domingo, 20 de dezembro de 2015

Por que se deve aprender russo?


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Por Erick Fishuk

As pessoas aprendem idiomas pelos mais diversos motivos. E por tão diversos motivos certos idiomas se tornam mais úteis ou necessários do que outros. Quem tem vida intelectual ativa sabe o quanto fazem falta até mesmo noções básicas de idiomas menos falados ou conhecidos no Ocidente. E os curiosos, estudiosos e pesquisadores, bem como os fortemente inseridos no mercado de trabalho, por vezes se ressentem da pouca fluência ao falar ou escrever em língua estrangeira. Definitivamente, não é mais o domínio de apenas uma língua estrangeira que garante uma carreira profissional ou acadêmica promissora. E, reconheçamos, na maior parte dos casos não é o domínio do conjunto de quaisquer línguas estrangeiras que nos dá um lugar ao sol no mundo globalizado. O idioma internacional hoje não é inglês ou esperanto, mas o poliglotismo.

Para certos idiomas, ou antes, para certo idioma, a necessidade de seu domínio parece tão óbvia que até parece um contrassenso listar motivos para estudá-lo. Antes, como se tratássemos de casos patológicos, buscamos sanar os bloqueios que levam alguém a não querer estudar inglês ou a ter dificuldades nos estudos. Quanto ao francês, segundo idioma de cultura mais importante no mundo, mas hoje bem menos popular do que há cem anos, razões não faltam para conhecê-lo a fundo, especialmente entre meus colegas historiadores. Porém, os vendedores de livros e donos de escolas, ao menos no Brasil, se esmeram em arrolar os mais variados incentivos para os clientes comprarem seu peixe: ampla literatura, escolas e universidades de prestígio, ponto no currículo, intercâmbio cultural e até mesmo “língua do charme e do glamour”... Também não faltam porquês para dominar espanhol, alemão e italiano, mas para idiomas menos difundidos no mundo ocidental, mesmo os parentes mais ou menos distantes da família indo-europeia comum, o desenrolar e a conclusão das elucubrações em que se lançam escritores e professores chegam a ter uma graça.

Por meio deste texto, que tem caráter muito pessoal e de forma alguma técnico, pretendo listar algumas razões pelas quais acredito que seja importante e interessante a um brasileiro estudar a língua russa atualmente. Não quero causar medo inculcando riscos a correr ou oportunidades a perder na recusa a seu aprendizado, mas quero principalmente estimular quem já tem alguma vontade, mas precisa de um “empurrão”, e se possível apresentar dados novos a quem não está muito por dentro do assunto. Não vou também me preocupar com citação de fontes, pois buscas rápidas confirmam o essencial dos argumentos, mas posso fornecer os textos a quem desejar.

As estatísticas variam, mas em qualquer ranking o russo sempre está entre as dez línguas mais faladas do mundo. Aproximadamente 400 milhões de pessoas têm línguas eslavas como maternas, e mais da metade delas é falante de russo, concentradas na Rússia, Belarus e Cazaquistão, além de comunidades dispersas nos países vizinhos, em outros lugares da Europa e no resto do mundo. Por conta do enorme papel político e econômico desempenhado pela Rússia na Europa Central, Meridional e Oriental durante o século 20, muitas pessoas nos países dessas regiões têm o russo como uma de suas línguas estrangeiras, às vezes mais bem dominado até do que o inglês. Alguns deles são a Ucrânia, Bulgária, República Tcheca, Croácia, Sérvia e Montenegro, onde não raro o russo é ensinado já na escola secundária e cuja língua local tem muita semelhança.

O russo é uma ótima ponte para todas as outras línguas eslavas, ainda que não perfeita. É conhecido o fato de que esses idiomas são bastante parecidos entre si, e a comparação entre palavras básicas, do dia a dia, o revela facilmente. Isso não significa que sejam iguais ou mutuamente compreensíveis à primeira vista, mas o domínio de um deles possibilita uma compreensão razoável, mais do que em outros grupos linguísticos europeus, de um texto escrito em outra língua eslava, por exemplo, apesar das lacunas restantes nas sutilezas e no vocabulário. Porém, não está no entendimento imediato a maior vantagem, mas na facilidade de aprendizado de uma nova língua eslava. Os linguistas discordam que o russo seja um “meio-termo” dentro do grupo, papel que seria mais bem desempenhado pelo eslovaco ou o ucraniano. Mas apesar das diferenças de vocabulário, gramática e influências linguísticas, as terminações de caso, por exemplo, não variam enormemente, e os próprios casos, que indicam a função da palavra na oração, são quase os mesmos, e apenas no russo o “prepositivo” é em geral o “locativo” das outras, as quais costumam ter ainda o caso “vocativo”. O búlgaro e o macedônio são as únicas que não têm declinações de caso, mas o vocabulário búlgaro, pelo menos, é bem parecido com o do russo. Por experiência própria, penso que esta língua sumariza as dificuldades básicas que enfrentará o estudante de qualquer língua eslava, mas sem complicações excessivas na ortografia/pronúncia e na gramática.

