sábado, 1 de julho de 2023

Como Rússia rouba história ucraniana


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Este artigo publicado pelo Kyiv Independent e enviado pelo amigo Gabriel Neder, que me sugeriu pra traduzir e pôr aqui em apoio ao movimento contra a invasão da Ucrânia, saiu originalmente em inglês e se chama “Como a Rússia rouba e reescreve a história ucraniana para justificar suas reivindicações na Ucrânia”. Escrito pelo russo Oleg Sukhov, mestre em História e jornalista residente na Ucrânia desde 2014, saiu no dia 13 de junho de 2023, às 23h43min, e eu mesmo o traduzi do inglês, usando as imagens originais do site, como pode ser visto abaixo. Também fiz adaptações e outros adendos explicativos, inclusive quando se tratava do que pareciam construções incomuns de um idioma inglês não nativo.



Da esquerda para a direita: o escritor Mykola Gogol, o monumento ao Duque de Richelieu em Odesa, o engenheiro aeronáutico Igor Sikorsky e Volodymyr, o Grande, Príncipe de Kyiv. (Cortesia)


Apropriar-se da história estrangeira e reescrevê-la sempre foi um aspecto-chave das narrativas imperialistas da Rússia. Isso é especialmente verdade quanto à história da Ucrânia, país que a Rússia vem buscando subjugar há séculos. Considerar que a Rússia é a única sucessora da Rus Kievita medieval e avançar reivindicações sobre todos os territórios que ela controlava, apagar as histórias de cidades ucranianas como Kharkiv e Odesa e justificar os ataques contra elas, bem como rotular artistas e cientistas que viveram na Ucrânia como se na verdade fossem russos, faz parte do atual esforço de Moscou por apagar a Ucrânia, sua história e sua cultura.



“Sem roubar a história de outros povos, eles não conseguem existir”, disse Vadym Pozniakov, um ativista que encabeça uma campanha para demolir monumentos a russos na Ucrânia, ao Kyiv Independent. “Sem a história ucraniana, eles não conseguem existir.” Há séculos, esse modo imperialista de engolir os países vizinhos e reescrever suas histórias vem sendo uma peça fundamental nas tentativas da Rússia de justificar sua agressão contra a Ucrânia.

A recente anexação de territórios ucranianos pela Rússia, bem como a metódica lavagem cerebral de ucranianos nas regiões ocupadas e de observadores estrangeiros que cobrem a guerra para acreditarem que a Rússia tem uma justificativa para anexações e assassinatos, estão em plena operação há muitos anos. Tarás Honcharuk, um historiador radicado em Odesa, disse ao Kyiv Independent que o ditador russo Vladimir Putin está usando a narrativa sobre “terras historicamente russas” e russos étnicos na Ucrânia da mesma forma que Adolf Hitler usava sua narrativa sobre a “Grande Alemanha” (Großdeutschland).

O mito russo da Rus Kievita – Inúmeras narrativas históricas russas giram em torno da Rus Kievita, um Estado que existiu no território das atuais Ucrânia, Rússia e Belarus do século 9 ao 13. Na historiografia russa, a Rus Kievita é frequentemente retratada como a antecessora do que se tornaria a Rússia, enquanto a Ucrânia e Belarus são pintadas como subprodutos derivados desse Estado medieval. Os governantes russos são retratados como os sucessores diretos dos príncipes de Kyiv, entre os quais Vladimir 1.º, Iaroslav, o Sábio, e Vladimir Monômaco.

Rus, uma palavra de origem escandinava, designava inicialmente o território inteiro da Rus Kievita, mas posteriormente a Rússia monopolizou o uso das palavras russki (um habitante da Rus) e Rossia (a tradução grega da palavra “Rus”). Isso permitiu à Rússia reivindicar o manto de única sucessora legítima da Rus Kievita e, portanto, de todos os seus territórios.



