segunda-feira, 30 de julho de 2018

Esquema de história da literatura russa


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NOTA: Este breve texto integra o material que redigi em outubro de 2017 pra lecionar o minicurso de língua russa no programa TOPE da Unicamp. As aulas seguiram até novembro, e cada elemento pôde ser transformado numa postagem à parte deste site ou no ponto de partida pra um material mais desdobrado. Hoje decidi publicar um esquema sucinto sobre a história da literatura da Rússia criada em língua russa, cuja fonte principal foi um verbete da antiga Enciclopédia Barsa, acrescido de algumas informações minhas. Ele não pretende ser exaustivo, e foi inicialmente pensado como um panorama num curso que se focaria no próprio idioma. Não tive tempo de completar alguns dados a quem não é familiarizado com a história da Rússia, e também sequer consultei a Wikipédia pra coletar dados. Lembro que não incluí a literatura de língua russa escrita em outros países, nem a literatura escrita na Rússia em outras línguas.

A literatura russa é fruto de um longo processo de unificação da língua e do Estado em torno de Moscou como capital política. Inicialmente de caráter religioso-eclesiástico, ela foi incorporando elementos populares e ocidentais que confluíram no período áureo vivido durante o século 19. No século 20, as limitações do “realismo socialista” imposto pelo poder soviético incentivaram um período de experimentação.

A história da literatura russa costuma ser dividida em dois grandes períodos: 1) a era pré-revolucionária, antes de 1917, que se subdivide a) do século 11, quando os eslavos orientais reuniam-se em torno da chamada Rus kievita, até o final do século 17, quando se iniciou o reinado de Pedro, o Grande, e b) do final do século 17, quando o idioma russo começava a ser padronizado, até 1917, quando os bolcheviques tomaram o poder; 2) a era pós-revolucionária, iniciada em 1917 e marcada pela Revolução Russa, pela ideologia comunista e pela universalização do ensino e de um dialeto nacional padronizado.

No início, a literatura no mundo eslavo oriental (grosso modo, atuais Rússia, Ucrânia e Belarus) compunha-se essencialmente de crônicas escritas em eslavo eclesiástico, língua codificada pelos santos Cirilo e Metódio e muito influenciada pelo grego de Bizâncio (atual Istambul). Era também desta língua e desta região que se traduzia no mundo eslavo grande parte da literatura religiosa. Outros escritos consistiam também de peças folclóricas, ditos, canções épicas e poesia religiosa, e a inclusão política dentro da Rus kievita persistiu até o século 13.

Já a partir de meados do século 12, Kyiv começou a declinar como centro político, até as invasões mongóis destruírem de vez a frágil federação de principados no século seguinte. A partir daí, o foco de difusão literária deslocou-se para o nordeste da Rússia e o principado da Galícia-Volínia, mas poucas obras do século 14 sobreviveram ao tempo, diante do jugo estrangeiro.

No século 15, teve início o que se pode chamar de produção literária em Moscou, na sequência da unificação nacional em torno dessa cidade. Destacam-se narrativas históricas e de batalhas militares, além da igual importância da cidade de Novgorod como exemplo de difusora literária. No século seguinte, sob o reino de Ivan 4.º, o Terrível, os mongóis foram enfim derrotados e a Rússia foi unificada em torno de uma autocracia. Apareceram textos de exaltação ao país e narrações das disputas do monarca com os boiardos (nobres).

No final do século 16 e no começo do 17, dominaram as narrativas de brigas internas e invasões externas, e em meados do século 17, os temas profanos ascenderam. Com Pedro, o Grande, e suas iniciativas de ocidentalização e modernização, trocou-se aos poucos a literatura religiosa pela secular, e então começaram a suceder-se as diversas correntes descritas a seguir.

Classicismo: ênfase na tradição popular e na vida cotidiana, com moldes inspirados nos clássicos e no neoclassicismo francês; Mikhail Vassilievich Lomonossov, conhecido polímata russo (uma espécie de Da Vinci), compôs muitos poemas e, em 1757, escreveu a primeira gramática da língua russa; sob o reinado de Catarina, a Grande (1762-1796), tiveram ênfase os temas da liberdade e dos direitos humanos.

Romantismo: predominante no século 19, quando se deu grande desenvolvimento literário geral e, sob a influência dos românticos ingleses e alemães (que também foram aí então muito difundidos), emergiram, entre outros, Pushkin (considerado o maior escritor russo), Lermontov e Nekrasov.

Realismo: momento da grande era da ficção, suplantou o romantismo, que fracassou em fixar-se, e adquiriu realmente maior enraizamento nacional; Gogol foi seu principal expoente, mas também brilharam Turgenev (apologia da democracia social), Dostoievski (crítica das ideias e instituições da época), Tolstoi (mais afastado da vida literária central, mas autor de quadros da sociedade russa e de crenças cristãs pessoais), Goncharov, Saltykov-Schedrin (com A família Golovliov, de 1876, do qual um dos personagens, Iudushka (Judas) Golovliov, deu o epíteto a uma crítica que Lenin ainda lançava contra Trotsky em 1911), Chekhov (mestre do conto e do drama) e outros.

Ainda no início do século 20, dentro do quadro realista, floresceram Gorki, com suas convicções revolucionárias, Vladimir Korolenko e Ivan Bunin, adeptos do realismo crítico.

Simbolismo e acmeísmo: concepções diversas entre si, marcaram o reflorescer da poesia com Soloviov, Balmont (conheça um poema seu musicado) e Anna Akhmatova (perseguida pelo regime de Stalin).

Vanguarda: abarcou várias correntes e autores, dentre os quais os autoproclamados “cubo-futuristas” (cujo manifesto representativo, Uma bofetada no gosto público, de Khlebnikov, ganhou em 2017 uma nova tradução de Erick Fishuk na coletânea Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, org. Daniel Aarão Reis, ed. Penguin/Companhia das Letras), Maiakovski (adepto do bolchevismo, mas logo desencantado com o burocratismo triunfante) e Kruchonykh.

Também de Erick Fishuk, existe uma reflexão online sobre um famoso poema de Khlebnikov (“Encantação pelo riso”), cuja tradução ele não ousou empreender, mas para a qual ofereceu instigantes reflexões.

Realismo socialista: corrente soviética predominante nos anos 1930, baseia-se nos pensamentos do burocrata Andrei Zhdanov (por isso também conhecida por “zhdanovismo”) e tornou-se doutrina oficial de Estado sobre as artes em geral; conhecem-se Nikolai Ostrovski (cujo arquétipo do estilo, Assim foi temperado o aço, teve tradução brasileira lançada pelo PCB), Isaac Babel, Mikhail Sholokhov (O tranquilo rio Don) e Ilia Ehrenburg (busca por tirar a literatura da estagnação após a 2.ª Guerra Mundial).

Tikhi Don (O tranquilo rio Don), romance escrito por Sholokhov em quatro volumes de 1925 a 1932 e em 1940, trata de uma família de cossacos do Don, os Melekhov, que vive uma trágica história amorosa nos anos da Primeira Guerra, da Revolução Russa e da Guerra Civil. Retratando o declínio e desmonte, pelos bolcheviques, da instituição dos cossacos como guerreiros livres, inspirou com várias mudanças o filme homônimo dirigido por Sergei Gerasimov em 1957-58, traduzido em inglês como And Quiet Flows the Don. Nesse filme, os russos ouviram o hino nacional do período tsarista pela primeira vez desde a queda da monarquia, em 1917. A ópera Terras virgens desbravadas, composta e estreada pelo músico Ivan Dzerzhinski em 1937, também foi inspirada no romance de Sholokhov, e comporta a música Canção do cossaco, com letra de Aleksandr Churkin. Neste vídeo, há uma montagem com cenas do referido filme e a canção de Churkin, com legendas em português.

Reação ao controle estatal: nesse movimento, destacam-se Boris Pasternak (com seu Doutor Zhivago, usualmente grafado “Jivago”), o poeta Ievgeni Ievtushenko (que morreu em 1.º de abril de 2017) e o polêmico Aleksandr Solzhenitsyn (monarquista, expulso da URSS em 1974, quando publicou Arquipélago Gulag, célebre descrição dos campos de trabalho forçado para prisioneiros políticos e comuns).



sábado, 28 de julho de 2018

Ler grego antigo e eslavo eclesiástico


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Em meu antigo canal do YouTube, entre as mais diversas experiências linguísticas que postei, além da pronúncia de textos em latim, já criei também montagens com leituras de trechos em outras línguas antigas. Em maio de 2017, eu tentava recomeçar meu estudo autodidata de grego antigo, que há muito estava parado. Infelizmente tive de largar de novo, por causa das obrigações do doutorado, mas antes deixei uma peça muito interessante. Eu gravei exemplos de frases no dialeto ático apenas a amigos no WhatsApp, mas após refletir, decidi fazer um vídeo com os áudios, as fotos do livro e a tradução junto.

Decidi estudar algo de grego antigo, pois percebi que me ajudava não apenas a entender as línguas ocidentais modernas e o latim, mas também o eslavônio, outro idioma pelo qual me interesso. A religião ortodoxa é praticamente cristianismo grego (bizantino). Aprendi um pouco da história do grego antigo também, sendo baseada no dialético ático a variante estudada atualmente (a Ática é a pequena região peninsular onde fica Atenas), no qual foram compostas as principais obras filosóficas e científicas da Grécia Clássica. Outros autores, como a poetisa Safo de Lesbos, usavam o dialeto eólico, e Homero escrevia supostamente numa mistura de dialetos.

Essa língua predominou nos séculos 6 a 4 a.C., quando surgiram as maiores pérolas da Grécia Antiga (especialmente no século 5 a.C.), enquanto no século 4 a.C. começou o período helenístico, quando a península grega foi unificada sob Alexandre o Grande. O idioma comum entre todos os dialetos era então a dita koiné (“comum”, em grego), baseada no ático e que gerou grande parte do grego moderno. O grego antigo não tinha pontuação e só usava as hoje chamadas “maiúsculas”, tendo as minúsculas aparecido só na era medieval. Apenas os textos modernos distinguem minúsculas e maiúsculas e usam espaçamento e pontuação.

O grego antigo é bonito e interessante. Eu gravei numa das variantes da pronúncia reconstituída, já que ninguém tem certeza, assim como com o latim, como era pronunciada a língua. Era bem diferente do grego moderno, sobretudo na pronúncia, que neste último é bem mais simples. No grego moderno só há um acento de intensidade, lido no acento agudo (tónos), mas no grego antigo o acento era tonal, e uma sílaba tônica podia ter um acento ascendente (acentos agudo ou grave) ou descendente (circunflexo, com a forma de um til). No grego antigo, as vogais iniciais também podiam ter uma leve aspiração, indicada pelo “espírito rude” (curvinha pra esquerda), ou não ter nenhuma, o que se via pelo “espírito doce” (curvinha pra direita).

Alguns itens desta descrição e alguns traços de pronúncia, na qual deixei escapar certos errinhos, podem divergir dos adotados por especialistas, mas é que eu ainda estava começando, sendo então insuficiente em certos aspectos. Mas como eu já tinha feito o áudio em privado, decidi publicar no meu canal, cujo público sempre adora uma novidade linguística ou cultural. As frases foram tiradas do livro Curso de grego: propedêutica, de Maria Helena de Moura Neves e Daisi Malhadas, e o fundo musical é uma adaptação da versão instrumental da canção Fragosiriani, composta por Markos Vamvakaris.



Outro experimento que decidi fazer em julho de 2017 foi gravar a oração cristã do Pai-Nosso na língua eslava antiga (eslavônio). Como eu estava então lendo na Wikipédia em inglês o verbete sobre esse idioma, e achei lá a prece como amostra, decidi gravar pro YouTube.

