domingo, 28 de dezembro de 2014

Hino da Internacional Comunista


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Esta canção foi empregada como hino da Internacional Comunista (ou 3.ª Internacional, ou Comintern), o órgão dirigente de todos os Partidos Comunistas do mundo a partir de Moscou, de 1930 até 1943, quando a organização foi dissolvida. A melodia foi composta por Hanns Eisler, a letra original em alemão por Franz Jahnke e Maxim Vallentin, e a tradução para o russo por Ilia Frenkel.

Originalmente, ela foi criada em 1928 para um programa teatral de agitação e propaganda, o Krasny rupor (Porta-Voz Vermelho), dedicado ao décimo aniversário de fundação da Comintern e executado em março de 1929 em Berlim. A letra em alemão, chamada Kominternlied (Canção da Comintern), tinha um significado bastante diferente. Em novembro de 1930, em Moscou, Eisler apresentou privadamente a canção para o compositor soviético Nikolai Chemberdzhi, que gostou dela e instou a que fosse transformada no hino da Internacional. Já em janeiro de 1931, a letra em russo de Ilia Frenkel, escrita especialmente para esse fim e transformada no Gimn Kominterna (Hino da Comintern), foi publicada na revista Za proletarskuiu muzyku (Por uma Música Proletária) e se tornou muito popular na União Soviética.

Após a Segunda Guerra Mundial e não existindo mais a Comintern, a canção tomou dois rumos. Na recém-formada Alemanha Oriental, o escritor Stephan Hermlin reformulou toda a letra em alemão, mantendo intacta apenas a segunda estrofe, e a canção passou a se chamar Lied der Werktätigen (Canção dos Trabalhadores). Na URSS, a segunda estrofe se tornou a quarta, o último verso dessa estrofe (“Наш лозунг - Всемирный Советский Союз!” ‒ Nossa palavra de ordem: uma União Soviética Mundial!) foi trocado (“Товарищ, борись за свободу свою!” ‒ Camarada, combata pela própria liberdade!) e o primeiro verso da quarta/terceira estrofe teve a palavra “Коминтерна” (da Comintern) trocada por “коммунистов” (dos comunistas). A canção passou a ser intitulada pelas suas primeiras palavras, Zavody, vstavaite! (Levantem-se, fábricas!).

A versão que traduzi e legendei é essa segunda do pós-guerra, executada pelo Grande Coral da Rádio Soviética, com solo de Piotr Kirichek, em 1958. Infelizmente não achei nenhuma gravação da versão completa do Hino, mas apenas uma bem antiga em que se cantam apenas a primeira e a segunda/quarta estrofes. Achei melhor usar a versão completa posterior na legendagem, e indicar aqui no blog, com notas de rodapé, no que o hino se diferenciava. Podem ser lidas nesta página as duas versões em russo, mas também postei abaixo o texto com as diferenças.

Esta introdução explicativa tem informação da Wikipédia em russo e desta página também em russo, com uma história da canção e com as duas variantes em alemão. E abaixo, o vídeo pro qual não fiz alterações na letra, já que com música temos limites mais flexíveis pra fazer legendagem:


Заводы, вставайте! Шеренги смыкайте!
На битву шагайте, шагайте, шагайте!
Проверьте прицел, заряжайте ружьё!
На бой пролетарий за дело своё!
На бой пролетарий за дело своё!

Товарищи в тюрьмах, в застенках холодных,
Вы с нами, вы с нами, хоть нет вас в колоннах,
Не страшен нам белый фашистский террор,
Все страны охватит восстанья костёр!
Все страны охватит восстанья костёр!

На зов коммунистов стальными рядами (1)
Под знамя советов, под красное знамя!
Мы красного фронта отряд боевой,
И мы не отступим с пути своего!
И мы не отступим с пути своего!

(2) Огонь ленинизма наш путь освещает,
На штурм капитала весь мир поднимает!
Два класса столкнулись в последнем бою;
Товарищ, борись за свободу свою!
Товарищ, борись за свободу свою! (3)

____________________


Levantem-se, fábricas! Cerrem as fileiras!
Marchem para o combate, marchem, marchem!
Verifiquem a pontaria, carreguem os fuzis!
À luta, proletário, conquistar o que lhe cabe!
À luta, proletário, conquistar o que lhe cabe!

Camaradas na prisão, nas frias câmaras de tortura,
Vocês estão conosco, conosco, mesmo ausentes das colunas,
Não temos medo do terror branco fascista,
O fogo da rebelião envolverá todos os países!
O fogo da rebelião envolverá todos os países!

Ao chamado dos comunistas, em fileiras de aço (1)
Todos sob a bandeira vermelha dos sovietes!
Somos o destacamento bélico da frente vermelha,
E não nos desviaremos do nosso caminho!
E não nos desviaremos do nosso caminho!

(2) A chama do leninismo ilumina nosso caminho
E instiga o mundo inteiro a atacar o capital!
Duas classes se enfrentaram na luta final;
Camarada, combata pela própria liberdade!
Camarada, combata pela própria liberdade! (3)


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Redação deste verso na primeira versão: “На зов Коминтерна стальными рядами” (Ao chamado da Comintern, em fileiras de aço).

(2) Na primeira versão, esta estrofe era a segunda.

(3) Redação destes dois últimos versos na primeira versão: “Наш лозунг – Всемирный Советский Союз!” (Nossa palavra de ordem: uma União Soviética Mundial!).



Stalin e outros líderes comunistas à frente do 7.º (e último) Congresso da Comintern, em 1935.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Problemas de tradução do francês


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Por Erick Fishuk


Esta é mais uma nota de Facebook que estou transformando em postagem do blog, mais para encher linguiça mesmo, sendo sincero. Mesmo assim, espero que como meio de compartilhar experiências, ela seja útil também a outras pessoas. São algumas anotações sobre as soluções a que cheguei ao traduzir do francês um artigo sobre o famoso “relatório secreto”, lido por Nikita Khruschov no 20.º Congresso do Partido soviético em 1956, e sobre sua difusão entre a população local e outros países comunistas. A referência bibliográfica do artigo é esta: Branko LAZITCH, “Le «Rapport secret» de Khrouchtchev entre la petite et la grande histoire” [O “Relatório Secreto” de Khrushchov entre a pequena e a grande história], Communisme, n. 9, 1.º trimestre/1986, pp. 52-58. Minha tradução pode ser lida aqui.

Para mais informações sobre pressupostos tradutórios e outros livros teóricos, acesse e leia também minhas outras três postagens sobre problemas de tradução do russo. Recomenda-se que o leitor da presente postagem tenha algum conhecimento de francês para acompanhar melhor meu raciocínio.



FILOSOFIA

Um tradutor não é um mero transpositor de palavras, mas um leitor e entendedor aguçado e um escritor ainda mais apurado. Em resumo: deve praticamente reconstruir o texto em português com base no entendimento exato da ideia do texto de partida. Em grande parte dos casos, isso mina a ideia de “tradução literal” ou “palavra por palavra” como o modelo ideal de tradução que os leigos têm na cabeça.

Vejam este trecho, por exemplo:

“La Pologne devint la filière par laquelle le Rapport secret se transforma en Rapport public. Edward Ochab fut le témoin décisif à cet égard, et ce par deux fois !”

Eu cheguei a isto (posso ter cometido equívocos):

“A Polônia foi a fresta pela qual o Relatório Secreto escapou para se tornar um Relatório Público. Edward Ochab confirmou decisivamente esse fato, e por duas vezes!”

É praticamente uma atividade de decifração, porque literalmente ficaria horrível...


PROCEDIMENTOS TÉCNICOS

Segundo a classificação feita por Heloísa Gonçalves Barbosa (Procedimentos técnicos da tradução: uma proposta, 2.ª edição, Campinas, SP, Pontes, 2004), teríamos abaixo um exemplo de “explicitação” em tradução, isto é, a adição de elementos que tornam claro ao leitor estrangeiro algo que talvez fosse mais evidente ao leitor nativo.

Exemplo (do francês): Num texto sobre a URSS de 1956, “Institut de la littérature mondiale” pode ser desdobrado em “Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou”, acrescentando o nome da cidade e a homenagem onomástica que é sempre feita em russo.

Segundo o mesmo sistema, neste caso teríamos uma “transposição”, ou seja, a mudança de categoria gramatical para passar a mesma ideia semântica:

“Au départ des événements on trouve tout simplement un document confidentiel.” (Francês)

“Na origem dos eventos encontra-se um simples documento confidencial.”

tout simplement (advérbio) > simples (adjetivo).

“Compensação” é o procedimento que desloca para outro ponto do texto de chegada o efeito dado por um elemento em determinado ponto do texto de partida. Assim, por exemplo, se uma palavra não fica adequada, na tradução, em determinado ponto, pode ser colocada em outro:

“Au temps de Khrouchtchev encore, le fameux monolithisme était un joyau précieux dans la couronne du parti” (Francês).

“Nos tempos de Khruschov, o célebre monolitismo ainda era uma joia preciosa da coroa do Partido” (Português: notar deslocamento da palavra “encore”/“ainda”).



domingo, 14 de dezembro de 2014

Às mulheres trabalhadoras (Kollontai)


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Introdução (Erick Fishuk)

Esta é a tradução da transcrição de uma gravação muito rara da voz da feminista russo-soviética Aleksandra Mikhailovna Kollontai, uma das poucas mulheres a ocuparem um cargo de comissária do povo (ministra) na antiga URSS. Não encontrei a data exata da gravação, mas conforme indicações indiretas, pode ter sido feita por volta de 1918, e de fato sua voz ainda parece bastante jovem aí.

Sucintamente, Kollontai celebra a equiparação, logo depois da Revolução Bolchevique, dos direitos das mulheres aos dos homens, mas lembra que apenas a letra da lei não basta para mudar a realidade, na qual de fato as trabalhadoras continuavam submetidas à dupla jornada do labor externo e dos cuidados com a casa. Por isso, a feminista instiga os operários e camponeses homens a ajudar nessa transformação e compreender o quanto elas são iguais a eles em direitos, e chama as mulheres a tomar a liderança de sua emancipação por meio da ampliação da infraestrutura de apoio familiar e do apoio ativo à luta política dos comunistas.

O discurso foi dado a público pela primeira vez ao ser inserido no audiolivro em russo (o primeiro de confecção soviética) Sobre Lenin, organizado por um grupo de jornalistas em 1970 e lançado pela editora Pravda, de Moscou. A obra pode ser baixada nesta página. O título em russo é “К работницам” (K rabotnitsam). O áudio e o texto em russo também estão disponíveis nesta seção do site Sovmusic.ru. A versão em russo e uma tradução em espanhol também se encontram nesta postagem de um blog comunista. Abaixo você pode ver também o próprio vídeo legendado:


Camaradas trabalhadoras!

