sábado, 30 de março de 2019

“Dwa serduszka” (traduction française)


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Ce morceau est devenu très connu parmi les cinéphiles parce qu’il contient le thème central du film polonais Zimna wojna (Guerre froide), sorti en 2018 et qui a disputé en 2019 l’Oscar du meilleur film étranger. Le film aborde l’ère communiste en Pologne, et qui chante est la protagoniste Joanna Kulig, dans la première vidéo en version jazz arrangée par Marcin Masecki et avec paroles adaptées par Mira Zimińska-Sygietyńska, et dans la deuxième vidéo en choral populaire ayant Kulig à la tête. Le poème original, à vrai dire, est d’origine populaire et a reçu une mélodie composée par Tadeusz Sygietyński. Le mot serduszko en polonais peut exprimer le diminutif de serce (cœur) ou la représentation stylisée d’un cœur, qu’on utilise en général dans des contextes d’amour et passion.

Guerre froide est un film dramatique qui se passe en Pologne et en France dans les années 40, 50 et 60, et a pour sujet central le roman entre un musicien et une jeune chanteuse découverte par lui. Dans la 91e édition de l’Oscar le film dispute les prix du Meilleur film étranger, Meilleur réalisateur et Meilleure photographie, après avoir été très applaudi dans sa première et remporté le Prix de la mise en scène au Festival de Cannes en 2018. Wiktor Warski (joué par Tomasz Kot) et Zula Lichoń (jouée par Joanna Kulig) mènent une relation d’amour profond, obsessif et destructif, mais comme ils vivent à l’époque de la Pologne communiste, ils doivent s’adapter aux règles du régime pour travailler. Quand ils essaient de fuir vers l’Occident pour jouir de la liberté de création, ils voient une occasion qui apparait en France, mais le destin termine par les séparer.

Pianiste et chef d’orchestre d’un groupe folklorique, Wiktor connait Zula en 1949, quand il faisait des compilations de chansons populaires de la campagne, et tombe amoureux d’elle par son caractère et ses talents artistiques. Parmi les plusieurs voyages du musicien et parmi les plusieurs tournées du groupe folklorique de la jeune fille, ils se rencontrent et se séparent souvent. Entretemps, Wiktor arrive même à être détenu dans un camp de travail forcé en Pologne, sous l’accusation de trahison et franchissement illégal de frontières, après être retourné dans son pays. Écoutez toute la chanson enregistrée par Kulig exclusivement pour le film, et aussi une ancienne présentation faite par le célèbre groupe folklorique Mazowsze.

Moi-même ai traduit et sous-titré cette partie de la chanson, en utilisant cette version sans sous-titres avec le couple déjà à Paris, au café L’Éclipse, et cette version sans sous-titres avec la scène au théâtre polonais, dont on peut lire à la porte la bannière avec les mots Partia – Naród (Parti – Peuple). Bien que la première aille un texte en anglais, c’était le meilleur fichier que j’ai trouvé, parce qu’il y en avait un autre sans changements, mais avec délai entre le son et l’image. La fin des paroles, lesquelles j’ai copiées de cette page, est un peu différente entre les deux versions. Regardez ci-dessous les respectifs sous-titrages publiées sur la TV Eslavo (YouTube), et lisez le poème en polonais avec les deuxièmes couplets différents l’un après l’autre, et la traduction française :





Dwa serduszka, cztery oczy, ojojoj...
Co płakały we dnie, w nocy, ojojoj...
Czarne oczka co płaczecie,
Że się spotkać nie możecie,
Że się spotkać nie możecie...

Mnie matula zakazała, ojojoj...
Żebym chłopca nie kochała, ojojoj...
A ja chłopca hac! za szyję,
Będę kochać póki żyję,
Będę kochać póki żyję...

Mnie matula zakazała, ojojoj...
Żebym chłopca nie kochała, ojojoj...
Kamienne by serce było,
Żeby chłopca nie lubiło,
Żeby chłopca nie lubiło...

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Deux cœurs, quatre yeux, oï, oï, oï...
Qui pleuraient jour et nuit, oï, oï, oï...
Petits yeux noirs, vous pleurez
Car ne pouvez pas se rencontrer,
Car ne pouvez pas se rencontrer...

Ma maman m’a interdite, oï, oï, oï...
De m’intéresser à un garçon, oï, oï, oï...
Mais je l’ai pris par le cou,
Je vais l’aimer toute ma vie,
Je vais l’aimer toute ma vie...

Ma maman m’a interdite, oï, oï, oï...
De m’intéresser à un garçon, oï, oï, oï...
Il me fallait un cœur de pierre
Pour qu’il n’aime pas le garçon,
Pour qu’il n’aime pas le garçon...




quinta-feira, 28 de março de 2019

Um fim à laicidade forçada (texto, 2011)


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NOTA: Mais uma daquelas reflexões que escrevi quando tinha 23 anos, em 2011, quase terminando a faculdade de História. Com esse título, eu ainda tinha a obsessão sobre ateísmo e descrença, porque eu mesmo estava tentando me responder várias perguntas. Mas no final das contas, como era minha tendência, acabei misturando com questões históricas e políticas, e estes domínios predominaram na análise. Apesar do típico simplismo, lembrei que é quase impossível governar sem ter alguma conciliação com as grandes igrejas e retomei a noção de que sua separação institucional é muito recente, não cabendo mesmo hoje rupturas radicais. A grande sacada, ainda em 2011, foi supor que a “primavera árabe” tinha toda a possibilidade de se transformar num retrocesso, embora eu não previsse que ia desmontar toda a geopolítica mundial. Segue o texto sem alterações.



Religião é política. E os Estados democráticos não conseguem sustentar-se apartados do apoio e da conivência das grandes Igrejas. Essa verdade incômoda, pouco reconhecida em vários países ocidentais, desmente a possibilidade da existência de Estados realmente laicos dentro do modelo sócio-cultural em que vivemos.

O mesmo padrão é ainda mais verdadeiro às nações pouco desenvolvidas economicamente, nas quais a superstição é um substituto muito comum da ciência e da educação. E foi precisamente nesses países que a história comprovou ser fracassada de antemão qualquer tentativa lançada do alto de laicizar a sociedade ou de reduzir o papel e a influência das religiões na vida nacional.

O caso mais emblemático é o da Rússia soviética. E ele prova ainda que secularizações muito bruscas podem conduzir a formas ainda mais cruas de endeusamento e ritualização da política. Lenin, líder da revolução de outubro de 1917, passou boa parte de sua vida adulta exilado na Europa Ocidental desenvolvida e industrializada, em meio a círculos socialistas oficiosos ou conspiradores, longe do barbarismo e da supersticiosidade do atrasado império tsarista ortodoxo. Não sem antes, claro, ter recebido uma refinada educação típica de famílias abastadas para as quais o trabalho não era uma necessidade premente e ter cursado Direito, uma carreira então muito comum a jovens intelectuais politizados.

Ocidentalizado que era, Lenin aparentemente buscou moldar a Rússia à sua imagem e semelhança, ainda que seja muito duvidoso sugerir que ele pensasse e agisse mesmo como um russo médio ao querer realizar num salto a transição da Idade Média para o industrialismo avançado. E eis que surge Stalin, maior conhecedor da linguagem e das necessidades do povo e que, como já sabemos, amenizou o choque inicial ao criar uma nova espécie de fé orientalista em torno de sua pessoa e converter em teoria sagrada, ainda que em versão disforme, o comunismo marxista.

Em muitos países muçulmanos, o procedimento não foi diferente. Mustafá Kemal Atatürk, ditador que dissolveu o carcomido Império Otomano para fundar a Turquia moderna após a Primeira Guerra Mundial, obrigou a população a usar trajes ocidentais e impôs a substituição do alfabeto árabe pelo latino para escrever a língua nacional. No Irã, a dinastia ocidentalizante dos xás Pahlevi promoveu uma industrialização acelerada e uma inovação dos costumes cujos resultados de corrupção e pobreza ferveram o caldo de cultura propício à ascensão do regime islâmico, em 1979.

O iraquiano Saddam Hussein, recentemente enforcado pelos americanos, realizou diversas reformas, inclusive no tocante aos direitos das mulheres, mas ao custo de reprimir curdos e xiitas e de criar o cenário ideal para a explosão do radicalismo terrorista. Já a junta militar que está governando o Egito se depara com o duplo desafio de preencher o vazio deixado por três presidentes que, de 1953 a 2011, reprimiram a Irmandade Muçulmana, influente grupo extremista do país, e de atender aos clamores de uma população fortemente conservadora no quesito religião. Isso para não citarmos as autocracias laicas do Marrocos, Argélia, Tunísia, Síria, Iêmen e Jordânia, já depostas ou em vias de abalo ou desagregação.

Existem ainda exemplos caseiros e mais inteligíveis. Recentes ondas de ateísmo militante e humanismo secular promovem uma cruzada contra o que chamam de interferência religiosa no Estado laico brasileiro. Elas não conseguem enxergar, todavia, que esse mesmo Estado, por mais de trezentos anos, viveu umbilicalmente ligado à Igreja Católica e que, mesmo durante a República, o velho conúbio prosseguiu dando mostras de vitalidade. Elas não compreendem que, desde tempos quase imemoriais, qualquer estrutura governante sempre esteve atada a uma religião oficial, sendo ambas, por isso, frutos de um mesmo modelo institucional, e que a ideia dessa separação tem apenas pouco mais de dois séculos e meio. Se não é mais o credo romano que monopoliza a influência na política, ainda assim vemos leis que favorecem amplamente as instituições religiosas com isenção de impostos e proteção patrimonial em troca de mobilização de votos e de apoio político, quando os próprios sacerdotes não ocupam cargos nos três Poderes.

Enfim, esses novos movimentos não percebem que a superação das religiões instituídas virá somente quando for superado o atual modelo estatal, ou melhor, quando mudanças sociais mais profundas levarem de roldão esses dois gigantes. Em outras palavras, não é a retirada dos crucifixos das repartições públicas que tornará o serviço melhor, nem a adoção do ateísmo em larga escala que nos deixará mais ricos ou instruídos. Pelo contrário, é a construção de uma sociedade mais próspera, racional, autossuficiente e justa que dispensará o gasto de energia com fantasias sobrenaturais ou mitos consoladores.

O mesmo Lenin que citei atrás, num texto de 1905 chamado “Socialismo e religião”, ensina que a unidade dos trabalhadores para a construção do paraíso na Terra era mais importante do que sua unidade de opiniões sobre o paraíso no céu. Para ele, ainda que os revolucionários se declarem ateus, eles não podem fragmentar as forças que lhes é possível reunir por causa de delírios sem significado político e rapidamente “jogados no ferro-velho” pelo curso do desenvolvimento econômico.