A língua eslava antiga, também conhecida como “eslavônio”, foi o primeiro dialeto eslavo com registros escritos. Supõe-se que os santos Constantino (Cirilo) e Metódio, evangelizadores dos eslavos, tenham se baseado no antigo dialeto búlgaro-macedônio falado em torno de Tessalônica, na segunda metade do século 9. Nesse idioma, que eles proveram de elementos de outros dialetos eslavos pra que fosse entendido por outros povos eslavos, eles traduziram a Bíblia Sagrada e outros escritos sacros da Igreja. Todos esses papéis se perderam, e o que chegou até nós foram cópias feitas por seus discípulos nos séculos 10 e 11, ou seja, já influenciados por falares locais.

Nos séculos posteriores, ao mesmo tempo em que as línguas eslavas estavam começando a surgir independentes, o eslavo antigo continuou sendo usado pelas igrejas ortodoxas, e mesmo por algumas de rito romano, e evoluiu em eslavos eclesiásticos russo, ucraniano, búlgaro, sérvio etc. Mas o russo foi o que ganhou mais força e influência, tornou-se a base do russo literário moderno e tem vários traços simplificados em relação ao eslavônio. Em inglês, o eslavo antigo costuma ser chamado de Old Church Slavonic (OCS), e o eslavo eclesiástico, Church Slavonic. As duas variantes nunca foram línguas realmente faladas, mas apenas escritas, e o eslavônio foi reconstruído apenas no século 19, pelas pesquisas com os resquícios escritos.

Em 2012, o tcheco Vojtěch Merunka, no quadro de um projeto mais amplo pra desenvolver ferramentas de comunicação intereslavas, lançou seu projeto Neoslavonic (Neoeslavônio), versão simplificada do eslavo antigo, mas com muitos traços evolutivos das línguas eslavas modernas. Além do Pai-Nosso que encontrei na página sobre o eslavônio da Wikipédia em inglês, lendo em dois ritmos diferentes, recitei também a oração nessa versão simplificada, que se parece muito com a original. Minha pronúncia se baseia no que dizem as melhores gramáticas da língua, e eu usei a língua russa como base pras sílabas tônicas, já que os escritos não deixaram dicas sobre elas. Eu tirei deste vídeo a música de fundo.



Posteriormente, fiz minha primeira leitura em voz alta na língua eslava eclesiástica, ainda usada na maioria das Igrejas Ortodoxas dos países eslavos, sobretudo na Rússia. Ela é uma ampla evolução do eslavo antigo, ou eslavônio, que foi cultivado pelos sucessores de Cirilo e Metódio do século 9 ao 11 em toda a Europa Meridional e Oriental, e a partir mais ou menos do ano 1100 cada região começou a usar uma variante do eslavônio marcada pelo dialeto eslavo local. A partir daí, diz-se que temos as línguas eslavas eclesiásticas de extração russa, ucraniana, sérvia etc., mas a russa terminou predominando, porque ao mesmo tempo era usada como língua literária e de Estado. Ela influiu de tal modo na formação do russo literário, que apenas no começo do século 18 deixou de ser o idioma burocrático de Moscou, mas sua semelhança com o russo moderno ainda é notável.

Há diversas diferenças entre o eslavônio e o eslavo eclesiástico no sentido da simplificação, como a ausência de sons nasais, a perda do valor fonético próprio dos chamados jers (vogais fracas), o abandono do alfabeto glagolítico (o único usado por Cirilo e Metódio, sendo o cirílico surgido posteriormente) e a redução das formas gramaticais. Mas o vocabulário é muito semelhante, tendo o russo moderno se submetido a muitas outras influências culturais e geográficas. O trecho que recitei é o primeiro capítulo do livro bíblico do Gênesis, versículos 1 a 31, tratando da criação do mundo por Deus em seis dias. Eu fiz em grande parte me baseando na pronúncia russa atual (como é hoje o costume) e cometi pequenos deslizes, mas não tem como dizer se um ou outro modelo está “certo” ou “errado”.

Na Rússia, o livro do Gênesis também se denomina Pervaia kniga moiseieva (Primeiro Livro de Moisés). Obviamente eu não traduzi nem legendei porque a Bíblia Sagrada é uma publicação universalmente conhecida. Pra título de comparação, acessem também uma tradução em português, em russo contemporâneo e no latim da Nova Vulgata, a versão mais recente oficializada pela Igreja Católica. Lembro que essa nova tradução latina é apenas um texto autorizado, e não numa língua necessariamente mais “pura”, “correta” ou “acurada”.



quinta-feira, 26 de julho de 2018

Últimos poemas inéditos em esperanto


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Há alguns meses, como vocês devem se lembrar, publiquei uma série de poemas e sonetos em esperanto, que escrevi na adolescência ou em algum momento de minha graduação em História. Eles foram selecionados porque eu não via nenhum porém pra sua publicação, seja pelo vocabulário, pelo tema ou pelo contexto. Contudo, sobraram ainda em meus arquivos três poemas (um deles, soneto) que eu tinha decidido não postar, mas que, pra comemorar hoje os 131 anos da publicação do primeiro manual de esperanto em Moscou, lanço aqui com comentários e tradução.

O primeiro deles é uma grande pérola: foi minha primeira tentativa de versificação em esperanto quando eu tinha 14 anos, em 2002! Nesse ano, eu tinha resolvido embalar de vez meu aprendizado, porque tinha feito meu primeiro contato em 2000, aos 12 anos, e passei o ano seguinte relativamente parado. Tendo assimilado o básico da língua, me atrevi a “poetar”, o que já fazia ativamente em português (neste, porém, a maioria dos textos se perdeu), e foi realmente a primeira vez que fiz isso num idioma estrangeiro. Como vocês podem perceber, nessa primeira fase ainda predominam os temas “românticos”, como se realmente eu estivesse apaixonado, mas era de fato um decalque dessa saturação que os programas de TV impõem até hoje.

Curiosamente o esquema métrico coincide com Norwegian Wood, uma canção dos Beatles, banda pela qual só tive uma breve admiração quando eu tinha 7 anos de idade. Eu não tinha, contudo, ouvido a gravação em nenhum lugar, mas minha avó tem um livro de partituras pra flauta doce com músicas deles, e eu a tocava no teclado. Eu estava aprendendo esse instrumento e, mesmo não conhecendo o áudio, achei a melodia bonita, e por isso devo ter decidido versificar em esperanto. Não fiz, porém, qualquer tentativa de tradução ou adaptação direto do inglês, como fiz com outras canções, e a nova obra autêntica foi intitulada Vi ĉarmas min (Você me encanta).

Acho interessante como, ainda tão jovem, mesmo escrevendo sobre temáticas banais (algo que sempre me criticaram quando chegavam a ler um poema meu), eu tinha algum tino pra estruturar relativamente bem a métrica e o sentimento. Quem conhece esperanto, sabe como abuso da elisão do “o” final dos substantivos por meio do apóstrofo, pra manter as sílabas tônicas originais. Eu sequer tinha a intenção de publicar o poema em qualquer meio, mas quando lancei meu finado site de esperanto, talvez poucos anos depois, aí o coloquei junto dos outros que vocês já conhecem ou não. Segue o texto sem alteração nenhuma, e uma tradução improvisada pro português, só pra dar uma noção do conteúdo. Assim como fiz com outros poemas, desejo mais pra frente recitar este e outros pra postar no canal Eslavo (YouTube):


Vi estas la am’
En virinform’
Kaj plena ĉarm’.
Restu sole ĉi
Tie kaj min
Tuj kisu vi.

Al mi diru, ke nia amo estas la senfin’.
La vivo al ni estas bela, Dio benu nin!

Mi estas duon’,
Unu, kun vi,
Sen vi, malbon’.
Malkompleta kor’
Mi estas nun
Kaj sen labor’.

Ne lasu, ke sur via korpo ne estu belec’.
De Dio vi estas farita per peco post pec’.

Vi, kvazaŭ anĝel’,
Transportas min
Al la ĉiel’.
Ho plena pasi’
En via kor’
Tre ĉarmas min.

____________________


Você é o amor
Em forma de mulher
E pleno encanto.
Permaneça apenas
Aqui, e você
Me beije logo.

Diga-me que nosso amor é o infinito.
A vida é bela para nós, Deus nos abençoe!

Eu sou metade,
Inteiro com você,
Um mal sem você.
Um coração incompleto
Eu sou agora
E sem atividade.

Não deixe que eu seu corpo falte beleza.
Você foi feita por Deus, pedaço por pedaço.

Você, tal como um anjo,
Me transporta
Para o céu.
Ó, uma plena paixão
Em seu coração
Me encanta muito.



O segundo poema, um soneto, tem uma importância muito grande pra mim. Primeiramente, porque é um dos marcos do tempo na minha adolescência, no final de 2004 (eu tinha 16 anos), em que eu comecei a compor sonetos sistematicamente (em português e esperanto). Foi um período, ou “fase”, que durou mais ou menos até o começo da minha graduação (março de 2006), mas outros sonetos e poemas diversos, esporadicamente, continuariam sendo escritos. O presente soneto, que chamei Seka vojo (Caminho seco, ou Caminho árido), deve datar entre fim de outubro e começo de dezembro de 2004, mas é mais provável que seja de novembro. Eu tinha impressos todos os meus sonetos em português ou esperanto, indicando a data de composição. Mas após os digitalizar todos, joguei os originais fora, e no caso do esperanto não há as datas transcritas.

Infelizmente, também não tenho certeza se os poemas que ficaram são todos os que escrevi em esperanto ou se em dado momento joguei no lixo algum ou alguns nessa língua. No caso do português, realmente joguei muitos fora sem copiar, e não tenho mais registro deles. Seka vojo trata de um assunto que compartilhei com muito poucas pessoas: minha segunda maior crise de ansiedade no final de 2004 e a rejeição que eu sentia na sala de aula. Embora, obviamente, o soneto exagera em algumas figuras e mistura uma infinidade de objetos díspares, ele reflete minha angústia ante a iminência do vestibular, a pressão pra escolher uma carreira e a carência afetiva. Esta derivava de eu ainda não ter perdido, ou estar pra perder, o famoso “BV” (boca virgem, aos 16!), ou seja, o gostoso e marcante primeiro beijo (de língua, claro!) que todos em minha classe do segundo ano já tinham dado. Nem era disso que eu sentia falta, na verdade, mas adolescente é uma raça sádica, e todos “me cobravam” pra que eu o fizesse, como se fosse algo a me dar mais caráter ou me fazer incluído nas putas panelinhas deles!

Em 2018, na era dos smartphones, do politicamente correto e dos infames Mi-Mi-Millennials, sei que muitos jovens ainda se reconhecem nessa situação. No meu caso, não posso dizer que sofri o chamado bullying, embora muito no fundo o pessoal me zoasse porque eu tirava notas muito altas e era ativo em classe: o que caracteriza bullying é a repetição e profundidade, e na minha escola, por incrível que pareça, havia pontuais demonstrações de respeito e admiração. Além disso, mesmo me sentido deslocado em muitos aspectos, eu era agarrado a uma das “panelas”, e com outra eu mantinha ótimas relações. Talvez a questão fosse a tal “pressão” mesmo: 1) pra me sentir incluído entre colegas que tinham valores quase opostos; 2) pra não ficar sem escolher qualquer carreira no ano seguinte, em que eu faria algum vestibular; 3) e vinda de mim mesmo, pra tirar sempre notas altas e estudar idiomas pros quais eu simplesmente não tinha tempo!

