Por Erick Fishuk
Introdução – Faz quase 17 anos que comecei a aprender esperanto, a primeira língua estrangeira que realmente cheguei a dominar. Faz tempo, eu tinha apenas 12 anos e mal sabia usar sequer a
internet. Em mais de uma década e meia, concluí meu Ensino Básico, minha graduação e meu mestrado, cursando agora o doutorado. Foi um tempo mais do que suficiente pra aprender outros idiomas, outros códigos gráficos ou corporais e até mesmo a própria gramática do português em sua essência. Na minha adolescência e na época da faculdade, expressei de formas diversas, a públicos e em meios diversos, o que achava do esperanto, por que tinha decidido o aprender e quais as vantagens que eu via nele em relação ao poliglotismo. Com 29 anos de idade, obviamente as vivências mudaram, minha própria visão sobre o passado se transformou, aprendi muito mais coisas e, portanto, a paixão juvenil que tive pela língua de Zamenhof também já não é mais a mesma. Numa época em que podemos, de modo muito mais fácil do que no ano 2000, aprender novos idiomas, conversar com pessoas de outros países, ou até ir pro estrangeiro, e encontrar informações sobre a maioria dos assuntos, achei interessante escrever um texto memorialístico sobre a minha experiência com o esperanto, minha visão atual sobre ele e o quanto essa experiência influi em meus atuais conhecimentos de línguas estrangeiras e de gramática.
Adolescente curioso – Não fui um menino de jogos eletrônicos e de introdução precoce na vida informática, nem de andar em turmas frequentemente pelas ruas. Não tinha muitos vizinhos da mesma idade, e os colegas de escola moravam longe. No mesmo período em que comecei a aprender esperanto, essa característica da minha infância também ia se encrustar de vez na adolescência, e boa parte do meu tempo livre era dedicada a leituras e desenhos. Numa dessas, encontrei num livro infantil uma tabela com “A sorte em 24 idiomas”, e um deles era o esperanto, com a palavra ŝanco (que se lê “chántso”). Eu não sabia o que era esperanto, perguntei pra minha mãe e pra minha avó, elas também não sabiam, e meu último recurso era a Enciclopédia Barsa que tínhamos comprado há alguns meses. O verbete esclarecia razoavelmente, diante do volume de recursos que eu tinha na época, mas também tendo acabado de instalar a internet em casa (discada, deve-se dizer), fiquei ainda mais sedento por buscar outras informações. Cru que eu era pra computadores, não sei como minha mãe, hoje em dia meio avessa a essas máquinas, quis e conseguiu me ajudar na busca. O Google da época se chamava Cadê, e o que de cara encontrei foi a página da Liga Brasileira de Esperanto.
Meu primeiro curso foi um online ali disponível, escrito por Adonis Saliba, que hoje sei ter se baseado em modelos mais consagrados. Na mesma época, também achei uma página de esperantistas de Campinas, onde, por escritos de José Lunazzi, realmente tive a primeira visão daquele alfabeto cheio de consoantes com circunflexo e escutei em áudio algumas primeiras frases curtas. O curso da liga foi o que realmente segui, até o fim, e minhas principais dificuldades residiam no ainda pouco conhecimento de gramática, fazendo-me tropeçar, por exemplo, nos conceitos de “objeto direto” e “acusativo”, tão importantes em esperanto. Novamente, mãe e avó, hoje professoras de primário aposentadas, não souberam me explicar. Apenas enquanto progredia nos estudos escolares, na matéria de Língua Portuguesa de que eu gostava tanto, consegui entender ampla terminologia que fixou meu conhecimento de esperanto, e foi crucial pro bom desempenho futuro em línguas estrangeiras. Quanto aos primeiros livros, as compras online ainda eram difíceis, muitas vezes formulários nas páginas não enviavam os dados e as transferências bancárias tinham que ser na boca do caixa ou na máquina eletrônica mesmo.