Por isso, quem sabe não colaboremos melhor para a edificação de um mundo mais humano resolvendo nossos problemas materiais imediatos do que sonhando com Inquisições laicas bitoladas em miudezas ornamentais, fabulosas e, quando muito, lúdicas.


Bragança Paulista, 27 de agosto de 2011.



terça-feira, 26 de março de 2019

Joanna Kulig – “Dwa serduszka” (2018)


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Este trecho ficou muito famoso no mundo do cinema por conter o tema principal do filme polonês Zimna wojna (Guerra fria), lançado em 2018 e que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2019. O filme trata do período comunista da Polônia, e quem está cantando é a atriz protagonista, Joanna Kulig, no primeiro vídeo em versão jazz com arranjos de Marcin Masecki e letra adaptada por Mira Zimińska-Sygietyńska, e no segundo vídeo em coral popular com Kulig à frente. O poema original, na verdade, possui autoria anônima, e recebeu melodia própria de Tadeusz Sygietyński. A expressão serduszko pode significar em polonês o diminutivo de serce (coração) ou a figuração estilizada de um coração, que usamos em contextos apaixonados.

O filme Guerra fria é um drama que se passa na Polônia e na França entre as décadas de 40 e 60, e tem como centro do enredo um diretor musical que descobre uma jovem cantora e termina engatando um romance com ela. Nesta edição 91 do Oscar, a película concorreu aos prêmios de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Fotografia e Melhor Diretor, tendo sido muito aclamado ao estrear e ganhar a palma de Melhor Diretor no Festival de Cannes em 2018. Wiktor Warski (com o ator Tomasz Kot) e Zula Lichoń (interpretada por Joanna Kulig) levam uma relação de amor profundo, obsessivo e destrutivo, mas como vivem no período da Polônia comunista, têm que se adequar às regras do regime pra trabalhar. Tentando fugir pro Ocidente pra desfrutarem de liberdade criativa, veem uma oportunidade surgir na França, mas o destino acaba os separando.

Pianista e maestro de um grupo folclórico, Wiktor encontra Zula em 1949, quando fazia compilações de canções populares no interior, e se apaixona por seu caráter e talento de voz e dança. Entre as muitas viagens do músico e entre as muitas turnês do grupo folclórico da moça, eles vão se encontrando e se separando. Nesse meio Wiktor é inclusive preso num campo de trabalhos forçados na Polônia, acusado de traição e cruzamento ilegal de fronteiras, quando retornou um dia a seu país. Kulig gravou a faixa completa especialmente pro filme, e o famoso grupo folclórico Mazowsze também já tinha sua apresentação.

Eu mesmo traduzi e legendei o trecho da canção, tendo baixado um vídeo sem legendas com a cena do casal no bar L’Éclipse, em Paris, e outro vídeo sem legendas com a cena no teatro polonês, em cuja entrada há inclusive uma faixa escrita Partia – Naród (Partido – Povo). Apesar do primeiro ter legendas em inglês, foi o melhor que achei, pois um que estava sem intervenção nenhuma não tinha sincronia do som com a imagem. O final da letra, a qual copiei desta página, difere um pouco nas duas versões. Seguem as respectivas legendagens postas na TV Eslavo (YouTube), a letra em polonês com as segundas estrofes diversas se seguindo, e a tradução em português:





Dwa serduszka, cztery oczy, ojojoj...
Co płakały we dnie, w nocy, ojojoj...
Czarne oczka co płaczecie,
Że się spotkać nie możecie,
Że się spotkać nie możecie...

Mnie matula zakazała, ojojoj...
Żebym chłopca nie kochała, ojojoj...
A ja chłopca hac! za szyję,
Będę kochać póki żyję,
Będę kochać póki żyję...

Mnie matula zakazała, ojojoj...
Żebym chłopca nie kochała, ojojoj...
Kamienne by serce było,
Żeby chłopca nie lubiło,
Żeby chłopca nie lubiło...

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Dois corações, quatro olhos, oi, oi, oi...
Que choravam dia e noite, oi, oi, oi...
Olhinhos negros, vocês choram,
Pois não podem se encontrar,
Pois não podem se encontrar...

Minha mamãe me proibiu, oi, oi, oi...
De gostar de um rapaz, oi, oi, oi...
Mas o agarrei pelo pescoço,
Vou amá-lo por toda a vida,
Vou amá-lo por toda a vida...

Minha mamãe me proibiu, oi, oi, oi...
De gostar de um rapaz, oi, oi, oi...
Só sendo um coração de pedra
Para ele não amar o rapaz,
Para ele não amar o rapaz...




domingo, 24 de março de 2019

Ser ateu é bom? 3 – Ter ou não ter fé?


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NOTA: Na segunda metade de 2011 escrevi uma trilogia de pequenos artigos que revisei levemente em meados de 2012 pra republicar no blog Materialismo.net. O título geral é “Ser ateu é bom?”, e com ideias pessoais tento explicar as possíveis vantagens e poréns do abandono da própria religião ou mesmo da crença em deuses. Como eu disse outras vezes, não mais me preocupo tanto com autodefinição religiosa, e algum estudo histórico bastaria pra relativizar certas assertivas que lancei. Porém, esse exercício foi importante pra eu treinar redação e argumentação com textos e buscar libertar minha própria mente de certos medos. Na parte 3, “Ter ou não ter fé?”, relativizo o chavão de que o ateu seja necessariamente uma pessoa seca, amarga, apática ou obscura, coisas que na verdade ocorrem quando não se tem uma meta na vida. Pelo contrário, se antes as crenças religiosas podiam nos inibir, agora nos sentimos senhores de nosso destino e livres pra edificar uma felicidade real. Isso, claro, exige responsabilidade, pois não podemos atribuir nossas falhas a forças maiores nem atrapalhar a liberdade alheia. Segue abaixo o texto sem alterações.



Uma acusação quase sempre imputada ao ateu é a de que ele “não tem fé em nada”, ou seja, leva uma vida seca, sem regras, obscura e triste, portanto, sem moralidade, sem freios aos impulsos naturais e sem motivos para respeitar as outras pessoas. Assim, o ateu seria naturalmente alguém vazio e, ocasionalmente, até criminoso. Pode-se contrapor a isso que a fé, entendida como crenças pessoais, não é uma exclusividade das religiões, e que um ateu, por isso, pode levar uma existência radiante e plena de significado.

É claro que dizer que o ateu pode adotar princípios individuais edificantes não significa que ele deva fazê-lo, ou que sempre o faça. Não existem regulamentos que determinem no que o ateu deve ou não acreditar ou seguir, até porque, como eu já disse, o ateísmo por si só é a “crença numa ausência”, por isso não implica valores positivos compulsórios. Desse modo, podem existir ateus muito desorientados, mas o fato principal é que nem todo religioso alcança a felicidade e a satisfação com seus dogmas. Às vezes, eles lhe foram impostos de fora, sem escolha consciente, e se incrustaram em seu psicológico, constituindo, pois, mais um fardo do que um guia de aconselhamento. Esse foi o meu caso, e por isso meu rompimento com a religião foi mais doloroso.

Agora, uma questão crucial. Estudos clínicos dizem que as pessoas ativamente religiosas (trocando em miúdos, as que têm mais fé) vivem mais e são menos propensas a ficar doentes. E é verdade, além do que suas crenças constituem muitas vezes um consolo na fraqueza ou na iminência da morte. Admito isso, mas outras pesquisas também apontam que a moralidade não vem da religião, mas sim, de fatores bastante terrenos, desligados do seguimento a este ou aquele mito específico. Vamos tentar extrair um denominador comum: confiança em si, autonomia intelectual e perspectiva de um futuro cheio de planos ligados à realização pessoal. Pronto: o fator esperança!

A esperança, sim, é o denominador comum de todas as formas de confiança nos próprios princípios e na própria capacidade de superar problemas. Ela provém da consciência do quanto somos importantes para nós mesmos, para nosso círculo íntimo ou talvez até para grupos maiores. E como cada ser humano é um universo em si, apenas ele mesmo irá determinar o que desperta sua segurança. Deve-se reconhecer que a religião tem fatores que a deixam na frente, como a mitologia costumeiramente otimista e grandiloquente, o ritualismo hipnotizador e o senso de pertencimento a uma comunidade unida e solidária. Contudo, nada que possa ter papel diferente da leitura ou contato com exemplos de vida enobrecedores, da fruição do que há de melhor na arte visual e musical e de um círculo de amigos ou coidealistas fiel e sincero.

Além disso, a lista de prioridades ético-sociais (sempre ligada, como se afirmou acima, a uma suficiente autoestima e a um conhecimento da importância do sujeito para o meio em que vive) varia muito de acordo com as experiências particulares. Um ponto pacífico é que, por razões evolutivas e históricas, nunca nos sentimos bem ou seguros quando os outros são prejudicados (ao menos que sejamos vítimas de um rancor anormal), já que cada vez mais ampliamos nossa capacidade comunitária existente desde a condição de primatas. E o que condiciona a manutenção desse estado é justamente a liberdade para que todos sejam si mesmos, desde que isso não prive os vizinhos do mesmo direito. E, o mais importante, nós mesmos não nos privarmos de tal desfrute, seja por pressões internas ou externas à nossa mente.

Encontramos, finalmente, a essência da “fé do ateu”, se é que pode ser assim chamada e se é que, por vicissitudes próprias, todos comungam desta mesma qualidade: o fim da escravidão às unanimidades forçadas e a coragem de se colocar como subjetividade autônoma, cujas vivências e contribuição ao mundo têm valor igual ou maior ao de iluminações privadas transformadas em códigos imutáveis, idólatras e alienantes.


Bragança Paulista, 25 de setembro de 2011.
Levemente modificado a 16 de julho de 2012.


sexta-feira, 22 de março de 2019

Tito e Fidel, comunistas dos anos 1960


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Estes dois vídeos meus na TV Eslavo (YouTube) foram iniciativas de postagem isoladas, por isso não se encaixavam a princípio num tema comum que pudesse ser transformado num texto desta página. Mas sendo filmagens com dois líderes destacados do movimento comunista no início dos anos 1960, achei que valia a pena apresentá-los juntos aqui. Nessa década, o movimento comunista chegaria ao auge de seu prestígio, e as lutas anticoloniais e de libertação nacional, apoiadas ainda pelos chamados “países não alinhados”, constituiriam um novo campo fértil pra experiências políticas vindas de Moscou.

