Por Erick Fishuk
Estou começando aqui uma série de textos em que pretendo abordar várias questões com que me deparei ao traduzir textos da língua russa para a portuguesa, especialmente discursos e canções dos tempos soviéticos. São apontamentos que escrevi, salvei como notas no Facebook e, após algumas revisões, estou publicando agora. Embora a bibliografia sobre teoria e técnicas de tradução já seja considerável em português (e muitíssimo maior em inglês, francês, espanhol e alemão), nenhuma obra trata diretamente da tradução a partir do russo (ou mesmo da versão do português para o russo, na qual literalmente não sou “versado”...), se limitando apenas ao intercâmbio entre línguas euro-ocidentais. Quanto às obras propriamente russas sobre tradutologia, meu contato com elas ainda está apenas começando.
Porém, as sugestões que os livros brasileiros fazem são igualmente aplicáveis a qualquer tipo de tradução ou a qualquer par de línguas, e podemos encontrar inspiração até mesmo em livros mais focados em tradução de poesia (como no ótimo Tradução: teoria e prática, de John Milton ‒ São Paulo, Martins Martins Fontes, 2010). Por isso, baseado em minhas leituras, e na minha incipiente experiência tradutória, publico essas anotações, as quais, repito, se aplicam em especial à tradução de textos soviéticos com vocabulário do movimento comunista. Assim, nem todo tradutor do russo pode achar aqui algo proveitoso, contudo podem se interessar pelos meus textos os curiosos em história da União Soviética e dos Partidos Comunistas ou aqueles a quem atraem os problemas de tradução de um modo geral.
Esta primeira postagem mais longa trata de alguns problemas genéricos divididos em casos pontuais, e nas próximas postagens, que por enquanto são em número de duas, vou abordar outras questões mais específicas. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.
PROBLEMAS DE VOCABULÁRIO
De 1919 a 1952, o órgão dirigente do Partido Comunista soviético entre cada congresso se chamava “Politburo do Comitê Central” (“Политбюро ЦК”, ou “Политбюро Центрального комитета”). De 1952 a 1966, ele foi chamado de “Presidium do CC” (“Президиум ЦК”), e a partir de 1966 ele retomou o nome antigo.
Embora no meu sistema de transliteração se devesse em tese escrever “Politbiuro” e “Prezidium”, prefiro manter aquelas grafias tradicionais (exceto em textos russos); aliás, “politburo” também está registrado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
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O russo tem uma infinidade de palavras para se referir às classes trabalhadoras. Vou mostrar como eu traduzo algumas delas:
- Пролетарий = é a mais transparente. Eu traduzo como “proletário”. O mesmo para o adjetivo “пролетарский”. Пролетарии всех стран, соединяйтесь! = Proletários de todos os países, uni-vos!
- Рабочий/Рабочая = tem forma de adjetivo, mas também pode atuar como substantivo. Eu traduzo como “operário/operária”. Российская социал-демократическая рабочая партия = Partido Operário Social-Democrata da Rússia.
- Трудящийся/Трудящаяся = outro adjetivo usado como substantivo ou adjetivo. Eu traduzo como “trabalhador/trabalhadora”.
- Работник/Работница = esse é mais polivalente, mas geralmente pode servir, em boa parte das situações, como “funcionário(a)” ou “empregado(a)”. Mas também toma uma das traduções acima em várias situações e expressões prontas. Existem também as expressões “работник партии” е “работник Советов”, que podem ser respectivamente traduzidas como “funcionário do Partido” e “funcionário dos sovietes”, ou ainda, especialmente se estiverem no plural, como “quadro(s) do Partido” e “quadro(s) dos sovietes”
Enfim, ocorre que esses termos, especialmente os dois primeiros, podem ter as traduções intercambiadas. Tudo depende do bom-senso, da criatividade e da análise correta da situação que devem fazer parte das competências do tradutor! ;-D
PROCEDIMENTOS TÉCNICOS DA TRADUÇÃO
Segundo Heloísa Gonçalves Barbosa (Procedimentos técnicos da tradução: uma proposta, 2.ª edição, Campinas, SP, Pontes, 2004), a MODULAÇÃO é um procedimento tradutório que consiste na inversão da perspectiva quando se passa de uma língua para outra, resultado de modos diversos de apreender e circunscrever a realidade.
No russo, temos um exemplo claro disso na tradução de datas incertas de certos documentos, em que se lê, por exemplo:
“Не ранее 30 ноября 1925 г.” = lit. “Não antes de (ou “Não mais cedo que”) 30 de novembro de 1925”
“Не позднее 25 апреля 1930 г.” = lit. “Não depois de 25 de abril de 1930”
A primeira ainda passa, mas a segunda, não. Sem contar que não posso usar simplesmente “depois de” ou “antes de”, porque neste caso as datas mencionadas não estariam incluídas como a de composição do documento. Então, para padronizar, eu inverto a perspectiva e escrevo respectivamente: “30 de novembro de 1925 ou depois” e “25 de abril de 1930 ou antes”.
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Outro exemplo de modulação que exige criatividade: vejam este sintagma, referente a um político: “символ преданности революционера своему делу”.
Literalmente, ficaria “um símbolo de devoção de um revolucionário a sua causa”. Além do atropelamento de dois “de”, em português soa feio e sem muito sentido.
