sábado, 14 de julho de 2018

Uma breve história da língua francesa


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Por Erick Fishuk

NOTA: Este texto foi o material principal de minha aula introdutória para um minicurso de francês que lecionei no programa TOPE da Unicamp no primeiro semestre de 2018. Eu tinha as anotações bem dispersas, então resolvi transformá-las num material coeso e disponibilizar aos alunos, e depois, quando tivesse mais tempo, fazer dele uma postagem aqui do
site. A maior parte das informações listadas tem como fonte a Wikipédia em francês.

Até o século 5 d.C., na região da Gália (mais ou menos equivalente à França atual), o latim vulgar (bas latin = “baixo” latim) conviveu com o gaulês (gaulois). Não confundir com “galês”, língua do País de Gales (Reino Unido), embora ambas sejam línguas célticas. “Latim vulgar” não é um termo pejorativo, mas que remete à língua popular, não sistematizada e não erudita, ao contrário do “latim clássico” que estudamos em classe (vulgus = povo, gente, multidão).

Do século 5 ao 9, usava-se na Gália uma espécie de galo-romance, ou seja, uma forma local e particular do latim vulgar. Já se notam os inúmeros aportes germânicos (línguas aparentadas ao atual alemão) e célticos (a língua céltica mais falada na França ainda hoje é o bretão, mas também são célticas, faladas nas ilhas Britânicas, o gaélico irlandês, o gaélico escocês, o galês e o extinto manx). Não se devem entender as divisões em fases como etapas estanques e intermutáveis, mas como balizas arbitrárias que facilitam o estudo do idioma e indicam traços principais mais recorrentes em certos séculos.

Considera-se que o galo-romance se dividiu em três ramos básicos: o franco-provençal, atualmente marginal e originário da tríplice fronteira entre a França, Itália e Suíça atuais; as langues d’oïl, que incluíam, além do francês, os idiomas falados nos dois terços ao norte da França atual (picardo, valão, normando etc.) e com maior substrato germânico e céltico; e a langue d’oc ou occitano, falada no terço sul da França e dividida em vários dialetos (entre os quais o provençal, que às vezes dava nome ao grupo todo, com disputa sobre se seria ou não outra língua). Oïl (hoje oui) e oc eram duas formas de dizer “sim”: a primeira, vinda do latim hoc ille (isto aqui), e a segunda, de hoc (isto); o italiano , o português “sim” etc. vieram de sic (assim).

Considerando-se já o francês como uma língua distinta das outras irmãs “d’oïl”, costuma-se chamar francês antigo a língua do século 9 a 13, a primeira forma propriamente do idioma. Considera-se que os Juramentos de Estrasburgo (842) foram a certidão de nascimento da língua francesa. Em 14 de fevereiro, Carlos, o Calvo e Luís, o Germânico, assinaram uma aliança militar contra seu irmão Lotário 1.º, os três sendo netos de Carlos Magno. Na ocasião, Carlos fez seu juramento aos soldados aliados em língua germânica, e Luís o fez na língua românica local; os dois falares eram chamados respectivamente theodisca lingua e romana lingua. Cópias dos textos dos dois juramentos, redigidas muito tempo depois, estão conservadas até hoje.

O francês antigo tomou vocabulário de inúmeras línguas; ao contrário de outras línguas europeias, e ao contrário do francês atual (por conta dos contatos coloniais e do massivo afluxo imigratório), pegou pouca coisa do árabe. Por muitos séculos, a Europa foi dividida em grandes impérios cujas fronteiras jamais foram claramente definidas e que mudavam a cada guerra, conquista ou decisão das casas reais. A atual divisão em países é muito recente (data aproximadamente de 1918, e mesmo depois passou por profundas mudanças), e não reflete a real distribuição étnica, linguística e cultural das populações. Portanto, a forma atual do Estado-nação não deve ser naturalizada, como que refletindo reais e atávicos apanágios de povos e idiomas.

A forma normanda do francês foi introduzida por Guilherme, o Conquistador, na Inglaterra em 1066, e deixou marcas profundas na língua inglesa. Por isso, em comparação com outras línguas germânicas, o inglês moderno tem muito mais palavras de origem latina. (Das línguas germânicas hoje faladas, o inglês, o holandês, o alemão e o frísio pertencem ao ramo ocidental; o dinamarquês, o norueguês, o sueco, o islandês e o feroês pertencem ao ramo setentrional/nórdico; o ramo oriental, que incluía o gótico, foi extinto.) Por muitos séculos, o francês foi a língua da monarquia britânica, e até hoje vários slogans sobrevivem entre a realeza:

Dieu et mon droit: literalmente “Deus e meu direito”, que também se poderia traduzir “Meu direito divino”.