Contudo, a partir do fim da década, sobretudo depois da intervenção contra as reformas na Tchecoslováquia em 1968, a popularidade do comunismo soviético caiu gradualmente. Desde o mesmo ano, com as explosões de revolta juvenil em Paris e outras capitais ocidentais, o maoismo chinês parecia ser uma nova alternativa, mas ele também logo se revelaria autoritário e dogmático. Tito, da antiga Iugoslávia, tinha ganhado prestígio como chefe da resistência antifascista nos Bálcãs, mas sua experiência já estava fortemente institucional. Fidel Castro, de Cuba, gozava da aura jovem que passava a maioria dos líderes de sua revolução, e ainda hoje exerce razoável fascínio nas esquerdas latino-americanas. Mas o experimento real do socialismo cubano perdeu grande parte da atratividade, pois as lideranças não se renovaram, Fidel morreu em 2016 e as presentes reformas convivem com estagnação e pobreza.



O primeiro vídeo é um trecho de documentário soviético que eu mesmo já traduzi e legendei, contando a visita de Fidel Castro Ruz, líder de Cuba, a Moscou e outras localidades da URSS em 1963. Comandante da Revolução Cubana de 1959, ele está fazendo o encerramento do discurso aberto ao público em 28 de abril, na tribuna do mausoléu de Lenin na Praça Vermelha. Parece que só existe uma cópia sem legendas da cinecrônica inteira no YouTube, postada por alguém que fala espanhol e ainda com poucas visualizações.

Na montagem que eu fiz, vocês podem escutar o discurso três vezes, com legendas em português, espanhol (língua original) e russo. Nesta edição em PDF do jornal soviético Krasnoe znamia podem-se ler os discursos completos de Nikita Khruschov e Fidel Castro em russo. Como o que foi dito durante a interpretação consecutiva não é idêntico ao que foi transcrito no jornal, segue o texto em russo, com algumas divergências entre colchetes:

“Позвольте мне от полноты чувств [как самое справедливое выражение моих чувств] [в честь того, кто больше был достоин] воскликнуть – слава Ленину! Да здравствует пролетарский интернационализм! Да здравствует дружба между кубинским и советским народами! Да здравствует Советский Союз! Родина или смерть! Мы победим!”

(Permitam-me, como a mais justa homenagem a quem teve o mérito maior, exclamar: Viva Lenin! Viva o internacionalismo proletário! Viva a amizade entre o povo soviético e o povo cubano! Viva a União Soviética! Pátria ou morte! Venceremos!)



O segundo vídeo são breves frases de um famoso discurso público de Josip Broz, o Marechal Tito, presidente da Iugoslávia socialista, feito na cidade croata de Split, em 7 de maio de 1962. Um vídeo com os principais trechos do discurso está há mais de 10 anos no YouTube, mas nunca achei a transcrição da fala. Mesmo tendo estudado um pouco de servo-croata por algum tempo, ainda não me sinto capaz de transcrever só de ouvido, até porque às vezes o líder fala meio rápido.

Só sei que na Biblioteca de Belgrado há um exemplar, não disponível online, desse discurso completo em Split, e certamente sem grandes alterações. Após algum esforço, consegui achar apenas a transcrição da segunda parte deste vídeo, cujo editor felizmente lhe melhorou a qualidade. São dois trechos isolados, usuais em sites de citações. O grande problema foi que, assim como outros trechos do discurso, não consegui achar nem mesmo o que Tito fala na primeira parte.

Comparando com várias fontes e com o áudio de Tito, eu mesmo fiz uma transcrição fixa, traduzi, legendei e cortei o quadro e alguns trechos do upload citado, cujo canal recomendo que vocês visitem com mais atenção. Ao final, Druže Tito, mi ti se kunemo (Camarada Tito, somos fiéis/leais a você) era uma espécie de refrão popular cantado na época da ditadura, sob diferentes versões. Seguem o texto em servo-croata (alfabetos latino e cirílico) e as traduções em português e francês (esta feita pra um grupo de debates):

“Mi smo more krvi prolili za bratstvo i jedinstvo naših naroda. E nećemo nikome¹ dozvol’ti da nam dira ili da nam ruje iznutra, da se ruši to bratstvo i jedinstvo. [...] Ni jedna naša republika ne bi bila niko i ništa, da nismo svi zajedno! A mi moramo stvarati... a mi moramo stvarati svoju istoriju, svoju jugoslavensku² socijalističku istoriju i jedinstvenu ubuduće.”

¹ Forma mais comum: “nikomu”.
² Forma mais comum: “jugoslovensku”.

“Ми смо море крви пролили за братство и јединство наших народа. Е нећемо никоме дозвол’ти да нам дира или да нам рује изнутра, да се руши то братство и јединство. [...] Ни једна наша република не би била нико и ништа, да нисмо сви заједно! А ми морамо стварати... а ми морамо стварати своју историју, своју југославенску социјалистичку историју и јединствену убудуће.”

(Derramamos um mar de sangue pela fraternidade e unidade de nossos povos. E não permitiremos que ninguém nos ataque, nem conspire de dentro, nem destrua essa fraternidade e unidade. [...] Nenhuma república nossa seria algo ou alguém se não estivéssemos todos juntos. E devemos escrever... e devemos escrever nossa própria história, nossa própria história socialista iugoslava e unida para o futuro.)

(Nous avons versé une mer de sang pour la fraternité et l’unité de nos peuples. Nous ne permettrons pas que personne ne nous attaque, conspire de dedans, détruise notre fraternité et unité. Aucune république à nous ne serait rien si nous n’étions pas tous ensemble. Nous devons créer notre propre histoire socialiste yougoslave et unie pour l’avenir.)




quarta-feira, 20 de março de 2019

Ser ateu é bom? 2: ciência e subjetivos


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NOTA: Na segunda metade de 2011 escrevi uma trilogia de pequenos artigos que revisei levemente em meados de 2012 pra republicar no blog Materialismo.net. O título geral é “Ser ateu é bom?”, e com ideias pessoais tento explicar as possíveis vantagens e poréns do abandono da própria religião ou mesmo da crença em deuses. Como eu disse outras vezes, não mais me preocupo tanto com autodefinição religiosa, e algum estudo histórico bastaria pra relativizar certas assertivas que lancei. Porém, esse exercício foi importante pra eu treinar redação e argumentação com textos e buscar libertar minha própria mente de certos medos. Na parte 2, “Ciência e subjetividade”, critico a elevação da atividade científica como se fosse uma nova espécie de verdade imutável e afirmo que a maior missão do ateísmo deve ser a busca por uma nova escala de valores e de vivência pessoal da realidade. Isso porque, segundo penso, o excessivo cientificismo também pode levar a extremos autoritários. Segue abaixo quase inalterado.



Muitas vezes, o ateísmo é associado a uma sobrevalorização da ciência, e de fato, quando deixam de seguir os regulamentos religiosos, os ateus costumam guiar sua vida e seu raciocínio pelas descobertas científicas e pela autonomia crítica. Porém, é um erro pensar que a ciência é uma nova deusa que resolve todos os problemas, e mesmo o ateu que pensa assim termina por castrar sua inteligência e seus sentimentos.

Na sociedade ocidental, ciência e religião só começaram a separar-se na prática por volta do fim da Idade Média, no início da revolução renascentista. Antes, não se desligavam os ofícios eclesiásticos das atividades intelectuais, e por isso tantas igrejas originaram universidades, e tantos sacerdotes foram homens de letras e de investigações empíricas. A laicização do Ocidente fez com que se reconhecesse oficialmente essa separação epistemológica efetiva entre produção do conhecimento e serviço espiritual.

No contexto cultural ocidental, a negação de Deus está relacionada à superação das categorias duais corpo/mente, carne/espírito, razão/emoção e outras correlatas, intrínsecas ao encontro da filosofia neoplatônica com a patrística cristã. Outras civilizações trataram de abordar os mistérios do pensamento e da realidade em termos bastante diferentes, ou até mesmo mais integrados, e por isso “seus” ateus e secularistas podem raciocinar com leves diferenças. Mas agora, cabe tentar fechar o círculo que frequentemente vincula o ateísmo ao primado da apreensão da realidade bruta.

A partir da laicização citada acima, os benefícios trazidos pelo progresso técnico implicaram num gradual reconhecimento de sua utilidade e predominância sobre as concepções mágicas do mundo. Porém, eles também evoluíram lentamente em doutrinas que julgaram ser a percepção exterior passiva a única forma de encontrar a si mesmo no mundo, negando, portanto, qualquer valor das particularidades de cada sujeito na construção do próprio ser. Essa “ditadura da objetividade” descambou nos totalitarismos e formas de supressão da subjetividade conhecidos no século 20, e fez com que muitos oportunistas clericais caíssem no outro extremo ao conferir à iluminação divina o único mérito pelo conhecimento autêntico, ou ao menos pregassem a existência de uma “dimensão religiosa” inerente a todos (que não seria uma ideia má se não fosse imbricada à própria crença de quem a postula).

Mas seria desagradável voltar à situação de antes. Nem mesmo para os laicos a tentação dualista confere produtividade na apreensão do meio, e certamente um imanentismo saudável, que considere a validade igual das contribuições pessoais e dos compartilhamentos coletivos, acabe de vez com a perpetuação de categorias que escravizam o Ocidente há dois mil anos. Não se trata mais de lutar de modo quixotesco contra seres mitológicos, mas, acima de tudo, de extirpar os autoritarismos de nosso modo de pensar e de agir: tanto o do “corpo do povo” que tiraniza o indivíduo quanto o do sonho privado jogado goela abaixo dos subordinados ou concidadãos.

Assim, chegamos à conclusão de que um passo importante do “fato ateu” é superar, ao mesmo tempo, o fracionamento das experiências humanas em partes desconectadas e a supressão do eu em prol de falsos universais, mais semelhantes à castração a ser combatida do que à emancipação humana pretendida com o fim da religião.


Bragança Paulista, 24 de setembro de 2011.
Levemente alterado a 13 de julho de 2012.


segunda-feira, 18 de março de 2019

Bobby Solo: Una lacrima sul viso, 1964


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Esta é a famosa canção romântica italiana Una lacrima sul viso (Uma lágrima no/sobre o rosto), cantada pelo artista Bobby Solo e gravada em disco pela primeira vez em 1964. Ela é composição conjunta do próprio cantor com o letrista, produtor e escritor Giulio Rapetti “Mogol” (n. 1936), com a qual ele concorreu no Festival de Sanremo de 1964. Eu mesmo traduzi, legendei e cortei o quadro do vídeo original.