Com muito estudo e leituras autodidatas, o esperanto foi a primeira língua “estrangeira” que realmente cheguei a dominar, ativa e passivamente. “Estrangeira” está entre aspas, pois com esse conceito entendemos em geral línguas de “outros países”, e não alguma separada do meio familiar em que se foi criado. O esperanto não é a língua de nenhum país, então o conceito de “estrangeira” soa meio estranho, mas o fato é que hoje em dia existem realmente falantes “maternos” de esperanto. Não sendo eu um deles, apenas com muita prática, apaixonado que eu estava pela forma e pela história do idioma, consegui dominá-lo, mesmo sem ter com quem praticar, na ausência de clubes esperantistas em Bragança Paulista e na tecnologia informática ainda não desenvolvida ao ponto do Facebook e do Skype. O inglês eu sempre estudei durante toda minha vida escolar, mas jamais tendo frequentado um curso formal, e meio avesso que eu era à “intromissão imperialista” nas culturas alheias, não era uma língua que realmente me agradava. Ainda hoje não sou tão loquaz na fala e na redação, e o muito que aprendi hoje foi mesmo “na marra”, lendo textos acadêmicos e ocasionalmente estudando gramáticas: reconheço que estou querendo sanar isso. Já o esperanto é simples, regular, tem muitas palavras parecidas com as de nossa língua, e somado àquele ideal de compreensão entre os povos e fraternidade mútua, ele me gerava conforto. A primeira vez em que falei esperanto com alguém foi em Mongaguá, onde um dia, uma senhora de nome Eva dava aula a duas crianças numa livraria espírita, hoje fechada. Deve ter sido por volta do fim ou meados de 2002, e me virei muito bem: o casal de irmãozinhos até tinha achado que eu não era brasileiro! Depois, foi só pela internet mesmo, por meio do bate-papo de um antigo portal brasileiro chamado “Ĝangalo” (Selva), onde conheci muitos estrangeiros com quem trocava correspondência (de papel, mesmo), e por meio do programa PalTalk, uma espécie de antecessor do Skype.
Época de amadurecimento – Dois dos meus maiores empreendimentos online pelo esperanto, numa época em que eu quase não tinha com quem treinar, foram a versão, a partir do português, de meu antigo “Sites Sobre Idiomas” (SSI), uma rica lista de links pra páginas que ensinavam línguas, e a manutenção do “La Esperanta Retejo de Eriko Fiŝuk” (O Site Esperantista de Erick Fishuk), outro rico acervo com textos explicativos, coleções de frases básicas, mais dicas de sites pra visitar e muitos outros textos, sobre diversos assuntos, vertidos em esperanto. Dois dos meus xodós que guardo até hoje são a coleção de poemas originais, incluindo muitos haicais, e a seção com versões de músicas brasileiras em esperanto, mantendo inclusive a rítmica e o esquema de rimas. Ambas as iniciativas minhas, num tempo sem redes sociais nem astros do YouTube, até que eram muito visitadas, em especial a versão em português do SSI e a página de canções traduzidas, que muitos esperantistas do Brasil conheciam. Aliás, estou ultimamente repostando e reeditando neste blog justamente a maioria dessas canções, pelo menos as que valem a pena ser publicadas sem modificações substanciais. A manutenção dos dois sites tinham sido até então as iniciativas que mais me tinham ajudado a desenvolver o intelecto e a comunicar com pessoas de longe, mesmo quase sempre só podendo contar então com e-mail. Assim foi durante meu Ensino Médio, quando também consumi pela internet os cursos de esperanto Gerda malaperis (intermediário) e La tuta Esperanto (avançado), ao mesmo tempo em que gradualmente definia minha escolha pelas humanidades no futuro vestibular. Em 2005, após ter desistido de Direito e Letras, prestei História na Unicamp, na qual ingressei no ano seguinte, e embora tivesse pouca oportunidade de praticar e nunca tivesse participado de um congresso esperantista ou outro evento do gênero, já podia dizer que era todo proficiente em esperanto.