Por longos séculos a mulher não teve liberdade e direitos, pois era tratada como um mero apêndice, como a sombra do homem. O marido sustentava a esposa, e em troca ela se curvava ao seu arbítrio, suportando quieta a falta de justiça e a servidão familiar e doméstica. A Revolução de Outubro emancipou a mulher: hoje as camponesas têm os mesmos direitos que os camponeses, e as operárias, os mesmos que os operários. Em todo lugar a mulher pode votar, ser membro dos sovietes ou comissária, e até comissária do povo.

A lei equipara a mulher em direitos, mas a realidade ainda não a libertou: as operárias e camponesas continuam subjugadas ao trabalho doméstico, como escravas dentro da própria família.

Os operários devem agora cuidar para que a realidade tire dos ombros delas o fardo da lida com os filhos e alivie às operárias e camponesas o peso dos serviços de casa. A classe operária também está interessada em liberar a mulher nessas esferas. Os operários devem entender que a mulher é tão integrada à família do proletariado quanto eles próprios, pois ela trabalha sob as mesmas condições que o homem. Um terço de todas as riquezas da Terra surge das mãos das mulheres; a Europa e a América contam 70 milhões de operárias. Numa sociedade comunista mulher e homem devem ter direitos iguais! Sem essa igualdade, não há comunismo.

Então, mãos à obra, camaradas trabalhadoras! Iniciem sua emancipação! Construam creches e maternidades, ajudem os sovietes a organizar refeitórios públicos, ajudem o Partido Comunista a edificar uma nova e radiosa realidade. Tomem lugar nas fileiras de todos os que lutam pela libertação dos trabalhadores, pela igualdade, pela liberdade e pela felicidade dos filhos de vocês. Tomem lugar, operárias e camponesas, sob a bandeira vermelha revolucionária do vitorioso comunismo mundial!



domingo, 7 de dezembro de 2014

Problemas de tradução do russo (3)


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/russo3


Por Erick Fishuk


Termino com este texto uma breve série em que espero ter bem abordado várias questões que me fizeram pensar durante a tradução de textos da língua russa para a portuguesa, especialmente canções e discursos da era soviética. Eu havia escrito e salvado esses apontamentos como notas no Facebook e, após algumas revisões, publiquei nessas últimas três semanas. Não deixem de ler também o primeiro texto e o segundo texto da série, para conhecer a ideia por trás das publicações, meus pressupostos em teoria tradutória e algumas informações sobre os autores de livros que cito aqui.

Nesta terceira postagem, um pouco mais longa e também mais minuciosa (o que pode tê-la tornado mais árida), dou exemplos de como lidar com as repetições de palavras e expressões no texto de partida, especialmente se elas tiverem função estilística, e como por vezes a condensação do tamanho do texto na versão de chegada é possível prejudicando ao mínimo a passagem de significados. Para tanto, serão mencionados vários procedimentos técnicos que os teóricos da tradução mais consagrados descrevem em suas obras e cujo esclarecimento pode exigir pesquisa adicional. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.



REPETIÇÃO E CONDENSAÇÃO

Concluí mais uma tradução de um pequeno discurso de Lenin, e me deparei com alguns problemas tradutórios que gostaria de compartilhar. São relativos à manutenção de repetições estilísticas e à condensação de duas expressões numa só, mas carregando o sentido de ambas.

A primeira questão se refere ao seguinte trecho:

“Почему мы победили Юденича, Колчака и Деникина, хотя им помогали капиталисты всего мира? Почему мы уверены, что победим теперь разруху, восстановим промышленность и земледелие?”

Para tornar a exposição mais fácil, vou mostrar a solução à qual cheguei:

“Por que vencemos Iudenich, Kolchak e Denikin, embora eles tenham sido auxiliados pelos capitalistas do mundo inteiro? Por que estamos certos de que agora venceremos o caos e restauraremos a indústria e a agricultura?”

Inicialmente, levando em conta o fato descrito, fiquei tentado a traduzir o início da frase assim: “Como foi que vencemos...” ou “Como foi que conseguimos vencer...”, e queria manter o “Por que estamos certos...” posterior. Contudo, julguei que essa repetição de “Почему мы...” dava um efeito de complementação por meio da repetição, então mantive intacto o “Por que...”, e retirei o “nós/мы” para dar mais dinamismo à frase. Eu também quis traduzir o “победили” inicial (pretérito do verbo “победить”, que pode significar “vencer”, “derrotar” ou “superar”, conforme o contexto) como “derrotamos”, pois se tratava de uma derrota militar imposta aos líderes do Exército Branco. Mas daí ia quebrar a repetição com o “победим” (“venceremos”, futuro do mesmo verbo “победить”), que até poderia ser traduzido como “superaremos”, “ultrapassaremos” etc., mas que cabia muito bem como “venceremos”. Então, o efeito ficaria algo parecido como: “Por que vencemos...? E por que venceremos...?”

Notável é que a tradução inglesa disponível no site Marxists.org, entre outras perdas de sutileza, apresenta o trecho da seguinte forma: “How was it that we conquered Yudenich, Kolchak and Denikin, although they had help from capitalists of the whole world? Why are we sure that we will now overcome the ruin and rebuild our industry and agriculture?” Ou seja, as duas repetições são perdidas para “How was it that we...”/“Why are we...” e “conquered”/“overcome”. O tradutor para o inglês também deixou escapar uma falta de constância ao traduzir, mesmo em ocorrências distantes, a expressão “мы уверены, что...”, que fixei como “estamos certos de que...” (mas que poderia tomar outras formas), numa vez como “we are sure that...” (na verdade, “... are we sure that...”) e na outra, “we are convinced that...”. Não sei, claro, com meu pouco conhecimento técnico de inglês, se as contingências exigiriam essas formas diferentes, mas no russo parecia não haver distinção.

Não estou considerando aqui diversos tipos de repetição que Lenin faz, mais retóricos do que estilísticos, por conta da situação oral em que se encontra, e que geralmente omito, porque minhas traduções, a princípio, se destinam apenas a serem assimiladas na forma escrita (um filme de época com um ator interpretando Lenin, por exemplo, exigiria a reprodução dessas mesmas repetições retóricas). Para ficarmos no mesmo texto: “так же сознательно, с такой же твердостью, с таким же героизмом”, literalmente “tão conscientemente (quanto antes), com a mesma firmeza, com o mesmo heroísmo”, e que reduzi para “com a mesma consciência, firmeza e heroísmo”, incluindo ainda a transposição de um advérbio em substantivo (falarei desse procedimento técnico adiante).

Também achei interessante, sem arrogância, uma solução à qual cheguei traduzindo o seguinte parágrafo:

“Долой шкурников, долой тех, кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы, кто боится необходимых для победы жертв!”

A primeira solução à qual eu havia chegado era esta:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em lucrar, especular, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

Quero concentrar a atenção no seguinte trecho: “кто думает о своей выгоде, спекуляции, об отлынивании от работы”. Literalmente, temos a seguinte interpretação: “que pensam em seu (próprio) proveito (ou “lucro”, dependendo do contexto), em especulação, no esquivo do trabalho”. Claro que no caso de “esquivo do trabalho” já ficaria muito melhor de cara “em esquivar-se do trabalho”, levando-se em conta que em russo usam-se substantivos em muitos casos em que usamos verbos. Essa é a primeira ocorrência do procedimento técnico de tradução que Vinay e Darbelnet, além de outros autores que os continuaram, chamaram de “transposição”, ou seja, a mudança do material léxico para expressar a mesma ideia (no caso, a transposição de um substantivo em verbo reflexivo). Porém, como vimos, a dinâmica da frase exigiu também a transposição dos substantivos “выгода” e “спекуляция” (ambos, no texto, na forma do caso prepositivo singular) para os verbos “lucrar” e “especular”, havendo ainda o acréscimo da palavra “só” por questão de ênfase e a omissão (que também seria um procedimento técnico, segundo Vázquez-Ayora) do pronome possessivo “своя” (“sua”, “sua própria”, sempre se referindo ao sujeito da frase, no texto também na forma do prepositivo singular “своей”).

Contudo, dois dias após fazer a primeira tradução desse parágrafo, numa das várias revisões do texto, dei-me conta de que Lenin, ao falar em “lucro/proveito” e “especulação”, não estava falando dos capitalistas que imperavam antes na Rússia, e sim dos arrivistas e aproveitadores que grassavam no Exército Vermelho. Portanto, as alusões a termos de economia e mercado não eram aí plenamente cabíveis, nem mesmo como metáfora, pois prejudicavam a compreensão. No caso de “выгода/lucrar”, pensei primeiramente em substituir por “aproveitar-se” (poderia ser também “dar-se bem”) ou “aproveitar”, este, porém, sendo muito incompleto. Contudo, ainda restava decidir o que fazer com “спекуляция/especular”. Claro que o Aurélio oferecia vários significados para “especular” e “especulação”, como “Investigação teórica, esp. de natureza exploratória, sem apoio de evidência sólida”, “Compra e venda de mercadorias ou títulos, esp. de forma arriscada e visando lucros altos e rápidos”, “Negócio em que uma das partes abusa da boa-fé da outra”, “Examinar com atenção; averiguar minuciosamente; observar; indagar; pesquisar”, “Transacionar, esp. de forma arriscada”, “Valer-se de certa posição, de circunstância, de qualquer coisa, para auferir vantagens; explorar”, “Comprar e vender (mercadorias, títulos, etc.) buscando ganhos a partir da oscilação dos preços, e correndo o risco de perdas”, entre outros. Da mesma forma, os dicionários russos online transitavam entre os significados desde “operação financeira” até “busca de lucros ou vantagens fáceis”, passando por “pensamento ou raciocínio vão, sem apoio na prática”. Mas eu achava que “especular” ainda era muito ligado, para os brasileiros, às práticas do mercado financeiro.