Como se lê na Wikipédia italiana, a letra “descreve os sentimentos de um homem que descobre os sentimentos de uma garota por meio de uma lágrima no rosto dela; descoberta que leva a florescer o amor recíproco”. Naquela edição de Sanremo, Bobby Solo dividiu o palco com o cantor americano Frankie Laine, que interpretou uma versão em inglês da música, com o nome For Your Love. Por sua semelhança com Elvis Presley, Bobby foi a revelação do festival, mas na final ele teve de atuar usando um playback, pois tinha sido acometido por uma laringite. Como isso infringia o regulamento, a canção não venceu o concurso, mas por 8 semanas Una lacrima sul viso ficou no topo das paradas. Na sequência, foi produzido um filme com o mesmo título, do gênero então chamado musicarello, no qual Bobby Solo atuou com Laura Efrikian, a mesma de Gianni Morandi que já citei outras vezes.

A música de Bobby e Mogol saiu em fevereiro de 1964 num compacto junto com a faixa Non ne posso più, álbum que vendeu 3 milhões de cópias no mundo todo e ganhou um disco de ouro. Vários outros cantores regravaram a canção, assim como músicos que lhe deram versões instrumentais, e ela também apareceu em filmes de diversas origens. Porém, como Roberto Satti (nome real de Bobby Solo) não era então registrado na Sociedade Italiana de Autores e Editores, quem assinou Una lacrima sul viso com Mogol, sob o pseudônimo Lunero (como podemos ver no upload original), foi Iller Pattacini (1933-2006), músico, compositor, arranjador e maestro italiano. Nascido em 1945 numa família do nordeste, Bobby já se interessava por rock e por Elvis (a quem imitava) desde adolescente, e já em 1963 gravaria seu primeiro compacto. O ápice do sucesso se deu nos anos 60, tendo se dedicado na década seguinte mais à produção e, depois, voltado gradualmente à cena, com carreira prolífica até hoje.

Esta é das muitas canções que, por ter sido “top” na Itália, também chegou a ser muito admirada no Brasil, sobretudo nos centros urbanos do Sul e do Sudeste com ascendência italiana. Muitas senhoras de idade sempre se recordam dela, e há alguns anos, antes do império das redes sociais, vídeos com apresentações de Bobby Solo ao vivo circulavam pelos e-mails. Como, por isso, a conheço há bastante tempo, tenho um carinho especial por ela. A letra é bem conhecida, então pode ser encontrada em diversas fontes, tendo eu feito apenas uns reparos redacionais. Seguem abaixo a legendagem que postei na TV Eslavo (YouTube), a letra em italiano e a tradução em português:




Da una lacrima sul viso
Ho capito molte cose.
Dopo tanti, tanti mesi, ora so
Cosa sono per te.

Uno sguardo ed un sorriso
M’han svelato il tuo segreto:
Che sei stata innamorata di me
Ed ancora lo sei.

Non ho mai capito,
Non sapevo che...
Che tu, che tu,
Tu mi amavi ma,
Come me, non trovavi mai
Il coraggio di dirlo, ma poi...

Quella lacrima sul viso
È un miracolo d’amore
Che si avvera in questo istante per me,
Che non amo che te.

Non ho mai capito,
Non sapevo che...
Che tu, che tu,
Tu mi amavi ma,
Come me, non trovavi mai
Il coraggio di dirlo, ma poi...

Quella lacrima sul viso
È un miracolo d’amore
Che si avvera in questo istante per me,
Che non amo che te...
Che te, che te...
Te...

____________________


Por uma lágrima no rosto
Pude entender muita coisa
Após tantos meses, agora sei
O que represento para você.

Um olhar e um sorriso
Me revelaram seu segredo:
Você tinha paixão por mim
E ainda está apaixonada.

Eu nunca compreendi,
Eu não sabia que...
Que você, que você,
Você me amava, mas,
Como eu, nunca tomava
Coragem para dizer, mas aí...

Aquela lágrima no rosto
É um milagre de amor
Feito neste instante para mim,
Que amo somente você.

Eu nunca compreendi,
Eu não sabia que...
Que você, que você,
Você me amava, mas,
Como eu, nunca tomava
Coragem pra dizer, mas daí...

Aquela lágrima no rosto
É um milagre de amor
Feito neste instante para mim,
Que amo somente você...
Só você, somente você...
Você...




sábado, 16 de março de 2019

Ser ateu é bom? (1: questão de valores)


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NOTA: Na segunda metade de 2011 escrevi uma trilogia de pequenos artigos que revisei levemente em meados de 2012 pra republicar no blog Materialismo.net. O título geral é “Ser ateu é bom?”, e com ideias pessoais tento explicar as possíveis vantagens e poréns do abandono da própria religião ou mesmo da crença em deuses. Como eu disse outras vezes, não mais me preocupo tanto com autodefinição religiosa, e algum estudo histórico bastaria pra relativizar certas assertivas que lancei. Porém, esse exercício foi importante pra eu treinar redação e argumentação com textos e buscar libertar minha própria mente de certos medos. No número 1, “Questão de valores”, tento dar minha definição particular de ateísmo e desfazer, mesmo que de modo um tanto rasteiro, alguns mitos a respeito. Segue abaixo sem alterações.



Será que ser ateu é bom? Será que o ateísmo é melhor do que a religião? Isso depende do que você faz de sua vida depois que abandona a crença em deuses e em sacerdotes, portanto ela pode se tornar melhor ou pior. Mas uma coisa é certa: as vantagens são garantidas se a transformação se dá no sentido da preocupação com o outro, do desenvolvimento do senso crítico e da supressão de medos espirituais.

Primeiro, o que é o ateísmo, afinal? Longe das definições filosóficas estritas, neste texto vale o seguinte consenso, com base no que se observa mais comumente: rejeição da crença em seres ou mundos sobrenaturais e da condução da vida conforme regras ditadas por pessoas que dizem tê-las aprendido por revelação ou iluminação instantânea, portanto regras sagradas. Não é a ausência de crença, mas a crença numa ausência, ou seja, no mais das vezes, “ateísmo forte”. Se fosse só ausência de crença, todos os não teístas (taoístas, budistas, confucionistas, agnósticos, céticos e outros) seriam ateus, o que excluiria a frequente negação de antigas tradições consolidadas.

Ora, mas muita gente não matou em nome do ateísmo? Na verdade, não. Na Revolução Francesa, teístas ou deístas também mataram, acima de tudo, representantes de um poder absolutista opressor e atrasado, inclusive de seu braço espiritual, a Igreja Católica. Já nos países socialistas, a perseguição foi contra os adversários do regime e da filosofia marxista que virou doutrina de Estado. Nesses expurgos, muitos comunistas ateus fiéis também foram subtraídos de suas vidas.

Mas o ateísmo não implica a ausência de valores morais? Não necessariamente. Para começar, muitos dos valores ocidentais modernos vieram de fora do cristianismo: liberdade de expressão e pensamento, democracia política, tolerância à fé e às ideias alheias, estima da inteligência e do raciocínio, livre comércio, Estado laico, sexo sem culpa e por aí vai. Houve e há muitos ateus cretinos, mas houve e há também religiosos iguais. Herança genética e criação familiar e social parecem ter mais peso sobre a formação do caráter, e o que nele há de bom ou de ruim pode ser potencializado pela tranquilidade ou agressividade com que se defende uma crença, religiosa ou não.

Na verdade, a libertação da religião impele a pessoa a buscar valores mais ligados à própria vontade, felicidade e capacidade ou disposição a contribuir para o bem da humanidade. O ateu consciente aproveita para preencher a nova lacuna com uma ética construtiva e altruísta, centrada no respeito ao próximo, na desconfiança cética dos dogmas cegos, no amor ao conhecimento e ao aprimoramento pessoal, na busca de um prazer livre de arrependimentos, mas sem excessos, e na conservação do meio-ambiente e da qualidade de vida.

É claro que cada um vai traçar sua própria hierarquia de prioridades, mas é certo que o ateísmo, conservada sua roupagem progressista e democrática original, é muito bom. Ele nos leva a sermos donos de nossa própria consciência, a assumirmos a responsabilidade por nossos próprios sucessos e fracassos e a nunca nos contentarmos com uma só fonte de informação, mas aceitarmos sempre comparar opiniões diferentes em busca do correto e do verdadeiro.


Bragança Paulista, 17 de setembro de 2011.
Levemente modificado a 11 de julho de 2012.


quinta-feira, 14 de março de 2019

Que significa o domínio .SU da internet


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Na foto acima, bem como na última que ilustra esta página, vocês podem ver um dos modelos do computador soviético Rassvet. A peça integra a coleção particular do russo Sergei Frolov, que tirou suas fotos em 2009 e as postou numa página pessoal, além de ter postado explicações em russo num fórum. Este dinossauro feito de um verdadeiro aparelho de TV tinha memória RAM com incríveis 32 KB!

Anteontem, dia 12 de março, fez 30 anos que surgiu a WWW, rede mundial de computadores que deu origem à nossa internet. Quem já visitou sites russos sobre comunismo e história da União Soviética, ou até com pirataria midiática e bibliográfica, já deve ter se deparado com o domínio .SU no fim de alguns endereços (como .BR é Brasil, .FR é França, .JP é Japão etc.). Às vezes é fácil de confundir com .RU, que é da própria rússia moderna. Mas... o que o primeiro significa?

Quando a internet comercial estava ganhando o mundo, na virada pros anos 90, a União Soviética, segunda potência industrial da época, mas bastante atrasada no quesito tecnológico e computacional, não podia ficar de fora. Como seria a comercialização do serviço numa hipotética URSS sobrevivente, podíamos especular. mas gradualmente, seguindo critérios diversos, cada país começou a receber seu próprio domínio. Pros soviéticos, foi reservado .SU, por vir do inglês Soviet Union: a maioria dos domínios, mesmo de países orientais, foi calcada no inglês.

Porém, apenas 15 meses depois de sua criação, o país deixou de existir. Até 1993, quando foi enfim criado o domínio .RU, as organizações russas continuaram usando o antigo domínio, mas ele continuou sendo disponibilizado pra negociação, apesar das tentativas de extingui-lo. Hoje ele é administrado pelo Instituto Russo para o Desenvolvimento das Redes Públicas, que não prevê sua desativação.