O russo é um idioma difícil? Bem, na verdade nenhum idioma é objetivamente difícil, pois diversos fatores influenciam o aprendizado: tempo dedicado aos estudos, qualidade do material disponível (que se amplia quando é escrita na língua materna do iniciado), proximidade com a língua materna daquele que o aprende, dedicação e força de vontade do aluno e do professor, motivações externas à língua em si que levem à procura (gosto pela cultura ou história, frequência a lugares ou pessoas, antepassados, pesquisa acadêmica de um tema relacionado), condições psicofísicas que facilitam ou dificultam a assimilação, entre outros. Nada existe que impeça um brasileiro talentoso de aprender o básico da língua dentro de alguns meses, mesmo que não dedique muitas horas por dia. Isso porque, apesar da primeira impressão, não há enorme abismo entre o russo e o português, já que a escrita é igualmente alfabética (e até com correspondência maior entre grafia e pronúncia), o modo como a língua funciona, com substantivos, adjetivos, verbos, flexões, prefixos, preposições etc., é o mesmo (ao contrário do árabe, por exemplo) e muitas palavras de origem grega, latina, inglesa ou francesa contidas no vocabulário técnico, científico, artístico e cultural encontram cognatos em português. Recursos impressos e digitais hoje à mão também propiciam prática constante e eficaz.

Por suas fronteiras geográficas imensas, a cultura russa é uma das mais ricas do mundo, com influências da Europa Ocidental, Central e Oriental, dos povos do Oriente Médio, do Cáucaso, da Ásia Central e do Extremo Oriente. No século 19 a Rússia produziu literatura, música e ciência que entraram para o panteão da história, e assim continuou no século 20. No caso mais óbvio da literatura, por mais que o tradutor seja profissional e renomado, nada substitui a riqueza e o deleite de ler uma obra na língua “original”, ou “de partida”, como preferem dizer alguns. E a língua russa, em particular, é colorida por ser sintética, flexível e precisa, como atestam os casos, as palavras compostas, o aspecto verbal, a tropa de afixos e o vocabulário múltiplo. Todavia, e eis uma vantagem ao falante não nativo, o russo apresenta relativa uniformidade em toda a área de distribuição, tanto na pronúncia quanto no vocabulário e na gramática, embora os dois primeiros sofram eventuais variações. Atribui-se isso à padronização literária, educacional e midiática promovida pelo regime soviético, cujas reformas linguísticas também visavam a facilitar a alfabetização em massa e o aprendizado por estrangeiros.


O papel da Rússia e da União Soviética na história mundial durante o século 20 é um capítulo à parte, e como estudioso da área, é um terreno em que fico à vontade. Como sabemos, a importância da língua inglesa no mundo contemporâneo se deve à quase total hegemonia econômica, militar, cultural e política dos Estados Unidos após a Segunda Grande Guerra, embora o papel do Reino Unido no funcionamento anterior do mundo em nada fosse desprezível. O único grande contraponto jamais existente a esse poder mundial foi o império soviético, e não foi apenas sua grandeza numérica que para frente projetou a língua russa, mas o significado simbólico de um projeto apoiado na já existente majestade do período tsarista, bem como nas tradições populistas e rebeldes dos camponeses locais, que não pretendeu nada menos do que abolir as desigualdades sociais e libertar os povos coloniais. Nada disso, contudo, teria sido viável se em 1919, logo após a revolução bolchevique, Lenin não tivesse criado a Internacional Comunista, agregação mundial de partidos pró-Moscou que tomou a forma gigante e centralizada sob Stalin, mantida até a extinção em 1943, e forjou a linguagem e subcultura conhecida hoje como comunista, mas compartilhada por grande parte da esquerda revolucionária. Além disso, a Internacional foi uma das primeiras instituições de caráter mundial a fazer vasto emprego de tradutores e intérpretes (inclusive da interpretação simultânea), entre as mais diversas línguas, por conta do amplo tráfego de documentos, valores e pessoas entre Moscou e vários cantos do globo, pela via legal dos congressos e conferências ou pela via ilegal da subversão e espionagem. Assim, a língua russa permite analisar mais de perto o mosaico variado de uma história nacional ainda hoje passiva de polêmicas e aberta a novos números, esperando chegarem novos ratos de arquivo, eterno gatilho de paixões políticas, mas não menos internacional, por ter tentado incendiar a revolução em todo canto e ter legado uma ideologia política cujos frutos continuam a surgir.

