vínculos com o povo e, assim, enfraqueceu-se. Naturalmente, essa situação também deve facilitar a atuação dos partidos revolucionários e democráticos.

Antes, a burguesia permitia-se posar de liberal, defendia as liberdades democrático-burguesas e, assim, angariava popularidade junto às massas. Hoje não resta um vestígio sequer desse liberalismo. Não existem mais as assim chamadas “liberdades individuais”: os direitos individuais só são reconhecidos aos donos do capital, e os demais cidadãos são considerados matéria humana bruta, útil apenas para ser explorada. O princípio da igualdade de direitos entre as pessoas e as nações foi pisoteado e substituído pelo princípio da plenitude de direitos a uma minoria de exploradores e de sua ausência à maioria explorada dos cidadãos. A bandeira das liberdades democráticas burguesas foi jogada fora. Penso que cabe a vocês, representantes dos partidos comunistas e democráticos, recolhê-la e conduzi-la adiante, se vocês querem atrair para si a maioria do povo. Não há mais ninguém que possa fazê-lo.

Antes, a burguesia julgava-se líder das nações, cujos direitos e independência defendia e colocava “acima de tudo”. Hoje não resta um vestígio sequer desse “princípio nacional”: a burguesia vende por dólares os direitos e a independência das nações. A bandeira da independência e da soberania nacionais foi jogada fora. Não há dúvida de que cabe a vocês, representantes dos partidos comunistas e democráticos, recolhê-la e conduzi-la adiante, se vocês querem figurar como os patriotas de seus países e tornar-se a força dirigente das nações. Não há mais ninguém que possa fazê-lo.

É assim que a situação apresenta-se atualmente.

Naturalmente, todas essas circunstâncias devem facilitar a atuação dos partidos comunistas e democráticos que ainda não chegaram ao poder.

Há, portanto, todos os motivos para contar-se com o êxito e a vitória dos partidos irmãos nos países dominados pelo capital.

Vivam nossos partidos irmãos!

Saúde e vida longa a seus líderes!

Viva a paz entre os povos!

Abaixo os incendiários de guerra!


Notas (clique pra voltar ao texto)

(1) “KPSS” é a sigla russa de “Kommunisticheskaia partia Sovetskogo Soiuza”, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que assim passava a chamar-se justamente neste congresso.

(2) “Pelos amistosos cumprimentos”: no original em russo, “za druzheskie privetstvia”. No discurso, Stalin profere “za bratskie privetstvia” (“pelos fraternais cumprimentos”).

(3) Referência à Guerra Civil Russa que, de modo geral, durou de 1918 a 1921, quando exércitos nacionais e estrangeiros buscaram derrubar o poder bolchevique instalado em 1917.

(4) Maurice Thorez e Palmiro Togliatti, então secretários-gerais, respectivamente, do Partido Comunista Francês (PCF) e do Partido Comunista Italiano (PCI).

(5) “Contra os povos da União Soviética”: no original em russo, “protiv narodov Sovetskogo Soiuza”. No discurso, Stalin profere “protiv sovetskikh narodov” (“contra os povos soviéticos”).



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Atenção à teoria (carta de Trotsky)


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Introdução (Erick Fishuk)

Há uma escassez de textos de Trotsky, líder do Exército Vermelho durante a guerra civil russa de 1918-1921, anteriores a 1927 traduzidos em português. Quero começar a suprir tal falta agora, com esta tradução que fiz, aparecida pela primeira vez em português. De fato, esta breve carta, como outros escritos, estão reunidos nas Obras de Trotsky que pararam de ser publicadas na URSS em 1927, quando ele caiu em desgraça perante o regime de Stalin. A relação completa desses escritos em russo, organizados por tomo e por ordem alfabética de título, pode ser acessada aqui.

A carta intitulada “Atenção à teoria” (no original em russo, “Vnimanie k teorii”) foi originalmente enviada à redação da revista soviética Pod znamenem marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo) e publicada em seu número 1-2 de janeiro-fevereiro de 1922, e posteriormente, em 1927, nas Sochinenia (Obras) de Trotsky, série VI (“Problemas da cultura”), tomo 21 (“Cultura do período de transição”). A referência mais famosa à carta se encontra no artigo “Sobre o significado do materialismo militante” (página em russo), de Vladimir Lenin, publicado no número 3 da referida revista e reproduzido no tomo 45 da 5.ª edição de suas Obras completas de 1986 (em português, ainda não digitalizado, no tomo 3 das Obras escolhidas em três tomos da Avante/Progresso e reimpressa no Brasil pela Alfa-Omega), em que corrobora todas as observações de Trotsky sobre a função da revista no contexto social soviético do início dos anos 1920.

A carta de Trotsky inicialmente elogia a fundação da revista filosófica e socioeconômica Pod znamenem marksizma (1) e ressalta como estava sendo fácil pra juventude da época, formada sob os auspícios do Estado soviético recém-fundado, receber pronta a doutrina marxista, quando os velhos militantes a haviam assimilado com muita dificuldade, sendo perseguidos pelo tsarismo e refinando seu conhecimento com a prática real de lutas. Trotsky também destaca a importância de se enraizar fortemente a formação materialista entre os jovens, especialmente os proletários, pra que as turbulências políticas não desorganizassem suas mentes nem os atraíssem pra doutrinas contrárias ao marxismo. Por fim, apologiza a destruição das velhas concepções mágicas do mundo e parabeniza a fundação da revista, esperando que ela servisse ativamente nesse trabalho educacional revolucionário entre a juventude soviética.

Foram mantidas as notas explicativas contidas nas Obras em russo, com sua numeração original, acrescidas de observações do tradutor em casos de necessidade. Uma das inúmeras cópias do original em russo (esta fiel à impressão de 1927) pode ser lida aqui. Há também uma tradução em inglês, provavelmente com algumas passagens duvidosas, publicada no site The Platypus Affiliated Society e reproduzida também no blog The Charnel House.

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Caros camaradas!

A ideia da publicação de uma revista que introduzisse a juventude proletária de vanguarda à esfera da concepção materialista do mundo parece-me extremamente valiosa e fecunda.

A geração mais velha de operários comunistas que desempenha hoje um papel dirigente no Partido e no país despertou para a vida política consciente há 10, 15, 20 anos ou mais. Sua reflexão iniciava o trabalho crítico com a polícia do tsar, com o apontador e o contramestre, subia até o tsarismo e o capitalismo e em seguida, no mais das vezes na prisão ou no exílio, orientava-se para questões de filosofia da história e do conhecimento científico do mundo. Assim, antes de atingir as questões mais importantes da explicação materialista do desenvolvimento histórico, o proletário revolucionário já conseguira reunir certo número de conclusões gerais que se expandiam cada vez mais do particular ao geral, baseado em sua própria experiência real de lutas. O jovem operário de hoje desperta no ambiente do Estado soviético, que é por si só uma crítica viva do velho mundo. Aquelas conclusões gerais, às quais a geração mais velha de operários chegava com muito custo e que se fixavam na consciência com os pregos firmes da experiência pessoal, atualmente são passadas aos operários da geração mais nova de forma pronta, diretamente das mãos do Estado em que vivem e do Partido que o dirige. É claro que isso representa um gigantesco passo adiante no sentido da criação dos requisitos para a futura educação política e teórica dos trabalhadores. Mas ao mesmo tempo, nesta etapa histórica incomparavelmente mais avançada, atingida pelo trabalho das gerações mais velhas, surgem novas tarefas e dificuldades para as jovens gerações.

O Estado soviético é uma negação viva do velho mundo, de sua ordem social, de suas relações pessoais e de suas concepções e crenças. Mas ao mesmo tempo esse Estado ainda está repleto de contradições, de falhas, de incoerências, de uma efervescência confusa – numa palavra, de fenômenos em que os restos do passado se entrelaçam com os germes do futuro. Numa época tão crucial, crítica e instável como a nossa, a educação da vanguarda proletária exige bases teóricas firmes e fortes. Para que os grandiosos acontecimentos, os poderosos ascensos e refluxos e as rápidas mudanças de tarefas e métodos no Partido e no Estado não desorganizem a mente do jovem operário nem quebrantem sua vontade mesmo antes de ele iniciar seu trabalho responsável independente, é indispensável munir seu pensamento e sua vontade com o método da concepção materialista do mundo.