Só fui conhecer os esperantistas da Unicamp no segundo semestre de 2006, por meio do antigo Orkut (no qual também treinei muito o esperanto a partir de 2004, tendo criado a comunidade “Esperanta Priparolejo”, algo como “Lugar de debates esperantista”) e de uma lista de e-mails. Até então, também tinha me comunicado com esperantistas do Brasil e do exterior por meio de dois programas hoje em desuso: ICQ e MSN. Encontrei pessoalmente vários esperantistas na Unicamp a partir de agosto ou setembro de 2006, em cursos lá dados pra iniciantes ou simples círculos de conversa, e fiz amizade com muitos deles, tendo mantido contato por muito tempo, mas atualmente não os vendo mais. Contudo, uma grande transformação estava em curso: desde minhas aulas comuns de inglês na escola básica, o primeiro semestre de francês que eu tive de cursar a partir de agosto estava sendo minha primeira experiência de um curso de línguas. Durante a adolescência, tive contato com vários idiomas estrangeiros pela internet, por meio de páginas bem primárias, pouco informadas e em inglês, língua na qual eu ainda tinha alguma dificuldade pra ler textos mais complexos. Não havia tantos sites disponíveis quanto hoje, nem mesmo a Wikipédia, nem mesmo as muitas redes sociais, e muito menos outros programas e recursos mais aperfeiçoados pra prática linguística, principalmente os aplicativos de celular. (Nota: ganhei o primeiro celular ao completar 17 anos, e era de telinha azul...) Mesmo assim, foi a oportunidade pra acumular uma vasta cultura geral que me acompanha e é aperfeiçoada até hoje, e uma das línguas de que eu mais gostava e que estava melhor começando a aprender era o francês. Isso me deu justamente uma base pra começar bem e continuar com excelência meus três semestres de francês na Unicamp, e todas essas iniciativas, claro, não se deram antes que meu esperanto estivesse totalmente fixado. Outro processo que começou a abrir minha cabeça foi o início do aprendizado de russo, também na Unicamp, em março de 2007.
Era interessante, pois nos primeiros anos da faculdade de História, eu praticava esporadicamente o esperanto na vida real e na virtual, ainda mantinha o SSI e meu site esperantista e aprendia francês e russo. Tudo isso, claro, premido pelas próprias tarefas acadêmicas. Mas essa mistura só me fez, infelizmente, ter cada vez menos tempo pro esperanto e começar a perder um pouco a prática, e felizmente, aprender novos conceitos e pontos de vista sobre aprender idiomas, vendo no francês e no russo, principalmente, um conjunto de palavras e regras gramaticais que também existiam em esperanto. Ou seja, se o esperanto, por um lado, e por menos que outros acreditem, me deu uma sólida base pra futuros estudos de línguas, por outro lado, tornou-se difícil de esquecer enquanto eu aprendia idiomas que lhe tinham fornecido considerável material. Empenhando-me a fundo no francês e no russo, eu estava sabendo o que era realmente aprender uma língua estrangeira, com suas irregularidades, pressões e conversação constante; mas ao mesmo tempo, a base confortável do esperanto tornou essa tarefa menos árdua, auxiliada também, claro, por leituras complementares que eu tinha feito na internet sobre francês e russo, sem ter conseguido, contudo, adquirir fluência. Mas como eu disse acima: o afinco no esperanto tinha me dado o gosto primeiro por esse infinito universo dos idiomas. Assim se comprovava uma das propriedades positivas que muitos atribuíam ao esperanto: a qualidade propedêutica, ou seja, era uma espécie de conhecimento ou habilidade mais simples que proporcionava uma base razoável pra aquisição de outros saberes mais complexos ou árduos. De forma rasteira, pode-se dizer que o búlgaro é uma propedêutica ao russo, pois muitas palavras são semelhantes, mas sua gramática e pronúncia são bem mais simples. Foi desse modo que o esperanto não apenas me forneceu um vasto material vocabular presente em outras línguas, mas também, como dizem, “desconstruiu” minha identificação do idioma materno com a noção de idioma em geral, apresentando uma estrutura regular que ajudava a perceber de um jeito claro cada parte do discurso, num aprendizado que eu podia aplicar pra outras línguas.