Como se pode notar, até mesmo pela não repetição da preposição “о” (sobre, em, a respeito de) em “о своей выгоде, спекуляции” e pela sua retomada em “об отлынивании от работы” (об = forma usada antes de som vocálico), tem-se a impressão de que “выгода” e “спекуляция” são usadas como sinônimos ou palavras complementares para uma mesma ideia, e que de alguma forma a ideia de “lucrar” já está em “especular”, consistindo, portanto, numa espécie de repetição ou ênfase. A diferença é que “especular” continha ainda a ideia de “jogar com a ocasião”, “fazer apostas arriscadas”. Assim, decidi trocar as palavras “lucrar, especular” por “tirar proveito das situações”, pois a ideia de “lucrar” estaria contida em “tirar proveito”, e a de “especular”, em “das situações”. Diga-se “das situações”, e não “da situação”, pois se faz uma generalização, e não a especificação de um caso. Assim, mais uma tentativa:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que só pensam em tirar proveito das situações, esquivar-se ao trabalho e que temem os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

Alguns dias depois de deixar a tradução “descansando”, reli-a novamente e pensei melhor na conveniência da inserção do advérbio “só”, pensando se Lenin queria dizer mesmo “só pensam” apenas com o verbo “думает” (pensam). Olhei melhor o verbete “думать” (forma infinitiva) no meu dicionário e vi que, além da possibilidade de deixar simplesmente como “pensar em”, poderia usar outros sinônimos da ideia, como “tencionar”, “cuidar de”, “preocupar-se com”, entre outros. Mas julguei que “pensar em” ficaria muito localizado, válido apenas para aquele momento, sem refletir possíveis características interesseiras intrínsecas a esses arrivistas. Então, procurando sinônimos, achei mais adequado e sonoro o verbo “buscar”, além do que decidi fazer novas modificações gramaticais para tornar a frase mais natural. A versão definitiva foi, afinal, esta:

“Abaixo os arrivistas, abaixo os que buscam tirar proveito das situações e esquivar-se ao trabalho, temendo os sacrifícios indispensáveis à vitória!”

E, para terminar, mais uma piadinha relacionada à minha tradução. O adjetivo “вечная”, feminino de “вечный”, presta-se a inúmeras traduções: “perpétua”, “eterna”, “incessante”, “imortal”... Pois bem, eu deveria traduzir a expressão “Вечная слава...”, que instintivamente transformei em “Glória eterna (a)...”. Para tirar a dúvida, inseri “вечная слава” no tradutor do Google, e ele me deu “glória imortal”. Contudo, vejam só: ao inserir o ponto de exclamação em “вечная слава!”, a tradução se transformou em “glória eterna!”. Vai entender...

P.S.: Link para o texto em russo e em inglês: clique aqui. Reparei que nesta versão, na frase “о своей выгоде, о спекуляции”, a preposição “о” é, sim, repetida.



domingo, 30 de novembro de 2014

Problemas de tradução do russo (2)


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Por Erick Fishuk


Este é o segundo de uma série de textos em que pretendo abordar várias questões com que me deparei ao traduzir textos da língua russa para a portuguesa, em especial discursos e canções dos tempos soviéticos. São apontamentos que salvei como notas no Facebook e, após algumas revisões, estou publicando agora. Para mais informações sobre minhas leituras a respeito de teoria da tradução que me inspiraram a escrever, consulte o primeiro texto da coletânea.

Esta segunda postagem, como prometido na primeira, trata de questões mais específicas, e é a fusão (ou quase) de duas notas do Facebook: uma a respeito da manutenção de estrangeirismos no texto de chegada e outra sobre as diferentes traduções para o português de um mesmo substantivo, a depender se ele está no singular ou no plural. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.



ESTRANGEIRISMOS

Teoria da tradução faz bem, mas é mesmo traduzindo que se aprende a traduzir. Em algumas traduções de Lenin que fiz, surgiu o pouco explorado problema da flexão de substantivos não assimilados à língua portuguesa, ou seja, os famosos “estrangeirismos”.

Deparei-me com o problema de como traduzir os plurais de “кулак” (“kulak”, o camponês médio da Rússia e da URSS) e “погром” (“pogrom”, onda de perseguição em massa aos judeus na Europa Oriental), que no nominativo são respectivamente “кулаки” (transl. “kulaki”) e “погромы” (transl. “pogromy”). Esses plurais em russo são pouco conhecidos nossos e convivem com alternativas aclimatadas às línguas euro-ocidentais, como “kulaks” e “pogroms”. Quais delas escolher? Após realizar, em alguns casos, traduções que agora eu não realizaria, acabei estabelecendo quatro níveis em que as traduções poderiam ser diferentes.

No primeiro nível, os iniciados em língua russa (ao menos em nível incipiente) e história da URSS. Obviamente, em se tratando de um texto em português, eu faria a transliteração, mas da forma no nominativo plural em russo: “kulaki” e “pogromy”. Claro que a coisa ficaria mais fácil se as palavras fossem acompanhadas por elementos plurais, como “os”, “alguns”, “certos”, “aqueles” etc.

No segundo nível, os livros de divulgação, mas ainda com um caráter científico e acadêmico. Eu escreveria os plurais originais “kulaki” e “pogromy” no texto, mas colocaria as respectivas notas de rodapé:

* Nominativo plural de “kulak” em russo

e

* Nominativo plural de “pogrom” em russo.

É de se lembrar, claro, que se no texto russo essas palavras estão em outros casos (genitivo, dativo, instrumental etc.), mesmo assim translitero como no nominativo em português.

No terceiro nível, os textos de divulgação política, geralmente os discursos e textos dos grandes líderes, mas criados especialmente para um suporte escrito fixo ou de consulta culta (mesmo que originalmente tenham sido, por exemplo, discursos orais ou panfletos), como por exemplo sites marxistas e coletâneas de documentos. É uma inversão da solução anterior: escreve-se “kulaks” e “pogroms” no texto, e, apenas para fins de informação, colocam-se as respectivas notas de rodapé:

* Nominativo plural em russo: “kulaki”

e

* Nominativo plural em russo: “pogromy”.

Essa inversão se justifica por uma questão de economia de energia mental: no caso anterior, a lentidão da leitura e o nível intelectual dos leitores justificam a espera em se saber do que se tratam “kulaki” e “pogromy”, até que se leia a nota. No presente caso, capta-se imediatamente o que são “kulaks” e “pogroms”, sendo dispendida aí toda a energia mental e não se gastando praticamente nada na consulta às notas, que ficam como uma informação secundária.

E no quarto nível, enfim, os panfletos, os textos militantes mais circulantes e fluidos, as legendas de vídeo e, possivelmente, a reinterpretação de discursos ou falas em filmes e outras ocasiões de encenação. É melhor usar aí as formas “kulaks” e “pogroms”, imediatamente compreensíveis aos receptores ocidentais.

Poderia ainda estabelecer um quinto nível de tradução, no âmbito explicativo, em que, em certos casos, ou eu trocaria “kulaks” e “pogroms” por “camponeses médios” e “massacres/perseguições antissemitas/contra os judeus”, respectivamente, ou expressões ou circunlóquios equivalentes, ou ainda poderia me valer do procedimento técnico da “explicitação” citado por Vázquez-Ayora, escrevendo “os kulaks, camponeses médios” ou “os pogroms, perseguições...” etc. Mas estou focado nos leitores que já têm algum conhecimento sobre história da Rússia e da URSS, especialmente historiadores e militantes políticos, e por isso me centro no uso de “kulak” e “pogrom”.

Em todo caso, o que eu jamais faria era utilizar formas pouco usuais e não consagradas como “cúlaque” e “pogron” (esta, incrivelmente, dada como vinda do iídiche!), listadas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), havendo na primeira a marcação errada da sílaba tônica e apenas a segunda (escrita erroneamente com N) sendo listada na seção de estrangeirismos.


PLURAIS

Existem casos na tradução em que nos deparamos com “falsos amigos”, ou seja, palavras parecidas nas duas línguas, mas de significado absolutamente diferente. Estes dias, ao traduzir Lenin, descobri, digamos, um tipo intermediário dessa confusão: palavras transparentes, ou muito comuns, que no singular sabemos muito bem o que significa, mas que no plural, por vezes, podem assumir acepções levemente diferentes.

“Продукт” (produkt), por exemplo, é fácil: significa “produto” de uma forma geral. Porém, o plural “продукты” (produkty) pode nomear também “gêneros alimentícios”, “víveres”. Aliás, foi consultando o verbete “gêneros” no Aurélio que fiz uma acrobacia na tradução: a expressão “необходимые для них продукты” (neobkhodimye dlia nikh produtky), dentre outras possibilidades, pode ser traduzida por “produtos/víveres/gêneros que lhes são indispensáveis”, se formos seguir ao pé da letra. Mas como vi no dicionário brasileiro a expressão “gêneros de primeira necessidade”, e ainda significando “Mercadorias, esp[ecialmente]. alimentos, indispensáveis às necessidades básicas do homem”, decidi traduzir “необходимые для них продукты” por “gêneros de primeira necessidade”, deixando subentendidos os destinatários já mencionados.

Outra palavra enganadora é “работа” (rabota), que, em geral, significa “trabalho”, mas que no plural, “работы” (raboty), pode designar também “obras” (em geral de engenharia). No trecho “Все работы, необходимые для восстановления транспорта” (Vse raboty, neobkhodimye dlia vosstanovlenia transporta), “работы” também poderia ser traduzido por “trabalhos”, mas veja como ficaria melhor, ainda mais em se levando em conta o que o contexto oferece: “Todas as obras necessárias à restauração dos transportes”.

Lembrando ainda que no texto inteiro não traduzi “транспорт” (transport) pelo singular, mas pelo plural “transportes”, já que aí havia a acepção de “sistema de transportes”! Ou seja, como dizia o sábio Geir Campos, que o tradutor consciencioso procure no dicionário todas as palavras, especialmente as que julga conhecer melhor...



domingo, 23 de novembro de 2014

Problemas de tradução do russo (1)


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Por Erick Fishuk


Estou começando aqui uma série de textos em que pretendo abordar várias questões com que me deparei ao traduzir textos da língua russa para a portuguesa, especialmente discursos e canções dos tempos soviéticos. São apontamentos que escrevi, salvei como notas no Facebook e, após algumas revisões, estou publicando agora. Embora a bibliografia sobre teoria e técnicas de tradução já seja considerável em português (e muitíssimo maior em inglês, francês, espanhol e alemão), nenhuma obra trata diretamente da tradução a partir do russo (ou mesmo da versão do português para o russo, na qual literalmente não sou “versado”...), se limitando apenas ao intercâmbio entre línguas euro-ocidentais. Quanto às obras propriamente russas sobre tradutologia, meu contato com elas ainda está apenas começando.

Porém, as sugestões que os livros brasileiros fazem são igualmente aplicáveis a qualquer tipo de tradução ou a qualquer par de línguas, e podemos encontrar inspiração até mesmo em livros mais focados em tradução de poesia (como no ótimo Tradução: teoria e prática, de John Milton ‒ São Paulo, Martins Martins Fontes, 2010). Por isso, baseado em minhas leituras, e na minha incipiente experiência tradutória, publico essas anotações, as quais, repito, se aplicam em especial à tradução de textos soviéticos com vocabulário do movimento comunista. Assim, nem todo tradutor do russo pode achar aqui algo proveitoso, contudo podem se interessar pelos meus textos os curiosos em história da União Soviética e dos Partidos Comunistas ou aqueles a quem atraem os problemas de tradução de um modo geral.