Munir a vontade, e não somente o pensamento, dizemos, porque em tempos de enormes abalos mundiais, mais do que nunca, nossa vontade só se fortalece e se torna indestrutível sob a condição de apoiar-se na compreensão científica das condições e causas do desenvolvimento histórico.

Por outro lado, justamente em tempos cruciais como esses, especialmente o nosso, se ele arrastar-se longamente, isto é, se o ritmo dos eventos revolucionários no Ocidente mostrar-se mais vagaroso do que o esperado, potencializam-se ao extremo as tentativas das diversas escolas e seitas filosóficas idealistas e semi-idealistas de apoderar-se da consciência da juventude operária. Pegas de surpresa pelos acontecimentos – sem a rica experiência prévia da prática nas lutas de classe –, as mentes dos jovens operários podem mostrar-se indefesas às diversas doutrinas idealistas, que não são nada mais do que a tradução dos dogmas religiosos para uma linguagem pseudofilosófica. Todas essas escolas, apesar das diversas denominações idealistas, kantianas, (2) empiriocriticistas (3) e outras, no fim das contas convergem ao afirmar que a consciência, o pensamento, a cognição precede a matéria, e não o contrário.

A missão da educação materialista da juventude operária consiste em revelar-lhe as leis fundamentais do desenvolvimento histórico, sendo a mais importante delas aquela segundo a qual a consciência humana não constitui um processo psicológico livre e independente, mas uma função da base material econômica, isto é, a ela serve e por ela é determinada.

A subordinação da consciência aos interesses e relações de classe, e destes à organização econômica, torna-se mais notável, aberta e rude apenas em tempos revolucionários, em cuja insubstituível experiência nós devemos ajudar a juventude operária a fixar em suas consciências os fundamentos do método marxista. Mas isso não é tudo. As origens históricas e econômicas da própria sociedade humana moderna encontram-se no mundo histórico-natural. O homem moderno deve ser visto como o elo de toda uma evolução que começa na primeira célula orgânica, gerada, por sua vez, no laboratório da natureza, onde atuam as propriedades físicas e químicas da matéria. Quem aprendeu a examinar com olhos tão límpidos o passado do mundo, aí inclusas a sociedade humana, os reinos animal e vegetal, o Sistema Solar e os infinitos sistemas ao seu redor, não se disporá a procurar as chaves para o conhecimento dos segredos do Universo em decrépitos livros “sagrados” e suas fábulas filosóficas de uma infantilidade primária. E quem não reconhece a existência de forças místicas celestes capazes de interferir na vida pública e privada e de orientá-la para esta ou aquela direção, quem não acredita que a miséria e o sofrimento serão altamente recompensados em outro mundo, tem os pés mais firmes e fortes na terra e buscará nas condições materiais da sociedade, com mais coragem e confiança, as bases de seu trabalho criador. A concepção materialista do mundo não só abre uma ampla janela para todo o Universo, mas também fortalece a vontade. Ela é a única que humaniza o homem moderno, o qual ainda depende, é claro, das rígidas condições materiais, mas já sabe como superá-las e participa conscientemente da construção de uma nova sociedade fundada simultaneamente na mais elevada técnica e na mais elevada solidariedade.

Dar uma educação materialista à juventude proletária é nossa maior missão. Faço votos sinceros de sucesso a vossa revista desejosa de tomar parte nesse trabalho educacional.

Saudações comunistas e materialistas,

L. Trotsky

27 de fevereiro de 1922



Notas da redação das Obras de Trotsky

(1) [Nota 72 das Obras, inserida pouco antes do início do texto] Pod znamenem marksizma [Sob a Bandeira do Marxismo] – revista filosófica e socioeconômica mensal publicada pela editora do jornal Pravda e cujo número 1-2 saiu em março de 1922. A revista tem como objetivo [ela foi publicada até junho de 1944 – N.T.] a reunião dos marxistas que sustentam a consequente visão materialista em questões fundamentais de filosofia, ciências sociais e ciências naturais. No número 3 (março de 1922) apareceu o artigo de Lenin “Sobre o significado do materialismo militante” [trechos extraídos da tradução portuguesa das Obras Escolhidas de Lenin publicadas pela Editora Progresso e pela Editora Avante – N.T.]: ressaltando ao início que “O camarada Trotsky disse já tudo o que é essencial, e disse muito bem, sobre as tarefas gerais da revista [...] no n.º 1-2”, Lênin diz em seguida que a revista “deve ser, em primeiro lugar, um órgão combativo no sentido do desmascaramento e da perseguição incansável de todos os atuais ‘lacaios diplomados do clericalismo’ [filósofos idealistas – nota da redação das Obras de Trotsky], quer atuem na qualidade de representantes da ciência oficial quer na qualidade de franco-atiradores que a si próprios se chamam publicistas ‘democratas de esquerda ou ideologicamente socialistas’ [...] deve dedicar muito espaço à propaganda ateísta, à recensão da literatura respectiva, e corrigir as enormes insuficiências do nosso trabalho estatal neste domínio.” “É especialmente importante”, prossegue Lenin, “utilizar livros e brochuras que contenham muitos fatos concretos e comparações que mostrem os laços entre os interesses de classe e as organizações de classe da burguesia moderna e as organizações das instituições religiosas e da propaganda religiosa.” Aprovando totalmente a linha adotada pela redação da revista de aproveitar o trabalho dos materialistas não comunistas, Lenin ressalta que “Além da aliança com os materialistas consequentes que não pertençam ao partido dos comunistas, não é menos importante, mas talvez ainda mais, para o trabalho que o materialismo militante deve realizar, a aliança com os representantes das ciências modernas [...]”. Finalizando, Lenin conclama os colaboradores da revista a organizar “o estudo sistemático da dialética de Hegel do ponto de vista materialista, isto é, da dialética que Marx aplicou praticamente [...]”.

(2) [Nota 73 das Obras] Kant – ver tomo 20, nota 76. [A referida nota, pertencente ao artigo “Russki Darvin” (“O Darwin russo”), resume brevemente as teses das principais obras de Kant e cita os nomes de alguns críticos marxistas de suas ideias – N.T.]

(3) [Nota 74 das Obras] Empiriocriticismo – corrente filosófica fundada pelo filósofo alemão Richard Avenarius e pelo físico austríaco Ernst Mach, independentes entre si, nos anos 1890 e 1900 (somente Avenarius emprega o termo “empiriocriticismo” para designar suas posições). Essa corrente tinha como objetivo “superar” a oposição entre materialismo e idealismo e retornar a uma visão “natural” do mundo, mas na prática ela apenas reaviva, num formato renovado, as velhas falácias idealistas dos filósofos ingleses do século XVIII Berkeley e Hume. Em sua época, o empiriocriticismo exerceu grande influência sobre vários marxistas russos ([Aleksandr] Bogdanov, [Anatoli] Lunacharski, [Pavel] Iushkevich e outros) que tentaram conciliar as visões de Avenarius e Mach com o materialismo econômico. Essas tentativas sofreram fortes críticas da parte de [Georgi] Plekhanov, Lenin, [Abram] Deborin, [Liubov] Axelrod e outros.


domingo, 17 de agosto de 2014

Por que Zamenhof escolheu “kurba”?


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(Este pequeno ensaio de Bernard Golden, primeiramente escrito em esperanto, trata do interessante assunto das palavras dessa língua que são parecidas com palavrões ou termos semelhantes de línguas étnicas, o que gera muito constrangimento entre vários esperantistas. O texto lança uma luz sobre o desafio com que se deparam os planejadores de línguas auxiliares ‒ Ludwik Zamenhof (1859-1914), no caso do esperanto ‒ ao querer agradar a todo o seu presumido público, o que quase sempre resulta em fiasco. O ensaio foi publicado originalmente na revista La Ondo de Esperanto, n. 1 (26), 1996, e o original pode ser lido aqui. As traduções explicativas mais breves estão entre chaves, e as notas mais complexas estão ao final.)