Foi assim que, durante minha graduação, me aperfeiçoei em francês e em russo, aprendi um pouco de outros idiomas (por leituras linguísticas esporádicas ou pela leitura dos textos acadêmicos, que me forçavam a leituras estrangeiras), mas fui deixando um pouco de lado o esperanto e acabei apagando meus dois mencionados sites em 2009. Em todo caso, nunca o abandonei totalmente, lendo ou escrevendo uma ou outra coisa ocasionalmente, e até cheguei a começar um curso extra de esperanto dentro da grade da Unicamp no segundo semestre de 2011, tendo o trancado após uns dois meses. Mas em junho de 2009, depois do fim de meus dois sites adolescentes, o passo principal foi a criação de meu primeiro blog no Blogger, minha primeira experiência de escrita pública à exceção do Orkut e de jornais da faculdade, o chamado “Pensadores Libertos”, de textos variados, numa época em que eu estava lendo muito sobre política e contestando tudo, principalmente a religião. Mas além desse meu espacinho para o “neoateísmo” que estava na moda, postei muitas coisas sobre línguas e esperanto que estavam guardadas, em especial que tinham sido publicadas na antiga página de esperanto, e também textos novos, a começar pelas traduções escritas das duas letras que o Hino Nacional da URSS teve entre 1944 e 1991, feitas por mim e pela turma de Russo II da Unicamp no segundo semestre de 2007. Era a primeira vez que eu as lançava ao público, e mais tarde eu as usaria como base de minhas duas primeiras legendagens no atual canal “O Eslavo” do YouTube, tanto a letra de 1944 quanto a de 1977. Mas o meu talento de tradutor e poliglota ainda era muito incipiente, então pouca coisa apareceu no “Pensadores Libertos” nesse sentido, enquanto eu praticava esperanto por outros meios, sobretudo pelo Orkut e pelo Facebook, no qual fiz minha primeira conta em setembro de 2009. Este meio, sim, é que foi prolífico pra treinar idiomas, fazer amigos, aprender coisas novas! Claro que atualmente desisti de usar essa ferramenta, mas acho que, no tempo em que usei, valeu a pena. Quanto ao blog, valeu como primeira tentativa de sintetizar experiências, treinar a redação e guardar informações num só lugar, mas acabou pouco mais de um ano depois. Republiquei muitos textos no Materialismo.net, e depois neste blog finalmente, mas minha militância pró-esperanto ia amenizando.