Na verdade, a Rus Kievita foi uma entidade fundada pelos chamados varegues (um povo escandinavo que falava o nórdico antigo) e povoada majoritariamente por tribos eslavas, bálticas e fino-úgricas. Ela deu origem às nações e línguas ucraniana, belarussa e russa. O coração do território da Rus Kievita ficava no norte da atual Ucrânia. Do século 13 ao 14, um dos sucessores da Rus Kievita, o Principado da Galícia-Volínia (na atual Ucrânia), esteve disputando a hegemonia com o Principado de Vladimir-Suzdal (na atual Rússia). Outro sucessor da Rus Kievita foi o Grão-Ducado da Lituânia, que era governado por uma elite lituana, mas dominado pela língua e cultura rutenas (ucranianas/belarussas antigas) do século 14 ao 16. O Grão-Ducado da Lituânia foi uma alternativa ocidentalizada e mais liberal ao despotismo do Grão-Ducado de Moscou.

A partir do século 14, a Ucrânia e a Rússia seguiram seus rumos separados, testemunhando o desenvolvimento de línguas, culturas e histórias separadas. É difícil determinar com exatidão quem é o principal sucessor moderno da Rus Kievita, mas alguns historiadores defendem que são todos os três países eslavos orientais (Ucrânia, Rússia e Belarus) ou nenhum deles.

Malorossia, estudo de caso de uma denominação pejorativa – No século 14, a Rússia começou a usar o termo Malorossia (Pequena Rússia) para se referir aos territórios ucranianos. A própria Rússia se denominava Velikorossia (Grande Rússia), e Belarus significava “Rússia Branca”.

Embora o termo “Malorossia” ou “Pequena Rus” no início significasse apenas um subproduto geograficamente menor da Rus Kievita, ele se tornou parte do discurso imperial russo e um termo pejorativo simbolizando o estatuto colonial da Ucrânia perante a Rússia. O termo “Malorossia” saiu de uso após o colapso do Império Russo em 1917. Atualmente, os imperialistas russos estão tentando reavivar esse termo.



Outro termo frequentemente usado pela propaganda russa é Novorossia (Nova Rússia), que se refere ao sul da Ucrânia. O termo apareceu no século 18, quando o Império Russo anexou esse território. Historicamente, esse território era conhecido em persa como “Dasht-e Qebchāq” (ou “Dyke Pole” i. e. “Campos Selvagens”) e era povoado inicialmente por inúmeros povos iranianos e túrquicos, colonos gregos e, mais tarde, tártaros da Crimeia e cossacos ucranianos. Do século 16 ao 18, o Sich de Zaporizhia, uma república cossaca, estendia-se pelas margens meridionais do rio Dnipró.

Porém, a propaganda russa passa por alto sobre essas antigas camadas de história e retrata esse território como “terras historicamente russas”. Imperialistas russos como Igor Girkin, oficial da inteligência russa que ajudou a lançar a invasão do Donbás ucraniano em 2014 e foi considerado culpado pela derrubada do avião de passageiros MH17, argumentam que as chamadas “Novorossia” e “Malorossia” são “historicamente russas”. Eles usam cotidianamente os termos “a chamada Ucrânia” e “a ex-Ucrânia” para referirem-se ao Estado ucraniano.

As não tão “historicamente russas” Odesa e Kharkiv – Odesa, a maior cidade portuária da Ucrânia, tem sido uma das pedras fundamentais da narrativa imperial do Kremlin. Há muito tempo a propaganda russa reivindica que Odesa é uma cidade historicamente russa. Na verdade, a questão é muito mais complexa.

Os gregos da Antiguidade fundaram os primeiros povoados no território da atual Odesa no século 6 a.C. No século 14, foi fundada no mesmo território a cidade de Hacıbey. Ela foi governada pela Horda Dourada, pelo Grão-Ducado da Lituânia e pelo Canato da Crimeia. Em 1764, o Império Otomano também construiu em Hacıbey a fortaleza de Yeni-Dünya. A Rússia costuma ignorar a história passada de cidades que seriam anexadas pelo Império Russo. “Eles acreditam que a data de fundação de uma cidade coincide com a de chegada da Rússia”, disse ao Kyiv Independent o historiador Honcharuk, radicado em Odesa. “Mas as cidades no sul da Ucrânia foram fundadas em lugares que já tinham sido povoados por tártaros e por cossacos de Zaporizhia.”