Os morfemas não internacionais do esperanto

No terceiro volume do Etimologia vortaro de Esperanto (EVE) [Dicionário etimológico de esperanto], no artigo sobre a palavra kurba [curvo], Ebbe Vilborg afirma que esse morfema do esperanto se baseia no francês courbe (pron. “cúrrb”) e comenta: “Não está claro por que Zamenhof preferiu a letra -b- à letra -v-, o que tornaria a palavra mais internacional”. Realmente, não resta qualquer dúvida sobre a maior internacionalidade da ortografia kurva, pois existem palavras similares ou aparentadas em línguas como o inglês (curved), o alemão (Kurve), o espanhol, o italiano e o português (curvo) e o latim (curvus). Além disso, a forma anômala courbe do francês convive com as formas curviligne (curvilíneo) e curvimètre (curvímetro), ambas com v, e não com b. Por que Zamenhof não escolheu o modelo mais internacional? Como responder a essa pergunta que deixou perplexo o Dr. Vilborg?


Outras palavras do esperanto com formas não internacionais

A palavra kurba não é a única do esperanto que não tem uma forma internacional. O autor do EVE observa com razão que ingredienco é baseada apenas no alemão Ingredienz (pron. “ingredients”) (?), devendo ser ingrediento, conforme o inglês ingredient, o francês ingrédient e o espanhol, italiano e português ingrediente. Um terceiro desvio da internacionalidade se encontra na palavra ĉevalo, que deveria ser kavalo dada a maior ocorrência do radical kaval-, como no francês cavale (égua), (1) no italiano cavallo, no português cavalo e também no inglês cavalcade, cavalry e no francês cavalerie. Suponho que Zamenhof foi influenciado pela palavra jeval (pron. “cheval”) do volapuque, que retransmite a pronúncia do francês cheval (pron. “ch(e)val”).

É evidente, portanto, no caso das três palavras mencionadas acima, que Zamenhof desobedeceu ao princípio da máxima internacionalidade que ele mesmo define na seção II do Primeiro Livro (2):

[…] quando as palavras tinham formas diferentes em várias línguas, escolhi aquelas comuns a duas ou três das principais línguas europeias ou aquelas que pertencem a uma só língua, mas também são utilizadas por outros povos [...]

A maldosa eficácia dos tabus linguísticos

De fato, estou lidando aqui com uma espécie de ovo de Colombo linguístico. Há muitos anos já havia descoberto por que Zamenhof voluntariamente evitou a forma internacional kurva e escolheu kurba. Trata-se de um tabu linguístico. De tempos em tempos, esperantistas de diversas origens atentam para algumas palavras do esperanto cuja pronúncia as faz lembrarem palavras que em suas línguas maternas têm um significado negativo ou até obsceno. Tais palavrões são usualmente evitados em conversas comuns. Um exemplo na língua russa é dado por Aleksei Biriulin em seu artigo Kial oni nin ne ŝatas [Por que não gostam da gente] (La Ondo de Esperanto, 1992, n. 4, pp. 17-21). Na página 21, o autor descreve uma situação numa lanchonete em que algumas mulheres bebiam suco e várias vezes “diziam alegres: ‘Ah, suco, bom suco, suco de maçã, suco, suco, suco... suco, ah, que suco”. (3) O problema estava na similaridade do som da palavra em esperanto [“suko”, que significa “suco”] com o substantivo russo suka, que significa “cadela, vadia”. Ora, neste e em outros casos, Zamenhof não teve tanta sensibilidade para prever homofonias acidentais entre palavras do esperanto e palavras de baixo calão das línguas étnicas. Ele certamente conhecia a palavra russa suka, mas isso não o incomodou. Porém, ele não sabia inglês a fundo, por isso deixou passar a homofonia entre farti [passar, estar de saúde] e a palavra inglesa fart (peidar). Da mesma forma, ele não viu que peti [pedir] se parece com o verbo francês péter (também “peidar”). Quando esperantistas britânicos alertaram o autor da língua sobre a palavra farti, ele escreveu à revista The British Esperantist em 1907:

Já que o verbo farti é tão desagradável aos ouvidos ingleses, aconselho então que em seu lugar usemos (principalmente na Inglaterra) a palavra stati, que se encontra no Universala Vortaro [Dicionário Universal] e pode muito bem substituí-la.

Por exemplo: “Kiel vi statas” (no lugar de “Kiel vi fartas” [“Como vai você?”]). Quando o sentido não ficar totalmente claro, pode-se usar também a palavra mais precisa “sanstati” [estar de saúde].

(Lingva Respondo 35, 6.ª edição, 1962, p.19.) (4)

Nos primeiros tempos, alguns francófonos propuseram a substituição de peti por rogi (do latim rogare). No final, nenhuma das duas propostas foi acolhida pelo público esperantista, e assim britânicos e franceses fartas e petas sem problemas! (5)


A palavra polonesa “kurwa

Durante sua infância em Białystok e em Varsóvia, o jovem Ludwik Zamenhof certamente ouviu muitas vezes da boca dos poloneses a palavra kurwa (pron. “kurva”), que significa “prostituta, puta”. Com o pudor típico da sociedade oitocentista em que nasceu e cresceu, Zamenhof cedo percebeu que kurwa era uma palavra obscena em polonês. Sua sensibilidade o fez evitar o adjetivo homófono kurva e substituí-lo pela forma kurba. Note que kurva é quase uma palavra pan-eslava, existindo no tcheco, no servo-croata e no búlgaro, e também como um empréstimo ao húngaro, uma língua fino-úgrica.

Eis a simples e irrefutável explicação da existência de kurba, e não kurva, no léxico do esperanto. Porém, após alguns anos, Zamenhof percebeu seu engano: em 1896, quando propôs algumas revisões na língua, mudou a ortografia para kurva, mas a proposta fracassou, e kurba permaneceu.


Como lidar com homofonias de baixo calão em esperanto

Zamenhof não tinha como fazer com que nenhum morfema de sua língua soasse como uma palavra de baixo calão de outra língua. Para mostrar como é inútil tentar livrar o esperanto de todas as palavras ofensivas possíveis, vejamos dois exemplos que às vezes fazem os hispanófonos protestarem: kulo [mosquito] e puto [poço, cisterna], que têm a mesma pronúncia das palavras espanholas culo (bunda, cu) e puto (prostituta, homossexual). Em sua Clave de Esperanto (Chave de Esperanto), editada no México em 1968, Alberto Gómez Cruz muda kulo e puto respectivamente por kuslo e pulto.

Só existe uma resposta aos que querem modificar o léxico do esperanto para evitar a semelhança com palavras de baixo calão das línguas étnicas: se as palavras são ofensivas nessas línguas, elas é que devem ser modificadas, e não o esperanto, onde não o são, por isso ele deve ser deixado em paz.


Notas do tradutor
(clique no número pra voltar ao texto)

(1) O autor simplesmente traduz a palavra como “égua”, quando na verdade, segundo os dicionários, cavale é uma forma literária ou poética de jument, que é mais corrente.

(2) Primeiro Livro (em esperanto, Unua Libro): referência ao primeiro manual de esperanto que Zamenhof publicou em 1887, em língua russa.

(3) No original em esperanto: «gaje ekpepis: “Aĥ, suko, bona suko, poma suko, suko, suko, suko... suko, aĥ, kia suko”».

(4) A referência é às Lingvaj Respondoj (Respostas Linguísticas), uma coletânea de perguntas sobre vários aspectos do esperanto que eram feitas a Zamenhof e respondidas por escrito em diversas revistas.

(5) A terminação -i dos verbos em esperanto corresponde ao -ar, -er, -ir e -ôr (verbo “pôr”) do nosso infinitivo. A terminação -as indica tempo presente e é usada pra todas as pessoas (“eu”, “tu”, “ele” etc.).



domingo, 10 de agosto de 2014

Os dias da semana em russo: nomes e crenças


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(Tradução adaptada por Erick Fishuk do texto “Pochemu dni nedeli nazyvaiutsia imenno tak? Primety i nazvania”, de autoria de Igor Maranin, publicado no portal ShkolaZhizni.ru e cujo original em russo pode ser acessado aqui.)

Em que dia começa uma nova semana? Não, não responda agora, a questão não é tão simples quanto parece. Isso porque há duas versões: a bíblica e a da Organização Internacional para Padronização (ISO). A Bíblia considera que o último dia da semana é o sábado, por conseguinte, deve-se começar a contagem do domingo. Só que no padrão internacional o primeiro dia da semana aceita em todo o mundo é a segunda-feira.