Tempos modernos – O que eu poderia chamar de “fase contemporânea” da minha vida intelectual começou em 2012, quando: 1) fundei em janeiro meu novo blog, o Materialismo.net, em parceria com o professor Giuliano Casagrande, no qual adquiri a experiência básica pra administrar também o “Traduções de Erick Fishuk”; 2) concluí minha graduação e descobri que havia vida após a universidade, tendo mais tempo livre pra novas reflexões e uma considerável bagagem acumulada de pesquisa e intelecto; 3) comecei a atualizar com mais frequência meu canal no YouTube “Pan-Eslavo Brasil”, que desde janeiro de 2017 se chama “O Eslavo”, fundado em novembro de 2010 com os dois vídeos citados acima e decorrido do término dos seis semestres de russo na Unicamp, quando já me sentia mais corajoso pra fazer traduções públicas; 4) comecei, como a maioria dos brasileiros, a usar o Facebook com mais frequência, tanto pro bem quanto pro mal, realizando interações que me permitiram trocar informações num momento em que eu não tinha muito o que fazer fora de casa. Antes de 2012, como eu tinha dito, 2011 foi o momento mais relevante até então pra minha vida de esperantista, pois eu tinha dado um novo impulso aos estudos esperantistas na Unicamp ao voltar a ler gramática e textos mais sistematicamente, em especial o famoso manual Esperanto sem mestre, de Francisco Valdomiro Lorenz, que até então eu só tinha ouvido de nome. (Infelizmente, até hoje não estudei o livro por completo.) Eu tinha feito também uns poemas em esperanto, que no ano passado publiquei aqui neste blog e recitei no meu canal “O Eslavo”, mas foram coisas bem esporádicas. Apesar da temática geral ateísta, era no Materialismo.net que eu postava todos os meus trabalhos tradutórios e linguísticos, relacionados principalmente à URSS e ao comunismo, que a partir de 2012 começaram a ficar mais frequentes, e as postagens foram regulares até o final de 2014. Eu fundei este blog, o “Traduções de Erick Fishuk”, em agosto de 2014, como uma tentativa de criar meu próprio espaço pra reflexões e traduções, e como parte desta concentração, o Materialismo.net foi se esvaziando, também por conta das múltiplas tarefas docentes e familiares que começavam a ocupar o Giuliano. A essa altura, como uma escora, o esperanto já estava absorvido e superado no meu saber linguístico mais geral, que enfim consolidava o francês e o russo e acrescentava cada vez mais línguas, mesmo de forma parcial. Essas duas línguas foram predominando em meu blog cada vez mais, aparecendo apenas ocasionalmente coisas em ou sobre esperanto, em geral, como eu disse, reciclada de páginas e suportes anteriores, mas agora é que estou mais decidido a repostar ou publicar pela primeira vez várias coisas. Não tenho uma previsão, mas quero estudar ativamente o esperanto de novo, para reciclar o que se deteriorou e acrescentar conhecimento novo à altura de minhas atuais responsabilidades intelectuais.
A ideia de “muleta”, ou uma espécie de “escora” que depois é absorvida pelo saber linguístico mais enriquecido, tal como as primeiras estruturas de um prédio, é a visão atual que tenho sobre o esperanto, após olhar em retrospecto pro meu passado intelectual. Não aprendi esperanto como um plano premeditado, mas como algo ao mesmo tempo mais disponível e mais fácil, ante a carência de recursos no começo da minha adolescência. Foi uma diversão que aos poucos comecei a levar a sério, mas cujo alcance eu ainda desconhecia no começo. As primeiras ideias sobre o esperanto que recebi, claro, eram a do “idioma internacional simples, fácil, bonito, lógico e racional”, de bases lançadas pelo polonês esclarecido que tinha uma enorme vontade de ver reinar a paz entre os povos. Ainda tenho um grande carinho por essa proposta inicial, mas aos poucos, a partir da idade adulta, fui a deixando, sem com isso romper com a língua de modo geral. Essa noção de coisas internacionais, que se encaixavam, racionais, chegadas de repente numa cabeça magnânima, é bem típica do século 19, em cujo espírito Zamenhof se formou. Contudo, como sabemos, a ideia do idioma internacional é bem mais antiga, embora sua viabilidade fosse se esfarelando ao longo do século 20. Mas como alguém ainda pouco informado, recebendo apenas o que se escrevia nos restritos círculos esperantistas online, pra mim as coisas também funcionavam assim: ou se amava o idioma e sua “ideia interna”, quase inseparável, de promover a fraternidade universal, ou se era mais “realista” e se rejeitava toda ideia de conciliação, portanto o esperanto como um todo, por algo mais realista, em geral o uso acrítico do inglês ou mais uma das mirabolantes propostas de línguas planejadas, dizendo-se apenas um “idioma”, neutro de implicações ideológicas.