Honi soit qui mal y pense: “Envergonhe-se quem nisto vê malícia” (ou “Maldito seja quem pense mal disto”), lema da Ordem da Jarreteira, a mais antiga ordem militar de cavalaria britânica.

Je maintiendrai: “Eu manterei”, lema da monarquia holandesa.

Nos séculos 14 e 15, considera-se que era falado o francês médio, uma espécie de fase de transição durante uma época de desorganização política e demográfica (grande peste e Guerra dos Cem Anos), que se refletiu, portanto, na língua.

Dos séculos 16 a 18, o idioma é chamado francês clássico. Por ação do Renascimento, que chegou à França com algum atraso, a língua tomou muitos empréstimos (neologismos) gregos e latinos, mesmo quando já havia equivalentes resultantes da evolução do latim vulgar. Também se incorporaram palavras diretamente do italiano (sobretudo no domínio das artes), mas por conta das navegações, também do espanhol, de línguas ameríndias e inclusive do português (como ananas = abacaxi). No século 17, o filósofo René Descartes, considerado o pai do racionalismo moderno, escreveu pela primeira vez obras filosóficas em francês ao invés de usar o latim, como era comum na época. Um desses livros é o que se considera a fundação da filosofia moderna, Discours de la méthode (Discurso do método), composto de seis curtos capítulos. O grande filósofo e matemático Leibniz também escrevia muitas coisas diretamente em francês.

A grande virada em favor da oficialização da língua francesa foram as Ordenações (Ordonnance) de Villers-Cotterêts, decretadas em 1539 pelo rei Francisco (François) 1.º e que, entre outras coisas, impunham o francês como língua do direito e da administração, no lugar do latim e das línguas regionais, como o occitano. Até então, o francês desenvolvido em torno de Paris e da região da Île-de-France era apenas a língua da corte e da realeza, e a partir daí começou a ser imposto a todo o território, mesmo ao custo da violência e humilhação. Nessa época, falar num dos idiomas regionais que não o francês, principalmente o occitano, passou a ser visto como sinal de incultura, rusticidade e isolamento, em suma, a pessoa era um verdadeiro “caipira”. Os próprios nativos foram incorporando esse sentimento e tendo vergonha de usar suas línguas maternas. E isso não incluiu apenas os galo-romances, mas também o catalão e o basco, falados na fronteira com a Espanha.

A partir do século 18, considera-se a era do francês moderno. Dado o poderio político e militar da França, o francês se tornou língua veicular na Europa nos séculos 17 e 18, sendo conhecido e cultivado na maioria das cortes europeias. Inclusive grande parte da nobreza da Rússia falava apenas francês, quando o russo ainda era mais usado, sobretudo, no nível oral, pela população humilde. As navegações e o colonialismo ajudaram a expandir e fixar o papel internacional do francês. Contudo, estima-se que às vésperas da Revolução Francesa, apenas um quarto da população o falava, o que encarregou o novo regime de difundir essa língua como parte da “civilização” e a tornou, um tanto diferente de outros idiomas, o resultado de uma construção por grupos acadêmicos e literários.

Mesmo sem perder totalmente sua importância, sobretudo na diplomacia e nos correios, o francês cedeu sua hegemonia ao inglês após a 2.ª Guerra Mundial. Tanto que os sucessivos governos tentaram barrar a enxurrada de anglicismos que se incorporava à língua, principalmente a partir da década de 1970. Um dos pontos altos desse movimento foi a Lei Toubon, promulgada em 1994 e que deve seu nome ao político que a propôs. Contudo, como parte das restrições se tornou letra morta (já que todo idioma é uma entidade viva, não se limita por legislações e, na era da globalização, está em contato com diversas outras línguas), ela foi ironicamente chamada pelo povo de “Lei All-Good”, em referência a tout bon em francês significar “tudo bom”.

A língua francesa é uma das seis línguas oficiais da ONU (junto com o inglês, espanhol, russo, chinês e árabe), e é língua de trabalho da mesma instituição junto com o inglês. É uma das 24 línguas oficiais da União Europeia, sendo que o idioma oficial de cada estado-membro é considerado língua oficial, portanto, ao menos em teoria, tem o direito de ser traduzido e receber traduções. Ele é a única língua oficial apenas na União Postal Universal, fundada nos século 19 e hoje ligada à ONU, e à qual o inglês se juntou em 1994 como língua de trabalho. Em 2014, estimava-se que no total 274 milhões de falantes sabiam falar francês como língua materna ou estrangeira, dos quais 212 milhões o usavam diariamente, mas apenas 76 milhões seriam falantes nativos. Na Europa, os falantes se concentram na França, Bélgica, Mônaco, Luxemburgo, Suíça romanda (Suisse romande, sendo que no país também são oficiais o alemão, o italiano e o romanche, língua quase extinta do ramo reto-romance) e na região italiana do Vale de Aosta. Vários estados dos EUA têm minorias francófonas, e é falado no Canadá (província de Québec), no Haiti (com o crioulo, ou haitiano = kreyòl ayisyen) e em territórios franceses, como a Guiana (América do Sul), Saint-Pierre-et-Miquelon (nordeste do Canadá), Guadalupe e Martinica (ilhotas do Caribe). Falado em vários países africanos que eram colônias francesas, bem como na República Democrática do Congo (RDC, antigo Zaire e antigo Congo Belga), antiga colônia belga.