E graças aos estudos e pesquisas do sábio Prof. Augusto Cury, hoje sabemos como é muito mais torturante uma pessoa pressionar-se a si mesma, tendo sempre um “general” ou “diabo” interior, do que ser pressionada pelos outros. E é isso que, com as pedregosas figuras deste soneto, tento expressar um tanto veladamente:


Flora kamp’ trankviligas la dormon
Post longa tago de ega labor’,
Kiam rapidiĝas batoj de l’ kor’
Antaŭ enir’ en la hejmodomon.

Mia korp’ zorgas kontraŭ la dolor’
Ĉia, kia povas ĝeni l’ homon
Kaj okazigi acidan vomon
De manĝaĵoj, kiuj iĝis trezor’.

Nur patrinkares’ ne sufiĉas plu
Por resanigi min de l’ sopiroj,
Por tiri min el tiu ega tru’.

Kun amikoj realiĝos l’ iroj:
Tuj laciĝos ĉiu mia genu’,
Sed oni manĝigos min per piroj.

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Um campo florido tranquiliza o sono
Após um longo dia de muito trabalho,
Quando aceleram as batidas do coração
Antes de entrar na casa em que moro.

Meu corpo luta contra toda
Dor que possa incomodar o homem
E provocar um vômito ácido
De comidas que se tornaram tesouro.

Apenas o carinho da mãe não basta mais
Para recuperar-me dos suspiros,
Para tirar-me deste grande buraco.

Com amigos se realizarão as idas:
Os meus joelhos logo se cansarão,
Mas vão me alimentar com peras.



Finalmente, eis a parte engraçada e alegre! Desde criança, sempre achei hilários os “poemas” e ditos escritos por anônimos em divisórias ou paredes de banheiros masculinos pelo Brasil, sobre os mais variados temas. A maioria deles, claro, ilustra o que é feito no próprio recinto, e o choque entre a forma elaborada e o conteúdo “nojento” era o que me causava riso. Assim, decidi reunir os principais topos desse, digamos, gênero literário e dar-lhes a forma de poema em esperanto: e então nasceu o Poemeto necesĉambra (Poeminha de banheiro)!

No meu site de esperanto, que mantive até 2010, mais ou menos, o poema está registrado logo após A época e o mundo nossos, que suponho ser de 2007 ou 2008, por último no meu backup. O “poema de banheiro”, portanto, deve ser de 2008 ou 2009, porque desde então tem sido muito esporádico o aparecimento de poemas longos meus (exceto traduções), e acho pouco provável que seja de 2010. Embora se reclamasse que muitos poemas de temas “chulos” tivessem sido feitos em esperanto até então, não resisti em praticar o inusitado vocabulário que aprendi num antigo dicionário, sobretudo relativo a sexo e excreção... Segui o vício de usar o esquema zamenhofiano ABAB de rimas pra cada estrofe, ao invés, por exemplo, de ABCB, e de criar um título com a mesma métrica do resto do poema:


Feki estas emocie
Kiel kiso inter langoj,
Ĉar la merdo sennocie
Ĵetas akvon al sidvangoj.

Se vi regas ĉiuloke
Kaj ordonojn ĉiam strekas,
Mi vin memorigas ŝoke,
Ke vi, necesĉambre, fekas.

Ĉu en hejmoj, ĉu en kluboj,
Ne troviĝas la rezisto
Kiam finas grandaj tuboj
L’ arton de la kuiristo.

Se vi kantas dum fekado,
Do atentu pri la perdo:
Povas fuĝi per dancado
Via petolema merdo.

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(Em linguagem eufêmica)

Defecar é emocionante
Como um beijo entre línguas,
Pois o cocô, sem noção,
Joga água nas nádegas.

Se você reina em todo lugar
E sempre traça ordens,
Eu o choco ao lhe lembrar
Que você, no banheiro, defeca.

Seja em lares ou em clubes,
Não se encontra resistência
Quando grandes tubos terminam
A arte do cozinheiro.

Se você canta enquanto defeca,
Então preste atenção à perda:
Pode fugir dançando
Seu cocô travesso.




terça-feira, 24 de julho de 2018

Boris Ieltsin, primeiro presidente russo


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Não pude deixar de fazer uma postagem específica com estes vídeos que formam, juntos, todo um material pra consulta curiosa. Muitos adolescentes e jovens de hoje talvez se perguntem: “O que havia na Rússia antes de Vladimir Putin?” Eles devem saber que o Presidente de Todas as Rússias, na prática, comanda sozinho o país desde o comecinho do ano 2000, seja como presidente ou primeiro-ministro. Mas a União Soviética foi dissolvida em 1991... E aí?

Isso que podemos chamar de “interregno” entre o Poder Soviético e o império de Putin foi ocupado, na Rússia, por uma das figuras mais intrigantes da história geopolítica: Boris Nikolaievich Ieltsin. Vamos lembrar que Mikhail Gorbachov comandava a URSS ocupando o cargo de secretário-geral (líder) do Partido Comunista desde 1985, embora ele tivesse criado também o cargo de “Presidente da URSS”, do qual ele foi o único ocupante. A que Gorbachov renunciou no fatídico Natal de 1991? A essa “presidência da URSS”: pouco antes, ele tinha separado o PC do poder dirigente e renunciado à sua liderança. Contudo, da antiga União só tinha sobrado a própria Rússia, porque todas as outras repúblicas já tinham declarado sua independência, com total anuência de Gorby. Seu cargo, como ele disse no próprio discurso de renúncia, já não servia pra mais nada.

Mas como Boris Ieltsin apareceu no cenário político russo? Em maio de 1990, ele foi eleito “presidente do Presidium do Soviete Supremo da RSFS da Rússia”. Calma, vou explicar tudo por partes: RSFSR era a sigla pra República Socialista Federativa Soviética da Rússia, nome oficial da atual Federação Russa na composição da antiga União Soviética (esta mesma sendo em geral chamada de “Rússia”, por associação ao antigo império e pela maioria étnica russa). Soviete Supremo, muito longe dos “sovietes” originais, era o parlamento em cada república ou na URSS inteira. Presidium (com a mesma raiz de “presidência”, e não “presídio”) era uma espécie de direção colegiada que na prática dominava todo o poder executivo cotidiano, e também existia nos partidos comunistas ao redor do mundo. Completando a estrutura piramidal, a “presidência (chairman em inglês, predsedatel em russo) do Presidium”, apesar da mera intenção formal, concentrava a maior parte da direção.

Voltando à nossa história: em julho de 1991, foi enfim estabelecido o cargo de Presidente da Federação Russa, ao qual Ieltsin chegou pelo voto popular. Na mesma ocasião, Aleksandr Rutskoi foi eleito vice-presidente, e Ruslan Khasbulatov sucedeu Ieltsin na “presidência do Presidium, blablablá”. Contudo, com a crise constitucional de 1993, que culminou no bombardeio do Parlamento pelos partidário de Ieltsin, os dois cargos foram extintos, e os dois ex-parceiros do presidente, demitidos. Inicialmente, o próprio Ieltsin também era um partidário de Gorbachov, e até comandou a resistência ao fracassado golpe de Estado contra ele em agosto de 1991. Mas as rixas pessoais e as discordâncias quanto aos destinos da URSS/Rússia levaram à cisão, e Ieltsin ficou sozinho no comando do país.

Seu governo foi caracterizado pela liberdade de expressão, imprensa e organização, mas pra reorganizar a antiga economia socialista, optou pela famosa “terapia de choque” liberal (ao contrário, por exemplo, da Belarus de Aleksandr Lukashenko). Isso deu mais ou menos certo nas economias mais ricas do antigo “bloco soviético”, mas na Rússia levou à disparada da inflação, ao fortalecimento das máfias, ao aumento da extrema pobreza, à falta de mercadorias e à redução populacional. Os russos eram o único povo desenvolvido, em meados dos anos 90, cujo número de habitantes estava caindo (tendência hoje verificada como geral), porque a penúria era tanta que as pessoas decidiam não ter filhos e a mortalidade disparava. Tamanha foi a pressão interna que Boris Ieltsin acabou renunciando na virada de 1999 pra 2000, deixando como sucessor Vladimir Putin, seu primeiro-ministro de facto desde 9 de agosto (lembrem que eu disse que a vice-presidência foi extinta em 1993).

Ieltsin saiu do cargo extremamente impopular, com os russos em geral sentindo saudades da URSS (os mais novos quase sempre conhecem apenas a Era Putin). Muito pouca gente o apoiou até o fim, e menos ainda estava aprovando as graduais reformas econômicas que, ao fim, levaram a Rússia a atrelar-se demais aos EUA e à Europa Ocidental. Hoje parece o contrário: analistas dizem que Trump é que está sendo manipulado por Putin, supostamente devido ao papel que hackers russos teriam tido em sua campanha eleitoral. Certamente Putin tinha a situação anterior em mente, tanto que os antigos “ieltsinistas” se tornaram ferrenhos “anti-Putin”, embora o próprio Ieltsin não fizesse oposição sistemática para além de críticas pontuais. Mas a grande diferença é que, enquanto Vladimir se mostra realmente como um “vladímir”, ou seja, poderoso, controlador, autoritário, imprevisível, maquinador, sério e avesso a brincadeiras, Boris era todo o inverso: brincalhão, desorganizado, encenador, transparente e beberrão, capaz de lançar a Rússia em sucessivos vexames de imagem.

Eu nasci em 1988, e como desde muito criança sou interessado em mapas, línguas, bandeiras e história política, sempre acompanhei com atenção os desvarios de Ieltsin. E felizmente, com o surgimento da internet, das redes sociais e de plataformas de vídeo como o YouTube, os resquícios dessa época podem ser revividos, ou mesmo conhecidos por quem não se lembra. Um dos episódios que mais me marcou em 1996 foi a famosa dança em sua campanha eleitoral, cujo vídeo completo procurei por anos, e cuja música que tocava no começo passei tempos sem saber qual era. Enfim, no ano passado, achei a gravação caseira de um russo, e traduzi aquilo que foi possível:


Essa foi a gravação mais completa e com melhor resolução que achei, daquele famoso comício em que Boris Ieltsin dançou ao som de música pop. Na época, achei também todas as informações a respeito e, enfim, a canção em questão. Em sua campanha à reeleição pra presidência da República, Ieltsin fez um comício na cidade russa de Rostov-na-Donu em 10 de junho de 1996 (o pleito seria no dia 16). O evento passou à história por ter sido uma das apresentações mais engraçadas do político famoso por beber e fazer graça, e ainda hoje o pessoal ri no Brasil. O comício ocorreu no estádio Selmash, conduzido pelo apresentador de TV Leonid Iarmulnik (o barbudo de paletó cinza) e musicado pelo astro pop Ievgeni Osin, hoje afastado dos palcos.

Osin já estava cantando antes algumas canções, mas depois chegou Ieltsin e fez um discurso direcionado, sobretudo, pra juventude. Sua intenção, sincera ou não, era continuar uma Rússia pós-soviética democrática, que desse oportunidade pros mais jovens num cenário de crise econômica e descrédito internacional. Ao final, começa a tocar a canção Ialta, Ieltsin faz a performance que conhecemos, Osin inicia a letra e o presidente vai embora.

Quem postou o vídeo foi o dono deste canal, que disse ter seu filho passado a imagem pro VHS. Há uma outra transmissão, postada por TV estrangeira, que também é muito boa e mostra alguns trechos do discurso e algumas passagens do comício que não aparecem no primeiro. Além disso, a qualidade e a aproximação estão melhores. Ouça nesta página a linda versão em estúdio da canção Ialta de Osin, provavelmente famosa apenas por causa dessa festa, e leia também a letra em russo. Eu mudei o enquadramento do vídeo, só tirando o que era dispensável, traduzi o que consegui (ou o que pude inventar) e legendei as palavras e algumas passagens humorísticas.