O tempo foi relativizando meus extremismos, tanto os favoráveis quanto os contrários. Já escutei muita gente dizendo que queria “esquecer” o esperanto por causa do bando de dogmáticos que o movimento teria se tornado. Eu aprendi a separar as duas coisas: claro que em muitos lugares, principalmente no passado, algumas pessoas defenderam o esperanto como uma doutrina mesmo, uma espécie de religião, e sacralizavam seu iniciador, Zamenhof, e a obra dele como algo perfeito, intocável. Justamente em 2011, quando comecei aquele curso na Unicamp, li o livro Babel e Antibabel, de Paulo Rónai, com a primeira crítica acadêmica e bem estruturada ao esperanto que eu li em minha vida. Alguns dos conceitos que o literato cita, como o de “estranheza aos ouvidos românicos”, não me pareceram interessantes, mas seu texto foi o que me ajudou em definitivo a ver o esperanto de uma perspectiva externa. Por isso, hoje não acho a língua em si perfeita, mas ainda a considero como uma grande obra do pensamento. E não apenas do pensamento de Zamenhof, que por si só já era uma cabeça muito inteligente, mas também do de várias pessoas e coletivos, pois, ao contrário do que apregoa a mitologia conformista, o esperanto não é uma “invenção de laboratório”, excogitada por Zamenhof de repente em seu isolado escritório. Não apenas o oftalmologista testou várias vezes sua criação em conversas com amigos e traduzindo obras consagradas pra sua nova língua, como também ela continuou sendo cultivada e regulada por gerações sucessoras, após a morte do iniciador. Esse fato de ter havido uma continuidade geracional, ao contrário de outros projetos hoje folclóricos, além do amplo uso atual em músicas, livros, periódicos e sites desmente absolutamente outro mito: o de que o esperanto é uma língua morta. Ora, a mais primária pesquisa no Google ou até na Wikipédia já desmente essa assertiva! Perfeição e racionalidade lógica podem não ser atributos inerentes ao esperanto, mas sua divulgação e sua continuidade são hoje um fato incontestável, mesmo que quase sempre não haja menções a ele no status quo.
Por que o esperanto é uma grande criação? Ele sintetiza traços morfológicos e estruturais da maioria das principais línguas do mundo e, por isso, como eu também disse, é uma ótima introdução ao estudo de idiomas em geral. Ele “desmonta” nossa identificação entre língua materna e língua no geral, sintetizando o funcionamento básico de um idioma, sem por isso imitar nenhum dos falados no mundo. Essa é uma das críticas feitas ao esperanto, principalmente por criadores de idiomas mais próximos das línguas românicas e do inglês, mas considero, pelo contrário, uma virtude: não ser parecido como nenhum idioma, exigindo, portanto, o mesmo esforço de todos, mesmo que o europeu seja brindado com vários radicais do alemão, francês, inglês, latim e grego. Não penso que um idioma internacional deva ter uma proporção igual de material de todos os idiomas, mas uma proporção equilibrada do material contido nas principais línguas de cultura, comunicação, ciência, tecnologia, política e diplomacia. Parece injusto, mas é a realidade. Isso faz com que ele não seja uma invenção absolutamente inútil. Na verdade, por causa de sua feição mais “atualizada”, parece ser um instrumento propedêutico mais interessante do que o latim, o qual, embora seja uma língua culturalmente importante, tem uma estrutura muito complexa e bastante distante das maiores línguas ocidentais atuais. Claro que, nesse aspecto, justamente por não estar livre de concorrentes, o esperanto não é absolutamente indispensável, mas a facilidade de aprendizado, sua difusão e o interesse que apresenta o mundo em torno dessa língua são fatores que contam muito a seu favor. Ou seja, podemos muito bem aprender o esperanto como uma poderosa ferramenta de erudição, entrando em contato com uma história fantástica, mas nem por isso precisamos “militar” (como dizemos hoje) ativamente no movimento, nem mesmo compartilhar dos mesmos ideais de Zamenhof ou de seus admiradores mais assíduos.