Por que ponedelnik (“segunda-feira”)? Por causa de posle nedeli (“depois da nedelia”). Nedelia (“semana”, em russo moderno) é o antigo nome eslavo do domingo, o dia em que ninguém faz nada (delat = “fazer”, e delo = “ocupação”, “tarefa”, “serviço”, “negócio”).

A segunda-feira, como se sabe, é um dia árduo. O que o nome tem de comprido, as crenças a respeito desse dia têm de rígidas: se você abrir um negócio, ele vai à falência. Se você seguir viagem, não vai chegar ao destino. Se você convidar visitas, elas vão vir a semana inteira. E o mais importante: nesse dia, não fazer kvas (uma bebida de baixo teor alcoólico feita da fermentação do pão de centeio ou da farinha de centeio, às vezes misturada com frutas), pois nesse preparado as rusalki (seres da mitologia russa semelhantes a sereias) mergulham os afogados. E também quanto a feiticeiras, não conversar com nenhuma, senão elas vão se transformar em cachorros e lhe assustar durante a noite.

Duas coisas que se pode fazer sem hesitar na segunda-feira, conforme as crenças populares, são espirrar e arrancar dentes. Espirrar nesse dia atrai presentes, e os dentes vão ser arrancados sem qualquer complicação.

Com vtornik (“terça-feira”), chetverg (“quinta-feira”) e piatnitsa (“sexta-feira”), tudo está claro. Seus nomes provêm dos numerais vtoroi (“segundo”, em se começando a contar da segunda-feira), chetviorty (“quarto”) e piaty (“quinto”). Pode-se pensar que a língua russa visivelmente apoia a ISO, mas... Tudo é complicado pela sreda (“quarta-feira”). Em outras palavras, seredina (ou sredina = “meio”, “metade”). Esse dia só se localiza no meio no caso de se contar a partir do domingo, isto é, conforme a tradição bíblica.

As crenças populares não consideram a quarta e a sexta nada melhores do que a segunda. Na quarta-feira, se você se mudar para uma nova casa, não vai viver lá por muito tempo. Se você contratar uma empregada, ela vai fugir. E novamente não se pode, durante o dia inteiro, nem mencionar feiticeiras nem começar um novo negócio. Bem, parece que se pode ocupar-se do kvas. Nenhuma rusalka com afogados vai te incomodar.

A sexta-feira é pior do que a segunda e a quarta juntas. As mulheres casadas não podem lavar a cabeça, os avicultores não podem pôr as galinhas para chocar e os homens não podem realizar nenhuma tarefa feminina, senão vão lhes nascer unheiros ou incuráveis espigas nos dedos. E também, é claro, não se pode abrir um novo negócio: quem fizer isso na sexta-feira vai vê-lo regredir.

Como são ótimas, então, a terça e a quinta! Na terça se pode tudo! Na quinta, quase tudo. Só se deve ter cuidado com o kvas. No geral, é bom não o fazer nesse dia, para que “a gralha cinzenta não banhe seus filhotes nela”.

A palavra subbota (“sábado”) remonta ao shabbat hebraico – no judaísmo, o sétimo dia, em que se deve abster-se do trabalho. É a nedelia hebraica, se quiser. Essa palavra, junto com o cristianismo, propagou-se por toda a Europa, chegou à Rússia antiga e já então adquiriu sua sonoridade atual. O sábado é um dia radiante, bonito, ameno. Diferentemente dos mandamentos judaicos, as crenças russas aconselham abrir um novo negócio, seguir viagem, mudar-se para uma nova residência... E não se esquecer de mudar de roupa pouco antes de começar o domingo.

E o domingo (voskresenie), como todos sabem, tem esse nome em homenagem à ressurreição (em russo, também voskresenie) de Jesus Cristo no terceiro dia após a crucificação. E as crenças populares russas aconselham consagrá-lo a Deus. Assim rezam ao menos aquelas crenças que precisam ser seguidas...


domingo, 3 de agosto de 2014

“Socialismo e religião” (Vladimir Lenin)


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Breve introdução (Erick Fishuk)

Eu gosto de estudar o comunismo internacional, principalmente o regime soviético e os regimes europeus do “socialismo real” erigidos em 1945. Sempre me interessei pelo pensamento de Vladimir Ilich Ulianov, ou Lenin, porque sendo o fundador da União Soviética, certamente me forneceria alguma pista sobre a inspiração desses Estados. Também gosto, no líder bolchevique, de sua enorme capacidade mental, de sua relativa teimosia, de sua firmeza em meio às adversidades e, acima de tudo, de sua aspiração sincera por um mundo melhor e mais justo, ainda que tivesse cometido excessos em sua política, alguns, confessemos, inevitáveis, outros nem tanto. Mas poucos condutores de massas conseguirão superar a quantidade e a qualidade de seus escritos, por constituírem autêntico conhecimento fresco extraído da prática imediata.

A visão comum é a de um Lenin perseguidor de religiosos, como o seria Stalin em determinado período de seu governo e como o seriam igualmente os outros chefes soviéticos do início dos anos 1960 até Gorbachov. De fato, a Revolução de Outubro de 1917 suprimiu a liberdade de vários clérigos ortodoxos, mas deve-se lembrar que o momento era de reação a um regime opressor e ineficiente, e a Igreja russa constituía uma peça do aparelho de Estado tsarista. Mas “Socialismo e religião”, embora repita o velho chavão “A religião é o ópio do povo”, mostra alguém atento realisticamente à impregnação da fé em sua sociedade, especialmente no proletariado, e ao quanto setores clericais supostamente insatisfeitos com o controle estatal de seus assuntos poderiam acatar a separação entre Igreja e Estado e a declaração da religião como assunto privado. Em suma, mesmo sendo um ateu militante, Lenin, teoricamente e a princípio, opta pela liberdade de expressão e de consciência de todos aqueles que decidissem apoiar os socialistas em sua luta contra a tirania, mesmo se sustentassem visões de mundo distintas das da pretensa vanguarda revolucionária.

O artigo “Socialismo e religião” (título original: “Sotsializm i religia”), de autoria de Lenin, foi publicado primeiramente no número 28 da revista Novaia Zhizn (Nova Vida), em 3 de dezembro de 1905. A primeira versão em português (que eu conheço, claro), sem qualquer referência ao tradutor, saiu no site Marxists.org, extraída do site do PCO. Notando que a tradução tinha algumas inadequações, especialmente falta de fluidez, e percebendo a importância do artigo, decidi começar a corrigi-la por conta própria, trabalho iniciado por volta de março de 2011, mas, constantemente interrompido e por muito tempo paralisado, concluído somente por volta de outubro. Em meados de 2012, o administrador do Marxists.org em português substituiu a versão do PCO pela minha versão, mas aquela primeira já tinha sido copiada por inúmeros outros blogueiros, portanto o link levará à postagem do ótimo blog “O inverso do contraditório” que tem essa versão antiga. Parece que agora o PCO reproduziu a minha versão, mas publicou algumas notas a mais. Pode-se ter acesso neste link a uma das inúmeras páginas com o texto de partida em russo.

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A sociedade contemporânea baseia-se toda na exploração das enormes massas operárias por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários de terras e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários “livres”, que trabalham a vida toda para o capital, “têm direito” apenas aos meios de subsistência indispensáveis para sustentá-los como escravos produtores do lucro e para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.

A opressão econômica dos operários gera inevitavelmente todas as formas de opressão política, de humilhação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os operários podem alcançar uma liberdade política maior ou menor para lutar por sua libertação econômica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda parte sobre as massas esmagadas por seu perpétuo trabalho para outros, pelas privações e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor após a morte como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres etc. Àquele que toda a vida trabalha e passa necessidades, a religião ensina a resignação e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do trabalho alheio, a religião ensina a filantropia na vida terrena, propondo-lhes uma justificação muito barata para sua existência de exploradores e vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de aguardente espiritual ruim na qual os escravos do capital afogam sua imagem humana e suas reivindicações de uma vida minimamente digna.