Esta primeira postagem mais longa trata de alguns problemas genéricos divididos em casos pontuais, e nas próximas postagens, que por enquanto são em número de duas, vou abordar outras questões mais específicas. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.



PROBLEMAS DE VOCABULÁRIO

De 1919 a 1952, o órgão dirigente do Partido Comunista soviético entre cada congresso se chamava “Politburo do Comitê Central” (“Политбюро ЦК”, ou “Политбюро Центрального комитета”). De 1952 a 1966, ele foi chamado de “Presidium do CC” (“Президиум ЦК”), e a partir de 1966 ele retomou o nome antigo.

Embora no meu sistema de transliteração se devesse em tese escrever “Politbiuro” e “Prezidium”, prefiro manter aquelas grafias tradicionais (exceto em textos russos); aliás, “politburo” também está registrado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

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O russo tem uma infinidade de palavras para se referir às classes trabalhadoras. Vou mostrar como eu traduzo algumas delas:

- Пролетарий = é a mais transparente. Eu traduzo como “proletário”. O mesmo para o adjetivo “пролетарский”. Пролетарии всех стран, соединяйтесь! = Proletários de todos os países, uni-vos!

- Рабочий/Рабочая = tem forma de adjetivo, mas também pode atuar como substantivo. Eu traduzo como “operário/operária”. Российская социал-демократическая рабочая партия = Partido Operário Social-Democrata da Rússia.

- Трудящийся/Трудящаяся = outro adjetivo usado como substantivo ou adjetivo. Eu traduzo como “trabalhador/trabalhadora”.

- Работник/Работница = esse é mais polivalente, mas geralmente pode servir, em boa parte das situações, como “funcionário(a)” ou “empregado(a)”. Mas também toma uma das traduções acima em várias situações e expressões prontas. Existem também as expressões “работник партии” е “работник Советов”, que podem ser respectivamente traduzidas como “funcionário do Partido” e “funcionário dos sovietes”, ou ainda, especialmente se estiverem no plural, como “quadro(s) do Partido” e “quadro(s) dos sovietes”

Enfim, ocorre que esses termos, especialmente os dois primeiros, podem ter as traduções intercambiadas. Tudo depende do bom-senso, da criatividade e da análise correta da situação que devem fazer parte das competências do tradutor! ;-D


PROCEDIMENTOS TÉCNICOS DA TRADUÇÃO

Segundo Heloísa Gonçalves Barbosa (Procedimentos técnicos da tradução: uma proposta, 2.ª edição, Campinas, SP, Pontes, 2004), a MODULAÇÃO é um procedimento tradutório que consiste na inversão da perspectiva quando se passa de uma língua para outra, resultado de modos diversos de apreender e circunscrever a realidade.

No russo, temos um exemplo claro disso na tradução de datas incertas de certos documentos, em que se lê, por exemplo:

“Не ранее 30 ноября 1925 г.” = lit. “Não antes de (ou “Não mais cedo que”) 30 de novembro de 1925”

“Не позднее 25 апреля 1930 г.” = lit. “Não depois de 25 de abril de 1930”

A primeira ainda passa, mas a segunda, não. Sem contar que não posso usar simplesmente “depois de” ou “antes de”, porque neste caso as datas mencionadas não estariam incluídas como a de composição do documento. Então, para padronizar, eu inverto a perspectiva e escrevo respectivamente: “30 de novembro de 1925 ou depois” e “25 de abril de 1930 ou antes”.

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Outro exemplo de modulação que exige criatividade: vejam este sintagma, referente a um político: “символ преданности революционера своему делу”.

Literalmente, ficaria “um símbolo de devoção de um revolucionário a sua causa”. Além do atropelamento de dois “de”, em português soa feio e sem muito sentido.

Então, lancei mão do procedimento e transformei o substantivo “devoção” no adjetivo “devotado”. Deu nisto: “um símbolo do revolucionário devotado a sua causa”.

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Na tradução deste trecho, eu teria usado dois dos procedimentos que ela lista no livro:

“И вот, на другой день после первого сообщения о венгерской революции, я послал радиотелеграмму в Будапешт, прося Бела Кун прийти к аппарату [...]”

Literalmente, isso ficaria mais ou menos assim, já com algumas modificações:

“E então, no dia seguinte ao primeiro comunicado sobre a revolução húngara, enviei um radiotelegrama a Budapeste pedindo a Béla Kun que se aproximasse do aparelho [...]”

Eu apliquei dois procedimentos: a EXPLICITAÇÃO, colocando “recebimento” após “dia seguinte”, pra deixar a frase mais “brasileira”; e a COMPENSAÇÃO, em que jogo um significado pra outra parte do texto, a fim de adequar à redação mais comum, tirando, assim, a ideia de “radiotelegrafia” da “mensagem” (“radiotelegrama”) e jogando-a ao “aparelho”, já que em português “radiotelegrafia” é mais comum de aparecer e soa mais natural do que “radiotelegrama” (que aparece no VOLP, mas não na minha versão do Aurélio, ao menos).

Assim, deu nisto:

“E então, no dia seguinte ao recebimento do primeiro comunicado sobre a revolução húngara, enviei uma mensagem a Budapeste pedindo a Béla Kun que se aproximasse do aparelho de radiotelegrafia [...]”

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A tradução do discurso de Stalin na Praça Vermelha a 7 de novembro de 1941, em plena invasão nazista à URSS, também deu muito o que pensar. Vou listar algumas modificações que fiz.

“Враг не так силен, как изображают его некоторые перепуганные интеллигентики.”

Literalmente, ficaria algo assim: “O inimigo não é tão forte como o retratam/pintam/figuram/representam alguns intelectuaizinhos atemorizados.” Contudo, a frase não está natural. Por duas vezes, lancei mão do procedimento da TRANSPOSIÇÃO, que é dizer a mesma coisa com partes diferentes do discurso. Então, substituí “forte” por “poderoso”, que tem mais a ver com a ideia de potência militar, e “retratar (alguém)” por “pretender”, se bem que talvez aí já seja mais parecido com a MODULAÇÃO.

Porém, meu maior “orgulho”, por assim dizer, foi o tratamento de “intelectuaizinhos”. Na verdade, “intelligentik”, nos dicionários especializados, é dado como mero sinônimo de “intelligent” (intelectual, ou o famoso intelligent), mas tem o sufixo diminutivo “-ik”, que por vezes passa uma ideia pejorativa. A tradução “intelectuaizinhos”, ou “intelectualecos”, ou “intelectualoides”, não ficaria boa nesse discurso, e “pseudointelectuais”, uma opção que vi em outras línguas, não quer dizer a mesma coisa. Assim, usei a COMPENSAÇÃO, jogando a ideia pejorativa no “atemorizados” ou “apavorados”, trocando por um sinônimo que fosse mesmo pejorativo, e cheguei a “acovardados” (com a ideia de “covarde”), porque os primeiros não têm uma ideia pejorativa explícita ou necessária. Assim, conseguindo manter a marca de pejoratividade, cheguei a esta tradução:

“O inimigo não é tão poderoso como pretendem alguns intelectuais acovardados [...]” (as reticências são porque emendei uma frase posterior).

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No mesmo discurso de Stalin, cometi mais alguns “desvarios” que quero listar aqui. Por exemplo, neste pedaço de frase:

“Если судить не по хвастливым заявлениям немецких пропагандистов, а по действительному положению Германии [...]”

Literalmente, teríamos: “Se julgarmos/A julgar não pelas afirmações vaidosas/jactanciosas/gabosas dos propagandistas alemães, mas pela real situação da Alemanha [...]”. Mas com uma TRANSPOSIÇÃO logo no começo e uma MODULAÇÃO logo após (especialmente trocando a ideia de “afirmar” pela de “difundir”), deixei a frase mais leve, principalmente após ter tirado três coisas “pesadas”: a preposição “por”, os plurais em sucessão e a repetição da ideia de “alemão” (“alemães” e “Alemanha”):

“Considerando não a propaganda vaidosa difundida pela Alemanha, mas a real situação do país [...]”.

Também achei interessante a mexida nesta frase:

“Украина, Кавказ, Средняя Азия, Урал, Сибирь, Дальний Восток были временно потеряны нами.”

Literalmente, tratando de regiões geográficas, a expressão “были временно потеряны нами” significa “foram temporariamente perdidas por nós”. Mas sabemos que voz passiva com pronome pessoal como agente não fica muito bonito em português, e também transformar em voz ativa (“Perdemos temporariamente...”) ia mexer muito na forma da frase, jogando o “foram temporariamente perdidas por nós” muito pra longe do lugar original, e atrapalhando também na hora de legendar, já que eu também tinha a versão em vídeo do discurso. Assim, cometi uma MODULAÇÃO, invertendo a ideia de “perder” para a ideia de “tomar”. Vejam:

“A Ucrânia, o Cáucaso, a Ásia Central, os Urais, a Sibéria e o Extremo Oriente foram temporariamente tomados de nós.”



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A Marselhesa da Comuna


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Considerada o Hino Nacional da Comuna de Paris, a “Marselhesa da Comuna” tem a mesma melodia da famosa canção revolucionária “A Marselhesa”, composta por Claude Joseph Rouget de Lisle em 1792 e vigente como Hino Nacional da França desde 1879. A nova letra, de 1871, é atribuída à militante Jules Faure, foi adotada como hino do governo communard em março e abolida em maio, quando os rebeldes foram derrotados.

Por vezes, o nome da suposta autora é citado “Madame Jules Faure”, porque seu prenome é epiceno (serve a homens e mulheres), ao contrário da forma feminilizada “Julie”. E Madame porque era casada, sendo “De Castellane” seu sobrenome de solteira (o qual tem origem nobre da Provence), segundo algumas fontes.

A tradução que fiz não é artística (ou seja, não tem as mesmas rimas nem a mesma métrica/ritmo), nem extremamente literal, e me permiti mudar um pouco as palavras que seriam esperadas para que se retivesse o sentido que suponho ter a autora buscado passar, para que tentasse provocar o mesmo efeito que o hino causaria a um falante do francês, mas com palavras diferentes, para um falante do português.

Esta gravação pelo ator e cantor francês Armand Mestral foi feita para o LP La Commune en chantant em 1971, depois reeditado em CD em 1988. Como se nota, além do refrão, cantam-se apenas as estrofes 1, 2 e 5. Para maiores informações, mas não muitas, sugiro uma consulta rápida ao verbete “La Marseillaise de la Commune” na Wikipédia em francês e em inglês, onde há também a letra completa em francês e em inglês, já que para a legendagem só traduzi as referidas estrofes, que estão aqui em francês e em português.