Abaixo segue também uma versão “meme” encurtada, que fiz com o vídeo jornalístico:


Apareceu até no Jornal Nacional daquela época, com a peculiar descrição feita pelo jovem William Bonner:


Também proliferam na internet diversas compilações de vexames, bebedeiras, discursos enrolados, palhaçadas e encenações de Ieltsin, cujas qualidades variam muito. Uma delas, de que gostei muito, tem alguns momentos engraçados de eventos políticos, e inclusive traz trechos em que Katiusha é tocada em instrumental (quando Ieltsin sai pro meio da avenida), e em que ele “canta” Kalinka junto a um coral popular. Eu quis carregá-la no meu canal justamente porque não tinha textos completos pra legendar, só músicas, e porque achei engraçada sua “regência” da orquestra e seu canto com engasgo! Apenas uma correção: a canção de Ievgeni Osin, como vimos, era Ialta, e não Rain and Me (na verdade Dozhd i ia), como eu pensava antes. Rebatizei o vídeo como The best of Ieltsin bebum:


No dia 17 de julho de 1998, quando a Rússia já estava em crise econômica e Ieltsin começava a perder apoios, os restos mortais de Nicolau 2.º, último tsar do Império, e de sua família (fuzilados em 1918) foram enfim transferidos pra São Petersburgo, após localização e exumação. Esta matéria em russo do próprio site oficial de Ieltsin, porém, esconde o momento da chegada de avião a essa cidade, quando o chefe de Estado quase caiu da escada do avião após escorregar num degrau enquanto descia.

O próprio título do vídeo já contém a frase que mostra a surpresa do repórter que fazia a cobertura ao vivo pela NTV: Prezidént chut ne upál (Por pouco o presidente não cai). Ieltsin era conhecido por suas bebedeiras, mesmo antes de eventos oficiais, e embora não possamos saber o que tinha acontecido no dia, o vídeo em seu próprio site parece revelar uma embriaguez ou ao menos uma confusão de raciocínio na hora de falar. Enfim, um país à beira do precipício exumava um de seus carrascos, enquanto o chefe republicano ilustra a “queda” de modo literal e figurado... Era ver e ficar Putin mesmo, rs.



domingo, 22 de julho de 2018

Discurso de Putin abrindo a Copa 2018


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Esta postagem demorou pra sair, justamente porque eu não estava inicialmente pensando em transformar este discurso numa postagem. Mas pra dar mais conteúdo ao site e facilitar a consulta dos curiosos, decidi criar a versão escrita do material. Vladimir Putin, o Presidente de Todas as Rússias, discursou em 14 de junho de 2018 na abertura da copa do mundo de futebol, sediada este ano na Rússia, e logo depois a seleção do país realizou a partida inaugural contra a Arábia Saudita. O show de abertura e a alocução de Putin ocorreram no famoso estádio Luzhniki, inaugurado pelo ex-dirigente soviético Nikita Khruschov na capital nacional Moscou.

Por sorte, logo depois da apresentação, consegui encontrar um vídeo completo, e ainda legendado em russo. Ou seja, sequer precisei me esforçar pra transcrever a partir da fala. Durante umas semanas, o vídeo “bombou” no meu canal Eslavo (YouTube), porque acredito que foi a primeira tradução feita em português. Agora, como sabemos, a copa terminou, o Brasil foi eliminado nas quartas-de-final (como em 2006 e 2010), Neymar Jr. não brilhou tanto quanto se esperava e a França cheia de imigrantes ou filhos deles virou bicampeã. Mesmo assim, ainda achei válido fazer o registro postado aqui, e certamente será um material muito útil no futuro.

Eu mesmo traduzi do russo e legendei esta gravação após baixar. O formato está quadrado, mas decidi usar essa filmagem mesma, porque ela ainda possibilita ler-se a transcrição em russo. Se você não é do Brasil e está estranhando alguma expressão que eu possa ter usado, peço desculpas pelo não domínio de variantes diferentes do português brasileiro. Isso se aplica, sobretudo, ao domínio do futebol, no qual, aliás, eu não sou especializado. Seguem abaixo minha legendagem, o texto em russo como está transcrito no site do Kremlin com poucas adaptações minhas, e a tradução mais detalhada em português:



Дорогие друзья!

Приветствую всех гостей легендарного московского стадиона «Лужники», всех, кто собрался в многочисленных фан-зонах чемпионата мира FIFA, кто видит нас на телеэкранах или в интернете. Поздравляю вас – всю большую, многонациональную, дружную мировую футбольную семью – с началом главного турнира планеты!

Это грандиозное спортивное событие впервые проходит в России, и мы искренне рады этому. В нашей стране футбол не просто самый массовый вид спорта. Футбол у нас по-настоящему любят. И эта любовь, что называется, с первого взгляда, с первого официального матча, который состоялся в России в 1897 году.

Мы ответственно готовились провести у себя в гостях это грандиозное мероприятие и сделали всё для того, чтобы болельщики, спортсмены, специалисты могли полностью погрузиться в атмосферу великолепного праздника футбола и, конечно, получили удовольствие от пребывания в России – открытой, гостеприимной, радушной –, обрели здесь новых друзей, новых единомышленников.

Давайте вдумаемся: нас – преданных поклонников футбола –, без всякого преувеличения, миллиарды людей на планете. И где бы мы ни жили, каким бы традициям ни следовали, нас всех объединяет любовь к футболу в одну команду, единую своей любовью к этой зрелищной, яркой, бескомпромиссной игре. И потому все члены этой команды хорошо понимают и чувствуют друг друга.

В этом единстве, над которым не властны ни различия в языках, ни в идеологии, ни в вере, и заключается великая сила футбола, спорта в целом, сила его гуманистических начал. Наша задача – сберечь эту силу, это единство для будущих поколений во имя развития спорта и укрепления мира и взаимопонимания между народами.

Желаю всем командам успеха, а болельщикам – незабываемых впечатлений. Добро пожаловать в Россию!

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Queridos amigos!

Saúdo todos os visitantes no lendário estádio Luzhniki em Moscou, todos os reunidos nas inúmeras fan zones da Copa do Mundo da FIFA, que nos assistem pela televisão ou pela internet. Parabenizo-os, toda a grande, multinacional e pacífica família mundial do futebol, pelo início do maior torneio do planeta.

Este grandioso evento esportivo vem pela primeira vez à Rússia e estamos sinceramente felizes com isso. Em nosso país, o futebol não é apenas o maior esporte de massas. Nosso amor pelo futebol é autêntico, um amor, como se diz, à primeira vista, à primeira partida oficial, que ocorreu na Rússia no ano de 1897.

Realizamos uma responsável preparação para receber esse acontecimento grandioso e fizemos de tudo para que torcedores, jogadores e comissões técnicas pudessem imbuir-se de toda a atmosfera da festa maravilhosa do futebol e, claro, recebessem o prazer de estar numa Rússia aberta, receptiva e cordial, fizessem aqui novos amigos e novas parcerias.

Reflitamos: nós, admiradores fiéis do futebol, sem qualquer exagero, somos bilhões de pessoas no planeta. E onde quer que vivamos ou quais tradições sigamos, o amor pelo futebol nos une todos numa só equipe, unida no amor por esse jogo espetacular, ardente e descompromissado. Por isso todos os membros dessa equipe entendem e sentem bem uns aos outros.

É nessa unidade, que não é superada nem pela diferença de línguas, nem de ideologia e nem de crença, que está a grande força do futebol e do esporte como um todo, sua força de princípios humanistas. Nossa tarefa é guardar essa força, essa unidade para as gerações futuras, em nome da evolução do esporte e do fortalecimento da paz e da compreensão mútua entre os povos.

Desejo sucesso a todas as seleções, e desejo experiências inesquecíveis aos torcedores. Bem-vindos à Rússia!



sexta-feira, 20 de julho de 2018

Sobre o número e o gênero em francês


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Pra terminar o material básico do cursinho no TOPE da Unicamp, que tenho sistematizado aqui no site, vamos falar agora sobre flexão dos substantivos e adjetivos, ou seja, sua indicação de número (singular ou plural) e gênero (masculino e feminino). Infelizmente, como tive de abreviar o conteúdo das aulas, não pude me aprofundar nos adjetivos, mas no essencial, vale pra eles também o que digo aqui diretamente apenas dos substantivos. A flexão destes é mais complexa e variada.

Esta postagem é dividida em quatro partes: como podemos encontrar palavras do gênero masculino, como identificamos se uma palavra é do gênero feminino, como realizar a formação do feminino a partir do masculino quando isso é possível (e os casos em que o feminino vem de um vocábulo separado) e como fazer corretamente a formação do plural. Felizmente, a formação do plural não está sempre imbricada à “formação” do feminino, como nas línguas eslavas. Mas recomendo que não se procure decorar o conteúdo deste texto, que em geral é aprendido na prática. Minha intenção principal tem sido a de que as últimas postagens sirvam mesmo de material de consulta constante.


Le genre masculin (O gênero masculino)

Em geral são substantivos que pertencem ao gênero masculino:

  • Palavras indicando homens e animais machos: un homme (um homem), le boucher (o açougueiro), le tigre (o tigre).
  • Palavras que designam árvores e arbustos: le chêne (o carvalho), le sapin (o pinheiro), le laurier (o louro).
  • Nomes de dias, meses e estações do ano:
    • janvier, février, mars, avril, mai, juin, juillet, août, septembre, octobre, novembre, décembre.
    • l’été (o verão), l’automne, l’hiver, le printemps.
    • lundi (segunda-feira), mardi, mercredi, jeudi, vendredi, samedi, dimanche.
  • Nomes de idiomas: le français (o francês), le portugais (o português), l’espagnol (o espanhol).
  • Nomes de rios e países terminados em consoante e “e” mudo: le Nil (o Nilo), le Danube (o Danúbio), le Rhône (o Reno), l’Amazone (o Amazonas), le Gange (o Ganges), le Portugal (Portugal), le Danemark (a Dinamarca). Exceções (rios): la Seine (o Sena), la Tamise (o Tâmisa), bem como la Volga (o Volga).


Le genre féminin (O gênero feminino)

Em geral são substantivos que pertencem ao gênero feminino:

  • Palavras indicando mulheres e animais fêmeas: la mère (a mãe), la bonne (a empregada), la génisse (a bezerra).
  • Nomes de países terminados em “e” mudo: la Russie (a Rússia), la Belgique (a Bélgica), la France (a França), la Suisse (a Suíça). Exceção: le Mexique (o México), bem como le Chili (o Chile).
  • Dias santos e festas religiosas: la Toussaint (Dia de Todos os Santos, 1.º de novembro), la Pentecôte (Pentecostes).
    • Noël (Natal) é masculino, mas se usado com artigo definido (à la Noël, no Natal) é feminino.
    • Pâques (Páscoa) é tido por masculino singular em geral, usado sem artigo (à Pâques prochain, na próxima Páscoa), mas é feminino plural nas expressões Pâques fleuries (Domingo de Ramos) e Joyeuses Pâques ! (Feliz Páscoa!).
  • Com algumas exceções, é feminina a maioria dos substantivos terminados em duas consoantes seguidas de “e” mudo: la botte (a bota), la couronne (a coroa), la terre (a terra), la masse (a massa), la lutte (a luta).