Curiosidade: a partir de 1989 foram sendo criados também domínios pra vários antigos países comunistas da Europa, como .DD (Alemanha Oriental), .CS (Tchecoslováquia) e .YU (Iugoslávia). Mas a história foi injusta:

  • As Alemanhas se reunificaram em 1990, e o domínio .DD foi usado apenas internamente pelas universidades de Jena e Dresden (lado comunista), até ser enfim desativado.
  • A Tchecoslováquia se bipartiu, e embora .CS fosse bastante usado até ser apagado em 1995, a República Tcheca (.CZ) e a Eslováquia (.SK) migraram pros próprios domínios.
  • Já a Iugoslávia, que foi perdendo várias repúblicas, só adotou o nome Sérvia e Montenegro em 2003, e o domínio sobreviveu até 2010. Desde então, só valem os domínios .RS (Sérvia) e .ME (Montenegro) das repúblicas que tinham enfim se separado em 2006.



terça-feira, 12 de março de 2019

Religião é política? E a ciência é ateia?


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NOTA: Este texto meu de 2011 é um dos mais interessantes, pois toca direto nos cernes do problema e tem estilo leve, fluido, sem palavras rebuscadas ou excessiva formatação em negrito ou itálico. Ele ainda é parte daquela onda na qual, tendo tomado contato com o marxismo dialético a partir, sobretudo, de Gramsci, eu enxergava a sociedade como um “todo orgânico” de instituições inter-relacionadas, de forma que suas funções se complementavam ou até intercruzavam. Porém, ainda ansioso por romper com o dogmatismo religioso e a doutrinação forçada, creio que forcei em certas associações e definições quanto ao papel e natureza da religião e a como igrejas e Estados funcionam na prática. O artigo é mais um dos meus inúmeros exercícios de tatear o real naquela época formativa, então tem as limitações compreensíveis do meu pouco estudo, mas vale pela coragem de enfrentar os dilemas e de tentar articular ideias de forma autônoma. Fiz apenas algumas alterações redacionais pra atualização.



Duas perguntas essenciais devem ser respondidas pelos movimentos ateus, céticos e laicos no desenrolar de suas lutas se eles quiserem ir para frente e adquirir consistência visual, teórica e combativa. A primeira é se as religiões instituídas são uma forma de fazer política, ou, mais ainda, se elas mesmas são uma espécie de braço espiritual dos Estados modernos para que estes façam valer seus discursos morais e cívicos. A segunda é se a ciência, tomada como instrumento de análise e transformação racional e padronizada da realidade, deve definitivamente se assumir como partidária do ateísmo e, portanto, combater as religiões de modo militante, em concomitância com sua atividade profissional e objetiva obrigatória.

Não pretendo aqui esgotar a questão, que deve ser resolvida por todos aqueles racionalistas e fiéis que batalham pela não interferência de interesses privados nas esferas coletivas. Ainda assim, desejo dar minha contribuição, mesmo parcial e incompleta. Penso que, de acordo com um conceito mais amplo sobre o que é fazer política, não só as religiões instituídas, ao menos no Brasil e em alguns países em que elas exercem grande influência, são agentes poderosos de interesse e atuam conforme regras de conciliação e acomodação bastante terrenas, como também o Estado ainda lhes reserva uma grande dívida no sentido de mobilizar apoio para seus projetos de unidade patriótica e lhes tributa inúmeros privilégios patrimoniais e fiscais como retribuição ao preenchimento de lacunas, por vários séculos, que o poder público não quis ou não pôde suprir. Da mesma forma, segundo um conceito particular de religião, não julgo ser a ciência totalmente competente para intervir em assuntos de fé, a não ser que estes passem a concernir e a intervir no mundo real e na própria prática científica.

Vamos à questão do Estado, primeiramente. Hoje se defende que o Estado e os poderes públicos devem ser laicos, ou seja, separados de qualquer crença religiosa e de seus responsáveis. Parece-me que a pergunta deve ser não só reformulada, mas também especificada: será que, nos países em que as religiões ainda conservam enorme ou significativo poder, o Estado pode ou tem condições de ser laico? Antes de tudo, é preciso atentar ao fato de que, desde o início da história, os sacerdotes ou mágicos eram parte do poder coercitivo ou ordenativo, e isso tanto nas civilizações que chegaram a desenvolver comércio e escrita quanto nas pequenas tribos isoladas de todo o contato externo. Ou seja, nem se cogitava a separação entre autoridades temporais e espirituais tão corrente hoje. Tal característica passou intocada nos povos grego e romano (primeiro pagão e depois cristão) e nas monarquias feudais, sempre constituindo um crime o desvio ou a contestação do credo oficial.

Só com o Iluminismo do século 18 passou-se a postular a cisão entre Igreja e Estado, embora Hobbes e Locke, um século antes, já tenham contestado a ideia do direito divino dos reis. Veio a Revolução Francesa, que levou a sugestão à prática, mas vieram também Napoleão, que fez a concordata com Roma, e a Santa Aliança, que, no século 19, fez retrocederem todos os movimentos revolucionários. A salvação para o apartamento entre os assuntos eclesiásticos e governamentais na Europa e em países de desenvolvimento semelhante foi o progressivo avanço da ciência, da educação e da cultura, que laicizaram a sociedade – e continuam laicizando – e cujo processo não foi atrapalhado por alguns países que decidiram manter cultos oficiais.

Quanto aos povos de língua portuguesa – e espanhola, em algum grau –, embora pudessem ser citados outros casos semelhantes, as Luzes nunca chegaram com plenitude até aí. No caso do Brasil, a empreitada missionária aportou junto à colonizadora, e por séculos, mesmo após a proclamação da República laica, os jesuítas e outras ordens religiosas, ainda que com cortes pontuais, mantiveram o monopólio de nossa educação. O Império brasileiro foi oficialmente católico até o fim, quando nem mesmo os clérigos suportavam mais a ingerência estatal em seus assuntos. Em Portugal, a atrasada monarquia católica só acabou em 1911, e pouco depois o ditador Salazar ia tornar o clero novamente uma espécie de colaborador privilegiado do regime. Novamente na América, por volta dos anos 1930, mais de 90% de nossa população ainda era católica, e ações que vão desde a construção do Cristo Redentor e a cessão de seus direitos à Igreja até a instituição do feriado de 12 de outubro, em 1980, deixam claro quem ainda emocionava as mentes do povo. Paradoxalmente, desde a década de 1970, alguns setores católicos não desprezíveis se veriam embrenhados na oposição à tirania militar e às torturas e na defesa dos direitos das populações da floresta e dos pequenos agricultores contra a opressão latifundiária.

Hoje em dia, a Igreja controla grande quantidade de dinheiro, pessoas e instituições e não deve ser totalmente marginalizada das polêmicas que envolvam direitos humanos, políticas familiares e projetos de inclusão social, até porque ela já tomou parte em muitas delas com inegável sucesso. No caso das religiões evangélicas pentecostais e neopentecostais, vários dados novos se incluem: a formação de bancadas legislativas fortes, o vertiginoso crescimento do eleitorado, o domínio de gigantescos montantes financeiros e midiáticos e um extremo conservadorismo moral e religioso. Os movimentos secularistas devem ser mais duros com eles, mas isso não impede que o diálogo deva ser paciente, longo e não dogmático, até porque agora também o pentecostalismo penetrou em muitas iniciativas beneficentes, sociais e educacionais. Política é isto: todos cedem algo e todos ganham alguma coisa, em nome de um equilíbrio frágil que só terá fim quando os modelos atuais de Estado e sociedade também tiverem passado. Mas aí os problemas já serão outros...

E a ciência, onde entra nisso? Ela deve tomar parte em assuntos políticos e religiosos? O primeiro traço visível de sua história é que por muito tempo ela não foi separada nem da técnica, nem do poder dominante e nem, portanto, da magia. Os próprios filósofos gregos e romanos não se consideravam cientistas, e suas reflexões, quando não imbricadas ao poder, não se separavam das soluções práticas cotidianas. Na Idade Média, os ofícios profissionais não costumavam teorizar sobre seus procedimentos, e apenas com a Renascença a redescoberta do conhecimento da Antiguidade Clássica, somada às próprias inovações da época, inclusive espirituais (Reforma, heresias etc.), deu margem à autonomia do planejamento intelectual face à execução grosseira da produção material. Muitos cientistas dos séculos 17 e 18 se diziam religiosos, até que no século 19 doutrinas aparentadas em maior ou menor grau ao positivismo cismaram que a ciência deveria suplantar a religião. Marx, Engels e Lenin bem lembraram que os delírios místicos só desapareceriam por si sós quando o mundo alcançasse um alto progresso material, mas vieram lá o nazismo e o stalinismo e, com uma caricatura da superioridade da ciência e da razão, quase exterminaram a humanidade. Pouco depois, parece ter surgindo naturalmente uma tácita separação amigável, mas atualmente a questão voltou à tona com o acirramento dos fundamentalismos religiosos anticientíficos em diversos pontos do planeta. Afinal, a ciência é intrinsecamente ateia e antirreligiosa?

Algumas categorias devem ser postas em pratos limpos. Antes de mais nada, ao contrário dos animais, o ser humano sempre foi um ser de transcendência, quer dizer, constantemente tentou enxergar, e conseguiu, além da realidade que se lhe apresentava em estado bruto e, com isso, não só a transformou segundo suas necessidades como também, com suas elucubrações mentais, erigiu civilizações. Esse processo de reorganização do real na própria mente é extremamente subjetivo, e por isso os conflitos pessoais sempre hão de surgir; ainda está para se verificar, contudo, se existem também “subjetividades grupais” que condicionam uma mesma transcendência a certos grupos de pessoas (países, etnias, religiões, clubes etc.). Essa subjetividade particular não deixa de ser influenciada pelo próprio meio objetivo, comum a todas as pessoas, mas, por causa das diferenças individuais, enxergado de modos diferentes. Essas discrepâncias é que tornaram a raça humana tão multifacetada, mas não impediram que a referida capacidade de transcendência a fizesse evoluir. (Talvez seja esse o sentido da frase de Einstein segundo a qual a religião sem a ciência é cega, e a ciência sem a religião é capenga.)

Por um acaso do destino, alguns desses projetos subjetivos se erigiram em visões de mundo políticas e religiosas consolidadas, e passaram a ser impostos aos outros cidadãos, e o que era apenas uma peculiaridade privada tornou-se lei obrigatória a conjuntos maiores. É um longevo fruto da maldade humana com o qual os cientistas devem lidar. Ainda que os sacerdotes em geral não reconheçam, cada um cria seus deuses – eis a essência original da religião –, e é nisso que a ciência, transformadora do objetivo, não deve se meter, mesmo sendo ela um conflito de subjetividades. Nesse caso, nem classificação ela tem: ateia, agnóstica, antiteísta, nada disso. Todavia, quando o sujeito se metamorfoseia em dado concreto do mundo real, a postura deve ser dialógica: convivência pacífica e negociada com instituições que respeitam a pluralidade do espaço público, crítica e combate daquelas subjetividades que desejam tiranizar suas semelhantes ou a própria dimensão objetiva do entendimento. O tratamento para com as religiões fica aí subentendido, embora só cada ocasião decidirá pela neutralidade ou pelo anticlericalismo.