Abaixo o vídeo, para o qual não fiz alterações na letra, já que com música temos limites mais flexíveis para fazer legendagem:


1. Français, ne soyons plus esclaves !,
Sous le drapeau, rallions-nous.
Sous nos pas, brisons les entraves,
Quatre-vingt-neuf, réveillez-vous. (bis)
Frappons du dernier anathème
Ceux qui, par un stupide orgueil,
Ont ouvert le sombre cercueil
De nos frères morts sans emblème.

Refrain :
Chantons la liberté,
Défendons la cité,
Marchons, marchons, sans souverain,
Le peuple aura du pain.

2. Depuis vingt ans que tu sommeilles,
Peuple français, réveille-toi,
L’heure qui sonne à tes oreilles,
C’est l’heure du salut pour toi. (bis)
Peuple, debout ! que la victoire
Guide au combat tes fiers guerriers,
Rends à la France ses lauriers,
Son rang et son antique gloire.

(Refrain)

5. N’exaltez plus vos lois nouvelles,
Le peuple est sourd à vos accents,
Assez de phrases solennelles,
Assez de mots vides de sens. (bis)
Français, la plus belle victoire,
C’est la conquête de tes droits,
Ce sont là tes plus beaux exploits
Que puisse enregistrer l’histoire.

(Refrain)

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1. Franceses, saiamos da escravidão!
Reunamo-nos sob a bandeira.
Esmaguemos nossos grilhões,
Renasce, ano de 1789. (bis)
Lancemos a condenação final
Aos que por estúpido orgulho
Abriram a tumba escura
De nossos irmãos mortos sem glórias.

Refrão:
Cantemos a liberdade,
Defendamos a Cidade,
Marchemos, marchemos,
Sem soberanos o povo terá pão.

2. Após vinte anos adormecido,
Desperta, povo francês,
O chamado que te soa ao ouvido,
É o chamado de tua salvação. (bis)
De pé, ó povo! Que a vitória
Guie teus altivos guerreiros no combate,
Restitui à França seus louros,
Seu lugar e sua antiga glória.

(Refrão)

5. Não mais exalteis vossas leis novas,
O povo ignora vossa prepotência,
Chega de frases pomposas,
Chega de faladeira sem sentido. (bis)
Francês, a mais nobre vitória
É a conquista de teus direitos,
Que são as mais altas façanhas
Que podes gravar na história.

(Refrão)



terça-feira, 11 de novembro de 2014

Do direito ao ateísmo


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NOTA: Artigo do filósofo ateu francês Michel Onfray publicado no site do jornal francês Le Monde a 5 de fevereiro de 2011 e traduzido por mim logo depois de seu aparecimento. Como parte do interesse maior que eu tinha na época pela filosofia ateísta, publiquei-o em fevereiro de 2012 no outro blog que administro, o Materialismo.net. Antes de repostar aqui, fiz uma nova revisão que resultou em algumas modificações. O original, “Du droit à l'athéisme” pode ser lido aqui. Para um aprofundamento maior nas ideias de Onfray a respeito do ateísmo, recomendo especialmente suas obras Tratado de ateologia, A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista e sua série Contra-história da filosofia, todas já traduzidas.

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O ateísmo é uma ideia recente na Europa, tão recente que parece ainda estar para nascer... Através dos séculos, os detentores do poder clerical rotularam de ateus um agnóstico como Protágoras, um politeísta como Epicuro, um fideísta (1) como Montaigne, um panteísta como Spinoza ou um deísta como Rousseau, porque eles não acreditavam muito no Bom Deus, em outras palavras, no deus que encarna a lei do lugar e do momento. Por muito tempo o epíteto foi um insulto, antes que desaparecesse seu efeito injurioso na segunda metade do século 20, até voltar a ser, recentemente, a ofensa que fora por séculos.

Foram necessários, no século 17, os escritos de um Pierre Bayle para que enfim se cogitasse a ideia de um ateu virtuoso, de tanto que o sem Deus passava naturalmente por uma pessoa sem lei, visto que sem fé. Ora, sabe-se desde então que a fé não impede ninguém de ser também sem lei, como mostra Simão de Monforte: (2) a crença em Deus justifica racionalmente assassinatos em seu nome. Inúmeros crentes pós-modernos se conformam, de fato, ao grito de guerra do assassino de cátaros que afirmava: “Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!” (Sim, eu sei, na verdade era o núncio Arnaud Amaury, (3) não precisam se precipitar à coluna dos leitores...)

Queiramos ou não, a França é realmente “a filha primogênita da Igreja”, pois, no sentido etológico, a impregnação judaico-cristã em nossa civilização por mais de um milênio é hoje incontestável. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, conforme seu prólogo, foi redigida “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo”, e não segundo os princípios descrentes de um Jean Meslier, para nomearmos o primeiro ateu francês – um padre, diga-se de passagem, cujo Testamento (a Bíblia dos ateus, se me permitem a expressão...), descoberto logo após sua morte, em 1729, deve ser lido com toda urgência.

Hoje em dia, a laicidade está na moda. Mas quase sempre essa laicidade é um balaio de gatos que permite aos judeo-cristãos conservarem as numerosas conquistas da antiga religião longamente dominante, e aos muçulmanos reivindicarem um lugar no concerto monoteísta para defender sua crença, tudo em detrimento do ateísmo.

O serviço público, por exemplo, transmite a missa nas manhãs de domingo, e a France-Culture cumpre essa tarefa sem que ninguém ache certo. Talvez fosse oportuno lançar uma petição para tirar do ar essa liberdade de expressão – petição que a milícia freudiana havia a seu tempo lançado contra mim em nome... “da liberdade de expressão”!

Sou ateu declarado, e mesmo assim não me viria a ideia de pedir um direito de resposta, envolto numa petição, para proibir a retransmissão de um ofício dominical! A laicidade de uma Marine Le Pen é hemiplégica: ela é um combate às pretensões sociais do islã, claro, mas em nome do cristianismo. Tal como o feno das charretes nos filmes de faroeste que esconde as carabinas dos insurgentes, essa laicidade dissimula uma arma de guerra contra o que seu pai chamava outrora de “imigração” e em prol dos valores cristãos, europeus, brancos, conservadores e reacionários. Em outras palavras, essa neolaicidade jura sobre a Bíblia que é preciso acabar com o Corão. Ora, podemos não escolher nenhum desses livros ditos sagrados e deplorar igualmente as cruzadas e as contracruzadas.

Ao contrário do que muitos dizem, sou ateu, mas não sou anticlerical. Penso, por exemplo, que a barulheira de pretensos descrentes que insistem em se desbatizar dá crédito à tese de que essa banal cerimônia assimilável ao termalismo é mais do que isso, ou seja, é o que os padres pretendem, já que seria preciso apagar totalmente o vestígio do que eles consideram uma infâmia. Estar ou não estar no rol dos batizados conta tanto quanto figurar entre os titulares de um cartão de fidelidade num supermercado – um verdadeiro ateu tem preocupações melhores... Tampouco me recuso a cruzar a porta de uma igreja para o casamento de um amigo, o batismo dos filhos de conhecidos ou o enterro de alguém próximo, sob o pretexto de que entrar no templo seria como pactuar com... o diabo, que não é mais real do que Deus! Meu pai foi sepultado há um ano na igreja de seu povoado natal, que é também o meu, numa cerimônia concelebrada, a pedido meu, por um amigo dominicano de Bordeaux e um outro amigo, um padre operário, porque eu sabia que meu pai não cogitava deixar este mundo sem uma cerimônia no lugar onde ele havia vivido sua espiritualidade na tradição de seu país – como Montaigne, que se dizia católico na França, como teria sido protestante na Suíça ou muçulmano na Pérsia... Gesto de um filho ateu para com seu pai fideísta.

(1) Fideísta: pessoa que antepõe a fé à razão, ou adepto da corrente doutrinária católica com essa atitude.

(2) Simão de Monforte (ou Simon de Montfort): nobre franco-normando que protagonizou, em 1209, a cruzada dos albigenses contra os hereges cátaros no sul da França.

(3) Arnaud Amaury (ou Arnau Amalric): abade cisterciense que liderou a referida cruzada dos albigenses.


terça-feira, 4 de novembro de 2014

Apelo de Igor Strelkov a 18/5/2014


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Igor Strelkov fala à imprensa na cidade ucraniana de Donetsk a 10 de julho de 2014.


Introdução (Erick Fishuk)

Este é o texto traduzido para o português (não sei se chegou a ser traduzido para outras línguas) da gravação em vídeo, datada de 18 de maio de 2014, em que o coronel Igor Ivanovich Strelkov, comandante das milícias armadas da autoproclamada República Popular de Donetsk, convoca a população local para repelir as unidades armadas ucranianas enviadas para deter a rebelião dos separatistas pró-Rússia. Foi traduzido diretamente do original russo, sem o cotejamento com qualquer outra versão. A transcrição foi comparada com o vídeo para se levantarem as poucas diferenças, expostas nas notas ao final.

Após a queda do governo pró-Rússia de Viktor Ianukovych na Ucrânia, na esteira dos protestos centrados na Praça da Independência (“Maidan”) em Kyiv, milícias armadas formadas por habitantes das regiões em que o russo é língua predominante e mesmo por cidadãos russos iniciaram uma rebelião na província de Donetsk, no leste do país. Em 7 de abril, líderes separatistas proclamaram a chamada República Popular de Donetsk, desencadeando a intervenção das forças armadas ucranianas e o conflito na região do Donbass que se prolonga até hoje. Embora o novo governo tenha montado toda uma estrutura institucional paralela que funciona de forma praticamente normal e goza de amplo apoio popular, entidades internacionais de direitos humanos têm acusado as milícias de cometer violência contra homossexuais, judeus, ciganos e outras minorias culturais.

Igor Ivanovich Strelkov, que se presume ser na verdade Igor Vsevolodovich Girkin, foi o segundo Ministro da Defesa dessa república entre 16 de maio e 14 de agosto, assim como o segundo Comandante Militar de Donetsk de 6 de julho a 14 de agosto. Teria deixado seus postos de comando por razões de férias e para cumprir missões em outros lugares, mas alegam-se também desentendimentos com as lideranças políticas dos separatistas e mesmo com figuras que lhe dariam apoio a partir de Moscou. Fontes de informação russas ressaltam sua popularidade na Rússia como ex-coronel do serviço secreto russo e seu destaque pelas ideias monarquistas, ortodoxas e fortemente antiliberais. Do ponto de vista ocidental, contudo, é considerado um terrorista que teria supostamente atuado na Bósnia nos anos 1990 e na Chechênia nos anos 2000, de forma violenta a favor dos interesses da Rússia.