Mas o escravo que se deu conta de sua escravidão e se ergueu para a luta por sua libertação já deixou pela metade de ser escravo. O operário consciente moderno, formado pela grande indústria fabril e esclarecido pela vida urbana, repele com desprezo os preconceitos religiosos e deixa o céu à disposição dos popes (1) e dos carolas burgueses, conquistando uma vida melhor aqui na terra. O proletariado moderno põe-se ao lado do socialismo, que se vale da ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os operários da fé na vida após a morte por meio de sua arregimentação para uma verdadeira luta por uma vida terrena melhor.

A religião deve ser declarada um assunto privado – com essas palavras se exprime habitualmente a atitude dos socialistas perante a religião. Mas é preciso definir com exatidão o significado dessas palavras para que elas não causem nenhum mal-entendido. Exigimos que a religião torne-se um assunto privado em relação ao Estado, mas não podemos de modo algum considerar a religião um assunto privado em relação a nosso próprio partido. O Estado não deve manter conúbio com a religião, e as sociedades religiosas não devem ligar-se ao poder estatal. Cada um deve ser absolutamente livre para professar qualquer religião ou para não reconhecer nenhuma, isto é, para ser ateu, o que todo socialista geralmente é. São absolutamente inadmissíveis quaisquer diferenças entre os cidadãos quanto a seus direitos conforme suas crenças religiosas. Deve ser totalmente eliminada até mesmo qualquer referência à religião dos cidadãos em documentos oficiais. Não deve haver qualquer subvenção a uma Igreja estatal nem qualquer pagamento de somas do Estado a sociedades eclesiásticas e religiosas, que devem tornar-se associações de cidadãos correligionários absolutamente livres e independentes das autoridades. Só a satisfação plena dessas reivindicações pode acabar com aquele passado vergonhoso e maldito em que a Igreja se encontrava numa dependência servil em relação ao Estado e em que os cidadãos russos se encontravam numa dependência servil em relação à Igreja estatal, em que existiam e eram aplicadas leis medievais e inquisitoriais (que ainda hoje permanecem nos nossos códigos e regulamentos penais) que perseguiam pessoas pela sua fé ou descrença, que violavam a consciência do indivíduo e que vinculavam sinecuras e rendimentos públicos à distribuição de uma ou outra “drogas” pela Igreja estatal. Completa separação entre Igreja e Estado – eis a reivindicação que o proletariado socialista apresenta ao Estado e à Igreja atuais.

A revolução russa deve realizar essa reivindicação como um componente indispensável da liberdade política. Nesse aspecto, a revolução russa situa-se em condições particularmente vantajosas, pois o abominável burocratismo da autocracia policial-feudal causou descontentamento, agitação e indignação até mesmo entre o clero. Por mais embrutecido, por mais ignorante que fosse o clero ortodoxo russo, até ele foi agora acordado pelo estrondo da queda da velha ordem medieval na Rússia. Até ele adere à reivindicação de liberdade, protesta contra o burocratismo e a arbitrariedade dos funcionários públicos e contra a fiscalização policial imposta aos “servos de Deus”. Nós, socialistas, devemos apoiar esse movimento, levando a cabo as reivindicações dos membros honestos e sinceros do clero, cumprindo as promessas de liberdade que lhes fizemos e exigindo deles que rompam decididamente todos os laços entre a religião e a polícia. Ou vocês são sinceros, e então devem defender a completa separação entre Igreja e Estado, entre escola e Igreja, e a completa e incondicional declaração da religião como um assunto privado; ou vocês não aceitam essas consequentes reivindicações de liberdade, e então quer dizer que ainda são prisioneiros das tradições da Inquisição, então quer dizer que ainda se encostam às sinecuras e rendimentos públicos, então quer dizer que vocês não acreditam na força espiritual de sua arma, continuam a extorquir o poder estatal – então os operários conscientes de toda a Rússia declarar-lhes-ão uma guerra implacável.

Em relação ao partido do proletariado socialista, a religião não é um assunto privado. Nosso partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela libertação da classe operária. Essa associação não pode nem deve ser indiferente à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo das crenças religiosas. Reivindicamos a completa separação entre Igreja e Estado para lutar contra o nevoeiro religioso com armas tão-somente ideológicas, com nossa imprensa e com nossa voz. Mas nós fundamos nosso partido, o POSDR, (2) entre outras coisas, precisamente para essa luta contra o entontecimento religioso dos operários. E para nós a luta ideológica não é um assunto privado, mas um assunto de todo o partido e de todo o proletariado.

Se é assim, por que não declaramos em nosso programa que somos ateus? Por que não proibimos os cristãos e os que acreditam em Deus de entrar em nosso partido? A resposta a essa pergunta deve esclarecer a importantíssima diferença entre a maneira democrático-burguesa e a social-democrata de colocar a questão da religião.

Nosso programa baseia-se todo numa concepção científica, a saber, materialista do mundo. Por isso, o esclarecimento de nosso programa necessariamente inclui também o esclarecimento das verdadeiras raízes históricas e econômicas do nevoeiro religioso. Nossa propaganda também inclui necessariamente a propaganda do ateísmo; a edição da literatura científica correspondente, que o poder estatal autocrático-feudal rigorosamente proibia e perseguia até agora, deve atualmente constituir um dos ramos de nosso trabalho partidário. Teremos agora, provavelmente, de seguir o conselho que Engels deu certa vez aos socialistas alemães: traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateísta francesa do século 18. (3)

Mas ao fazê-lo jamais devemos cair no modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não raro é feito pelos democratas radicais da burguesia. Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e no embrutecimento infindáveis das massas operárias, pode-se dissipar os preconceitos religiosos unicamente por meio da propaganda. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Nenhum livrete ou propaganda pode esclarecer o proletariado se sua própria luta contra as forças obscuras do capitalismo não o esclarecer. A unidade dessa luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.

Eis por que não declaramos nem devemos declarar nosso ateísmo em nosso programa; eis por que não proibimos nem devemos proibir aos proletários que conservaram vestígios dos velhos preconceitos de aproximar-se de nosso partido. Sempre pregaremos a concepção científica do mundo, e é indispensável que lutemos contra a incoerência dos “cristãos”, mas isso não significa de modo algum que se deva pôr a questão religiosa em primeiro lugar, o qual de maneira alguma lhe pertence, nem que se deva permitir a dispersão das forças da luta econômica e política realmente revolucionária por causa de opiniões ou delírios insignificantes que perdem rapidamente todo significado político e são rapidamente jogados no ferro-velho pelo próprio curso do desenvolvimento econômico.

Em toda parte a burguesia reacionária inquietou-se e começa agora também em nosso país a buscar atiçar a hostilidade religiosa, a fim de desviar para ela a atenção das massas voltadas às questões econômicas e políticas realmente importantes e fundamentais, as quais o proletariado de toda a Rússia, praticamente unido em sua luta revolucionária, está agora resolvendo. Essa política reacionária de dispersão das forças proletárias, que hoje se manifesta principalmente nos pogroms das Centúrias Negras, (4) talvez pense amanhã em outras formas mais refinadas. Nós, em todo caso, opor-lhe-emos uma propaganda tranquila, sóbria e paciente da solidariedade proletária e da concepção científica do mundo, livre de todo atiçamento de divergências secundárias.

O proletariado revolucionário conseguirá tornar a religião um assunto realmente privado para o Estado, e nesse regime político depurado do bolor medieval, travará uma luta forte e aberta pela eliminação da escravidão econômica, verdadeira fonte do entontecimento religioso da humanidade.


Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Sacerdotes ortodoxos. (N.T.)

(2) Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que futuramente se tornaria o Partido Comunista soviético. (N.T.)

(3) Ver artigo de Friedrich Engels, “Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna” (artigo II da série “Literatura de Refugiados”). [N.T.: O artigo pode ser encontrado em português em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas em três tomos, tomo II, Lisboa, Avante; Moscou, Progresso, 1983, pp. 411-418. A referência citada está na p. 415. A mesma versão ainda está na rede nesta página.]

(4) Movimento paramilitar ultranacionalista e xenófobo que suportava o regime tsarista contra os movimentos revolucionários de oposição. (N.T.)



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

21 condições de admissão (Comintern)


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Lenin fala aos delegados do 2.º Congresso Mundial da Internacional Comunista (Comintern).