Além disso, Odesa foi desenvolvida por inúmeros grupos étnicos. Após a Rússia ter conquistado Hacıbey em 1789, uma nova cidade chamada Odesa foi lá construída por uma equipe multicultural, incluindo José de Ribas, um oficial nascido na Itália e de ascendência espanhola e irlandesa, e François de Wollant, um engenheiro flamengo. O Duque de Richelieu, futuro primeiro-ministro francês, dirigiu Odesa como governador de 1803 a 1814. Ele é creditado pela transformação de Odesa em uma das maiores e mais avançadas cidades do império.

No século 19, Odesa foi um caldeirão de misturas multiculturais, com ucranianos, russos, gregos, italianos, franceses, alemães, poloneses, judeus, albaneses, búlgaros e moldovos convivendo lado a lado. Por volta de 1939, os judeus se tornaram o maior grupo étnico de Odesa, responsável por 33 por cento da população. Também os ucranianos sempre desempenharam um papel primordial na história de Odesa. Dos séculos 16 a 18, os cossacos de Zaporizhia fizeram muitas incursões pela costa do mar Negro e, em conjunto com tropas russas, tomaram Hacıbey em 1789. Atualmente, os ucranianos étnicos são maioria em Odesa.



A propaganda russa também argumenta que Kharkiv sempre foi uma cidade russa. De acordo com essa versão, Kharkiv foi fundada pela Rússia no século 17. Contudo, muito antes de surgir a atual cidade de Kharkiv, cidades alanas, cazares, cumanas e eslavas existiram dentro e perto de Kharkiv dos séculos 8 a 13. Quando o Reino (Tsarstvo) da Rússia construiu a Fortaleza de Kharkiv no século 17, Kharkiv se tornou um centro nevrálgico dos cossacos de Sloboda, ucranianos que se deslocaram da Ucrânia ocidental para o território da atual província de Kharkiv.

Pozniakov, ativista nascido em Kharkiv, sustenta que Kharkiv tem uma rica tradição cultural ucraniana, com muitos escritores e artistas ucranianos. Ele rejeita como absurdo o argumento dos imperialistas russos de que Kharkiv é uma cidade russa. “Havia uma grande comunidade judaica em Kharkiv”, disse. “Nem por isso há alguém dizendo que Kharkiv deveria ser parte de Israel.”

Kharkiv é considerada o berço do teatro ucraniano moderno, com o vanguardista Teatro Berezil ucraniano sendo fundado pelo diretor Les Kurbas em Kharkiv, em 1922. O teatro foi fechado pelo regime soviético em 1933, enquanto Kurbas foi executado em Sandarmokh durante o Grande Terror na Rússia.

Limpeza étnica na Crimeia – Outro mito favorito da propaganda russa é o de que a Crimeia é um “território historicamente russo”. Ele tem sido usado para justificar a anexação ilegal da península em 2014. Em parte, o mito é baseado no fato de que os russos étnicos são atualmente maioria na população da Crimeia.

Como em outros casos, a história da Crimeia é muito mais nuançada do que faz supor a mitologia russa. Por milhares de anos, a Crimeia foi habitada por cimérios, citas, sármatas, gregos, godos, italianos, armênios e várias tribos túrquicas antes que o Império Russo a anexasse em 1783. Os gregos, que viviam na península desde o século 7 a.C., dominaram-na por muito mais tempo do que a Rússia. Contudo, a Rússia terminou por apagar o legado grego na península.



Depois de ocupar a Crimeia em 1774 e antes de anexá-la formalmente em 1783, a Rússia deportou à força a maioria dos gregos que viviam na Crimeia para o território da atual província de Donetsk. A Rússia alegava que estava protegendo os cristãos gregos dos muçulmanos tártaros e turcos. Mas muitos gregos resistiram à deportação, e alguns tiveram até mesmo de converter-se ao islã para escapar do realojamento. Mais tarde, a União Soviética continuou essa política, lançando em 1937 e 1938 uma onda de repressões contra os gregos soviéticos e, na década de 1940, deportando muitos dos gregos que viviam na costa do mar Negro, incluindo a Crimeia, para outras partes da União Soviética.