A Rússia está ressurgindo com grande força na cena internacional, não importa como avaliemos a atuação de seus protagonistas políticos. Desde Gorbachov e durante toda a era Ieltsin, o produto interno bruto caiu drasticamente, e só voltou a crescer, com fôlego admirável e apesar de turbulências pontuais, sob o mando de Putin. Com Belarus e Cazaquistão, a Rússia forma um amplo bloco econômico, e no país da Ásia Central, também muito rico em recursos minerais, ela lança ainda seus famosos foguetes. Não é algo elogiável o xadrez que as grandes potências jogam nas nações mais pobres, mas a Rússia é o único país que tem sido consequente na oposição aos interesses hegemônicos dos Estados Unidos e da União Europeia, e dois ou mais polos de poder e influência são melhores do que apenas um, ou dois que são um. A Rússia, junto com o Brasil, faz parte dos BRICS, bloco de interesses que inclui ainda Índia, China e África do Sul, todos eles países emergentes com nível de desenvolvimento similar e, portanto, desejosos de unir forças contra as imposições dos mais ricos. A curiosidade da Rússia pelo Brasil, muito além dos laços econômicos e diplomáticos que só têm se reforçado nos últimos anos, remonta aos tempos soviéticos, e muitos acadêmicos de lá descreveram nossa história e cultura em obras de grande valor, quase sempre com alto teor social e militante. E ainda hoje os russos, e não só eles entre os eslavos, especialmente os jovens que usam as redes sociais, têm se interessado em visitar o Brasil, aprender nossa língua e viajar, trabalhar ou estudar aqui, abrindo possibilidades que devemos explorar imediatamente.

Dizer que aprender novos idiomas reforça a inteligência e flexibiliza o raciocínio ao fornecer novas estruturas para entender o mundo é lugar-comum em qualquer caso. Mas se é assim, talvez línguas muito diferentes da nossa exerçam esse trabalho, com efeitos positivos, de forma ainda mais ampla. Ainda hoje muitos eruditos dizem que aprender latim é uma ótima ginástica para o cérebro, do que não discordo. Mas o russo, além de ser um idioma com uma real comunidade de falantes e infindas veredas de uso, possui dificuldades adicionais que tornam bem mais “puxada” essa ginástica. O gênero neutro e os casos são familiares aos latinistas, mas o uso daqueles com preposições, o alfabeto e fonologia diferentes não são coisas com que se acostuma nas primeiras aulas. Mas que pessoa obstinada e inteligente não gosta de desafios? Filé-mignon não é grátis. Entre os benefícios aplicáveis a qualquer outra língua, está o de ir a outro país e saber pelo menos arranhar a língua local, o que gera o prazer nos falantes que se satisfazem com o interesse por sua cultura, bem como no visitante que experimenta novas formas de se expressar, se comunicar, se virar, enfim, se arriscar. E por falar em riscos, têm se tornado mais conhecidos os casos de jovens brasileiros que decidem ir à Rússia cursar uma universidade, mesmo sem saber o idioma ou conhecer a cultura. Atraem-nos as aulas de russo que as instituições oferecem, mas que não suprem as enormes barreiras de encarar um ensino superior em língua complexamente diferente. Uma boa preparação no Brasil, mesmo que de forma autodidata, reduziria muito o sofrimento. E por fim, talvez a razão mais atraente aos brasileiros: em 2018 tem Copa do Mundo na Rússia!

Espero que terminado o texto, eu tenha conseguido convencer a leitora ou leitor com bons pretextos para que se aventure a aprender o idioma russo, caso surja alguma vontade ou interesse, e especialmente tenha feito refletir se essa vontade é verdadeira ou passageira, se valeria a pena embarcar num plano que só pode ser de longo prazo. Claro que as pessoas são diferentes, e escolhas nem sempre são conscientes ou racionais: o que para mim foi uma ferramenta de ascensão acadêmica, abertura do horizonte das línguas eslavas e até conhecimento parcial de meu passado pode ser para outras um desafio motivado por relacionamento amoroso, jogo eletrônico, programa ou série de televisão, mera fascinação estética (pela língua ou outros símbolos histórico-culturais), amizades profundas ou eventos significativos. Acho apenas que nenhuma língua, tal como um tema de pesquisa científica, deve ser procurada por estar “na moda”, como foi há pouco com o chinês e outrora o japonês. Mas de qualquer jeito, desejo que o esforço, como no meu caso, gere forte prazer intelectual e algum senso de dever cumprido.


Bragança Paulista, 17 de outubro de 2015

P.S.: Para aguçar ainda mais a curiosidade intelectual, selecionei alguns sites em inglês e português que dão noções básicas da língua russa ou remetem a outras páginas com manuais, gramáticas, dicionários, cultura/turismo e mídia:


Language Resources for Students of Russian

An On-line Interactive Russian Reference Grammar

Learning Russian Language online

Learn Russian For Free

Master Russian – Beginning to Advanced

100 top resources to learn Russian

Só Russo – Língua Russa Online

Russo para brasileiros

Blog Falando Russo – língua e cultura

Guia Básico de Russo e Norueguês