Alguns substantivos variam de gênero de acordo com o sexo da pessoa designada, gênero indicado apenas pelo artigo usado: un/une artiste (um/uma artista), le/la Russe (o russo/a russa), un/une aide (um/uma assistente), un/une domestique (um/uma servente), un/une enfant (uma criança = menino/menina), un/une malade (um/uma paciente), un/une propriétaire (um proprietário/uma proprietária).

Substantivos com um gênero pra ambos os sexos: un ange (um anjo), un amateur (um amador/uma amadora), un auteur (um autor/uma autora), le médecin (o médico/a médica), le peintre (o pintor/a pintora), le sculpteur (o escultor/a escultora), le témoin (a testemunha); une dupe (um otário/uma otária), une personne (uma pessoa), la recrue (o recruta), la sentinelle (a sentinela), la victime (a vítima).

Alguns substantivos mudam de significado ao mudar de gênero:

  • un aide (o assistente), une aide (a assistente; a ajuda).
  • le critique (o crítico), la critique (a crítica = opinião).
  • le faux (a falsificação), la faux (a foice).
  • le livre (o livro), la livre (a libra = 500 g, “meiquilo”).
  • le mode (o método, o modo), la mode (a moda).
  • le mort (o morto), la mort (a morte).
  • le page (o pajem), la page (a página).
  • le poste (o posto, o cargo), la poste (o correio).
  • le tour (o truque, a mágica; o giro), la tour (a torre).
  • le vapeur (o navio a vapor), la vapeur (o vapor).
  • le voile (o véu, a cortina), la voile (a vela de barco).

A palavra gens (pessoas) é considerada masculina quando antecede o adjetivo, e feminina quando o sucede: des gens heureux (pessoas felizes), de bonnes gens (boas pessoas).


La formation du féminin (A formação do feminino)

A regra de ouro pra se formar um substantivo feminino a partir de um masculino, é: adiciona-se a terminação “-e” muda, que pode ou não alterar a pronúncia: un ami (um amigo), une amie (uma amiga); le candidat (o candidato), la candidate (a candidata). No primeiro caso, apenas a pronúncia do artigo diferencia o gênero/palavra: [æ̃n‿ami], [yn ami]. No segundo, o artigo não é imprescindível além da mudança de pronúncia que ocorre no final: [kɒ̃dida], [kɒ̃didat].

Porém, há inúmeras exceções a essas regras, exceções que por vezes também têm “exceções”. Seguem abaixo algumas delas.

Substantivos terminados em “e” não mudam no feminino: un élève (um aluno), une élève (uma aluna).

Substantivos terminados em “t” e “n” dobram essa consoante, que em geral passa a ser pronunciada: le chat (o gato), la chatte (a gata); le chien (o cachorro), la chienne (a cadela). Exceções: substantivos terminados em “-in”, “-ain” ou “-an”. Ex.: le cousin (o primo), la cousine (a prima); le souverain (o soberano), la souveraine (a soberana); le faisan [føzɒ̃] (o faisão), la faisane [føzan] (a faisoa).

Substantivos terminados em “-er”, cuja pronúncia é “ê”, mudam a terminação para “-ère”, que se pronuncia “érr”: un ouvrier (um operário), une ouvrière (uma operária).

Como regra, os substantivos terminados em “-eur” [-œʁ] mudam a terminação para “-euse” [-øz]: le vendeur (o vendedor), la vendeuse (a vendedora). Há exceções:

  • le pécheur (o pecador), la pécheresse (a pecadora); un enchanteur (um mágico), une enchanteresse (uma mágica); le vengeur (o vingador), la vengeresse (a vingadora).
  • os terminados em “-teur”, que fazem em “-teuse” ou “-trice”: le chanteur (o cantor) > la chanteuse (a cantora), un acteur (um ator) > une actrice (uma atriz).
  • os adjetivos ou substantivos inférieur, supérieur, mineur (“menor”, em sentidos figurados) e prieur (prior, em certos conventos) fazem apenas com a adição de um “-e” mudo: inférieure, supérieure etc.; quando mineur significa “mineiro”, faz mineuse, e quando prieur significa “pessoa que reza”, faz prieuse.

Com estas terminações, há outra alteração junto ao acréscimo do “-e”: “-f” > “-ve”, “-x” > “-se”, “-eau”/“-el” > “-elle”. Ex.: le veuf (o viúvo), la veuve (a viúva); un époux (um esposo), une épouse (uma esposa); le jumeau (o gêmeo), la jumelle (a gêmea); Gabriel > Gabrielle.

Algumas derivações de masculino para feminino são irregulares:

  • un abbé (um abade), une abbesse (uma abadessa).
  • le duc (o duque), la duchesse (a duquesa).
  • le dieu (o deus), la déesse (a deusa).
  • le prince (o príncipe), la princesse (a princesa).
  • le Grec (o grego), la Grecque (a grega).
  • le Turc (o turco), la Turque (a turca).

Alguns conceitos usam palavras diferentes para os dois gêneros:

  • le bœuf (o boi), la vache (a vaca).
  • le cheval (o cavalo), la jument (a égua).
  • le coq (o galo), la poule (a galinha).
  • le père (o pai), la mère (a mãe).
  • le fils (o filho), la fille (a filha).
  • le frère (o irmão), la sœur (a irmã).
  • un homme (um homem), une femme (uma mulher).
  • le roi (o rei), la reine (a rainha).


Le nombre pluriel (O número plural)

Como em inglês, a regra básica é: adiciona-se um “s” mudo ao final da palavra: l’homme (o homem), les hommes (os homens); le lit (a cama), les lits (a cama). Em ambos os casos, a marca do plural estará na pronúncia do artigo. Mas há casos que merecem atenção especial.

Os substantivos com singular terminado em “s”, “x” ou “z” não mudam de forma: le bois (o bosque), les bois (os bosques); la noix (a noz), les noix (as nozes); le nez (o nariz), les nez (os narizes).

Substantivos com singular em “-al” [al] trocam a terminação para “-aux” [o] em geral: le bocal (o bocal), les bocaux (os bocais); le mal (o mal), les maux (os males). Exceções (dentre várias): le bal (o baile), les bals (os bailes); le carnaval (o carnaval), les carnavals (os carnavais); le chacal (o chacal), les chacals (os chacais); le choral (o coral), les chorals (os corais); le festival (o festival), les festivals (os festivais).

No plural, os finais “-eau”, “-au” e “-eu” têm um “x” mudo no singular: le bateau (o barco), les bateaux (os barcos); le noyau (o núcleo, o caroço), les noyaux (os núcleos, os caroços); un cheveu (um fio de cabelo), des cheveux (fios de cabelo, o/s cabelo/s). Exceções: le bleu (o azul), les bleus (os azuis); le pneu (o pneu), les pneus (os pneus).

Os substantivos terminados em “-ail” [aj] (éventail – leque, épouvantail – espantalho) fazem o plural com “s”, mas sete deles fazem em “-aux” [o]: bail (arrendamento), corail (coral marítimo), émail (esmalte), soupirail (respiradouro), travail (trabalho), vitrail (vitral) e vantail (batente de porta ou janela).

Os substantivos terminados em “-ou” (clou – prego, trou – buraco) fazem o plural com “s”, mas sete deles acrescentam, ao invés, um “x” igualmente mudo: bijou (joia), caillou (seixo), chou (couve), genou (joelho), hibou (coruja), joujou (brinquedo) e pou (piolho).

Estes substantivos têm sua consoante final pronunciada e sua vogal com timbre aberto no singular, mas têm a consoante muda e a vogal com timbre fechado no plural: un os [ɔs] (um osso), des os [o] (ossos); un œuf [œf] (um ovo), des œufs [ø] (ovos); le bœuf [bœf] (o boi), les bœufs [bø] (os bois).

Via de regra, a palavra œil [œj] (olho) tem o plural yeux [jø] (olhos); les yeux = [lezjø]. Presente em alguns compostos, seu plural é regular: œils-de-bœuf (claraboias), œils-de-perdrix (calos), œils-de-serpent (pedras preciosas).

Alguns substantivos são pluralia tantum, ou seja, só se empregam no plural: mascs. décombres (escombros), frais (despesas); fems. entrailles (entranhas), funérailles (funerais), ténèbres (trevas).

Usados no plural, alguns substantivos mudam de sentido: le ciseau (o cinzel de escultor), les ciseaux (a/s tesoura/s); la lunette (a luneta), les lunettes (os óculos); la vacance (a vacância), les vacances (as férias).



quarta-feira, 18 de julho de 2018

Como se usam os adjetivos em francês


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Continuando a sistematização do material do cursinho de francês que dei no programa TOPE da Unicamp, hoje dou uma breve introdução sobre os adjetivos em francês: como se usam, como se flexionam. Se você frequentou a escola há muito tempo e não fez nem letras nem história, não se preocupe! Vamos relembrar o que é e pra que serve um adjetivo. São palavras simples, como os substantivos, advérbios, verbos etc., mas que cumprem as seguintes funções, entre outras:

Complemento nominal: qualifica um substantivo, podendo em geral ser suprimido sem alterar o sentido da frase. Exs.: un immense désert (um imenso deserto), les enfants épuisés (as crianças esgotadas), sa fidèle monture (sua fiel montaria).

Predicativo do sujeito: vem após um verbo de ligação (copulativo), no mais das vezes o verbo être (ser), concordando em gênero e número com esse sujeito. Exs.: Les élèves sont fatigués (Os alunos estão cansados), Ma mère semble triste (Minha mãe parece triste), Cet homme reste sage (Este homem continua sábio).

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O plural regular dos adjetivos, assim como dos substantivos, é feito pela simples adição de um “s” mudo: un grand garçon (um grande rapaz), des grands garçons (grandes rapazes); la voiture rapide (o carro rápido), les voitures rapides (os carros rápidos). Note como é o artigo que vai dar a marca/indicação do plural. Contudo, também como os substantivos, as formas de fazer o masculino plural (gráfico e/ou fonético) vão variar muito conforme a terminação da palavra.

Os adjetivos terminados em “-al” fazem o plural em “-aux”: un appartement royal (um apartamento real) → des appartements royaux (apartamentos reais). Exceções: bancal (coxo, manco, de pernas tortas), fatal, final, natal, naval e banal (mas banaux no sentido de “pertencentes a um senhor”). Estes adjetivos podem fazer das duas formas: austral, boréal, glacial, idéal e pascal.

Os adjetivos terminados em “-eau” adicionam um “x” mudo ao final: un beau bateau (um belo barco) → des beaux bateaux (belos barcos).

Os adjetivos terminados em “s” ou “x” permanecem invariáveis no plural: un homme heureux (um homem feliz) → des hommes heureux (homens felizes), un angle obtus (um ângulo obtuso), des angles obtus (ângulos obtusos).

Os adjetivos terminados em “-eu”, por regra, também tomam um “x” mudo no plural: un village hébreu (uma vila judaica) → des villages hébreux (vilas judaicas). Exceção: o adjetivo bleu (azul) faz com um “s”, mas, como todos os outros adjetivos de cores, é invariável se seguido de outro adjetivo: des pantalons bleus (calças azuis), des pantalons bleu clair (calças azul-claro).

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O feminino regular dos adjetivos é feito pela simples adição de um “e” mudo, que pode ou não gerar modificações na pronúncia: un petit garçon (um pequeno menino), une petite fille (uma pequena menina) → o “t” final passa a ser pronunciado; un mauvais devoir (uma lição mal feita), une mauvaise note (uma nota ruim) → o “s” final passa a ser pronunciado, mas como “z”; un ministre espagnol (um ministro espanhol), une ministre espagnole (uma ministra espanhola) → apenas o “une” indica que se trata de feminino. Se o adjetivo já termina em “e”, a forma é a mesma para os dois gêneros: triste, rapide (rápido/a), célèbre (célebre, famoso/a), fantastique. Contudo, a regra da adição do “e” gera alterações ortográficas, quando não de pronúncia, nas mais diversas terminações.