Ciência, religião e política como filhas de uma mesma matriz, apartadas pelos azares do tempo e agora, numa dissertação marginal e despretensiosa, colocadas no mesmo saco para complicar ainda mais a análise laicista da sociedade? Se a leitora ou o leitor quiser, sim, uma tese incômoda e complexa. Entretanto, o caso é que a realidade é assim mesmo, um todo orgânico e contraditório de partes aparentemente conflitantes, mas muito interdependentes. Quando parece que encontramos a chave da compreensão do mundo, ela nos escapa como água pega com as mãos. Mas a militância ateia, secularista ou libertária, se quer fazer jus à importância que lhe espera no futuro coletivo, deve abandonar os esquemas simplificadores e abraçar a dialética que nos faz mudarmos a nós mesmos e ao nosso meio. Adaptações, flexibilidades e transigências necessárias para evitarmos nossa própria fossilização histórica e a passagem incólume, sem rastros, pelo cruel rio do progresso humano.


Bragança Paulista, 7 de setembro de 2011.



domingo, 10 de março de 2019

Lepa Brena: “Živela Jugoslavija” (1985)


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Há muitos anos escuto esta canção, mas só agora tive coragem de traduzi-la. Ela se chama Živela Jugoslavija (Viva a Iugoslávia, “Живела Југославија” em alfabeto cirílico), e foi gravada pela artista bósnia Lepa Brena em 1985, num disco conjunto com Miroslav Ilić intitulado Jedan dan života (Um dia da vida). É um hit patriótico elogiando a antiga Iugoslávia, que na época ainda não tinha se desmembrado, mas que já estava sem o fundador da república socialista, o marechal Josip Broz Tito, morto em 1980 e também elogiado na música.

Jedan dan života e Živela Jugoslavija chegaram rapidamente ao topo das paradas, mas as outras faixas também se tornaram sucessos. O produtor Raka Đokić foi o responsável por essa parceria artística entre Lepa Brena e Miroslav, inspirando uma turnê iniciada no verão de 1985 que proporcionou a venda de 800 mil cópias do álbum. A canção aqui legendada é de autoria de Milutin Popović-Zahar (n. 1938), e Lepa Brena já tinha gravado quatro álbuns em 1982 e 1984, com hits até hoje lembrados, sobretudo, na Sérvia. Na verdade, nem sei de onde veio o áudio do vídeo, mas o original gravado no disco é diferente.

Nome artístico de Fahreta Živojinović (sobrenome de solteira, Jahić), Lepa Brena nasceu em 1960 na cidade bósnia de Brčko, localizada hoje no extremo nordeste da República Sérvia, parte sérvia da Bósnia e Herzegóvina. De família muçulmana, desde 1980 vive em Belgrado e lá começou sua carreira de cantora pop-folk, produtora de talentos e atriz, tornando-se a mulher a vender mais discos na antiga Iugoslávia. Aos 19 anos, começou como vocalista da banda Lira Show e logo se tornaria um dos símbolos da cultura popular iugoslava e, décadas depois, da chamada “iugonostalgia”. Ela saiu da antiga banda em 1991 e pausou a carreira de 2000 a 2008, voltando depois, sobretudo, como uma das mais poderosas produtoras artísticas dos Bálcãs.

Živela Jugoslavija teve recepção muito variada e expressou a única convicção política aberta de Lepa Brena: o apoio à Iugoslávia unida, num tempo em que os nacionalismos já começavam a florescer. O caso de Tito é engraçado entre outros ex-ditadores da Europa, porque é um dos que mais conserva vasta popularidade até hoje, em especial na Eslovênia, devido à sua mística de líder antifascista e libertador nacional. Ainda podem se encontrar lojas com suvenires contendo o rosto do marechal. Casada desde 1991 com o tenista sérvio Slobodan Živojinović, hoje aposentado e com quem teve dois filhos, Lepa Brena sempre causou polêmica étnica por causa do marido e do fato de cantar no dialeto ekavica da língua servo-croata, que daria no sérvio literário moderno. (Na variante ijekavica, base do croata moderno, seu nome artístico seria “Lijepa”.) Ela nunca externou religião, mas sempre foi rejeitada por croatas e bósnios por sua aproximação com a Sérvia.

No canal oficial da artista, existem também os links pras suas redes sociais. Embora o design gráfico do álbum Jedan dan života esteja em alfabeto latino, os traços da linguagem usada são claramente “sérvios” (idioma que hoje usa quase sempre o alfabeto cirílico), mas inteligíveis em toda a antiga Iugoslávia. A partir da letra original com a acentuação correta, eu mesmo traduzi direto do servo-croata (sérvio) e legendei este vídeo, cortando algo do quadro. Seguem abaixo a legendagem que postei na TV Eslavo (YouTube), a letra nos dois alfabetos, latino e cirílico, e a tradução em português:




Kad pogledam naše more
Naše reke, naše gore
Svu lepotu gde sam rođena
I sve što bi reći znala
U srcu sam zapisala
Živela Jugoslavija
I sve što bi reći znala
U srcu sam zapisala
Živela Jugoslavija

Zemljo mira, zemljo Tita
Zemljo hrabra, ponosita
Širom sveta o tebi se zna
Volimo te naša mati
Nećemo te nikom dati
Živela Jugoslavija
Volimo te naša mati
Nećemo te nikom dati
Živela Jugoslavija

Tu je rođen maršal Tito
Naše ime ponosito
K’o heroja ceo svet ga zna
Blago zemlji što ga ima
Pamtiće se vekovima
Živela Jugoslavija
Blago zemlji što ga ima
Pamtiće se vekovima
Živela Jugoslavija

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Кад погледам наше море
Наше реке, наше горе
Сву лепоту где сам рођена
И све што би рећи знала
У срцу сам записала
Живела Југославија
И све што би рећи знала
У срцу сам записала
Живела Југославија

Земљо мира, земљо Тита
Земљо храбра, поносита
Широм света о теби се зна
Волимо те наша мати
Нећемо те ником дати
Живела Југославија
Волимо те наша мати
Нећемо те ником дати
Живела Југославија

Ту је рођен маршал Тито
Наше име поносито
К’о хероја цео свет га зна
Благо земљи што га има
Памтиће се вековима
Живела Југославија
Благо земљи што га има
Памтиће се вековима
Живела Југославија

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Quando olhei para nosso mar,
Nossos rios, nossas montanhas,
Toda a beleza de onde nasci
E tudo o que ela poderia dizer,
Registrei em meu coração:
Viva a Iugoslávia!
E tudo o que ela poderia dizer,
Registrei em meu coração:
Viva a Iugoslávia!

Ó, terra da paz, terra de Tito,
Ó, terra corajosa e orgulhosa,
O mundo inteiro conhece você.
Amamos você, nossa mãe,
Não vamos cedê-la a ninguém,
Viva a Iugoslávia!
Amamos você, nossa mãe,
Não vamos cedê-la a ninguém,
Viva a Iugoslávia!

Aqui nasceu o marechal Tito,
Nosso nome orgulhoso,
O mundo todo o vê como herói.
Feliz é a terra que o possui,
Ela vai se lembrar para sempre,
Viva a Iugoslávia!
Feliz é a terra que o possui,
Ela vai se lembrar para sempre,
Viva a Iugoslávia!




sexta-feira, 8 de março de 2019

Religião: opção subjetiva, poder social


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NOTA: Este texto, cujo arquivo Word tem 23 de abril de 2011 como data da última alteração, se chama “Religião: opção subjetiva ou poder social?”, e novamente critica o cerco em torno da então presidenta recém-eleita Dilma Rousseff no tocante às suas crenças religiosas. Mais uma vez reconheço a limitação da minha tendência em tratar tudo como dualismos (“subjetivo” e “objetivo”) e o pouco estudo em história, sociologia e filosofia antes de palpitar sobre assuntos tão complexos. Além de misturar com constância demais os planos da política institucional e da religião organizada, também me preocupava demais em definir conceitos, sentimentos e fenômenos, como se meu processo de esclarecimento devesse ao mesmo tempo se externalizar em palavras públicas. Como eleitor da Dilma e crente em sua adoção do esclarecimento, igualmente tentei “bilndá-la” do assédio cristão, e embora eu agora veja negativamente seu governo, me agrada menos a mediocridade intelectual de Bolsonaro. Apesar de tudo, reitero outra vez o valor do texto como elaborado exercício intelectual, e tentando dá-lo como semente de reflexão também pro presente, apresento-o abaixo sem alterações na forma ou no conteúdo.



Chamou-me a atenção ontem uma breve entrevista recente para a Folha.com do arcebispo de Brasília, dom João Braz de Aviz, a respeito da relação entre as convicções pessoais de Dilma Rousseff e a Igreja Católica, em especial a resposta a uma pergunta sobre a opinião do clérigo a respeito da separação entre política e religião. Seus argumentos básicos foram os seguintes: 1) religião e política devem separar-se; 2) “Estado laico” não é sinônimo de “Estado ateu”; 3) a “experiência religiosa” não pode ser considerada apenas como algo pessoal, pois haveria também a dimensão social, motivo pelo qual a Igreja estaria recuperando sua atenção à política. Suas declarações dão ensejo a uma discussão interessante sobre as naturezas subjetiva e objetiva da religião e da espiritualidade, algo até hoje complicado e sem consenso, e de suas relações com o poder político.

Parece-me que a consciência humana possui duas dimensões que não se misturam, mas que se complementam dialeticamente: a subjetiva, concernente ao nosso cérebro, à nossa individualidade e ao modo particular como sentimos, gostamos, abstraímos, gozamos ou percebemos as coisas, o que faz de cada ser humano, como se diz, um “Universo à parte”; e a objetiva, relacionada ao que está fora de nosso pensamento, das coisas que podemos sentir, fruir, apreender e vivenciar, enfim, aos objetos materiais em geral. Essas duas dimensões são dialeticamente inseparáveis: por um lado, a subjetividade só pode funcionar e só faz sentido com objetos que ela perceba e apenas a objetividade é fornecedora de realidade, em resumo, é o mundo que fornece material às ideias; por outro lado, nem todas as individualidades percebem o real da mesma forma, porquanto as vicissitudes genéticas, biológicas e patológicas mudam as formas de apreensão e, portanto, a percepção obtida do exterior. Enfim, mundo material e mundo mental condicionam-se e trocam informações mutuamente.