Os tártaros da Crimeia eram outra nação que tinha se fixado na península antes dos russos. O Canato da Crimeia, muçulmano, que contava com uma população de maioria tártara da Crimeia, controlou a península do século 15 ao 18. Era um vassalo do Império Otomano. Os tártaros da Crimeia continuaram sendo o grupo étnico predominante na península até o fim do século 19, totalizando 35,6 por cento da população em 1897. Mas, exatamente como o dos gregos, o Império Russo e a União Soviética tentaram apagar o legado dos tártaros da Crimeia.

Em 1944, os líderes soviéticos acusaram a inteira nação tártara da Crimeia de colaboração com os nazistas e deportaram da península cerca de 190 000 tártaros da Crimeia para outras partes da União Soviética, sobretudo o Usbequistão. Dezenas de milhares morreram em decorrência das cruéis condições de exílio. Em 1954, a Crimeia foi transferida da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, uma parte integrante da União Soviética, para a República Socialista Soviética da Ucrânia.

A península se tornou internacionalmente reconhecida como parte da Ucrânia em 1991, com a Rússia reconhecendo-a como parte da Ucrânia conforme o Memorando de Budapeste em 1994 e tratados bilaterais em 1997 e 2003. Isso não impediu que a Rússia anexasse ilegalmente a Crimeia em 2014.

Personalidades e monumentos culturais – A Rússia também costuma considerar como russo qualquer um que tenha alguma relação com o Império Russo ou a União Soviética.

A Rússia se apropriou do escritor Mykola (Nikolai) Gogol como um dos principais representantes da literatura clássica russa, baseando-se no fato de Gogol ter vivido em São Petersburgo e escrito em russo. A realidade é mais complexa: Gogol foi um ucraniano étnico nascido em Sorochyntsi, um vilarejo na atual Ucrânia, e a maioria de seus livros foi produzida na Ucrânia e tratava da Ucrânia.

O escritor Mikhail Bulgakov também constitui um caso complexo. Geralmente ele é considerado como um escritor russo porque escreveu em russo e viveu em Moscou durante a última parte de sua vida. Além disso, ele é frequentemente acusado de ter sido “ucrainófobo”, pois simpatizava com o imperialismo russo e foi um opositor da República Popular Ucraniana, um Estado ucraniano fundado durante a Guerra Civil Russa de 1917-23. Contudo, Bulgakov nasceu em Kyiv e aí viveu durante a primeira parte de sua vida, e há quem argumente que ele pode ser considerado parte da cultura ucraniana.



Serhii Koroliv (Koroliov), o engenheiro que liderou o programa espacial da União Soviética e enviou o primeiro homem ao espaço em 1961, frequentemente também é considerado russo. Porém, ele nasceu na cidade ucraniana de Zhytomyr, e sua mãe era ucraniana.

Igor Sikorsky geralmente é considerado um engenheiro aeronáutico russo. Contudo, ele nasceu em Kyiv, estudou e trabalhou em Kyiv, onde foram construídos seus primeiros aviões. Sikorsky, então com 30 anos de idade, imigrou para os EUA em 1919, onde fundou a companhia Sikorsky Aircraft. Ele nunca visitou a União Soviética.

Sejam figuras de Estado ou ativistas individuais, os ucranianos têm desenvolvido uma campanha em prol da conscientização sobre as nuances da identificação nacional de figuras públicas que viveram na Ucrânia. Como resultado, museus ao redor do mundo estão reconhecendo Kazimir Malevich (nascido em Kyiv), Illia Repin (nascido na província de Kharkiv) e Arkhip Kuindzhi (nativo de Mariupol), entre outros, como artistas ucranianos ao invés de russos.

A Rússia também está usando monumentos a personalidades culturais russas como ferramenta de sua expansão imperialista. Dessa forma, havia milhares de monumentos a russos na Ucrânia, os mais difundidos sendo ao ditador soviético Vladimir Lenin e ao escritor Aleksandr Pushkin. Contudo, a Ucrânia começou uma campanha para demolir monumentos a Lenin e a outros comunistas após a Revolução da Dignidade (Euromaidan) em 2014 e um esforço para livrar-se de monumentos a outros russos após o início da invasão em larga escala pela Rússia em 2022. “Os monumentos são um delimitador do mundo russo”, disse Pozniakov. “Eles são usados para identificar um território como ‘russo’.”