Então, lancei mão do procedimento e transformei o substantivo “devoção” no adjetivo “devotado”. Deu nisto: “um símbolo do revolucionário devotado a sua causa”.
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Na tradução deste trecho, eu teria usado dois dos procedimentos que ela lista no livro:
“И вот, на другой день после первого сообщения о венгерской революции, я послал радиотелеграмму в Будапешт, прося Бела Кун прийти к аппарату [...]”
Literalmente, isso ficaria mais ou menos assim, já com algumas modificações:
“E então, no dia seguinte ao primeiro comunicado sobre a revolução húngara, enviei um radiotelegrama a Budapeste pedindo a Béla Kun que se aproximasse do aparelho [...]”
Eu apliquei dois procedimentos: a EXPLICITAÇÃO, colocando “recebimento” após “dia seguinte”, pra deixar a frase mais “brasileira”; e a COMPENSAÇÃO, em que jogo um significado pra outra parte do texto, a fim de adequar à redação mais comum, tirando, assim, a ideia de “radiotelegrafia” da “mensagem” (“radiotelegrama”) e jogando-a ao “aparelho”, já que em português “radiotelegrafia” é mais comum de aparecer e soa mais natural do que “radiotelegrama” (que aparece no VOLP, mas não na minha versão do Aurélio, ao menos).
Assim, deu nisto:
“E então, no dia seguinte ao recebimento do primeiro comunicado sobre a revolução húngara, enviei uma mensagem a Budapeste pedindo a Béla Kun que se aproximasse do aparelho de radiotelegrafia [...]”
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A tradução do
discurso de Stalin na Praça Vermelha a 7 de novembro de 1941, em plena invasão nazista à URSS, também deu muito o que pensar. Vou listar algumas modificações que fiz.
“Враг не так силен, как изображают его некоторые перепуганные интеллигентики.”
Literalmente, ficaria algo assim: “O inimigo não é tão forte como o retratam/pintam/figuram/representam alguns intelectuaizinhos atemorizados.” Contudo, a frase não está natural. Por duas vezes, lancei mão do procedimento da TRANSPOSIÇÃO, que é dizer a mesma coisa com partes diferentes do discurso. Então, substituí “forte” por “poderoso”, que tem mais a ver com a ideia de potência militar, e “retratar (alguém)” por “pretender”, se bem que talvez aí já seja mais parecido com a MODULAÇÃO.
Porém, meu maior “orgulho”, por assim dizer, foi o tratamento de “intelectuaizinhos”. Na verdade, “intelligentik”, nos dicionários especializados, é dado como mero sinônimo de “intelligent” (intelectual, ou o famoso intelligent), mas tem o sufixo diminutivo “-ik”, que por vezes passa uma ideia pejorativa. A tradução “intelectuaizinhos”, ou “intelectualecos”, ou “intelectualoides”, não ficaria boa nesse discurso, e “pseudointelectuais”, uma opção que vi em outras línguas, não quer dizer a mesma coisa. Assim, usei a COMPENSAÇÃO, jogando a ideia pejorativa no “atemorizados” ou “apavorados”, trocando por um sinônimo que fosse mesmo pejorativo, e cheguei a “acovardados” (com a ideia de “covarde”), porque os primeiros não têm uma ideia pejorativa explícita ou necessária. Assim, conseguindo manter a marca de pejoratividade, cheguei a esta tradução:
“O inimigo não é tão poderoso como pretendem alguns intelectuais acovardados [...]” (as reticências são porque emendei uma frase posterior).
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No mesmo discurso de Stalin, cometi mais alguns “desvarios” que quero listar aqui. Por exemplo, neste pedaço de frase:
“Если судить не по хвастливым заявлениям немецких пропагандистов, а по действительному положению Германии [...]”
Literalmente, teríamos: “Se julgarmos/A julgar não pelas afirmações vaidosas/jactanciosas/gabosas dos propagandistas alemães, mas pela real situação da Alemanha [...]”. Mas com uma TRANSPOSIÇÃO logo no começo e uma MODULAÇÃO logo após (especialmente trocando a ideia de “afirmar” pela de “difundir”), deixei a frase mais leve, principalmente após ter tirado três coisas “pesadas”: a preposição “por”, os plurais em sucessão e a repetição da ideia de “alemão” (“alemães” e “Alemanha”):
“Considerando não a propaganda vaidosa difundida pela Alemanha, mas a real situação do país [...]”.
Também achei interessante a mexida nesta frase:
“Украина, Кавказ, Средняя Азия, Урал, Сибирь, Дальний Восток были временно потеряны нами.”
Literalmente, tratando de regiões geográficas, a expressão “были временно потеряны нами” significa “foram temporariamente perdidas por nós”. Mas sabemos que voz passiva com pronome pessoal como agente não fica muito bonito em português, e também transformar em voz ativa (“Perdemos temporariamente...”) ia mexer muito na forma da frase, jogando o “foram temporariamente perdidas por nós” muito pra longe do lugar original, e atrapalhando também na hora de legendar, já que eu também tinha a versão em vídeo do discurso. Assim, cometi uma MODULAÇÃO, invertendo a ideia de “perder” para a ideia de “tomar”. Vejam:
“A Ucrânia, o Cáucaso, a Ásia Central, os Urais, a Sibéria e o Extremo Oriente foram temporariamente tomados de nós.”