Sumarizando minhas afirmações anteriores, acredito que o esperanto foi muito importante pra mim – na verdade, crucial – na futura vida de poliglota, mesmo que nas intenções iniciais eu não quisesse aprender esperanto como uma iniciação a outros idiomas; de fato, eu achava mesmo que era possível a todos os cidadãos do mundo falar apenas sua língua materna, e o esperanto pra se comunicarem entre si. Hoje, julgo o esperanto como mais um idioma entre vários, e sua contribuição foi, sobretudo, absorvida pelo meu posterior aprendizado de outras línguas. Não me arrependo de ter aprendido e ter dedicado tanto tempo e energia ao esperanto: ele me proporciona o acesso a coisas que não conceberia existirem em outras línguas. Sem contar que, quando algum verbete de dicionário online ou algum texto está num idioma desconhecido, traduzido pra outros idiomas desconhecidos, e também em esperanto, vejo uma luz no fim do túnel. Por isso mesmo, acho que ele não substitui a atual capacidade crescente de poliglotismo, pois quando se defendia fervorosamente o uso do esperanto como idioma internacional indispensável, os recursos pro aprendizado linguístico eram muito escassos, e devemos ter fé no aperfeiçoamento dos métodos e no fortalecimento da educação, com decorrente aumento de habilidades. Além disso, tradução e interpretação devem continuar a fazer sentido: ninguém é obrigado a saber todos os idiomas do mundo. Minha opinião atual é a de que eu não vejo nenhum mal em aprender esperanto, e tudo depende do tempo, dos gostos e dos recursos da pessoa, sendo que a principal vantagem que vejo é ser essa introdução ao aprendizado de idiomas que citei. Mas se a pessoa tem tudo a seu favor pra começar direto com qualquer língua, ou com várias línguas nacionais, a começar pela habilidade, inteligência e comunicabilidade de sobra, não penso ser algo indispensável. Pode haver o caso em que, independente de sua capacidade linguística, alguém, principalmente estudioso de algum assunto, se sinta compelido a aprender a língua (o que, pras pessoas bem instruídas, é algo longe de ser penoso), somando mais uma riqueza ao seu arcabouço. Nunca se sabe quando se vai precisar dessas miudezas, não? Mas eu ainda sou instigado pela ideia de um idioma auxiliar planejado, a fim de evitar muitos transtornos. Não necessariamente aqueles idealizados por Zamenhof, pressupondo que “a incompreensão era a principal causa de conflitos entre os povos”, mas o fato é que os estudos interlinguísticos, dentro da ciência linguística mais ampla, ainda estão pouco desenvolvidos, e tem muitas questões que, como historiador, não estou apto pra responder.
Concluindo – Estou apenas lançando a questão. Eu gostaria de falar muito mais ainda sobre as críticas ao esperanto por ser um idioma “sem cultura, sem povo e sem país”, ou mesmo à ideia de que atualmente “ninguém o fala mais”, de que “não tem literatura”. Vou ter que deixar pra outra oportunidade, que espero não estar distante. Mas espero que esse compartilhamento de um pouco de minha vida intelectual, relacionado principalmente ao que tenho de mais caro em meu pensamento, que são os idiomas estrangeiros e o esperanto, tenha sido útil e agradável a vocês, embora muito condicionado pelas experiências de hoje. Claro que, se eu tivesse escrito este texto alguns anos atrás, ele seria bem mais pessimista, e talvez ele não fosse mais igual se eu decidisse reescrevê-lo daqui a alguns anos. O tempo é impiedoso, e a memória é flácida. Mas o esperanto é uma coisa que insiste em não me abandonar.
Bragança Paulista, 1.º-2 de abril de 2017