Os adjetivos terminados em “-gu” adicionam um trema ao “u” final, para que ele não se torne mudo, como na palavra langue (na regra antiga, era o “e” que levava o trema): un mot ambigu (uma palavra ambígua), une réponse ambigüe (uma resposta ambígua; ant. “une réponse ambiguë”).

Os adjetivos terminados em “-er”, “-ier” ou “-iet” adicionam um acento grave ao “e”, mudando seu timbre de fechado para aberto: un produit étranger (um produto estrangeiro), une dame étrangère (uma senhora estrangeira); un mois printanier (um mês de primavera), une journée printanière (um dia de primavera); un homme inquiet (um homem inquieto), une femme inquiète (uma mulher inquieta).

Os adjetivos terminados em “-ul”, “-el”, “-eil” ou “-iel” dobram o “l” final, sem mudanças na pronúncia: un résultat nul (um resultado nulo), une plaisanterie nulle (uma brincadeira nula); un acte individuel (um ato individual), une action individuelle (uma ação individual); un vieil homme (um velho homem), une vieille femme (uma velha mulher); un document officiel (um documento oficial), une demande officielle (um pedido oficial).

Os adjetivos terminados em “-ien”, “-en” ou “-on” dobram o “n” final, com desnasalação do som vocálico final e pronúncia do “n” final: un touriste californien (um turista californiano) → une touriste californienne (uma turista californiana); un village vendéen (uma aldeia da Vendeia), une maison vendéenne (uma casa da Vendeia); un bon dessert (uma boa sobremesa), une bonne glace (um bom sorvete). Exceções: o adjetivo lapon (lapão, da Lapônia) não dobra seu “n”, e no adjetivo nippon (nipônico, japonês) a mudança é opcional, mas nos dois casos há a mesma alteração referida na pronúncia: un village lapon (uma aldeia lapona), une ville lapone (uma cidade lapona); un groupe nippon (um grupo nipônico), l’économie nipon(n)e (a economia japonesa).

Os adjetivos chou (fofo, bonito) e chouchou (queridinho) têm as respectivas formas femininas choute e chouchoute: Leur fils est chou (O filho deles é fofo) → Leur fille est choute (A filha deles é fofa), l’acteur chouchou des ados (o ator queridinho das adolescentes) → l’actrice chouchoute des ados (a atriz queridinha dos adolescentes).

Os adjetivos flou (vago, fluido) e tabou (tabu), e os findos em “-ou” que qualificam pessoas ou coisas originárias de uma região, fazem o feminino com um “e” mudo: un souvenir flou (uma lembrança vaga), une image floue (uma imagem vaga); un sujet tabou (um assunto tabu), une affaire taboue (uma questão tabu); amis hindous (amigos hindus), amies hindoues (amigas hindus); un chant zoulou (um canto zulu), la langue zouloue (a língua zulu). Exceção: o feminino de andalou (andaluz) é andalouse (andaluza): le peuple andalou (o povo andaluz), la région andalouse (a região andaluza, a Andaluzia).

A maior parte dos adjetivos terminados em “-eur” forma seu feminino em “-euse”: rêveur (sonhador, imaginativo) → rêveuse (sonhadora, imaginativa), songeur (sonhador, absorto em pensamentos) → songeuse (sonhadora, absorta em pensamentos). Exceções: certos adjetivos terminados num “-eur” derivado do antigo sufixo comparativo latino “-ior” (“-or” em português) não mudam o “r” em “s”: antérieur, extérieur, inférieur, intérieur, majeur, meilleur, mineur, postérieur, supérieur, ultérieur (anterior, exterior, inferior, interior, maior, melhor, menor, posterior, superior, ulterior). Em latim, o sufixo “-ior” era o mesmo para o masculino e o feminino, por isso, como podemos ver, esses adjetivos são de dois gêneros em português (salvo exceções como “madre superiora”).

Os adjetivos terminados em “-teur” fazem o feminino de variadas formas, conforme a etimologia da palavra (leia aqui mais detalhes em francês): dévastateur (devastador) → dévastatrice (devastadora), sauteur (saltador, que salta) → sauteuse (saltadora, que salta), libérateur (libertador) → libératrice (libertadora), enchanteur (encantador)/désenchanteur (desencantador, que desilude; palavra rara) → enchanteresse/désenchanteresse.

Os adjetivos terminados em “-ot” podem ou não dobrar o “t” (é questão de decorar), com o mesmo efeito na pronúncia: 1) jeunot (jovenzinho) → jeunotte (jovenzinha), pâlot (um pouco pálido) → pâlotte (um pouco pálida), vieillot (envelhecido, ultrapassado) → vieillotte (envelhecida, ultrapassada), sot (bobo, tonto) → sotte (boba, tonta); 2) bigot (beato, carola) → bigote (beata, carola), dévot (devoto) → dévote (devota), fiérot (soberbo) → fiérote (soberba), idiot (idiota, m.) → idiote (idiota, f.), manchot (maneta ou desastrado) → manchote (maneta ou desastrada), petiot (pequenino) → petiote (pequenina), poivrot (beberrão) → poivrote (beberrona). Chérot/chérots (pop. “de preço elevado”) serve aos dois gêneros.

Os adjetivos terminados em “x” trocam-no por “-se”: un homme jaloux (um homem invejoso/ciumento), une femme jalouse (uma mulher invejosa/ciumenta). Exceções: faux (falso) → fausse (falsa), roux (ruivo) → rousse (ruiva), doux (doce, lento) → douce (doce, lenta).

Os adjetivos terminados em “c” substituem essa letra por “-cque” ou, mais comum, “-che”: grec (grego) → grecque (grega), sec (seco) → sèche (seca; cf. acento grave), blanc (branco; “c” mudo) → blanche (branca). Exceções: turc (turco) → turque (turca), franc (franco) → franque (relativa ao povo franco) ou franche (sincera).

Os adjetivos terminados em “f” (pronunciado) substituem essa letra pela sílaba “-ve”: sportif (esportivo) → sportive (esportiva), neuf (novo) → neuve (nova), juif (judeu, judaico) → juive (judia, judaica).

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Cinco adjetivos masculinos, quando colocados antes de vogal ou “h” mudo, mudam para uma forma cuja pronúncia é idêntica à do feminino:
  • un beau garçon (um belo/bonito rapaz), un bel ami (um belo/bonito amigo), une belle fille (uma bela/bonita menina).
  • un nouveau cours (um novo curso), un nouvel étage (um novo andar), une nouvelle vague (uma nova onda).
  • un vieux voisin (um velho vizinho), un vieil élève (um velho aluno), une vieille voiture (um velho carro).
  • un fou sentiment (um louco sentimento), un fol amour (um louco amor), une folle jeunesse (uma louca juventude).
  • mou > mol > molle.

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Embora a maioria dos adjetivos fique após o substantivo que qualificam, alguns adjetivos curtos ou mais antigos na língua vão antes, entre os quais beau (bom), bon (bom), court (curto), gentil (gentil; o “l” é mudo, exceto no feminino gentille), grand (grande, alto), gros (gordo), haut (alto), jeune (jovem), joli (bonito, lindo), long (longo, comprido), mauvais (mau, ruim), petit (pequeno) e vieux (velho).

Outros adjetivos mudam de significado (para um correlato ou distinto) se são colocados antes (número 1) ou depois (número 2) do substantivo a que modificam: ancien (1. antigo, anterior; 2. antigo, velho), brave (1. bom, fiel; 2. valente, corajoso), certain (1. certo, algum; 2. certo, indubitável), cher (1. caro, querido; 2. custoso, dispendioso), dernier (1. último, final; 2. último, passado/anterior), grand (1. uma pessoa nobre, valorosa, famosa; 2. grande, alto), même (1. o mesmo, idêntico; 2. mesmo, o próprio), pauvre (1. pobre, infeliz, azarado; 2. pobre, sem dinheiro), propre (1. próprio, da pessoa mesma; 2. limpo, asseado), seul (1. único, apenas/somente = ex. “apenas os amigos”; 2. só, sozinho, solitário), simple (1. simples, mero, insignificante; 2. simples, humilde, descomplicado), vrai (1. real, efetivo, confirmado; 2. verdadeiro, verídico, fatual).



segunda-feira, 16 de julho de 2018

As noções básicas do alfabeto francês


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Quando dei o cursinho do TOPE na Unicamp no primeiro semestre deste ano, também fiz muitos outros materiais que agora estou transformando em postagens adaptadas pra este site. Hoje vou falar um pouco sobre o alfabeto francês, sua pronúncia, os diacríticos (acentos gráficos) e a pontuação. Infelizmente, este não é um curso completo de pronúncia, porque no curso não foi minha pretensão entrar em detalhes sobre cada grafema do francês, e eu também não tive tempo de completar o material já pronto. O que apresento aqui são os nomes das letras, as dificuldades com alguns símbolos que não existem em português e certos macetes de pronúncia, em geral ignorados nos cursos mais comuns.

Atenção: este texto contém diversos sinais do Alfabeto Fonético Internacional (IPA), então sugiro que vocês estejam bem munidos das respectivas fontes no computador ou celular, sob o risco deles não aparecerem. Também não vou explicar nem exemplificar a pronúncia de cada símbolo, o que sugiro a vocês fazerem consultando a Wikipédia em inglês (que tem verbetes específicos pra cada símbolo) ou um especialista na língua.

O alfabeto básico da língua francesa (L’alphabet fondamental) possui 26 letras, que são as mesmas do alfabeto inglês, ou do alfabeto português, após ter definitivamente incorporado as letras K, W e Y. Vamos recordar quais são:

A a - B b - C c - D d - E e - F f - G g - H h - I i
J j - K k - L l - M m - N n - O o - P p - Q q - R r
S s - T t - U u - V v - W w - X x - Y y - Z z

16 letras com sinais diacríticos (acentos gráficos) ou ligaturas formam o que os franceses chamam L’alphabet propre (O alfabeto próprio), que dá a cara particular da língua francesa:

À à - Â â - Æ æ - Ç ç - É é - È è - Ê ê - Ë ë
Î î - Ï ï - Ô ô - Œ œ - Ù ù - Û û - Ü ü - Ÿ ÿ

Seguem na tabela abaixo a lista de letras, seus nomes tradicionais, a pronúncia do nome (não necessariamente da letra!) e os diacríticos que ela pode conter ou as ligaturas que pode compor. Cada linha está dividida em quatro colunas: na primeira está a letra (lettre), na segunda está seu nome tradicional (nom traditionnel), que às vezes pode ser mais de um, na terceira está a pronúncia (prononciation) do nome da letra, figurado conforme o IPA, e na quarta está o diacrítico ou ligatura (diacritique ou ligature) que ela pode portar ou compor:


A aa/ɑ/à, â, æ
B b/be/
C c/se/ç
D d/de/
E ee/ə/é, è, ê, ë
F feffe, èfe/ɛf/
G g/ʒe/
H hache/aʃ/
I ii/i/î, ï
J jji/ʒi/
K kka/kɑ/
L lelle, èle/ɛl/
M memme, ème/ɛm/
N nenne, ène/ɛn/
O oo/o/ô, œ
P p/pe/
Q qqu, cu/ky/
R rerre, ère/ɛʁ/
S sesse/ɛs/
T t/te/
U uu/y/ù, û, ü
V v/ve/
W wdouble vé/dublə ve/
X xixe, icse/iks/
Y yi grec/igʁɛk/ÿ
Z zzède/zɛd/


Como vocês devem ter notado ou podiam perceber, o francês emprega cinco sinais diacríticos: quatro sobre vogais e um sob a consoante C. Todos são familiares, porque também se usam no português, exceto o trema, que foi abolido. Porém, deve-se atentar a que muitos deles são usados em letras que não os aceitam no português, e sua pronúncia quase sempre também é muito diferente. Vamos ver quais são?

