Em meu antigo canal do YouTube, entre as mais diversas experiências linguísticas que postei, além da pronúncia de textos em latim, já criei também montagens com leituras de trechos em outras línguas antigas. Em maio de 2017, eu tentava recomeçar meu estudo autodidata de grego antigo, que há muito estava parado. Infelizmente tive de largar de novo, por causa das obrigações do doutorado, mas antes deixei uma peça muito interessante. Eu gravei exemplos de frases no dialeto ático apenas a amigos no WhatsApp, mas após refletir, decidi fazer um vídeo com os áudios, as fotos do livro e a tradução junto.
Decidi estudar algo de grego antigo, pois percebi que me ajudava não apenas a entender as línguas ocidentais modernas e o latim, mas também o eslavônio, outro idioma pelo qual me interesso. A religião ortodoxa é praticamente cristianismo grego (bizantino). Aprendi um pouco da história do grego antigo também, sendo baseada no dialético ático a variante estudada atualmente (a Ática é a pequena região peninsular onde fica Atenas), no qual foram compostas as principais obras filosóficas e científicas da Grécia Clássica. Outros autores, como a poetisa Safo de Lesbos, usavam o dialeto eólico, e Homero escrevia supostamente numa mistura de dialetos.
Essa língua predominou nos séculos 6 a 4 a.C., quando surgiram as maiores pérolas da Grécia Antiga (especialmente no século 5 a.C.), enquanto no século 4 a.C. começou o período helenístico, quando a península grega foi unificada sob Alexandre o Grande. O idioma comum entre todos os dialetos era então a dita koiné (“comum”, em grego), baseada no ático e que gerou grande parte do grego moderno. O grego antigo não tinha pontuação e só usava as hoje chamadas “maiúsculas”, tendo as minúsculas aparecido só na era medieval. Apenas os textos modernos distinguem minúsculas e maiúsculas e usam espaçamento e pontuação.
O grego antigo é bonito e interessante. Eu gravei numa das variantes da pronúncia reconstituída, já que ninguém tem certeza, assim como com o latim, como era pronunciada a língua. Era bem diferente do grego moderno, sobretudo na pronúncia, que neste último é bem mais simples. No grego moderno só há um acento de intensidade, lido no acento agudo (tónos), mas no grego antigo o acento era tonal, e uma sílaba tônica podia ter um acento ascendente (acentos agudo ou grave) ou descendente (circunflexo, com a forma de um til). No grego antigo, as vogais iniciais também podiam ter uma leve aspiração, indicada pelo “espírito rude” (curvinha pra esquerda), ou não ter nenhuma, o que se via pelo “espírito doce” (curvinha pra direita).
Alguns itens desta descrição e alguns traços de pronúncia, na qual deixei escapar certos errinhos, podem divergir dos adotados por especialistas, mas é que eu ainda estava começando, sendo então insuficiente em certos aspectos. Mas como eu já tinha feito o áudio em privado, decidi publicar no meu canal, cujo público sempre adora uma novidade linguística ou cultural. As frases foram tiradas do livro Curso de grego: propedêutica, de Maria Helena de Moura Neves e Daisi Malhadas, e o fundo musical é uma adaptação da versão instrumental da canção Fragosiriani, composta por Markos Vamvakaris.
Outro experimento que decidi fazer em julho de 2017 foi gravar a oração cristã do Pai-Nosso na língua eslava antiga (eslavônio). Como eu estava então lendo na Wikipédia em inglês o verbete sobre esse idioma, e achei lá a prece como amostra, decidi gravar pro YouTube.
A língua eslava antiga, também conhecida como “eslavônio”, foi o primeiro dialeto eslavo com registros escritos. Supõe-se que os santos Constantino (Cirilo) e Metódio, evangelizadores dos eslavos, tenham se baseado no antigo dialeto búlgaro-macedônio falado em torno de Tessalônica, na segunda metade do século 9. Nesse idioma, que eles proveram de elementos de outros dialetos eslavos pra que fosse entendido por outros povos eslavos, eles traduziram a Bíblia Sagrada e outros escritos sacros da Igreja. Todos esses papéis se perderam, e o que chegou até nós foram cópias feitas por seus discípulos nos séculos 10 e 11, ou seja, já influenciados por falares locais.