No apelo apresentado abaixo, Igor Strelkov se queixa rispidamente que os esforços de voluntários da Rússia e da Ucrânia em enfrentar as forças armadas ucranianas, atendendo ao próprio pedido da população local da província de Donetsk, estariam sendo pouco reconhecidos e que muitos poucos nativos haviam se apresentado para lutar nas milícias rebeldes. Escasseariam especialmente os homens jovens, abundando os mais velhos que haviam vivido os tempos soviéticos, ao que Strelkov visa responder pelo recrutamento também de mulheres, algo bastante destacado por analistas estrangeiros. Embora as tropas separatistas estivessem passando por momentos bastante difíceis, os jovens estariam se aproveitando da anarquia reinante para saquear e praticar vandalismo, enquanto os que obtinham armas por meio das milícias não as estariam usando nos combates principais, mas na defesa das próprias casas contra bandidos. Strelkov define rigidamente as condições para que os cidadãos de Donetsk pudessem receber armas e lutar contra as tropas de Kyiv, intimida os que desejam continuar na criminalidade e expressa confiança no reforço de seus efetivos e na vitória final.

O texto original do apelo pode ser lido nesta página. Por meio da audição, e com a ajuda de vários amigos russos do Facebook, decodifiquei algumas passagens que estão diferentes, ou em acréscimo, na fala e na transcrição. Quanto aos vários nomes de cidades ucranianas citados em sua variante russa, nesta postagem anterior justifico, ou tento problematizar, minha opção em colocar na tradução suas variantes em ucraniano. Abaixo você pode ver também o próprio vídeo legendado, no qual, claro, sempre são feitas as necessárias adaptações a esse tipo de mídia:



APELO
do Comandante da Milícia da República Popular de Donetsk
18 de maio de 2014


[Eu mesmo escrevi o apelo. Agora só vou ler em voz alta. É um tanto comprido.]

Cidadãos da República Popular de Donetsk!

Dirijo-me a vocês com um pedido. Peço que se levantem em defesa de sua Pátria, suas casas, suas famílias e seu povo.

Cumpre-me lhes pedir que façam algo impossível de se exigir conforme todas as medidas humanas. Pois levantar-se por sua Pátria e sua liberdade na Mãe-Rússia sempre foi uma tarefa honrosa, a cujo apelo avidamente atenderam desde o início dos tempos aqueles que se consideravam varões.

Entretanto, preciso lhes dizer a verdade. Direto na cara! São palavras duras, que talvez até ofendam a dignidade de vocês. Já faz mais de um mês que nós, um pequeno grupo de voluntários da Rússia e da Ucrânia, atendendo a um pedido de socorro saído da boca dos líderes manifestantes que vocês promoveram, chegamos aqui e de armas na mão estamos enfrentando o exército ucraniano inteiro e uma enorme gentalha de mercenários louca por dinheiro.

O mês passado inteiro ouvimos várias vezes o apelo desesperado: “Deem-nos armas! Deem armas para que possamos lutar por nossa liberdade, por nosso direito de ler e falar em russo, nossa língua materna, e pelo direito de honrar nossos antepassados, heróis da Grande Guerra Pátria, e não os lacaios dos bandidos nazistas!” Atendendo a esse apelo, conseguimos armas. Tomamos em depósitos, tiramos de militares e milícias ucranianos ou compramos no mercado negro a preços exorbitantes. E eis que agora temos armas. Elas não estão no fundo da retaguarda ‒ nem em Donetsk, Luhansk ou Makiivka, nem em Shakhtarsk ou Antratsyt. Estão na linha de frente da luta, na cidade sitiada de Sloviansk (1). Estão aqui, onde são mais necessárias! Aqui, com os voluntários que defendem todo o resto do Donbass ‒ incluindo Donetsk e Luhansk. E bem aqui, nos arredores de Sloviansk e Kramatorsk, de Krasny Lyman e Kostiantynivka, onde se encontram nossas guarnições, a junta de Kyiv concentrou as forças mais combativas e numerosas. A seu lado se dispuseram dois terços da tropa punitiva e o estado-maior do que chamam “operação antiterrorista”.

E eis que chega a hora em que cada cidadão de Donetsk, apto a usar armas e disposto a mirá-las contra os inimigos de seu povo, pode chegar e recebê-las direto em mãos. Receber e se juntar às fileiras dos voluntários para expulsar as tropas punitivas para fora de sua terra natal. Mas o que estamos vendo? Qualquer coisa, menos multidões de voluntários às portas de nossos estados-maiores. Sloviansk tem 120 mil habitantes. Kramatorsk, o dobro. Só na província de Donetsk vivem 4,5 milhões de pessoas. Claro que nem todos os homens têm idade para combater. Nem todos são saudáveis ou livres de ocupações importantes para a subsistência. Nem todos podem nos procurar por terem obrigações familiares ou de qualquer outra natureza. Mas confesso sinceramente que jamais esperava não se apresentarem em toda a província nem mil homens dispostos a arriscar a vida não na própria cidade, numa barricada do lado de casa, distante a meio dia de carro do “guarda nacional” mais próximo, mas na linha de frente, onde realmente se dispara todos os dias.

A verdade é essa. Para não soar mentiroso, vou dar exemplos. Anteontem (2) chegou um grupo de 12 “heróis” de Artemivsk, selecionados e recomendados por uma pessoa de altíssima estima. Ao saber que deveriam servir imediatamente em Sloviansk (e não em sua Artemivsk natal), e que o prazo não terminaria em poucos dias, nem quiseram receber as armas. Ontem a história se repetiu. Dos 35 “voluntários” vindos de Donetsk, ressoando os estrondos dos morteiros ao longe e ficando claro que por três dias eles não poderiam ir para casa com as armas recebidas, 25 voltaram alegremente para seus lares... Talvez queixar-se das “duras condições” (sem tê-las vivido sequer um minuto) é mostra de seu heroísmo, revelado no trajeto do ônibus de passageiros. E não são casos isolados, (3) pois ocorrem com frequência entre nós.

Ainda na Crimeia, tive que ouvir dos ativistas do movimento popular relatos de que “quando os mineiros se levantarem, matarão todos com as próprias mãos!”. Ora, talvez isso ocorresse no passado. Mas ainda não é o que se vê. Dezenas e centenas de pessoas se arregimentaram para lutar. E dezenas e centenas de milhares (4) assistem a tudo tranquilas pela TV, de latinha na mão. Pelo visto, esperam que os irmãos da Rússia ou mandem um exército capaz de fazer tudo por eles, ou enviem uma quantidade suficiente de voluntários descabeçados prontos a morrer pelo direito deles de viver mais dignamente do que viviam sob os 23 anos de governo dos nacionalistas de Kyiv. (5) Onde estão os 27 mil voluntários de que falam os jornalistas? Não estou vendo. Chegar em casa com ar orgulhoso declarando “Eu me alistei na milícia!” para as mulheres admiradas é tudo o que sabem fazer?



Casas destruídas perto do Aeroporto Internacional de Donetsk, em outubro de 2014.


Em nossa fileira de voluntários estão entrando cada vez mais homens “bem acima dos 40”, crescidos e educados ainda nos tempos da URSS. Mas há pouquíssimos jovens. Onde estão os jovens e saudáveis rapazes locais? (6) Talvez nas “brigadas” bandidas que, tendo percebido a anarquia, correram “expropriar os expropriadores” e alvoroçar por todos os cantos da província de Donetsk? Sim, recebemos diariamente notícias sobre suas repetidas “façanhas”. E muitos falsos “milicianos” exigem armas antes de tudo para defender as próprias casas dos bandidos e delinquentes. Ora, é um desejo compreensível. Mas surge a questão ‒ e o que os comandantes da milícia devem fazer ‒: quem são os que vêm lhes pedir armas? Um cidadão honesto ou um bandido qualquer disfarçado de “patriota de Donetsk”? A resposta que damos é simples: só será considerado “miliciano” aquele que pessoalmente, compondo uma subdivisão, participar diretamente das operações de combate contra as tropas da junta! Onde e quando seus comandantes acharem necessário. Pois sem disciplina, não haverá nada! Nem vitória e nem ordem. Se cada um for “guerrear” onde e quanto mais lhe agrada ou convém pessoalmente, a milícia de Donetsk vai degenerar em algo a meio termo entre uma corja de desertores dissolutos e um bando reacionário contra tudo e todos.

Mas não será assim! Somente a quem demonstrar combater bem o inimigo e realizar outras missões de combate daremos o direito de pôr ordem na própria casa integrando a milícia! E imporemos essa ordem, não tenham dúvida! Os que hoje “acobertam” lojas e empresas, traficam drogas e simplesmente assaltam gente indefesa, não esperem que “as regras do jogo serão as mesmas” ou que “a guerra perdoará tudo”. O “Donbass Bandido” chegou ao fim! O novo poder dará a todos a possibilidade de renunciar à atividade criminosa, mas quem não quiser, receberá uma resposta firme. (7) Dessa resposta não se poderá resgatar por dinheiro algum! Não sob a legislação de guerra!

Voltando ao principal. A terra de Donetsk precisa de defensores, e a milícia, de soldados voluntários disciplinados. Se os homens não estão aptos a isso, devemos convocar mulheres. A partir de hoje emiti ordem para que sejam aceitas na milícia.

Lamentável não haver sequer uma oficial mulher, nem na ativa, nem na reserva. Mas que diferença faz, se nenhum oficial homem vem nos procurar? Em toda a província não se encontrou ainda nem duas dúzias de militares profissionais dispostos a comandar as subdivisões de combate! Uma vergonha, uma infâmia! (8) Há duas semanas peço que me enviem o chefe do estado-maior e ao menos uns cinco comandantes de companhias e pelotões. E nada! Nenhum! Minhas companhias e batalhões se guiam por soldados rasos e sargentos da reserva. Alguns comandam bem razoavelmente, mas no decorrer é que vai se sentindo a falta dos conhecimentos militares necessários... Bem, aprenderão com o tempo. Mas advirto que nenhum desses ditos “oficiais”, agora empoleirados em seus apartamentos como pardais sob o telhado apavorados com a tempestade e não tendo ocupado seu posto na milícia, jamais será a nossos olhos (9) considerado oficial! E tornar nossa opinião difundida também entre os cidadãos simples será outra tarefa.

Talvez restem poucos dias até que as ações de combate, até agora sem serem encarniçadas demais, atinjam as dimensões de uma verdadeira luta com dezenas e centenas de mortos e feridos. O inimigo está intimidado, mas ainda é muito forte! Ele tem o patrocínio de oligarcas dispostos a pagar enormes quantias para cada assassinato, cada casa destruída, cada crime contra o povo russo! Para vencê-lo, devemos lutar. Os cidadãos capazes de me ouvir e mostrar devoção a sua terra natal e seu povo, que venham aos estados-maiores da milícia, nas cidades de Sloviansk, Kramatorsk, Krasny Lyman, Kostiantynivka, Horlivka. Os comandantes que designei formarão aí subdivisões de reserva, organizarão a instrução e as enviarão, conforme sua preparação, ao exército na ativa. E mesmo que ele ainda pareça uma guerrilha pequena e muito mal organizada, está lutando e vai vencer! É caminhando que se faz o caminho!