O acento agudo (l’accent aigu): usado apenas sobre o “e” (é) para torná-lo fechado (como em “pena”).

O acento grave (l’accent grave): usado sobre “e”, “a” e “u” (è, à, ù), dando ao primeiro o som aberto (como em “erva”) e não modificando o som dos últimos, quando aparecem para evitar homografia (grafias iguais de palavras com sentido diferente); ex. à (a, para, em) e a (tem, há), (onde, aonde) e ou (ou), (lá, ali, aí) e la (art. def. “a”) etc.

O acento circunflexo (l’accent circonflexe): colocado sobre todas as vogais, menos “y” (ê, â, î, ô, û); ele abre o som do “e”, como em “erva”, e fecha o som do “o”, como em “ostra”; dependendo da região, ele alonga o som do “a”, mas no geral não há diferença fonética; e é só etimológico sobre “i” e “u”, sendo nesse caso, em geral, omitido (coût = custo, naître = nascer), exceto quando pode haver ambiguidade (ex. croit = crê, croît = cresce; mur = muro, parede, mûr = maduro).

O trema (le tréma): usado sobre o “e”, “i”, “u” e “y” (ë, ï, ü, ÿ); sobre o “e”, evita a formação de um dígrafo ou ditongo (como Noël, Gaël, Michaël), ou indica em palavras femininas que o “u” anterior deve ser pronunciado (aiguë, fem. de aigu, para se pronunciar “egü”, e não “ég”, ou ambiguë, fem. de ambigu, para se pronunciar “ãbigü”, e não “ãbíg”; atualmente o trema também pode estar no “u”); sobre o “i”, evita a formação de dígrafos ou ditongos (haïr = odiar, para se pronunciar “aírr”, e não “érr”; Loïc, para se pronunciar “loíc”, e não “luác”); sobre o “u”, usa-se em palavras mais raras, sobretudo históricas (Capharnaüm, Esaü; “au” seria “ô”); raramente no “y” de nomes próprios, também para evitar dígrafos vocálicos (município de L’Haÿ-les-Roses, se fala “laí-lerrôz”, e não “lé-lerrôz”).

A cedilha (la cédille): usada sob o “c” (ç) como em português, dando-lhe o som “ss” antes de “a”, “o” e “u”; aparece no início do pronome ça (isto) para diferenciar do pronome sa (sua, dele/a).

O francês também emprega, no geral, os mesmos sinais de pontuação do português e outras línguas europeias, com poucas diferenças de significado. Deve-se prestar mais atenção nos nomes diferentes, pois isso é importante, por exemplo, na hora de soletrar. Veja quais são, como se chamam e quando são usados:

  • A elisão (l’élision) é marcada pelo apóstrofo (apostrophe: ’).
  • Trait d’union ( - ), hífen; tiret ( – ), travessão.
  • Point (ponto final), virgule (vírgula), points de suspension (reticências: …).
  • Deux-points (dois-pontos), point-virgule (ponto-e-vírgula), point d’interrogation (ponto de interrogação), point d’exclamation (ponto de exclamação).
  • Guillemets de premier niveau (aspas de primeiro nível): usadas para citações comuns (« ») e com um espaço de distância do texto que circundam, exceto de um ponto final que lhes suceda.
  • Guillemets anglais (aspas inglesas): como as nossas (“ ”), usam-se em citações dentro de uma citação: « Il m’a dit “tout ça n’est que mascarade” sans aucun remords ».
  • Parenthèses (parênteses) e crochets (colchetes: [ ]).
  • Le tilde au-dessus du n (o til em cima do “n”): usa-se em palavras de origem espanhola (El Niño) e se pronuncia como o “nh” português ou o “gn” francês.

Vamos conhecer agora os fonemas básicos do francês padrão, isto é, os sons que diferenciam os significados das palavras. Aqui não são abordados aqui os alofones, que são as variações sonoras de um fonema derivadas do contato com fonemas adjacentes ou de um sotaque particular. No jargão, fonemas se representam entre barras, e alofones se representam entre colchetes. Veremos abaixo os fonemas relativos ao francês padrão, em grande parte baseado no sotaque de Paris, bem como algumas particularidades próprias de Paris mesma:

  • Consoantes: /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /m/, /n/, /f/, /v/, /s/, /z/, /ʃ/, /ʒ/, /ʁ/, /l/. O fonema /ɲ/ (grafema gn) é pronunciado em geral /nj/ (ni).
  • Semivogais: /ɥ/, /w/, /j/.
  • Vogais orais (quando o ar não passa pela cavidade nasal): /a/, /e/, /ɛ/, /i/, /o/, /ɔ/, /u/, /y/, /ø/, /œ/. O fonema /ə/ (grafema e) em geral é pronunciado /ø/ ou /œ/, e o fonema /ɑ/ em geral é pronunciado /a/.
  • Vogais nasais (quando o ar passa pela cavidade nasal): /ɑ̃/ (grafemas am, an, em, em), /ɛ̃/ (grafemas im, in, um, un, às vezes en), /ɔ̃/ (grafemas om, on). Em Paris, é mais comum que esses fonemas sejam emitidos respectivamente como [ɒ̃], [æ̃] e [õ], e que o fonema /œ̃/ (grafemas um, un) seja substituído por /ɛ̃/.

Em geral, as consoantes “c”, “d”, “g”, “p”, “r”, “s”, “t”, “x”, “z” não se pronunciam em final de palavra, exceto nos casos de liaison. Em francês, a liaison (lit. ligação) é a pronúncia da consoante final de uma palavra, muda em outros casos, no começo de palavra seguinte que comece por vogal. Em geral o som original dessa consoante também se transforma:

  • C = [k]: croc de boucher [kʁo də buʃe] vs. croc-en-jambe [kʁɔk‿ɑ̃ ʒɑ̃b].
  • D = [t]: grand roi [gʁɑ̃ ʁwa] vs. grand homme [gʁɑ̃t‿ɔm].
  • G = [k]: sang neuf [sɑ̃ nœf] vs. sang impur [sɑ̃k‿ɛ̃pyʁ] (caindo em desuso).
  • P = [p]: trop grand [tʁo gʁɑ̃] vs. trop aimable [tʁop‿ɛmabl].
  • R = [ʁ]: premier fils [pʁəmje fis] vs. premier enfant [pʁəmjɛʁ‿ɑ̃fɑ̃].
  • S = [z]: les francs [le fʁɑ̃] vs. les euros [lez‿øʁo].
  • T = [t]: pot de terre [po də tɛʁ] vs. pot-au-feu [pot‿o fø].
  • X = [z]: mieux manger [mjø mɑ̃ʒe] vs. mieux être [mjøz‿ɛtʁ].

Quando a palavra termina com uma vogal nasal (-an, -en, -in, -ein, -un, -on etc.), o “n” passa a ser pronunciado na palavra seguinte e a respectiva vogal costuma desnasalizar-se: bon repas [bɔ̃ ʁəpɑ] vs. bon appétit [bɔn‿apeti], certain collègue [sɛʁtɛ̃ kɔlɛg] vs. certain ami [sɛʁtɛn‿ami]. Algumas palavras fazem a ligação, mas não se desnazalizam: aucun (nenhum), bien (bem), en (em), on (pronome indefinido), rien (nada): aucun chat [okœ̃ ʃa] vs. aucun être [okœ̃n‿ɛtʁ]. Conforme o interlocutor, podem-se ou não desnasalizar os pronomes possessivos mon, ton, son (meu, teu, seu): mon petit [mɔ̃ pəti] vs. mon enfant [mɔn‿ɑ̃fɑ̃]/[mɔ̃n‿ɑ̃fɑ̃].

O “f” quase nunca é mudo em fim de palavra, mas quando faz liaison soa “v” nos seguintes casos: neuf heures [nœv‿œʁ] e neuf ans [nœv‿ɑ̃]. De resto, o som não muda: neuf chaises [nœf ʃɛz], neuf amis [nœf ami].

Ligatura ortográfica: “e” no “o”, “o-e” ligados/colados (e dans l’o; o e liés/collés), “Œ/œ”, que nunca pode ser substituído por “OE/Oe” ou “oe” (ou teríamos um ditongo: moelle [uá], “medula, tutano”, ou um hiato: coefficient [oe]) e pode ser pronunciado:

  • Em palavras de origem latina, mais comuns em francês, como “ö” aberto /œ/ ou fechado /ø/, por vezes fazendo dígrafo com “u”: œil (olho), œuf (ovo), bœuf (boi), chœur (coro, coral), cœur (coração), manœuvre (manobra), mœurs (costumes), œuvre (obra), sœur (irmã), nœud (nó, nódulo), vœu (voto).
  • Em palavras de origem grega, eruditas e mais raras, como o “ê” português: fœtus (feto), œcuménique (ecumênico), œdème (edema), œnologie (enologia), œsophage (esôfago), œstrogène (estrogênio, mais como nosso “é”).



sábado, 14 de julho de 2018

Uma breve história da língua francesa


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Por Erick Fishuk

NOTA: Este texto foi o material principal de minha aula introdutória para um minicurso de francês que lecionei no programa TOPE da Unicamp no primeiro semestre de 2018. Eu tinha as anotações bem dispersas, então resolvi transformá-las num material coeso e disponibilizar aos alunos, e depois, quando tivesse mais tempo, fazer dele uma postagem aqui do
site. A maior parte das informações listadas tem como fonte a Wikipédia em francês.

Até o século 5 d.C., na região da Gália (mais ou menos equivalente à França atual), o latim vulgar (bas latin = “baixo” latim) conviveu com o gaulês (gaulois). Não confundir com “galês”, língua do País de Gales (Reino Unido), embora ambas sejam línguas célticas. “Latim vulgar” não é um termo pejorativo, mas que remete à língua popular, não sistematizada e não erudita, ao contrário do “latim clássico” que estudamos em classe (vulgus = povo, gente, multidão).

Do século 5 ao 9, usava-se na Gália uma espécie de galo-romance, ou seja, uma forma local e particular do latim vulgar. Já se notam os inúmeros aportes germânicos (línguas aparentadas ao atual alemão) e célticos (a língua céltica mais falada na França ainda hoje é o bretão, mas também são célticas, faladas nas ilhas Britânicas, o gaélico irlandês, o gaélico escocês, o galês e o extinto manx). Não se devem entender as divisões em fases como etapas estanques e intermutáveis, mas como balizas arbitrárias que facilitam o estudo do idioma e indicam traços principais mais recorrentes em certos séculos.

Considera-se que o galo-romance se dividiu em três ramos básicos: o franco-provençal, atualmente marginal e originário da tríplice fronteira entre a França, Itália e Suíça atuais; as langues d’oïl, que incluíam, além do francês, os idiomas falados nos dois terços ao norte da França atual (picardo, valão, normando etc.) e com maior substrato germânico e céltico; e a langue d’oc ou occitano, falada no terço sul da França e dividida em vários dialetos (entre os quais o provençal, que às vezes dava nome ao grupo todo, com disputa sobre se seria ou não outra língua). Oïl (hoje oui) e oc eram duas formas de dizer “sim”: a primeira, vinda do latim hoc ille (isto aqui), e a segunda, de hoc (isto); o italiano , o português “sim” etc. vieram de sic (assim).