Além disso, creio que “espiritualidade” seria a crença e a comunicação com uma dimensão fora e paralela à material, não raro denominada “espiritual”, compreendida de maneiras diversas, desde o conjunto de nossos decalques não biológicos impalpáveis e invisíveis até simples energia. De “transcendência” chamo a sublime experiência estética, geralmente ligada a valores sagrados, gerada pela reorganização do real em uma nova unidade de sentido que ligue nossa pequenez à infinitude do Universo. Não há grupo humano que não tenha experimentado a sensação da transcendência, individual ou coletivamente, mas não julgo ser isso necessariamente “religião” por esta, em minha opinião, dever conter mais dois elementos: a espiritualidade e a institucionalização. Portanto, as crenças xamânicas e animistas dos povos antigos ou espiritualidades pessoais não seriam religiões, pois carecem de codificação escrita, ortodoxia dogmática e corpo sacerdotal complexo; já a Igreja Positivista, por exemplo, não prescindiria daqueles elementos, mas ainda lhe faltaria a fé em uma realidade não material que influenciasse este mundo. Da mesma forma, certas ideologias e regimes políticos, ainda que de forma não religiosa, também fomentaram a cristalização de transcendências na adulação de líderes e valores supremos e intocáveis.

Aparentemente, se analisarmos por um viés puramente teórico, a experiência transcendental possui um caráter estritamente subjetivo, já que cada pessoa terá uma sensação estética diferente, possuindo reações diversas se submetidas ao mesmo estímulo objetivo junto de outras. A possibilidade de codificar um único estimulante transcendental para que toda a humanidade tenha a mesma sensação é praticamente impossível, porque, mesmo que um grupo humano seja extremamente fechado e seus membros sejam quase indistinguíveis em seu modo de pensar e agir, as características particulares internas de cada um ainda terão algum peso. Sobre o mundo espiritual – a não ser que se tome “espírito” no sentido filosófico, o qual equivale, na prática, a nossa subjetividade –, sua existência empírica é improvável, pois, sendo um elemento imaterial, só pode ser subjetivo, ideal, portanto não pode criar uma realidade material, sensível, porquanto as dimensões subjetiva e objetiva não criam partes uma da outra, mas apenas se moldam; deste modo, ele será posto de lado da discussão. O que se pode concluir por ora é que a religião é um erro naquilo que ela pretende, pois, de um lado, ela procura impor ao mundo objetivo, à crença coletiva universal, um deus que nasceu de uma subjetividade, de uma ideia pessoal ou grupal, portanto sem validade geral; e, por outro lado, intenta que todas as pessoas tenham a mesma reação e a mesma experiência transcendental com os mesmos rituais, dogmas e paramentos consagrados. É provável que as cisões religiosas tenham nascido dessa percepção diferente das escrituras e das práticas sagradas.

Porém, no plano prático, essa análise filosófica não basta; um materialismo coerente deve centrar-se ainda nas consequências materiais de um objeto de natureza material, e não apenas em seus resultados subjetivos. Assim, é claro que as religiões também se constituem em poderes seculares, sociais, políticos, midiáticos e econômicos, e nunca poderiam deixar de ser. É sob esse pensamento que duvido da possibilidade de separação entre o Estado e a Igreja dominante em determinado país: as religiões nasceram como o sustentáculo ideológico dos líderes de suas épocas e lugares, a eles organicamente imbricadas, e assim continuaram até a laicização da política ocidental (porque em grande parte do Oriente essa divisão ainda não existe). Mesmo assim, se religião e Estado, a partir de dado momento, tornaram-se coisas separadas, a primeira nunca deixou de influenciar a segunda, e um governante não pode deixar de atender, de certa maneira, às pressões da religião ou das religiões mais poderosas de seu país, sob o risco de perder apoio material e moral. Basta ver como tal apartação no Brasil data apenas do início da República: exigir um Estado completamente laico nesse período de tempo relativamente curto seria demais. A religião é, como diria Gramsci, um “aparelho privado de hegemonia”, portanto seu desprezo seria um suicídio político; a política sem a religião não é política, e vice-versa, e quando uma desaparecer, acontecerá o mesmo à outra, e elas não serão mais o que são hoje. É difícil perceber esse processo como iminente, dado o pouco tempo, dentro de nossa longa história humana, ainda passado após aquela cisão.

(Existem apenas dois tipos de Estados no que concerne à religião: o Estado religioso e o Estado antirreligioso. Os primeiros se dividem nas seguintes categorias, com ou sem repressão: os que fundem as aparelhagens estatal e eclesiástica; os que apoiam ou subvencionam uma religião oficial – e entre esses estão boa parte dos países nórdicos, inclusive –; e os que são politicamente influenciados por uma ou mais religiões porque são as que a maioria do povo segue. Os segundos, quase sempre confinados aos países comunistas de ontem e de hoje e sempre repressivos, são de dois tipos: os que, na letra da lei, respeitam a liberdade e a diversidade religiosa e os que oficialmente proíbem as religiões, como na Albânia de Enver Hoxha, na qual era instituído o “ateísmo de Estado”. Excluídas essas peculiaridades, não há grandes diferenças práticas dentro de cada tipo. No mais, isso tudo torna inoperante a reflexão sobre se o “Estado laico” é, não é, deve ou não ser “ateu”.)

Agora já temos um bom instrumental para respondermos a esta pergunta: a religião é uma opção subjetiva ou um poder social? É de se notar, antes de tudo, que o arcebispo contradiz-se ao separar religião e política e atribuir à primeira uma dimensão social, já que a essência da política é a sociabilidade, e já que as relações sociais são essencialmente políticas. Igualmente, a inseparabilidade entre religiões (ou ao menos uma delas que seja predominante) e Estado, pelo menos no que tange às barganhas políticas e à divisão de poderes e de esferas em que podem ou não podem, devem não devem atuar ou influenciar, derruba por terra a ideia de que eles se constituem em âmbitos inconciliáveis; pelo contrário, são entidades igualmente públicas que tem como único dever não interferir arbitrariamente na esfera íntima e privada das cidadãs e cidadãos, esta, aliás, o verdadeiro recôndito da transcendência. Entre os comentários à matéria, vi uma citação da frase evangélica “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Não acredito que sua mensagem seja a separação entre Igreja e Estado, ambos instituições bastante terrenas, mas entre o “deus interno”, subjetivo e particular de cada um e as ações públicas, sociais e objetivas que também concernem aos outros.

Ficam patentes, de quebra, mais dois problemas na fala de dom João Braz de Aviz com relação à religiosidade de Dilma. O primeiro é o pedido de explicitação de suas opiniões sobre “assuntos caros à igreja” (homossexualidade, aborto etc.), que aparece relacionado às convicções religiosas da presidente. Exige-se aí uma coerência entre temas públicos, terrenos, e fé pessoal que não existe mais em nenhuma pessoa comum: se não fosse por isso, não haveria tantas católicas e católicos se divorciando, mantendo relações sexuais antes do casamento – com ou sem camisinha –, introduzindo em sua vida elementos de outras crenças e até mesmo abortando; aliás, transigir em vários pontos e fazer vista grossa às “escapadinhas” – sobretudo dos famosos e dos poderosos – foi o segredo da Igreja para manter sua influência. O segundo é a vontade de explicação das próprias posições religiosas de Dilma, o que mostra as cobranças a que são submetidos os governantes pelas hierarquias eclesiásticas. Com efeito, esse laço é tão forte que o fato de ela, na campanha, não ter podido confessar qualquer descrença – fosse ela verdadeira ou não – sob o risco de perder votos e, agora, não poder fazer o mesmo pelo temor de acusações de oportunismo político, deixa-a em um beco sem saída. É uma verdadeira “saia justa” derivada da intransigência dos religiosos, sumamente os evangélicos, que ao mesmo tempo foram os maiores detratores e os verdadeiros vencedores do último pleito: mesmo que ela dissesse em campanha “sou descrente e vocês são religiosos; eu não persigo vocês por serem religiosos e vocês não me perseguem por ser descrente, combinado?”, os religiosos continuariam a detração, pois a correlação entre descrença e maldade ainda tem audiência em nossa sociedade pouco conscientizada. Foi pensando justamente nisso que os candidatos dançaram conforme a música, pois só a perda dos 25% de eleitorado evangélico já seria uma tragédia imensurável.

O vocabulário ocidental para fatos espirituais e transcendentais, condicionado pelas três religiões monoteístas, ainda é bastante limitado, e apenas uma grande revolução em nosso pensamento nos permitiria expressar sensações e experiências que ultrapassam os estreitos limites do dogmatismo religioso; nesse aspecto, o Oriente está anos-luz distante de nós. Ainda engatinhamos no patamar de ritualismos amasiados com o aparato estatal, de cultos oficiais legitimadores do poder institucional, e, por isso mesmo, temos um desenvolvimento muito escasso e pouco difundido de formas profundamente eróticas e estéticas de reorganização subjetiva do real. Para piorar, nossa visão sobre política não vai além de considerações sobre os aparelhos institucionalizados, de representação indireta, tornando inútil a questão do “Estado laico”, da separação entre religião e política, quando, na verdade, trata-se de superar os modelos políticos e religiosos atuais. Enquanto isso, resta somente o campo da conciliação, das negociações e dos acordos provisórios feitos “por cima”, para que pelo menos a violência dos choques tribalistas cotidianos seja amenizada e espere ser dizimada pela emergência das massas como definidoras de seu próprio destino.



quarta-feira, 6 de março de 2019

Poesia russa traduzida a português (1)


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Eu gosto muito de traduzir poesia estrangeira pro português, sobretudo das línguas eslavas, que são muito raras no Brasil e me desafiam mais, por serem bem concisas e eu precisar de formas igualmente concisas pra expressar na minha língua! Mas infelizmente não tenho tanto tempo quanto queria pra isso, pois atualmente me concentro mais no estudo de idiomas, na manutenção desta página e na pesquisa do doutorado. Mesmo assim, de vez em quando sai alguma coisa interessante, e quando junto uma quantidade suficiente, faço uma postagem aqui.

Antes de começar a tradução do poema épico Ievgeni Onegin, de Aleksandr Sergeievich Pushkin, na qual me lancei em novembro do ano passado, decidi procurar algo mais simples do grande poeta e escritor que eu pudesse divulgar às pessoas. Achei por acaso o livro “Стихи не для дам” (Stikhi ne dlia dam), Poemas não para damas, coletânea com os mais diversos estilos e cujo título já alude à intenção de chocar, subverter e criticar. Muitos poemas não eram tão simples ou curtos, e um que realmente achei mais rápido e fácil foi “Христос воскрес” (Khristós voskrés), literalmente “Cristo ressuscitou”, de 1821, com apenas 10 versos. O nome alude a uma saudação de Páscoa comum das pessoas se fazerem em países ortodoxos, mas o tema geral são as barreiras inter-religiosas e interculturais de uma Rússia imperial ultracristã que marginalizava os judeus.