Deus e a Verdade estão conosco!

O comandante da milícia da RPD
Coronel I. I. Strelkov


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Segue-se no vídeo: “em Kramatorsk, em Kostiantynivka.”

(2) No vídeo: “Três dias atrás”.

(3) No vídeo: “E estão longe de serem casos isolados”.

(4) No vídeo: “E dezenas de milhares e centenas de milhares”.

(5) No vídeo: “nacionalistas ucranianos.”

(6) No vídeo Strelkov não usa a palavra “locais”.

(7) No vídeo: “receberá a resposta merecida.”

(8) No vídeo: “Uma vergonha, uma desonra!” Na verdade, está escrito no texto “Styd i pozor!”, enquanto Strelkov pronuncia “Styd i sram!”: as palavras russas styd, sram e pozor são sinônimas, e podem ser traduzidas aleatoriamente por “vergonha”, “desonra”, “infâmia” ou outros sinônimos ainda.

(9) No vídeo Strelkov titubeia: “aos olhos... a nossos olhos, nenhum será”.



Bandeira da República de Donetsk: faixa aludindo à Mãe-Rússia e São Miguel Arcanjo.

domingo, 26 de outubro de 2014

Entrevista de Ianukovych deposto


Link curto pra esta postagem: fishuk.cc/yanuk


Esta é talvez a primeira fala na íntegra do ex-presidente da Ucrânia, Viktor Ianukovych, legendada em português. É a entrevista que ele deu para o canal de TV “112 Ukraina” na cidade de Kharkiv (Kharkov, em russo) a 22 de fevereiro de 2014, após ser deposto contra a vontade pela Rada Suprema, o parlamento ucraniano, na sequência dos protestos na capital Kyiv (Kiev, em russo), iniciados em novembro de 2013 (movimento do Euromaidan). Embora esta postagem venha quando a Ucrânia já consolidou um novo governo nacionalista, encabeçado pelo presidente Petró Poroshenko, deve-se lembrar que Ianukovych jamais renunciou formalmente à presidência, e que o governo russo sempre o considerou como seu representante legítimo.

Devo justificar uma opção quanto aos nomes próprios de cidades e pessoas. Embora Ianukovych e a âncora do jornal falem todos em suas variantes russas, coloquei-os na variante ucraniana, mesmo havendo laços maiores com as regiões de fala russa. Fiz isso simplesmente por se tratar de eventos ocorridos em território ucraniano ou serem elementos relativos ao Estado ucraniano, cuja língua primordial sempre foi, desde a independência, o ucraniano. Ver também postagem anterior, que se detém mais demoradamente sobre a questão dos nomes de cidades ucranianas.

Na entrevista, Ianukovych chama sua deposição de “golpe de Estado”, preocupa-se com o clima de intimidação que afirma ter sido criado pelos opositores e rejeita o “vandalismo” e o “banditismo” dos manifestantes antigoverno. Ainda prevendo uma possibilidade de volta ao poder e à capital – da qual havia fugido inicialmente para Kharkiv, no leste de maioria russófona, antes de entrar na Rússia –, promete buscar soluções para evitar um derramamento de sangue entre a população, descarta a possibilidade de sair do país (informação obviamente desatualizada) e contesta a legalidade das decisões tomadas em série pelo parlamento, a cujas demandas Ianukovych afirmava ter concedido todas. O político ucraniano também alude às ameaças e agressões sofridas pelos membros de seu governo, por seus partidários e pelos integrantes de seu Partido das Regiões (Partia Regionov), cujo ocaso ele nega que pudesse ocorrer futuramente, e teme pela integridade de pessoas que recusavam lealdade aos novos governantes, os quais ele compara aos nazistas dos anos 1930.

Não pensem que consegui traduzir e legendar apenas de ouvido: achei duas versões escritas da entrevista na internet, uma mais fiel aos diálogos (clique aqui) e outra mais fiel às ideias expostas (clique aqui). Esta segunda foi publicada originalmente no site da Presidência da Ucrânia, contudo, logo após a deposição de Ianukovych, a cópia no site da Presidência foi apagada, sendo preservada neste outro site. Nenhuma das duas versões é uma transcrição fiel das palavras faladas, por isso tive que ir cruzando ambas ao ouvir o áudio.

Abaixo você pode ver também a versão legendada da entrevista, na qual sempre são feitas as necessárias adaptações a esse tipo de mídia (considerar não a transliteração usada no vídeo, mas no texto, que segue o novo sistema adotado pela página):



ÂNCORA: Podemos escutar ao vivo o que diz o presidente Ianukovych em Kharkiv sobre sua demissão. Vamos ouvir.

IANUKOVYCH: Tenho toda certeza de que isto que nosso país e o mundo presenciam é a amostra de um golpe de Estado. Fiz tudo para evitar no país um banho de sangue. Aprovamos duas leis de anistia, demos todos os passos para estabilizar a situação política no país. Mas ocorreu como ocorreu. Cheguei em Kharkiv ontem, tarde da noite, desejando participar do encontro de hoje com deputados de todos os níveis e com líderes sociais, mas ocorreu que eu não podia ir, não podia perder tempo, porque tinha que estar comunicável todo o tempo. O tempo todo chegavam alertas de perseguição a pessoas. Estou buscando defender as pessoas que estão sendo perseguidas pelos bandidos em seus locais de residência e de trabalho e nas estradas. Estou fazendo de tudo para fazer cessar a matança de pessoas já próximas de mim.

Estão me intimidando o tempo todo com ultimatos, mas não penso em partir para nenhum lugar no exterior nem penso em renunciar ao cargo de presidente: fui legalmente eleito. Recebi garantias de todos os mediadores internacionais, com os quais atuo, de que me fariam estar em segurança. Observarei como eles vão desempenhar esse papel.

Tudo o que está ocorrendo hoje, obviamente, é um grau máximo de vandalismo, de banditismo, de um golpe de Estado. Essa é minha avaliação, da qual estou profundamente convencido.

O que vou fazer agora? Vou fazer tudo para proteger meu país da desordem, vou fazer tudo para cessar o banho de sangue.

REPÓRTER: De que forma?

Ainda não sei como vou fazer isso. Já me encontrei hoje com muitas pessoas, tomei conselhos – eu tive essa possibilidade. Agora percorrerei o sudeste do país, que continua sendo menos perigoso, ou mais seguro. Continuarei viajando, me encontrando com as pessoas. Primeiro, quero encontrar a resposta sobre o que faremos agora em nosso país, que rumo tomaremos e, claro, o pânico que hoje toma conta das pessoas comuns no oeste, no leste, no centro... Eu via o que se passava em Kyiv. Atiraram em meu carro, mas não estou aterrorizado. Tenho muito pesar pelo nosso país. Estou sentindo a responsabilidade. E o que vamos fazer agora: todos os dias vou falar publicamente sobre isso, todos os dias.

Vai permanecer em território ucraniano?

Vou permanecer em território ucraniano. Vou instar todos os observadores internacionais, todos os mediadores que participaram desse conflito político, a que detenham os bandidos. Não são opositores, são bandidos.

Ocorre que no parlamento, ao saírem do parlamento, os deputados são agredidos, atingidos por pedras, intimidados. As decisões que eles estão tomando são todas ilegais. E eles devem ouvir isto, ouvir de mim: não vou assinar nada com bandidos que estão aterrorizando todo o país, o povo ucraniano, e envergonhando a Ucrânia.



O senhor subscreveu todas as condições apresentadas pela oposição, cumpriu todas as promessas relativas às exigências dos opositores, e Maidan não se dispersou. O que fazer em tal situação, qual a saída?

Já disse tudo. Vou buscar saídas, observar a reação da comunidade internacional, ver como ela pode honrar seus compromissos.

Já entrou em contato com representantes da União Europeia?

Disso se ocupa o Ministro das Relações Exteriores, que ainda é o legítimo: Leonid Oleksandrovych Kozhara. Ontem ele me informou que havia conversado com os europeus, com o Ministro das Relações Exteriores da Polônia, e ontem à noite ele ligou para os Estados Unidos. Ontem tive uma conversa com o presidente Putin, da Rússia, que me disse ter conversado com o presidente Obama, dos EUA. E espero todos esses dias poder manter essas negociações.

Rybak, presidente da Rada Suprema, demitiu-se. O que o senhor diz a respeito disso?

Ele foi agredido ontem. Ele veio me ver, e no caminho atiraram no carro. Veio me ver e pediu que eu o levasse. Eu o levei e agora o despachei de carro para Donetsk.

Para tratar da saúde?

Sim, para tratar da saúde. Fiz o mesmo com Kliuiev, chefe de administração. Fizeram ameaças também aos juízes da Corte Constitucional.

Foram chamadas telefônicas, SMS?

Fazem isso de todas as formas. Mas ontem deputados do Partido das Regiões, ao saírem do parlamento, foram agredidos com pedras.

Muitos membros estão abandonando seu partido.

Algumas pessoas não resistem, temendo por suas famílias.

Fazem isso sob pressão?

Claro! E há ainda os traidores. Não quero falar disso agora, não quero citar nomes, esperando doer-lhes a consciência e a responsabilidade. O partido já passou muito por isso, sobrevivendo a 2004-2005, quando 200 mil membros o deixaram, e depois entraram mais 600 mil. Parece que a situação vai se repetir. Que saiam, digamos, meio milhão, 500 mil, embora eu não calcule tantos. Nosso partido continuará forte. Estamos vendo uma repetição do nazismo, quando nos anos 30, na Alemanha e na Áustria, os nazistas chegaram ao poder. É uma repetição. Fecharam os partidos, e agora da mesma forma fecham o Partido Comunista, o Partido das Regiões, lançam rótulos, perseguem, batem, agridem pessoas, queimam casas, escritórios. Mais de 200 escritórios do Partido das Regiões foram incendiados na Ucrânia.



domingo, 19 de outubro de 2014

Os nomes de cidades ucranianas


Link curto para esta postagem: fishuk.cc/cidades


Esta postagem é bem curtinha, porque apenas quero começar uma reflexão e ouvir a opinião de vocês. O que fazer numa tradução quando se depara com cidades ucranianas que ora são chamadas por seus nomes em russo, ora por seus nomes em ucraniano? Qual variante usar? Vocês podem me mandar um e-mail.


Traduzindo do russo para futura publicação e legendagem o apelo de Igor Strelkov, líder militar da República Popular de Donetsk (mais conhecidos como “separatistas ucranianos pró-Rússia”), pronunciado a 18 de maio de 2014, me deparei com uma questão que já havia enfrentado em outros textos, mas nunca tinha discutido com ninguém ou compartilhado aqui. Como transliterar nomes de cidades, especialmente ucranianas, que são conhecidas por um nome quando se fala russo, e outro nome quando se fala ucraniano?