Nos séculos posteriores, ao mesmo tempo em que as línguas eslavas estavam começando a surgir independentes, o eslavo antigo continuou sendo usado pelas igrejas ortodoxas, e mesmo por algumas de rito romano, e evoluiu em eslavos eclesiásticos russo, ucraniano, búlgaro, sérvio etc. Mas o russo foi o que ganhou mais força e influência, tornou-se a base do russo literário moderno e tem vários traços simplificados em relação ao eslavônio. Em inglês, o eslavo antigo costuma ser chamado de Old Church Slavonic (OCS), e o eslavo eclesiástico, Church Slavonic. As duas variantes nunca foram línguas realmente faladas, mas apenas escritas, e o eslavônio foi reconstruído apenas no século 19, pelas pesquisas com os resquícios escritos.
Em 2012, o tcheco Vojtěch Merunka, no quadro de um projeto mais amplo pra desenvolver ferramentas de comunicação intereslavas, lançou seu projeto Neoslavonic (Neoeslavônio), versão simplificada do eslavo antigo, mas com muitos traços evolutivos das línguas eslavas modernas. Além do Pai-Nosso que encontrei na página sobre o eslavônio da Wikipédia em inglês, lendo em dois ritmos diferentes, recitei também a oração nessa versão simplificada, que se parece muito com a original. Minha pronúncia se baseia no que dizem as melhores gramáticas da língua, e eu usei a língua russa como base pras sílabas tônicas, já que os escritos não deixaram dicas sobre elas. Eu tirei deste vídeo a música de fundo.
Posteriormente, fiz minha primeira leitura em voz alta na língua eslava eclesiástica, ainda usada na maioria das Igrejas Ortodoxas dos países eslavos, sobretudo na Rússia. Ela é uma ampla evolução do eslavo antigo, ou eslavônio, que foi cultivado pelos sucessores de Cirilo e Metódio do século 9 ao 11 em toda a Europa Meridional e Oriental, e a partir mais ou menos do ano 1100 cada região começou a usar uma variante do eslavônio marcada pelo dialeto eslavo local. A partir daí, diz-se que temos as línguas eslavas eclesiásticas de extração russa, ucraniana, sérvia etc., mas a russa terminou predominando, porque ao mesmo tempo era usada como língua literária e de Estado. Ela influiu de tal modo na formação do russo literário, que apenas no começo do século 18 deixou de ser o idioma burocrático de Moscou, mas sua semelhança com o russo moderno ainda é notável.
Há diversas diferenças entre o eslavônio e o eslavo eclesiástico no sentido da simplificação, como a ausência de sons nasais, a perda do valor fonético próprio dos chamados iers (vogais fracas), o abandono do alfabeto glagolítico (o único usado por Cirilo e Metódio, sendo o cirílico surgido posteriormente) e a redução das formas gramaticais. Mas o vocabulário é muito semelhante, tendo o russo moderno se submetido a muitas outras influências culturais e geográficas. O trecho que recitei é o primeiro capítulo do livro bíblico do Gênesis, versículos 1 a 31, tratando da criação do mundo por Deus em seis dias. Eu fiz em grande parte me baseando na pronúncia russa atual (como é hoje o costume) e cometi pequenos deslizes, mas não tem como dizer se um ou outro modelo está “certo” ou “errado”.
Na Rússia, o livro do Gênesis também se denomina Pervaia kniga moiseieva (Primeiro Livro de Moisés). Obviamente eu não traduzi nem legendei porque a Bíblia Sagrada é uma publicação universalmente conhecida. Pra título de comparação, acessem também uma tradução em português, em russo contemporâneo e no latim da Nova Vulgata, a versão mais recente oficializada pela Igreja Católica. Lembro que essa nova tradução latina é apenas um texto autorizado, e não numa língua necessariamente mais “pura”, “correta” ou “acurada”.