Considerando-se já o francês como uma língua distinta das outras irmãs “d’oïl”, costuma-se chamar francês antigo a língua do século 9 a 13, a primeira forma propriamente do idioma. Considera-se que os Juramentos de Estrasburgo (842) foram a certidão de nascimento da língua francesa. Em 14 de fevereiro, Carlos, o Calvo e Luís, o Germânico, assinaram uma aliança militar contra seu irmão Lotário 1.º, os três sendo netos de Carlos Magno. Na ocasião, Carlos fez seu juramento aos soldados aliados em língua germânica, e Luís o fez na língua românica local; os dois falares eram chamados respectivamente theodisca lingua e romana lingua. Cópias dos textos dos dois juramentos, redigidas muito tempo depois, estão conservadas até hoje.

O francês antigo tomou vocabulário de inúmeras línguas; ao contrário de outras línguas europeias, e ao contrário do francês atual (por conta dos contatos coloniais e do massivo afluxo imigratório), pegou pouca coisa do árabe. Por muitos séculos, a Europa foi dividida em grandes impérios cujas fronteiras jamais foram claramente definidas e que mudavam a cada guerra, conquista ou decisão das casas reais. A atual divisão em países é muito recente (data aproximadamente de 1918, e mesmo depois passou por profundas mudanças), e não reflete a real distribuição étnica, linguística e cultural das populações. Portanto, a forma atual do Estado-nação não deve ser naturalizada, como que refletindo reais e atávicos apanágios de povos e idiomas.

A forma normanda do francês foi introduzida por Guilherme, o Conquistador, na Inglaterra em 1066, e deixou marcas profundas na língua inglesa. Por isso, em comparação com outras línguas germânicas, o inglês moderno tem muito mais palavras de origem latina. (Das línguas germânicas hoje faladas, o inglês, o holandês, o alemão e o frísio pertencem ao ramo ocidental; o dinamarquês, o norueguês, o sueco, o islandês e o feroês pertencem ao ramo setentrional/nórdico; o ramo oriental, que incluía o gótico, foi extinto.) Por muitos séculos, o francês foi a língua da monarquia britânica, e até hoje vários slogans sobrevivem entre a realeza:

Dieu et mon droit: literalmente “Deus e meu direito”, que também se poderia traduzir “Meu direito divino”.

Honi soit qui mal y pense: “Envergonhe-se quem nisto vê malícia” (ou “Maldito seja quem pense mal disto”), lema da Ordem da Jarreteira, a mais antiga ordem militar de cavalaria britânica.

Je maintiendrai: “Eu manterei”, lema da monarquia holandesa.

Nos séculos 14 e 15, considera-se que era falado o francês médio, uma espécie de fase de transição durante uma época de desorganização política e demográfica (grande peste e Guerra dos Cem Anos), que se refletiu, portanto, na língua.

Dos séculos 16 a 18, o idioma é chamado francês clássico. Por ação do Renascimento, que chegou à França com algum atraso, a língua tomou muitos empréstimos (neologismos) gregos e latinos, mesmo quando já havia equivalentes resultantes da evolução do latim vulgar. Também se incorporaram palavras diretamente do italiano (sobretudo no domínio das artes), mas por conta das navegações, também do espanhol, de línguas ameríndias e inclusive do português (como ananas = abacaxi). No século 17, o filósofo René Descartes, considerado o pai do racionalismo moderno, escreveu pela primeira vez obras filosóficas em francês ao invés de usar o latim, como era comum na época. Um desses livros é o que se considera a fundação da filosofia moderna, Discours de la méthode (Discurso do método), composto de seis curtos capítulos. O grande filósofo e matemático Leibniz também escrevia muitas coisas diretamente em francês.

A grande virada em favor da oficialização da língua francesa foram as Ordenações (Ordonnance) de Villers-Cotterêts, decretadas em 1539 pelo rei Francisco (François) 1.º e que, entre outras coisas, impunham o francês como língua do direito e da administração, no lugar do latim e das línguas regionais, como o occitano. Até então, o francês desenvolvido em torno de Paris e da região da Île-de-France era apenas a língua da corte e da realeza, e a partir daí começou a ser imposto a todo o território, mesmo ao custo da violência e humilhação. Nessa época, falar num dos idiomas regionais que não o francês, principalmente o occitano, passou a ser visto como sinal de incultura, rusticidade e isolamento, em suma, a pessoa era um verdadeiro “caipira”. Os próprios nativos foram incorporando esse sentimento e tendo vergonha de usar suas línguas maternas. E isso não incluiu apenas os galo-romances, mas também o catalão e o basco, falados na fronteira com a Espanha.

A partir do século 18, considera-se a era do francês moderno. Dado o poderio político e militar da França, o francês se tornou língua veicular na Europa nos séculos 17 e 18, sendo conhecido e cultivado na maioria das cortes europeias. Inclusive grande parte da nobreza da Rússia falava apenas francês, quando o russo ainda era mais usado, sobretudo, no nível oral, pela população humilde. As navegações e o colonialismo ajudaram a expandir e fixar o papel internacional do francês. Contudo, estima-se que às vésperas da Revolução Francesa, apenas um quarto da população o falava, o que encarregou o novo regime de difundir essa língua como parte da “civilização” e a tornou, um tanto diferente de outros idiomas, o resultado de uma construção por grupos acadêmicos e literários.

Mesmo sem perder totalmente sua importância, sobretudo na diplomacia e nos correios, o francês cedeu sua hegemonia ao inglês após a 2.ª Guerra Mundial. Tanto que os sucessivos governos tentaram barrar a enxurrada de anglicismos que se incorporava à língua, principalmente a partir da década de 1970. Um dos pontos altos desse movimento foi a Lei Toubon, promulgada em 1994 e que deve seu nome ao político que a propôs. Contudo, como parte das restrições se tornou letra morta (já que todo idioma é uma entidade viva, não se limita por legislações e, na era da globalização, está em contato com diversas outras línguas), ela foi ironicamente chamada pelo povo de “Lei All-Good”, em referência a tout bon em francês significar “tudo bom”.

A língua francesa é uma das seis línguas oficiais da ONU (junto com o inglês, espanhol, russo, chinês e árabe), e é língua de trabalho da mesma instituição junto com o inglês. É uma das 24 línguas oficiais da União Europeia, sendo que o idioma oficial de cada estado-membro é considerado língua oficial, portanto, ao menos em teoria, tem o direito de ser traduzido e receber traduções. Ele é a única língua oficial apenas na União Postal Universal, fundada nos século 19 e hoje ligada à ONU, e à qual o inglês se juntou em 1994 como língua de trabalho. Em 2014, estimava-se que no total 274 milhões de falantes sabiam falar francês como língua materna ou estrangeira, dos quais 212 milhões o usavam diariamente, mas apenas 76 milhões seriam falantes nativos. Na Europa, os falantes se concentram na França, Bélgica, Mônaco, Luxemburgo, Suíça romanda (Suisse romande, sendo que no país também são oficiais o alemão, o italiano e o romanche, língua quase extinta do ramo reto-romance) e na região italiana do Vale de Aosta. Vários estados dos EUA têm minorias francófonas, e é falado no Canadá (província de Québec), no Haiti (com o crioulo, ou haitiano = kreyòl ayisyen) e em territórios franceses, como a Guiana (América do Sul), Saint-Pierre-et-Miquelon (nordeste do Canadá), Guadalupe e Martinica (ilhotas do Caribe). Falado em vários países africanos que eram colônias francesas, bem como na República Democrática do Congo (RDC, antigo Zaire e antigo Congo Belga), antiga colônia belga.

Um fenômeno interessante é que o francês de Québec (québécois), com sensíveis diferenças de pronúncia e vocabulário do francês parisiense (tomado como referência em quase todo o mundo), além dos numerosos anglicismos, conservou muitos traços do francês europeu do século 17. Ou seja, é como se a língua antiga da França tivesse se isolado num lugar da América e se conservado (o que não significa, claro, que não tivesse evoluído). Algo parecido ocorreu com o português brasileiro, cujas vogais em sílabas átonas não se enfraqueceram totalmente e que perdeu o “chiado” típico de Portugal (“está” = “ishtá”, “casas” = “cásash”). Este último fenômeno, por imitação popular, retornou no sotaque “carioca”, com a vinda da corte portuguesa em 1808. Da mesma forma, fora os mais diversos empréstimos, a língua haitiana evoluiu a partir de dialetos franceses dos colonizadores de diversas regiões da França, usados nos séculos 17 e 18, com traços quase ininteligíveis ou deduzíveis aos franceses de hoje.

A Organização Internacional da Francofonia (OIF) não é tanto uma associação meramente linguística, como a CPLP, mas, sobretudo, cultural, política e geopolítica. A Argélia, por exemplo, não é membro, enquanto Albânia, Bulgária, Grécia, Macedônia do Norte, Moldávia e Romênia o são, e Argentina, Coreia do Sul, México, Moçambique, Polônia, Ucrânia e Uruguai são observadores. Em geral, se chama francofonia o território histórico de língua francesa ou o conjunto de governos e instituições que usam o francês no trabalho ou nas relações, e (muito mais fluido) espaço francófono os lugares de difusão, uso ou adoção da língua francesa ou dos valores dos países francófonos. Todo dia 20 de março é comemorado no mundo inteiro o Dia Internacional da Francofonia.

Galicismos é como se chamam as palavras de origem francesa incorporadas ao português, sejam elas usadas na sua ortografia original (quando a norma culta recomenda colocá-las em itálico, mesmo que pronunciemos à brasileira) ou na sua forma aclimatada, ou seja, com grafia e pronúncia adaptadas ao português. De grande quantidade, devem-se à influência política, econômica, cultural, artística, diplomática e acadêmica exercida sobre Portugal e o Brasil desde o século 18 até, principalmente, o início do século 20; tanto que o período histórico ocidental compreendido entre 1870 e 1914, e que não teve na Europa nenhuma guerra de grande vulto, é chamado Belle Époque (“bela época”, em francês). Um dos maiores exemplos dessa influência é a grande reforma urbanística empreendida no início do século 20 no Rio de Janeiro, inspirada em iniciativa semelhante promovida antes em Paris pelo Barão de Haussmann, cujo objetivo era alargar e arborizar as ruas, segundo se diz, para melhor circulação do ar e afastar as doenças. No Rio, uma das consequências foi a remoção dos cortiços da parte central, considerados criadouros de doenças e “promiscuidade”, tendo sua população se deslocado sozinha para os morros e iniciado as famosas favelas. No século 20, só nas ciências humanas (além dos positivistas Auguste Comte e Émile Littré no século 19), deve-se notar a grande influência de Fernand Braudel, Marc Bloc, Claude Lévi-Strauss, Émile Durkheim, Jean Piaget, Louis Althusser, Nicos Poulantzas, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Jacques Le Goff e muitas outras e outros intelectuais.

De uma lista enorme de galicismos, dentre os mais frequentes e incorporados ao português, podemos citar: baguete, bufê, champanhe, chantilly, croquete, filé, maionese, menu, omelete, patê, suflê (gastronomia); batom, bijuteria, boné, chique, crochê, maiô, pochete, sutiã, tricô, vitrine (moda e vestuário); abajur, bibelô, buquê, camelô, carnê, chassi, cupom, dossiê, maquete, marionete, placar (objetos); ateliê, avenida, boate, cabaré, cabine, chalé, creche, garagem (lugares); charrete, chofer, guidão (ou “guidom”), metrô (transportes); bege, carmim, marrom (cores); balé, pivô, raquete (esportes); avalanche, chantagem, chefe, complô, gafe, garçom, greve, reprise, revanche, turnê (domínios diversos).