Antes que alguém me pergunte: sim, embora já haja uma tradução consagrada, estou tentando fazer uma outra mais pessoal e moderna de Ievgeni Onegin centrada no português brasileiro, mas que também seja inteligível por africanos e portugueses. Mas tenho interrompido constantemente porque, como eu já disse, tenho muitos outros focos. Quanto a “Cristo ressuscitou”, na minha mão se transformou em “Ressurreição”, título que tem a mesma métrica do título original. Obviamente não busquei ser literal e mudei um pouco o esquema de rimas, mas o ritmo ficou o mesmo. A tradução foi uma iniciativa isolada e por enquanto não pretendo encaixá-la em nenhuma projeto maior.

Pouco tempo depois, conheci a tártara Elvira Gilmutdinova, que mora em Kazan, terceira maior cidade da Rússia. Ela é do marketing, mas também gosta de escrever poesia, e às vezes faz alguns trabalhos amadores, segundo ela, “inspirados do coração”. Na conta pessoal no Instagram ela publica alguns desses versos em russo ou tártaro, acompanhados de fotos suas ou da natureza local. Um dos poemas em russo que me chamou a atenção foi “Кто я?” (Kto iá?), “Quem sou eu?”, que pra ficar do mesmo tamanho do título original chamei “Quem sou?”. Ela postou em 10 de outubro de 2018 e eu traduzi no fim de janeiro de 2019, tendo Elvira autorizado e gostado do resultado.

Ele também segue abaixo, nas suas versões original e traduzida. No caso de “Quem sou?”, foi muito mais uma recriação minha, porque a autora não seguiu padrões poéticos rígidos, e a tradução ficou quase literal, inclusive. Eu que dei rimas mais próximas e verdadeira métrica:


Христос воскрес (1821)

Христос воскрес, моя Реввека!
Сегодня следуя душой
Закону Бога-человека,
С тобой целуюсь, ангел мой.
А завтра к вере Моисея
За поцелуй я не робея
Готов, еврейка, приступить —
И даже то тебе вручить,
Чем можно верного еврея
От православных отличить.

Ressurreição (15/12/2018)

Ressurreição, Rebeca minha,
É hoje, se de coração
Seguimos ritual cristão,
E então te beijo, linda anjinha.
Na hora passo à fé mosaica
Por mais um beijo teu, hebraica,
Com prontidão, sem hesitar;
Comprovo a profissão judaica
Tratando-te como quem já
Os patriarcas vai deixar.

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Кто я? (11/10/2018)

Кто я? Вопрос извечный.
Может начинающий поэт?
Может снаружи уже старик,
А в душе ещё пылкий студент?

Кто я? Прекрасная богиня?
Иль провинциалка у крыльца?
Может стервозная тигрица,
Прикрывающий от слёз глаза.

Кто я? Профессионал?
Трудяга не жалеющий сил?
Чудак, рискующий по жизни?
Или заботливый семьянин?

Кто я? Пекарь или сталевар?
Учитель? Успешный бизнесмен?
Знаменитость иль просто маляр?
Не важно! Важно, что Человек!

Важно, что сердце добротой полна,
Что мысли ясны и цель видна!
Сама судьбу выбирать вольна
И человечность в душе жива.


Quem sou? (jan. 2019)

Quem sou?, eterna indagação.
Talvez poeta iniciante?
Talvez por fora um ancião,
Mas alma de ávido estudante?

Quem sou? Maravilhosa deusa?
Ou serva de quintal pagã?
Talvez estúpida tigresa
Que esconde a lágrima vilã.

Quem sou? Qualquer profissional?
Obreiro até perder as forças?
Arrisco a vida sem moral
Ou mesmo ajudo a lavar louças?

Sou fundidor ou sou padeiro?
Sou milionário, professor?
Celebridade ou Zé Pedreiro?
É tudo igual: HUMANO sou!

Importa o bem no refletir,
Esclarecidas atitudes,
Escolha própria do porvir
E humanidade por virtude.



segunda-feira, 4 de março de 2019

Quem venceu eleições brasileiras 2010


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/eleicoes2010


NOTA: Este texto, cujo arquivo Word tem 5 de fevereiro de 2011 como data da última alteração, é “Quem venceu as eleições brasileiras de 2010?”, ao mesmo tempo uma profecia e um autoengano. Profecia porque deu em linhas gerais exatamente o que se consolidaria sob a presidência Bolsonaro: um governo de bandeiras cristãs reacionárias amparado por um Congresso Nacional eleito entre clérigos e fiéis de igrejas evangélicas radicais. Autoengano porque eu não queria que seguíssemos esse caminho, e achava mesmo que tínhamos condições de evitar segui-lo por causa da onda progressista e racionalista que também se delineava. Como não costumo separar questões políticas de questões (pelo menos se concernem o social) religiosas, julguei que Dilma Rousseff pudesse ao mesmo tempo mitigar o esquerdismo de Lula e abraçar bandeiras racionalistas. Mas vimos que ela terminou se amparando nos pentecostais e instrumentalizando a ideologia, até levar o país ao caos econômico e à discórdia valorativa. A instrução científica da população ainda é uma utopia que estamos esperando alcançar. O mais incrível é que esses artigos guardados, “congelando” ideias daquela época, registraram dados e fatos dos quais nem agora eu tinha memória! Por tudo isso, dou-lhes pra desfrute sem alterações.



Nossa campanha presidencial de 2010 foi uma das que teve o nível mais baixo da história, tanto no sentido defensivo quanto no ofensivo, e dentre os aparelhos privados de hegemonia que procuraram ampliar seu poder e influência durante a disputa, apenas um mostrou-se como o maior vencedor: o conjunto das Igrejas cristãs evangélicas, as verdadeiras propulsoras da baixaria que se tornou o evento. Não foram os católicos, nem os ateus, nem outros grupos laicos que se favoreceram com o debate de opiniões; os resultados positivos de sua maior ou menor visibilidade foram ínfimos, e agora precisam torcer para que o novo equilíbrio de forças no Congresso Nacional, amplamente a favor de Dilma Rousseff, reverta-se em ganhos reais.

Uma época de progressos sociais e científicos se avizinha hoje no mundo inteiro, sendo mais intenso seu impacto na religiosa e intransigente América, formada moralmente pelo catolicismo tridentino e pelo puritanismo protestante. Ao contrário do que pensam alguns comentaristas condescendentes com o medonho conservadorismo dos discursos políticos oficiais, não é a antirreligiosidade dessas mentes inovadoras que alimenta o ódio à ciência em todos os fundamentalistas; trata-se de uma verdadeira crise de valores cujas consequências e desfecho ainda não podemos prever. Os choques entre situação e inovação sempre ocorreram na história da humanidade, e no último pleito não foi diferente: o passado de afirmações polêmicas e de militância esquerdista de Dilma, além de alguns fatos relacionados ao governo Lula e a reuniões deliberativas do PT, insuflaram a preocupação de setores mais ligados ao status quo, e a bomba foi lançada pelos evangélicos: a candidata seria a favor do aborto e do casamento homoafetivo.

O protestantismo brasileiro estava em vantagem, pois a posse de 25% do eleitorado lhes respaldaria politicamente, a nível federal, uma dominação que já se traduzia em um grande aparato midiático, editorial, financeiro e religioso; era a chance de moldar o Brasil à sua imagem e semelhança e de consolidar impérios pessoais baseados no ludíbrio e no medo. Não seria nem preciso escolher um presidente que fosse um decalque de seus sacerdotes – de fato, Serra não usava uma linguagem explicitamente fideísta, e Marina Silva, evangélica próxima de um progressismo modista, separara publicamente suas convicções pessoais do futuro encargo público –: nosso sistema político não permite que o Executivo possa governar sem o Congresso, para o qual podem livremente concorrer as mais caricatas bazófias humanas. E foi o que aconteceu, afinal: a bancada protestante aumentou e já se mostrou disposta a mostrar suas garras barrando qualquer projeto que contrarie suas crenças particulares, numa clara mostra de violação do interesse público por quinquilharias privadas.

Cabe ainda uma palavra sobre dois atores da comédia trágica; um, já velho conhecido nosso, e outro, ainda engatinhando na vida pública. A Igreja Católica, confusa em escândalos internos e na baixa credibilidade entre vários setores da população, sobretudo os mais instruídos ou influentes, bem que tentou aproveitar-se da maré reacionária levantada pelos evangélicos, porquanto, afora as divergências doutrinárias, a rabugice em questões que os clérigos minimamente se informam ainda salva a possibilidade de uma “Santa Aliança ecumênica”. Pura quimera: o máximo que ganharam foi a eleição de Gabriel Chalita – já rompido com o PSDB, por sinal – para a Câmara dos Deputados, muita paulada de internautas em sites de notícias que exibiam declarações da CNBB e um direito de resposta petista em uma TV católica a propósito de uma homilia anti-Dilma. Já os laicistas e ateus, felizmente mais propensos à democracia e à transparência política, continuam com sua militância restrita aos meios eletrônicos, não podendo fazer muita coisa contra o fisiologismo e o caciquismo imperantes há décadas nas duas Casas legislativas. Mesmo assim, alguns legisladores progressistas alçados a Brasília, como o gay e ex-católico Jean Wyllys (PSOL-RJ) e a eterna sexóloga Marta Suplicy (PT-SP), se não forem enredados pelas famosas tramas corruptoras e negocistas, são uma fonte de esperança no deserto por já prometerem reverter a situação das questões do abortamento e dos direitos homossexuais.

O mundo da política institucional brasileira ainda causa ilusão em certas almas revolucionárias que desejam alcançar aquele distante mundo para “transformar o país e fazer o bem aos cidadãos”, mas não enxergam o desgaste das barganhas e das concessões a que devem submeter-se para alcançar lá o mínimo de visibilidade e voz. É preciso ensinar ao povo que o cerne do fazer político encontra-se no cotidiano, nas ruas, nas associações de bairro, nas escolas, nos clubes, nos sindicatos e em outros ajuntamentos que traduzem os problemas reais de vivências palpáveis, o palco onde definitivamente recaem as decisões dos três Poderes. Enquanto essa consciência não se massifica, cabe buscar reger, como disse Gramsci, todos os meios culturais, educacionais e políticos das classes dominantes para que, voltando-se para quem realmente precisa, eles ajudem a fundir governantes e governados em uma só dimensão.