Introdução (Erick Fishuk)

Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o movimento socialista internacional sofreu um duro choque. Embora a 2.ª Internacional (1889-1914), núcleo principal de reunião dos partidos marxistas do mundo, especialmente da Europa, tradicionalmente defendesse a paz mundial contra as guerras entre os países capitalistas, vários parlamentares de sua principal corrente, a social-democracia, aprovaram os créditos dos governos de seus países para financiar a participação no conflito. Dois dos principais expoentes socialistas radicais que já tinham expressado posições mais consequentes pela manutenção da paz e que, com a guerra, romperam com sua filiação internacional, foram o russo Vladimir Ilich Lenin, fundador da corrente bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (1903), e a alemã Rosa Luxemburg, iniciadora da Liga Espartaquista (1915).

Em outubro de 1917, Lenin obteve o trunfo de liderar uma revolução que derrubou o governo provisório sucessor do tsarismo russo (este abolido em fevereiro) e pôde, assim, aplicar na prática sua política socialista radical, chamada de “comunista”, uma ruptura completa com a velha social-democracia da 2.ª Internacional, a qual julgava “oportunista” e “reformista”. Porém, com o fim desta Internacional e com a necessidade de consolidar a Revolução Russa, era preciso uma nova organização mundial que agregasse todos os outros movimentos comunistas ou de sovietes, também protagonistas de revoluções em curso na convulsionada Europa do pós-guerra. Assim, por iniciativa bolchevique, foi fundada em 1919 a 3.ª Internacional, ou Internacional Comunista, ou ainda Comintern, para sustentar a nova onda revolucionária e opor-se fortemente ao reformismo, ao ativismo pacífico, ao colonialismo e ao capitalismo.

Mas a vaga soviética na Europa não vingou do jeito que os comunistas planejavam, e o movimento precisou cerrar ainda mais suas fileiras para que os insucessos e a repressão institucional não o desagregassem de vez. Todas as insurreições foram sufocadas e os russos ficaram isolados, especialmente após a queda da efêmera República Soviética Húngara. Foi o fim desta breve experiência no poder que influenciou Lenin a enrijecer as condições para que os partidos fossem admitidos na Comintern, buscando afastar tendências menos radicais que pudessem diluir a combatividade da organização. O líder propôs, então, em seu 2.º Congresso Mundial (julho a agosto de 1920), 19 pontos que deveriam ser seguidos pelos candidatos ao ingresso na jovem Internacional. (1)

Discutidas previamente numa comissão especial, as 19 condições sofreram leves alterações, tendo sido adicionada, por iniciativa do próprio Lenin, aquela que se tornaria a condição 20 (sobre a composição dos principais órgãos centrais) e transformada a condição 12 no segundo parágrafo da primeira (ambas tratando da imprensa e da propaganda partidárias). Em seguida, debatidas em plenário, essas novas 19 condições, aceitas prontamente por uns e rejeitadas fortemente por outros, foram acrescidas ainda das de número 18 (publicação dos documentos do Comitê Executivo da Internacional Comunista) e 21 (expulsão dos militantes contrários às 21 condições), esta última, considerada a mais drástica, por incentivo especial do italiano Amadeo Bordiga. Aprovado o documento, estava doravante fixado o marco que dividiria o antigo socialismo institucionalizado e o comunismo renovador e inconformista. (2)

As 19 condições originais e a primeira redação das condições 20 e 21 se encontram nas Sochinenia (Obras completas em russo) de Lenin, 5. ed., Moscou, Politizdat, 1981, pp. 204-212. (3) A redação final das 21 condições se encontra na coletânea A Internacional Comunista em documentos, 1919-1932 (em russo), Moscou, Partiinoie izdatelstvo, 1933, pp. 100-104, (3a) e pode ser lida também em B. G. Gafurov e L. I. Zubok (orgs.), Crestomatia de História Contemporânea em três tomos, t. 1 (“1917-1939, documentos e materiais”) (em russo), Moscou, Sotsekgiz, 1960. (4) Já existe uma versão em português das 21 condições na coletânea III Internacional Comunista, v. 2 (“Manifestos, teses e resoluções do 2.º Congresso”), São Paulo, Brasil Debates, 1989, pp. 47-52, e nela baseei parte do meu trabalho, mas, traduzida do francês, herdou vários defeitos dessa matriz e foi feita de modo muito literal, não sendo, portanto, plenamente satisfatória. (5)

Adotei o procedimento de expor as 21 condições traduzidas para o português, com notas de rodapé (todas minhas) que indicam como era a redação dos trechos diferentes nas 19 condições originais. Nas notas, adotei as siglas abreviadas “O-21” para indicar o texto russo original das 21 condições e “O-19” para o texto russo original das 19 condições. Quando os dois originais em russo divergiam em algum trecho, mas suas traduções poderiam ser as mesmas, optei por não abrir nota indicando a diferença textual, ao contrário do que foi feito quando a diferença ocorria também na tradução. Neste caso, optei ainda por não transcrever as expressões em russo, que poderiam ser desinteressantes ao leitor comum.

Adendo (25/5/2013): A primeira aparição das 21 condições traduzidas no Brasil se deu realmente no periódico Vida Nova, editado pelo Grupo Comunista de Santos e ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB), na edição de lançamento de 1.º de maio de 1922. Não sei ao certo de que versão ela foi traduzida, ou se se chegou a fazer alguma comparação com o original russo (o que devia ser pouco provável, dada a escassez de conhecedores da língua no Brasil), mas várias passagens são semelhantes a uma provável versão preliminar, ainda influenciada pelo texto das 19 condições originais (ver nota 4). Um exemplar do periódico de Santos pode ser consultado no Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, na Praça da Sé, na cidade de São Paulo. Agradeço a Dainis Karepovs, pesquisador da Fundação Perseu Abramo, por ter me enviado uma cópia digitalizada. Uma transcrição dessas condições, mas sem o preâmbulo que as inicia, pode ser encontrada no livro de Edgar Rodrigues, Novos rumos: história do movimento operário e das lutas sociais no Brasil (1922-1946), Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1976, pp. 28-32. Graças à comparação entre minha tradução e esse texto, que só achei recentemente, pude corrigir no blog algumas expressões que não julguei tão oportunas.

Adendo (22/2 e 27/7/2014): Em agosto de 2013, descobri por acaso, por meio de uma referência num livro de história, que o Partido Comunista Brasileiro (novo nome do PCB) também havia publicado, em sua revista Estudos, edição n.º 2 de 1971, sem local, pp. 102-106, uma versão das 21 condições. Encontrei e reproduzi essas páginas com autorização do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp, que guarda uma versão microfilmada do periódico, e comparei com a tradução do Vida Nova, percebendo que o texto era o mesmo (apenas sem o preâmbulo), mas com leves alterações numas poucas partes. Embora a comparação fosse instrutiva, ela não motivou a realizar novas alterações na minha tradução. Aproveitei a ocasião, contudo, para consultar ainda uma tradução espanhola, duas inglesas e duas italianas, as quais realmente me fizeram mudar algumas coisas mais uma vez. (5a) A tradução espanhola está transcrita no livro de Amaro del Rosal, Los congresos obreros internacionales en el siglo XX: de 1900 a 1950, México, DF, Grijalbo, 1963, pp. 203-207.

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O Primeiro Congresso (constituinte) da Internacional Comunista não elaborou as condições precisas de admissão dos Partidos na organização. Quando ele foi convocado, na maioria dos países havia apenas tendências e grupos (6) comunistas.

O Segundo Congresso Mundial da Internacional Comunista está se reunindo em outras circunstâncias. Agora, na maioria dos países, já existem não somente correntes e tendências, mas também partidos e organizações comunistas.

Cada vez mais partidos e grupos que até recentemente pertenciam à 2.ª Internacional estão se voltando agora para a Internacional Comunista e desejam aderir a ela, sem por isso terem realmente se tornado comunistas. A 2.ª Internacional está definitivamente arruinada: os partidos intermediários e os grupos “centristas”, percebendo a situação desesperadora dessa organização, buscam se apoiar na cada vez mais forte Internacional Comunista, esperando, porém, conservar uma “autonomia” que lhes permita manter sua antiga política oportunista ou “centrista”. A Internacional Comunista, de certa forma, está na moda.