Um fenômeno interessante é que o francês de Québec (québécois), com sensíveis diferenças de pronúncia e vocabulário do francês parisiense (tomado como referência em quase todo o mundo), além dos numerosos anglicismos, conservou muitos traços do francês europeu do século 17. Ou seja, é como se a língua antiga da França tivesse se isolado num lugar da América e se conservado (o que não significa, claro, que não tivesse evoluído). Algo parecido ocorreu com o português brasileiro, cujas vogais em sílabas átonas não se enfraqueceram totalmente e que perdeu o “chiado” típico de Portugal (“está” = “ishtá”, “casas” = “cásash”). Este último fenômeno, por imitação popular, retornou no sotaque “carioca”, com a vinda da corte portuguesa em 1808. Da mesma forma, fora os mais diversos empréstimos, a língua haitiana evoluiu a partir de dialetos franceses dos colonizadores de diversas regiões da França, usados nos séculos 17 e 18, com traços quase ininteligíveis ou deduzíveis aos franceses de hoje.

A Organização Internacional da Francofonia (OIF) não é tanto uma associação meramente linguística, como a CPLP, mas, sobretudo, cultural, política e geopolítica. A Argélia, por exemplo, não é membro, enquanto Albânia, Bulgária, Grécia, Macedônia do Norte, Moldávia e Romênia o são, e Argentina, Coreia do Sul, México, Moçambique, Polônia, Ucrânia e Uruguai são observadores. Em geral, se chama francofonia o território histórico de língua francesa ou o conjunto de governos e instituições que usam o francês no trabalho ou nas relações, e (muito mais fluido) espaço francófono os lugares de difusão, uso ou adoção da língua francesa ou dos valores dos países francófonos. Todo dia 20 de março é comemorado no mundo inteiro o Dia Internacional da Francofonia.

Galicismos é como se chamam as palavras de origem francesa incorporadas ao português, sejam elas usadas na sua ortografia original (quando a norma culta recomenda colocá-las em itálico, mesmo que pronunciemos à brasileira) ou na sua forma aclimatada, ou seja, com grafia e pronúncia adaptadas ao português. De grande quantidade, devem-se à influência política, econômica, cultural, artística, diplomática e acadêmica exercida sobre Portugal e o Brasil desde o século 18 até, principalmente, o início do século 20; tanto que o período histórico ocidental compreendido entre 1870 e 1914, e que não teve na Europa nenhuma guerra de grande vulto, é chamado Belle Époque (“bela época”, em francês). Um dos maiores exemplos dessa influência é a grande reforma urbanística empreendida no início do século 20 no Rio de Janeiro, inspirada em iniciativa semelhante promovida antes em Paris pelo Barão de Haussmann, cujo objetivo era alargar e arborizar as ruas, segundo se diz, para melhor circulação do ar e afastar as doenças. No Rio, uma das consequências foi a remoção dos cortiços da parte central, considerados criadouros de doenças e “promiscuidade”, tendo sua população se deslocado sozinha para os morros e iniciado as famosas favelas. No século 20, só nas ciências humanas (além dos positivistas Auguste Comte e Émile Littré no século 19), deve-se notar a grande influência de Fernand Braudel, Marc Bloc, Claude Lévi-Strauss, Émile Durkheim, Jean Piaget, Louis Althusser, Nicos Poulantzas, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Jacques Le Goff e muitas outras e outros intelectuais.

De uma lista enorme de galicismos, dentre os mais frequentes e incorporados ao português, podemos citar: baguete, bufê, champanhe, chantilly, croquete, filé, maionese, menu, omelete, patê, suflê (gastronomia); batom, bijuteria, boné, chique, crochê, maiô, pochete, sutiã, tricô, vitrine (moda e vestuário); abajur, bibelô, buquê, camelô, carnê, chassi, cupom, dossiê, maquete, marionete, placar (objetos); ateliê, avenida, boate, cabaré, cabine, chalé, creche, garagem (lugares); charrete, chofer, guidão (ou “guidom”), metrô (transportes); bege, carmim, marrom (cores); balé, pivô, raquete (esportes); avalanche, chantagem, chefe, complô, gafe, garçom, greve, reprise, revanche, turnê (domínios diversos).