O caso mais clássico é o de Kiev [Киев] (RU) e Kyiv [Київ] (UA). Existem outros mais conhecidos na Ucrânia, como:

  • Lugansk [Луганск] (RU) e Luhansk [Луганськ] (UA);
  • Chernobyl [Чернобыль] (RU) e Chornobyl [Чорнобиль] (UA);
  • Zaporozhie [Запорожье] (RU) e Zaporizhia [Запоріжжя] (UA);
  • Kharkov [Харьков] (RU) e Kharkiv [Харків] (UA).

Mas existem muitas outras cidades ucranianas com que me deparei no texto de Strelkov:

  • Shakhtiorsk [Шахтёрск] (RU) e Shakhtarsk [Шахтарськ] (UA);
  • Antratsit [Антрацит] (RU) e Antratsyt [Антрацит] (UA);
  • Konstantinovka [Константиновка] (RU) e Kostiantynivka [Костянтинівка] (UA);
  • Krasny Liman [Красный Лиман] (RU) e Krasny Lyman [Красний Лиман] (UA);
  • Artiomovsk [Артёмовск] (RU) e Artemivsk [Артемівськ] (UA)!!!

Qual transliteração usar, ou melhor, que língua usar? A questão é complexa, porque envolve política, e sensíveis rivalidades. Não é a mesma coisa do que chamar São Paulo de “San Pablo” num texto em espanhol ou Asunción de “Assunção” em português, porque são duas línguas que convivem num mesmo ambiente nacional e cultural! Claro que grosso modo no leste da Ucrânia boa parte da população fala russo (e o texto em questão foi escrito em russo por alguém daí), no centro falam russo e ucraniano, e no oeste é principalmente ucraniano. Mas a dúvida persiste.

Em se tratando de cidades NA Ucrânia, mesmo que o texto esteja em russo (só traduzo fluentemente do russo), eu costumo usar a variante ucraniana, mas às vezes fico com a impressão de que “estupro” a língua russa e a intencionalidade cultural russófona primárias. Porém, nunca ninguém reclamou desses meus usos... Pelo menos até agora, quando pretendo lançar uma tradução recheada desses doublets!!!



domingo, 12 de outubro de 2014

Discurso de Stalin a 7/11/1941


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Tomada de Stalin no momento em que proferia o discurso de 7 de novembro de 1941.


Introdução (Erick Fishuk)

Em plena invasão nazista à União Soviética, iniciada em junho de 1941, e com o inimigo às portas de Moscou e Leningrado (atual São Petersburgo), Iosif Stalin, Secretário-Geral do Partido Comunista (bolchevique) da URSS, toma uma decisão ousada: realizar a parada de comemoração do 24.º aniversário da revolução socialista, no dia 7 de novembro, nas mais duras condições, sob cerco e forte tensão. O pretexto é o de que o mesmo havia sido feito com sucesso em 1918, durante a Guerra Civil Russa, comemorando-se o primeiro aniversário da Revolução de Outubro, enquanto as tropas brancas e seus auxiliares estrangeiros cercavam militarmente o governo bolchevique.

Diante das Forças Armadas, Stalin pontua que a agressão nazista foi um choque para o país, que deveriam ser mobilizadas todas as forças para contê-la e que eles já tinham o mérito de não ter cedido aos primeiros golpes. Exorta os soldados, pilotos e marinheiros com o exemplo da Guerra Civil Russa, de 1918 a 1920, quando as condições eram ainda piores e mesmo assim o Exército Vermelho venceu, e lembra que em 1941 tudo havia melhorado substancialmente, com indústrias, produção aumentada e maior reforço militar. Os alemães já teriam antes provado derrotas ante os russos e não seriam um inimigo tão forte quanto muitas pessoas apavoradas pensariam, pois após anos de guerra e invasões, a Alemanha estaria padecendo várias necessidades e seu povo estaria insatisfeito com a desordem reinante. Contudo, o maior erro de cálculo de Stalin seria prever a derrota da Alemanha para o prazo máximo de um ano, quando sabemos hoje que Berlim só seria rendida no início de maio de 1945, ou seja, três anos e meio depois. Ainda assim, conclui exortando os soviéticos a resistir, como era de se esperar, espelhando-se nos maiores exemplos de heroísmo e proteção na história da Rússia.

Percebi, ao legendar o vídeo, que havia pequenas diferenças entre a fala de Stalin e o texto escrito, publicado inicialmente na edição n.º 310 de 8 de novembro de 1941 do jornal Pravda. Mas como o áudio era muito difícil de compreender, levei em conta apenas a variante escrita. Retirei o texto original das Obras completas de Stalin em russo, tomo 15, Moscou, Pisatel, 1997, pp. 84-86. Título original: “Rech na Krasnoi ploshchadi, 7 noiabria 1941 goda”. O texto também está disponível com áudio MP3 para baixar nesta página do grande site Sovmusic.ru.

A primeira versão em português, provavelmente traduzida de uma terceira língua, saiu inicialmente no livro Stalin, do escritor alemão Emil Ludwig, publicado pela Editorial Calvino em 1943. Foram suas insuficiências, sua prolixidade e sua excessiva literalidade que me levaram a produzir uma nova versão, cotejando a do livro, além do original em russo (obviamente!), com versões em inglês, em francês (incompleta), em espanhol e em italiano, publicadas inicialmente em outras fontes e que também têm lá seus defeitos.

Abaixo você pode ver também a versão em vídeo do discurso (legendada), na qual, é claro, sempre são feitas as necessárias adaptações a esse tipo de mídia:



Camaradas do Exército e Marinha Vermelhos, comandantes e instrutores políticos, operários e operárias, kolkhozianos e kolkhozianas, funcionários intelectuais, irmãos e irmãs na retaguarda inimiga caídos temporariamente sob o jugo dos bandidos alemães, gloriosos guerrilheiros e guerrilheiras nossos que estão destruindo as retaguardas dos agressores alemães!

Em nome do Governo Soviético e de nosso Partido Bolchevique, cumprimento-os e felicito-os por ocasião do 24.º aniversário da Grande Revolução Socialista de Outubro.

Camaradas! Devemos celebrar hoje sob duras condições o 24.º aniversário da Revolução de Outubro. Os bandidos alemães colocaram nosso país em risco ao nos imporem a guerra com sua pérfida agressão. Perdemos temporariamente algumas províncias, e o inimigo chegou às portas de Leningrado e Moscou. Ele contava poder, logo ao primeiro golpe, debandar nosso Exército e subjugar o país, mas enganou-se profundamente. Apesar dos reveses passageiros, nosso Exército e nossa Marinha estão repelindo heroicamente os ataques do inimigo ao longo de todo o front, causando-lhe grandes perdas, e o nosso país – todo o país ‒ organizou-se num campo único para desbaratar, ao lado do Exército e da Marinha, os agressores alemães.

Nosso país já esteve outrora numa situação ainda pior. Lembrem-se de que em 1918, quando celebrávamos o primeiro aniversário da Revolução de Outubro, três quartos do território se encontravam nas mãos dos invasores estrangeiros. A Ucrânia, o Cáucaso, a Ásia Central, os Urais, a Sibéria e o Extremo Oriente foram temporariamente tomados de nós. Não tínhamos aliados, não existia o Exército Vermelho ‒ que mal havíamos começado a formar ‒ e carecíamos de pão, armas e fardas. 14 estados estavam tomando nossa terra, mas não deixamos o desânimo nos tomar. Então, nas chamas da guerra, organizamos o Exército Vermelho e transformamos o país num grande acampamento militar. Inspirados pelo gênio do grande Lenin a combater os invasores, o que conseguimos? Destroçamo-los, recuperamos todo o território perdido e alcançamos a vitória.

Hoje a situação de nosso país é bem melhor do que há 23 anos. Multiplicamos enormemente nossa riqueza em indústrias, alimentos e matérias-primas, e temos aliados com os quais sustentamos uma frente única contra os agressores alemães. Contamos ainda com a simpatia e o apoio de todos os povos da Europa caídos sob o jugo da tirania hitleriana, além de um Exército e Marinha magníficos que defendem de corpo e alma a liberdade e independência da Pátria. Também não sofremos grave carência de alimentos, armas ou fardas, e nossas reservas humanas são inesgotáveis. Todos os povos que habitam nosso país estão sustentando o Exército e a Marinha na destruição das hordas rapinantes de fascistas alemães. O gênio do grande Lenin e sua bandeira vitoriosa nos impelem hoje à Guerra Patriótica, tal como 23 anos atrás.

Seria possível duvidar que podemos e devemos derrotar os agressores alemães?

O inimigo não é tão poderoso como pretendem alguns intelectuais acovardados, nem é um demônio tão medonho como o pintam. Quem pode negar que mais de uma vez nosso Exército Vermelho fez fugir em pânico as celebradas tropas alemãs? Considerando não a propaganda vaidosa difundida pela Alemanha, mas a real situação do país, será fácil perceber que esses agressores fascistas estão próximos da ruína. O povo alemão, hoje faminto e empobrecido, perdeu quatro milhões e meio de soldados em quatro meses de guerra, esvaindo em sangue suas reservas humanas, e já está sendo tomado por um ânimo insurgente, tal como os povos da Europa submetidos ao jugo dos agressores alemães, por não ver a guerra terminar. A agressão alemã está no limite das forças, e não há dúvida de que ela não pode ir muito além. Mais alguns meses, um semestre, ou talvez um ano, e a Alemanha hitleriana deverá ruir sob o peso dos próprios crimes.

Camaradas do Exército e Marinha Vermelhos, comandantes e instrutores políticos, guerrilheiros e guerrilheiras! O mundo inteiro os vê como uma força capaz de aniquilar as hostes espoliadoras de agressores alemães, e os povos da Europa subjugados por elas os consideram seus libertadores. Recaiu sobre vocês, portanto, a grande missão emancipatória: mostrem-se dignos dela! A guerra travada por vocês é uma guerra justa de libertação. Nessa luta, inspirem-se nos grandes exemplos de nossos valentes antepassados: Aleksandr Nevski, Dmitri Donskoi, Kuzma Minin, Dmitri Pozharski, Aleksandr Suvorov, Mikhail Kutuzov! Sejam cobertos pela bandeira vitoriosa do grande Lenin!

Pela total destruição dos agressores alemães!

Morte aos invasores alemães!

Vivam nossa gloriosa Pátria, sua liberdade e sua independência!

Sob a bandeira de Lenin, avante rumo à vitória!



Um veterano, como todos os outros, comemorando o Dia da Vitória em frente ao Kremlin.