O desejo de certos grupos dirigentes “centristas” de aderir à 3.ª Internacional nos confirma indiretamente que ela conquistou as simpatias da imensa maioria dos trabalhadores conscientes do mundo inteiro e constitui uma força que cresce a cada dia.

Nessas circunstâncias, a Internacional Comunista corre o risco de ser liquidada por grupos vacilantes e indecisos que ainda não romperam com a ideologia da 2.ª Internacional.

Além disso, em alguns Partidos importantes (italiano, sueco, norueguês, iugoslavo e outros) (7) cuja maioria se coloca no plano comunista, ainda restam consideráveis alas reformistas e social-pacifistas que apenas esperam o momento de reerguer a cabeça para sabotar ativamente a revolução proletária, auxiliando, assim, a burguesia e a 2.ª Internacional.

Nenhum comunista deve esquecer as lições da República Soviética Húngara. A união dos comunistas húngaros com os ditos sociais-democratas “de esquerda” (8) custou caro ao proletariado do país.

Em vista disso, o 2.º Congresso Mundial julga necessário fixar condições absolutamente precisas de admissão de novos Partidos na Internacional Comunista e indicar ainda aos Partidos já filiados as obrigações que lhes cabem.

O 2.º Congresso Mundial estabelece as seguintes condições de admissão na Internacional Comunista:

1. A propaganda e a agitação cotidianas devem ter um caráter efetivamente comunista e corresponder ao programa e às resoluções da 3.ª Internacional. (9) Os órgãos de imprensa controlados pelo Partido devem ter a redação a cargo de comunistas fiéis, provadamente devotados à causa proletária. (10) A ditadura do proletariado não deve ser abordada como um simples chavão de uso corrente, mas preconizada de modo que todo operário, operária, soldado e camponês comum deduzam sua necessidade dos fatos da vida real, mencionados diariamente em nossa imprensa.

(11) As editoras partidárias (12) e a imprensa, periódica ou não, devem estar inteiramente submetidas ao Comitê Central, seja o Partido como um todo atualmente legal ou não. É inadmissível que as editoras abusem de sua autonomia e sigam uma política que não corresponda à do Partido.

Nas páginas dos jornais, nos comícios populares, nos sindicatos, nas cooperativas e onde quer que os partidários da 3.ª Internacional encontrem (13) livre acesso, é indispensável atacar de modo sistemático e implacável não somente a burguesia, mas também seus cúmplices, os reformistas de todos os matizes.

2. As organizações que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem afastar de modo planejado e sistemático os reformistas e os “centristas” dos postos minimamente importantes no movimento operário (organizações partidárias, redações, sindicatos, bancadas parlamentares, cooperativas, municipalidades etc.) e substituí-los por comunistas fiéis, sem abalar-se com o fato de às vezes ser necessário, de início, trocar militantes “experientes” por operários comuns.

3. Em quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes está entrando na fase da guerra civil. Em tais circunstâncias, os comunistas não podem confiar na legalidade burguesa e devem formar em toda parte um aparelho clandestino paralelo que possa, no momento decisivo, ajudar o Partido a cumprir seu dever perante a revolução. (14) Nos países onde os comunistas, por conta do estado de sítio ou das leis de exceção, não possam atuar em total legalidade, é absolutamente indispensável combinar o trabalho legal e o clandestino.

4. O dever de propagar as ideias comunistas inclui a necessidade especial da propaganda persistente e sistemática nos exércitos. Nos lugares onde as leis de exceção proíbem essa agitação, ela deve ser realizada clandestinamente. Renunciar a essa tarefa equivale a trair o dever revolucionário e desmerecer a filiação à 3.ª Internacional. (15)

5. É indispensável a agitação sistemática e planejada no campo. A classe operária não pode garantir sua vitória sem atrair ao menos uma parcela dos assalariados agrícolas e dos camponeses mais pobres e neutralizar com sua política uma parte dos setores rurais restantes. O trabalho comunista no campo está adquirindo atualmente a mais alta importância. Para realizá-lo, é especialmente indispensável o auxílio dos trabalhadores comunistas revolucionários da cidade e do campo (16) ligados ao campesinato. Renunciar a essa tarefa ou delegá-la a semirreformistas duvidosos equivale a renunciar à própria revolução proletária.

6. Os Partidos que desejam filiar-se à 3.ª Internacional devem denunciar não somente o social-patriotismo aberto como também a falsidade e a hipocrisia do social-pacifismo, demonstrando sistematicamente aos trabalhadores que, sem a derrubada revolucionária do capitalismo, nenhuma corte internacional de arbitragem, nenhum tratado (17) de redução de armamentos e nenhuma reorganização “democrática” da Liga das Nações livrará a humanidade de novas guerras imperialistas.

7. Os Partidos que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem reconhecer a necessidade da ruptura completa e definitiva com o reformismo e o “centrismo” e preconizá-la entre o grosso da militância. Sem isso, torna-se impossível realizar uma política comunista consequente.

A Internacional Comunista exige de modo incondicional e categórico que se realize essa ruptura o mais rápido possível. Não se pode admitir que oportunistas (18) notórios como, por exemplo, Turati, Kautsky, Hilferding, Hillquit, Longuet, MacDonald, Modigliani (19) e outros tenham o direito de considerarem-se membros da 3.ª Internacional, o que a levaria (20) a equiparar-se fortemente à falida 2.ª Internacional.

8. Na questão colonial e das nações oprimidas, é indispensável que tenham uma linha particularmente clara e precisa os Partidos dos países cuja burguesia possui colônias e oprime outros povos. Os Partidos que desejam filiar-se à 3.ª Internacional devem denunciar implacavelmente as artimanhas de “seus” imperialistas nas colônias; apoiar os movimentos de libertação nas colônias não somente em palavras, mas também em atos; exigir a expulsão de seus compatriotas imperialistas das colônias; cultivar nos corações dos operários de seus países um sentimento fraternal sincero para com a população trabalhadora das colônias e das nações oprimidas; e realizar entre as tropas da metrópole uma agitação sistemática contra todo tipo de opressão dos povos coloniais.

9. Os Partidos que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem realizar uma atividade sistemática e persistente nos sindicatos, nos conselhos operários e industriais, (21) nas cooperativas e em outras organizações de massas, onde é indispensável criar células que, após longo e persistente trabalho, ganhem-nas para a causa comunista. Inteiramente subordinadas ao conjunto do Partido, essas células devem, a cada passo de seu trabalho cotidiano, denunciar as traições dos sociais-patriotas e as hesitações dos “centristas”.

10. Os Partidos filiados à Internacional Comunista devem insistentemente lutar contra a “Internacional” Sindical Amarela de Amsterdã e preconizar entre os operários sindicalizados a necessidade de romper com ela. Esses Partidos devem apoiar, por todos os meios, a nascente unificação internacional dos sindicatos vermelhos que apoiam a Internacional Comunista.

11. Os Partidos que desejam filiar-se à 3.ª Internacional devem rever a composição de suas bancadas parlamentares, removendo os elementos desconfiáveis, submetendo-as ao Comitê Central do Partido não somente em palavras, mas também na prática, e exigindo que cada parlamentar comunista sujeite sua atuação aos interesses da propaganda e da agitação realmente revolucionárias.

12. (22) Os partidos filiados à Internacional Comunista devem ser organizados segundo o princípio do “centralismo(23) democrático. No atual período de guerra civil encarniçada, um Partido Comunista só poderá cumprir seu dever se for organizado da maneira mais centralizada possível, se nele predominar uma disciplina férrea que beire a militar e se seu órgão central gozar de forte autoridade, de amplos poderes e da confiança unânime da militância.

13. (24) Os Partidos Comunistas que atuam legalmente devem realizar depurações periódicas (recadastramentos) entre os efetivos de suas organizações para remover sistematicamente os inevitáveis elementos pequeno-burgueses.

14. (25) Os Partidos que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem apoiar incondicionalmente cada República Soviética em seu combate às forças contrarrevolucionárias. Os Partidos Comunistas devem buscar continuamente convencer os trabalhadores a não transportar material bélico aos inimigos dessas Repúblicas, devem realizar uma propaganda legal ou clandestina entre as tropas enviadas para sufocar as repúblicas operárias etc.

15. (26) Os Partidos que ainda mantêm seus velhos programas social-democratas devem revisá-los o mais rápido possível e elaborar um novo, afinado com as resoluções da Internacional Comunista e adaptado às particularidades nacionais. Como regra, os programas dos Partidos filiados devem ser aprovados pelo Congresso Mundial seguinte ou pelo Comitê Executivo da Internacional Comunista. Caso este não aprove determinado programa, o Partido tem o direito de recorrer ao Congresso Mundial.

16. (27) Todas as resoluções dos congressos da Internacional Comunista, bem como as de seu Comitê Executivo, são obrigatórias para os Partidos a ela filiados. Atuando em meio à mais encarniçada guerra civil, a Internacional Comunista deve ser organizada de forma muito mais centralizada do que a 2.ª Internacional. Além disso, o trabalho da Internacional Comunista e de seu Comitê Executivo deve evidentemente levar em conta as diferentes circunstâncias em que luta e atua cada Partido e só tomar decisões de obrigação geral nas questões em que isso seja realmente possível.

17. (28) Conforme tudo o que foi exposto acima, os Partidos que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem mudar seu nome para Partido Comunista de tal país (Seção da 3.ª Internacional Comunista). A questão do nome não é meramente formal, mas possui grande importância. (29) A Internacional Comunista declarou uma guerra decidida contra o mundo burguês e os partidos social-democratas amarelos. É indispensável deixar completamente clara a todo trabalhador comum a diferença entre os Partidos Comunistas e os velhos partidos “social-democratas” ou “socialistas” oficiais que traíram a bandeira da classe operária.

18. (30) Os órgãos dirigentes da imprensa partidária de todos os países devem publicar todos os documentos oficiais importantes do Comitê Executivo da Internacional Comunista.

19. Os Partidos filiados à Internacional Comunista ou que solicitaram sua filiação devem convocar o mais rápido possível, mas até quatro meses após o 2.º Congresso Mundial, um congresso extraordinário para discutir internamente estas condições. Além disso, os Comitês Centrais devem cuidar para que todas as organizações de base conheçam as resoluções do 2.º Congresso da Internacional Comunista. (31)

20. (32) Os Partidos que gostariam de filiar-se agora à 3.ª Internacional, mas ainda não mudaram radicalmente sua antiga tática, devem cuidar para que, até sua filiação, não menos de 2/3 de seu Comitê Central e de seus principais órgãos centrais sejam compostos por camaradas que, antes do 2.º Congresso da Internacional Comunista, já tenham se manifestado de forma aberta e inequívoca a favor do ingresso de seu Partido. O Comitê Executivo da 3.ª Internacional tem o direito de admitir exceções, inclusive no caso dos representantes “centristas” mencionados na condição 7.

21. (33) Devem ser expulsos do Partido os membros que rejeitarem por princípio as condições e teses apresentadas pela Internacional Comunista.

O mesmo vale para os delegados do congresso extraordinário de cada Partido.

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Notas do tradutor
(Clique no número pra voltar ao texto)

(1) Uma breve discussão sobre as vicissitudes das 21 condições no 2.º Congresso Mundial da Comintern pode ser lida na famosa obra de Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, 1917‒1923, v. 3, Londres, Penguin Books, 1977, pp. 197-200.

(2) Uma narração detalhada do ferrenho debate, travado no congresso, sobre as 21 condições, seu texto e sua adoção encontra-se no trabalho igualmente magistral de Pierre Broué, História da Internacional Comunista (1919-1943), t. 1 (“A ascensão e a queda”), tradução de Fernando Ferrone, São Paulo, Sundermann, 2007, pp. 206-216. Sou grato a Dainis Karepovs por essa indicação.

(3) Este site disponibiliza a 5.ª edição das Sochinenia em formato DOC, além de alguns de seus textos em formato HTML.

Esta página mostra diretamente o texto em russo das 19 condições e do preâmbulo originais.

(3a) Acesse aqui um link direto para baixar o livro em formato DJVU, sendo possível ler ainda o sumário em russo.

(4) Esta página contém o capítulo sobre a Comintern da Crestomatia, no qual se encontram a versão final das 21 condições e outros documentos.

Esta página contém a transcrição da versão datilografada das 21 condições (que possui leves diferenças com relação à versão final), secundada por um resumo, uma introdução histórica (ambos em russo) e uma cópia fac-similada do documento.

(5) Esta é uma versão francesa na Wikipédia, que aparentemente não cita sua fonte.

(5a) Esta é uma versão inglesa das 19 condições preliminares transcrita no Marxists.org.

Esta página contém o texto em inglês separado das condições 20 e 21, adicionadas posteriormente.

Aqui se lê o texto em inglês, diferente, das 21 condições na Wikipédia, com umas poucas explicações.

Pode-se ler aqui o texto em italiano retirado de um site de esquerda internacional, ou outra versão italiana, retirada do mesmo site.

Adendo (31/5/2023): Em sua página pessoal, o historiador canadense John Riddell também publicou sua tradução ao inglês das 21 condições, comparando com uma versão já existente no portal Marxists.org e com os originais em russo que ele achou nos arquivos digitais da Comintern.

(6) Todos os grifos estão nos dois originais.

(7) “... norueguês, iugoslavo e outros”: ausente no O-19.

(8) “... com os ditos sociais-democratas ‘de esquerda’”: no O-19, “com os reformistas”.

(9) “... e corresponder [...] da 3.ª Internacional”: ausente no O-19.

(10) “... proletária”: no O-19, “da revolução proletária”.

(11) Este parágrafo consiste na condição 12 do O-19, a qual se inicia com as palavras “Da mesma forma...”.

(12) “... partidárias”: ausente no O-19.

(13) “... encontrem”: no O-19, “encontrarem”.

(14) No O-19 o trecho que vai daqui até o fim da condição encontra-se no início dela.

(15) No O-19 a condição 4 tem esta redação: “São indispensáveis a propaganda persistente e sistemática nos exércitos e a formação de células comunistas em cada unidade militar. Os comunistas devem realizar a maior parte desse trabalho clandestinamente, e renunciar a ele equivale a trair o dever revolucionário e desmerecer a filiação à 3.ª Internacional.”

(16) “... da cidade e do campo”: ausente do O-19.

(17) “... tratado”: no O-19, “conferência”.

(18) “... oportunistas”: no O-19, “reformistas”.

(19) No O-19 constam apenas os nomes de Turati e de Modigliani.

(20) “... o que a levaria”: no O-19, “Tais nomes a levariam”.

(21) “... nos conselhos operários e industriais”: ausente no O-19.

(22) Condição 13 do O-19.

(23) “... ‘centralismo’”: sem aspas no O-19.

(24) Condição 14 do O-19.

(25) Condição 15 do O-19.

(26) Condição 16 do O-19.

(27) Condição 17 do O-19.

(28) Condição 18 do O-19.

(29) “... mas possui grande importância”: no O-19 a frase equivaleria a como se em português se adicionasse em seguida o adjetivo “política”.

(30) Condição acrescida na plenária do 2.º Congresso Mundial da Comintern.

(31) No O-19 a condição 19 tem esta redação: “Findos os trabalhos do Segundo Congresso Mundial da Internacional Comunista, os Partidos que desejam filiar-se a ela devem convocar um congresso extraordinário interno o mais rápido possível para corroborar oficialmente, em nome de seus militantes, as condições listadas acima.”

(32) Nas Sochinenia, 5. ed., p. 212, a condição 20 consta como um subtítulo à parte, de nome “Vigésimo artigo das condições de admissão na Internacional Comunista”.

(33) O subtítulo citado na nota anterior contém a seguinte nota de rodapé, de número 98: “O ‘Vigésimo artigo das condições de admissão na Internacional Comunista’ [grifo no original] foi incluído por V. I. Lenin na sessão da comissão do 2.º Congresso da Comintern de 25 de julho de 1920, durante a discussão das teses sobre as condições de admissão na Internacional Comunista. Essas teses, publicadas na revista Kommunisticheski Internatsional, ainda continham 19 condições até o início de sua discussão no congresso, o qual adotou, ao final, 21 condições.” Segue-se então o texto da condição 21.